domingo, 26 de agosto de 2018

Uma Canção Que Te Diz que é muito melhor ser do que ter : Je Veux ( Eu Quero)




" Eu não trocaria mil arranha céus e 10 mil mansões, nem toda sua 

fortuna pelo meu conhecimento e mais ainda, pela minha 

felicidade" (Autor anônimo do Século XXI)









Je Veux

Donnez moi une suite au Ritz, je n'en veux pas!
Des bijoux de chez Chanel, je n'en veux pas!
Donnez moi une limousine, j'en ferais quoi?

Offrez moi du personnel, j'en ferais quoi?
Un manoir à Neuchâtel, ce n'est pas pour moi.
Offrez moi la Tour Eiffel, j'en ferais quoi?

Je veux d'l'amour, d'la joie, de la bonne humeur,
C'n'est pas votre argent qui f'ra mon bonheur,
Moi j'veux crever la main sur le cœur.

Allons ensemble, découvrir ma liberté,
Oubliez donc tous vos clichés,
Bienvenue dans ma réalité.

J'en ai marre d'vos bonnes manières,
c'est trop pour moi!
Moi je mange avec les mains et j'suis comme ça!
J'parle fort et je suis franche, excusez moi!

Finie l'hypocrisie moi, j'me casse de là!
J'en ai marre des langues de bois!
Regardez moi,
toute manière j'vous en veux pas
Et j'suis comme ça (j'suis comme ça)

Je veux d'l'amour, d'la joie, de la bonne humeur,
C'n'est pas votre argent qui f'ra mon bonheur,
Moi j'veux crever la main sur le cœur.

Allons ensemble, découvrir ma liberté,
Oubliez donc tous vos clichés,
Bienvenue dans ma réalité.

Je veux d'l'amour, d'la joie, de la bonne humeur,
C'n'est pas votre argent qui f'ra mon bonheur,
Moi j'veux crever la main sur le cœur.

Allons ensemble, découvrir ma liberté,
Oubliez donc tous vos clichés,
Bienvenue dans ma réalité.

Je veux d'l'amour, d'la joie, de la bonne humeur,
C'n'est pas votre argent qui f'ra mon bonheur,
Moi j'veux crever la main sur le cœur.

Allons ensemble, découvrir ma liberté,
Oubliez donc tous vos clichés,
Bienvenue dans ma réalité.

Compositor: ZaZ

Je Veux (tradução)

Eu quero

Dê-me uma suíte no Ritz, eu não quero!
Jóias da Chanel, eu não quero!
Dê-me uma limusine, eu faria o quê?

Dá-me o pessoal, eu faria o quê?
Uma mansão em Neuchâtel, não é para mim
Dá-me a Torre Eiffel, eu faria o quê?

Eu quero o amor, a alegria, o bom humor
Não é seu dinheiro que trará minha felicidade
Eu quero morrer com emoção

Vamos juntos, descobrir minha liberdade
Esqueça seus clichês
Bem-vindo à minha realidade

Estou cansada de suas boas maneiras
é demais para mim!
Eu como com as mãos, e eu sou assim!
Eu falo alto e eu sou muito sincero, me desculpa!

Chega de hipocrisia, cansei disso!
Estou cansado das línguas de madeira!
Olhe-me
de toda maneira, eu não quero nada!
Eu sou assim (eu sou assim)

Eu quero o amor, a alegria, o bom humor
Não é seu dinheiro que trará minha felicidade
Eu quero morrer com emoção

Vamos juntos, descobrir minha liberdade
Esqueça seus clichês
Bem-vindo à minha realidade

Eu quero o amor, a alegria, o bom humor
Não é seu dinheiro que trará minha felicidade
Eu quero morrer com emoção

Vamos juntos, descobrir minha liberdade
Esqueça seus clichês
Bem-vindo à minha realidade

Eu quero o amor, a alegria, o bom humor
Não é seu dinheiro que trará minha felicidade
Eu quero morrer com emoçãoa

Vamos juntos, descobrir minha liberdade
Esqueça seus clichês
Bem-vindo à minha realidade



Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=3XRNegs6FdA


  e      Cifra Club

sábado, 18 de agosto de 2018

Em busca da Liberdade – Traços das Lutas escravas no Brasil.


Para estes tempos nos quais muitos perdem a esperança no povo, muitos aceitam a pecha de "pacífico e sossegado" , num mau sentido, para o povo brasileiro, nada melhor do que este " CAMINHOS DA LIBERDADE" de Emílio Gennari. 

Num tempo quase sem esperança, de opressão e violência sem limite, no qual parecia não haver saída, um povo inteiro, povo trabalhador rebelou-se e lutou.

As coincidências e os interesses mais controversos somaram-se as lutas sem tréguas dos trabalhadores escravos, amigos da liberdade...

Conheça o resultado

Boa leitura

Emilio  Gennari


Em busca da liberdade – traços das lutas escravas no Brasil.



O conteúdo desse estudo foi publicado em livro com o mesmo
título pela Editora Expressão Popular em julho de 2008Ao reproduzir, total ou parcialmente, cite a fonte.

        
Índice

Apresentação                                                                                            03

Introdução                                                                                                04

1. A escravidão negra no Brasil                                                              05

2.  O quilombo de Palmares                                                                     13

3.  Os quilombos em Minas Gerais e Mato Grosso                               22

4. A Balaiada e a insurreição dos escravos no Maranhão                   29

5. A Bahia do século XIX e a Revolta dos Malês                                 36

6. Os tortuosos caminhos da abolição                                                  43

7. Do quilombo do Jabaquara à liberdade das elites                         49

 8. Bibliografia                                                                                       53


Apresentação.

         Reconstruir as lutas que marcaram séculos da nossa história pode não passar de uma perda de tempo para quem vive buscando garantir os meios de sua sobrevivência e realização pessoal.

         Mas, para os homens e as mulheres que dedicam seus esforços à construção de um mundo onde haja tudo para todos, o passado é muito mais do que um momento distante. Sua preocupação de resgatar o ambiente em que já foi desafiada a ordem dos dominadores é um passo indispensável para entender profundamente a realidade atual. Guiados por ele, ponderam as razões das derrotas sofridas pelos movimentos e aprimoram o estudo das artimanhas com as quais os poderosos vêm colocando a serviço de uma minoria a riqueza produzida pela imensa maioria.

É assim que, para superar a indiferença, a resignação, a frustração e a sensação de impotência do presente, quem luta sente a necessidade de olhar para trás, de recuperar etapas de caminhos já percorridos, de compreender as possibilidades e os limites de cada momento para afiar nas oficinas da história as ferramentas que permitem moldar novas escolhas.
        
Consciente desta possibilidade e dos riscos que ela envolve, a elite trabalha incansavelmente para veicular uma visão do passado que reafirme seus interesses de classe como elementos motivadores de toda a sociedade. Nos debates e conferências, nas escolas e nos meios de comunicação, nos locais de trabalho e nos bairros seus intelectuais atuam em diversos níveis para alterar o sentido dos fatos, apagar da memória do povo o que pode dar alento às suas lutas e até mesmo culpar as vítimas da opressão pela violência com a qual foi esmagada a busca de uma vida melhor para todos.

         Contada pelo vencedor, a história alimenta as feições enganadoras da preocupação com o bem comum. O quotidiano é apresentado como a viabilização do melhor dos mundos possíveis e o amanhã vem recheado de promessas que têm na sorte e na aceitação das regras do sistema a trilha de uma incerta afirmação individual.

         Neste embate, a reconstrução de alguns momentos marcantes das lutas dos negros contra a escravidão busca levar os oprimidos a perceberem dois aspectos fundamentais. O primeiro é que o presente não é fruto do acaso e, nele, nem o sofrimento, nem a falta de meios materiais impossibilitam a luta pela liberdade. O segundo, tão importante quanto o anterior, é que uma sociedade da qual seja banida toda exploração do homem pelo homem não cairá do céu, mas será sim o resultado de sua participação ativa nas batalhas que, longe de terminar, estão apenas começando.

         Sabendo da importância desta tarefa e da necessidade de fazer com que o estudo que aqui começamos se torne acessível a um maior número de pessoas, não hesitamos em pedir ajuda à coruja Nádia. Assim como reconstruiu a Questão Palestina, o levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional do México e a situação do Iraque, ela vai nos acompanhar neste novo desafio.

Por isso, cedemos a palavra a esta sábia representante do mundo das aves para que suas pesquisas e reflexões nos levem a conhecer melhor a realidade que queremos transformar.

         Introdução.

         Tarde de novembro. Barrado pela cortina de nuvens, o sol não consegue impedir que uma fria garoa tome conta da cidade. Por toda parte, há pedestres apressando o passo, indiferentes ao que está ao seu redor. O trânsito se torna nervoso e a disputa por cada palmo de rua congestionada transforma o dirigir numa luta encarniçada de todos contra todos.
         Deitado, o corpo se regozija no conforto do sofá. Entre o sonho e a realidade, o cérebro cede à tentação de se entregar a alguns instantes de inesperado descanso. Tudo parece embalar este doce momento de torpor em que os problemas são esquecidos e a consciência se desliga do mundo real.
         De repente, uma úmida brisa investe teimosa contra o rosto relaxado. Alertada do perigo, a cabeça se agita, os músculos se contraem e levam as mãos a removerem as pequenas gotas que atingem a face. Arregalados, os olhos constatam a presença que o sexto sentido havia preanunciado...
- “Ah! É você?!?”, investem os lábios ao demonstrar indiferença e total falta de ânimo.
- “Viva e pronta para a próxima empreitada!”, responde Nádia, a coruja, enquanto bate as asas na altura do rosto do seu secretário com movimentos que revelam manchas de poeira e ferrugem impregnadas na plumagem.
         - “Em que galinheiro ficou dormindo para sair emporcalhada desse jeito?”, provoca a língua entre a ironia e a maldade.
- “Em primeiro lugar – retruca Nádia ao pousar na cabeceira do sofá –, fique sabendo que as minhas plumas e penas ganharam este tom avermelhado não por suas supostas visitas a ninhos alheios, mas pelo fato de eu ficar horas fuçando na sala do museu que reúne grilhões, correntes, chicotes, imagens, relatos e demais testemunhos da época da escravidão”.
- “Sinceramente...não acho graça nenhuma em gastar tempo com velharias enferrujadas e inúteis...”, comenta a boca entre um bocejo e outro.
         Em silêncio, a ave apóia a ponta das asas na cintura e assume uma expressão de reprovação nada agradável. Um suspiro... Um rápido piscar de olhos...e...:
- Que eu saiba, velha é a preguiça que faz seus neurônios ganharem espessas camadas de ferrugem por total falta de uso a ponto daquela que costumam chamar de massa cinzenta servir só para encher o espaço oco do crânio.
Ao contrário da maioria dos bípedes da sua espécie que se acomoda à espera de dias melhores, nós corujas procuramos ouvir as lutas e os sofrimentos que aquelas peças trazem do passado para o presente. Cada uma delas revela uma seqüência interminável de formas silenciosas de resistência, de fugas, de quilombos e de levantes que deixam no solo do tempo as marcas de centenas de rebeliões escravas. Resgatar estes acontecimentos é reavivar a memória de algo que os poderosos procuram fazer cair no esquecimento, cientes de que um povo sem história é como um homem sem memória, que não sabe de onde vem e nem para onde vai.
         Apagado o passado, o que sobra é um presente de resignação e um futuro de incertezas nos quais os de cima vão introduzir, sem grandes dificuldades, novas e mais aprimoradas formas de dominação. Assim, enquanto a maioria parece começar suas lutas sempre do zero e a ausência de uma identidade própria faz com que assuma como seus os valores e a visão de mundo das elites, a minoria, que faz acontecer, mantém bem aberto o túmulo do esquecimento. Nele trata de enterrar tudo o que pode dar vida a um projeto de mudança capaz de concretizar aquelas que hoje são simples esperanças”, conclui a ave enquanto acompanha de rabo de olho as reações do secretário.
         Entendido o recado, os pés enveredam pelo caminho do trabalho. Com gestos precisos, as mãos retiram da pasta as folhas de rascunho nas quais a caneta vai dar forma e cor às palavras da coruja.
         Certa de dominar a situação, Nádia voa até os livros desordenadamente empilhados num canto da mesa. Alguns instantes de concentração... O costumeiro “Muito bem...vejamos...” que escapa por entre o bico, e, do alto de sua posição, ordena:
- “Escreva! Capítulo 1º......”

1.     A escravidão negra no Brasil.

- “Para início de conversa – diz a coruja ao limpar a garganta – é necessário resgatar as razões que levam Portugal a realizar longas viagens marítimas. Como os demais reinos da Europa, o governo de Lisboa tem grande interesse em ampliar o comércio que, no século XV, é uma poderosa fonte de enriquecimento. A busca de matérias-primas e de metais preciosos em terras distantes visa garantir ao rei novos domínios e recursos suficientes para fortalecer seu poder bélico, assegurar o controle dos mercados recém-conquistados e possibilitar a acumulação de riquezas ainda maiores. Em outras palavras, longe de se preocupar com o bem-estar e o futuro das populações, nobres e comerciantes lusitanos estão interessados em saquear tudo o que pode vir a engordar seus tesouros.
         Decepcionado pela ausência das fabulosas minas de ouro e prata que os espanhóis estão explorando em outros países, Portugal põe as mãos no único produto visível e abundante, o pau-brasil, de cuja madeira vermelha se extrai um corante usado na Europa sobretudo para tingir tecidos. Por cerca de 30 anos, as companhias de navegação se beneficiam com uma troca vantajosa. Suas embarcações saem carregadas de pedaços de pano colorido, espelhos, facas, canivetes, serras, machados e outras bugigangas e voltam abarrotadas com as toras que os índios extraem das florestas.
         Mas, a partir de 1530, outras nações estão de olho nestas terras. Pressionada, a coroa portuguesa se vê diante da necessidade de colonizar rapidamente o seu pedaço do chamado novo mundo onde, graças ao clima quente e às características do solo, é possível implementar com sucesso o cultivo da cana.
Esta escolha, obviamente, não tem como preocupação central o desenvolvimento local, mesmo porque a sua viabilização exige a devastação pura e simples de amplas áreas de floresta, mas sim a busca das altas margens de lucro propiciadas pelo açúcar, vendido a caríssimo preço nos mercados europeus. O problema é que, para ser rentável, o canavial deve ocupar grandes extensões de terra e uma quantidade considerável de força de trabalho”.
- “Então, para resolver esta pendenga, o passo mais lógico é trazer da Europa parte dos camponeses sem terra!”, prorrompem os lábios sem pesar as palavras.
Ouvido o comentário, a coruja desenha no ar um cifrão com a ponta da asa direita e diz:
- “O que a sua cabecinha de humano não consegue entender é que, num sistema econômico baseado na exploração do homem pelo homem, não há como conciliar o atendimento das necessidades das pessoas com a lógica do mercado. Nela não há espaço para os sentimentos, mas só para o frio cálculo das perdas e ganhos. A preocupação com as camadas mais pobres do povo, alardeada pela elite, se dá somente na medida em que a reação destas pode vir a ameaçar a manutenção da ordem social que garante a fortuna de poucos.
Se as coisas fossem como você sugere, o camponês vindo do outro lado do oceano para um país onde há abundância de terras incultas e sem dono acabaria se instalando num lugar qualquer, se tornaria um produtor independente, dedicado a garantir o próprio sustento e não o enriquecimento dos senhores dos dois lados do oceano. Ainda que se dispusesse a trabalhar para eles em troca de um salário, a escassez de braços elevaria o ordenado a um patamar tão alto que os lucros obtidos com o açúcar não seriam compensatórios.
Além do mais, por ser um homem livre, os grandes proprietários locais não poderiam obrigá-lo a um trabalho forçado em suas terras e nem conseguiriam impedir que este se instalasse em outras transformando-as numa espécie de propriedade privada cuja produção seria quase integralmente voltada à auto-sustentação. Resumindo, um trabalhador agrícola que pudesse ser obrigado a ficar na terra e a desempenhar suas funções nas condições impostas pelo dono da plantação só poderia ser um escravo.
Por isso, uma vez tomada a decisão de colonizar o território, a coroa portuguesa muda radicalmente a sua relação com os povos indígenas. A guerra e o extermínio estão entre as primeiras medidas para expulsar os nativos de grandes extensões de terra e para submetê-los à escravidão.
Poucos sabem que, de 1530 a 1600, a exploração escrava dos índios vai ser a força motora da produção da colônia. É ela que vai estar na base do cultivo de cereais, algodão, açúcar e café de São Paulo até por volta de 1820. No Maranhão, a escravidão indígena só acaba no século XVIII, ao passo que a economia do Pará vai se aproveitar dela até 1755 quando, com a proibição do Marquês de Pombal, assume uma forma de dependência que se distancia muito pouco das relações de trabalho anteriores. A própria extração do ouro nas regiões que hoje pertencem aos estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, dá o pontapé inicial tendo como base o trabalho escravo dos índios e até mesmo na Bahia e Pernambuco estes entram em cena toda vez que, por alguma razão, o número de negros trazidos pelo tráfico diminui sem possibilidade de pronta recuperação”.
- “Mas, Nádia, eu sempre ouço dizer que os indígenas são substituídos por não gostarem de trabalhar, não se adaptarem á escravidão, não terem um físico que resiste às doenças trazidas pelos europeus ou por fugirem mais facilmente do cativeiro na medida em que conhecem a mata e podem encontrar abrigo sem dificuldade... Confesso que suas colocações me deixam confuso...”.
Questionada, a ave desce da pilha de livros e emite um longo suspiro. Reunidas as idéias, aponta a asa para a caneta com um “vamos pegar um bicho de cada vez!” que sinaliza a necessidade de responder detalhadamente às afirmações do secretário. E continua:
- “No que diz respeito às fugas, é verdade que os indígenas levam uma certa vantagem na medida em que se defrontam com os colonizadores organizados em sociedades tribais, conhecem as matas e podem facilmente encontrar abrigo. Mas, por outro lado, não podemos dizer que a submissão do negro à escravidão é maior pelo simples fato deste já ter conhecido situações parecidas em sua terra natal.
Introduzidos nas plantações após terem sido arrancados à força do seu meio social, os africanos das senzalas têm apenas maiores dificuldades em levar adiante uma resposta coletiva na medida em que se deparam com pessoas de diversas etnias, línguas, tradições e costumes. Apesar disso, a longa lista de insurreições, fugas, assassinatos de feitores e demais formas de resistência mostra que a hipótese de uma maior submissão dos negros não tem fundamento.
Do mesmo modo, não é convincente o argumento que atribui a substituição do escravo indígena pelo negro à capacidade deste último de resistir às doenças. Os defensores desta idéia esquecem que a maior parte das mortes entre os índios não se deve aos problemas de saúde trazidos pelos europeus, mas sim ao esgotamento físico provocado pelo excesso de trabalho e pelas condições subumanas a que são submetidos.
Contrariando a crença de que o escravo, enquanto propriedade do senhor, representa um bem a ser preservado, o sistema escravista vê na sua máxima rentabilidade o elemento que define a velocidade do seu esgotamento físico. Quanto maior o volume de trabalho que o cativo pode dar hoje, tanto mais vantajoso é estafá-lo para extrair, no menor tempo possível, o valor investido na compra do africano e a margem de lucro que pode oferecer. Agir no sentido de prolongar a vida útil do escravo significa aumentar os gastos com o seu sustento diário e correr o risco de obter porcentagens menores de trabalho excedente na medida em que as doenças e a morte podem interromper, repentinamente, a sua exploração. E se isso vale para os negros, vale ainda mais para os índios cujo preço de compra é de, aproximadamente, um quinto da quantia paga por um cativo africano. Ou seja, por se tratar de uma força de trabalho muito barata, os indígenas reduzidos à escravidão são obrigados a dar conta de uma quantidade absurda de tarefas sem que seus donos se preocupem minimamente com eles.
Por sua vez, o crescente e ininterrupto fluxo de escravos trazidos pelo tráfico é, por si só, uma prova de que, também entre os negros da senzala, a mortalidade não é tão baixa como pretendem nos fazer crer. Vivendo em condições extremamente precárias e submetidos a um regime de trabalho extenuante, os escravos empregados nos canaviais e nos engenhos têm uma vida útil reduzida. Em outras palavras, o período de tempo em que eles têm a capacidade de desempenhar a quantidade de trabalho exigida costuma girar, em média, em torno de 8 anos.
Na medida em que não consegue dar conta da carga imposta pelos feitores e passa a ser considerado um peso morto no orçamento do proprietário, o negro escravo pode vir a ser alforriado, ganhando com esta suposta liberdade a igualmente dura tarefa de mendigar os meios de subsistência. Esta situação mais corriqueira é acompanhada de duas variantes: de um lado, encontramos senhores que confiam tarefas leves (como a criação de aves) aos cativos tornados inválidos para o trabalho e, de outro, não são poucos os que resolvem esta questão assassinando pura e simplesmente aqueles que já não rendem o esperado.
No que diz respeito ao nível técnico, não há dúvidas de que os negros superam os índios na agropecuária, no artesanato e na forja dos metais, mas este saber não é aproveitado na labuta primitiva das plantações que, para muitos africanos, representa um verdadeiro retrocesso.
Agora, uma coisa é dizer isso e outra, bem diferente, é afirmar que o indígena não gosta de trabalhar ou não se adapta ao trabalho sedentário. As missões dos jesuítas provam exatamente o contrário. Nelas, os índios desempenham excelentemente todos os trabalhos agrícolas, pastoris, extrativistas e artesanais. Este aprendizado grupal deita raízes no fato dos religiosos terem criado uma organização econômica e social inspirada na propriedade coletiva, no trabalho comunitário e na igualdade, ou seja, em elementos familiares ao mundo indígena.
Por outro lado, não podemos esquecer que, além da campanha contra a escravização dos índios, a substituição destes pelos cativos africanos conta com as crescentes pressões da coroa portuguesa e dos traficantes. Ao veicular a idéia de que os indígenas são preguiçosos, incapazes e menos resistentes ao esforço físico, buscam abrir caminhos à elevação dos gordos lucros obtidos com o tráfico de escravos graças à troca destes pelas mercadorias destinadas à exportação”.
- “Quer dizer, então, que a coisa é pior do que se imagina?”, pergunta a boca ao deixar transparecer toda a perplexidade gerada por esta descoberta.
Nádia balança a cabeça em sinal de afirmação e, piscando os olhos, acrescenta:
- “Como acabo de dizer, quando analisamos a substituição do cativo indígena pelo africano, percebemos que esta se dá de forma rápida e irreversível nas regiões onde a economia é integrada ao comércio internacional. Esta situação, em geral, não se manifesta nas áreas onde predominam atividades de subsistência ou a produção se destina ao mercado interno. A razão de ser deste processo deve ser buscada no triângulo comercial que une Europa, África e Brasil”.
- “Triângulo comercial?!? Que diabo é isso?!?”
- “Calma, eu já vou explicar – diz a coruja ao levantar as asas. Nos primeiros séculos da escravidão, as grandes companhias de navegação levam panos, ferragens, trigo, sal, cavalos, aguardente, tabaco, açúcar, armas de fogo, munição e até búzios (usados como moeda em várias regiões) nos porões dos navios que se dirigem aos portos africanos. Nestes, os portugueses contam com verdadeiras fortalezas e entrepostos fartamente abastecidos de escravos pelos pumbeiros, ou seja, por agentes que se dirigem até os pumbos, como são chamados os mercados do interior onde as tribos locais trocam gente por bugigangas. Acorrentadas, as vítimas são privadas de alimentação adequada, têm o corpo exposto às intempéries, sofrem inúmeros maus tratos e começam uma jornada que, até o momento do embarque para o Brasil, pode durar meses.
A maior parte dos produtos usados nesta primeira fase é de origem européia e sua troca por cativos é muito vantajosa. A contas feitas, podemos dizer que o valor dos escravos embarcados na África supera em sete a dez vezes o das mercadorias usadas para a sua compra.[1]
Batizados e marcados a fogo com uma cruz no peito, os negros são colocados em navios que deixam o continente africano abarrotados de gente. A depender da distância entre o porto de partida e o de chegada no litoral brasileiro, de eventuais epidemias ou acidentes que podem prolongar o tempo de viagem, os traficantes perdem até 20% da carga humana que transportam. Mas esta mortalidade é amplamente compensada pela diferença entre o preço de compra na África e o de venda no Brasil. Como os custos com a tripulação, o navio e a alimentação dos escravos (a base de farinha e água) não sofre grandes alterações, é mais vantajoso transportar 200 cativos, mesmo sabendo da possibilidade de perder 40 deles, do que embarcar só uma centena e não perder nenhum.
Além disso, os interesses das companhias de navegação coincidem com os dos funcionários da coroa encarregados de regulamentar o tráfico. Tanto na saída da África, como na chegada em terras brasileiras, os impostos são cobrados sobre o volume transportado. Quanto mais escravos são carregados e descarregados, maiores são as rendas que afluem para os cofres reais. Em nome desta dupla possibilidade de ganho, as autoridades não titubeiam em esquecer os decretos que determinam a quantidade de comida, água e negros que pode ser legalmente transportada em cada navio.
Ao chegar nos portos, os esqueletos ambulantes dos africanos que conseguem sobreviver à viagem são trocados pelo açúcar e demais produtos a serem levados para a Europa. O escravo, vendido a caro preço, é a moeda que, neste momento, substitui o ouro e as demais formas de pagamento usadas nas relações comerciais do velho mundo. Lotadas e reabastecidas, as embarcações atravessam o oceano rumo ao continente europeu onde sua preciosa carga é vendida por uma quantia bem maior.
No balanço final, o lucro líquido das companhias de navegação que atuam nestas rotas varia de 300% a 600% do total investido. Além de abastecer a Europa de matérias-primas e garantir um mercado para suas manufaturas, os ganhos oriundos da escravização dos índios, que antes acabavam nas mãos dos colonos, são agora apropriados em dose bem mais abundante pelos comerciantes das metrópoles que passam a ter no tráfico de escravos negros uma parte essencial dos seus negócios”.
Atordoado pelas inesperadas revelações da coruja, o secretário apóia a testa na palma da mão esquerda enquanto a direita termina de traçar no papel as últimas linhas do relato. Um profundo silêncio se estabelece entre os dois, até que a língua expressa uma conclusão tão esperada quanto assustadora:
- “Pelo que você acaba de dizer, se a lógica do mercado transforma a vida dos escravos num inferno antes mesmo de sair da África, a submissão a estas mesmas regras no Brasil só vai prolongar e aprofundar seus sofrimentos...”
- “Sua afirmação faz sentido – comenta a ave ao andar de um lado para outro da mesa. Mesmo assim, nossas reflexões não podem se limitar a gerar sentimentos de compaixão, mas devem dar ao leitor uma noção clara do que é a vida na época da escravidão e de como a elite busca justificar até mesmo suas manifestações mais cruéis.
Desembarcado do navio e levado ao mercado, o escravo recebe uma alimentação a base de farinha de mandioca, angu de fubá, toucinho, carne-seca, feijão e algumas frutas a fim de combater as doenças contraídas durante a viagem. Mas você não ache que com tudo isso ele vai engordar, pois as porções diárias de comida são extremamente reduzidas.
O vestuário é quase inexistente até mesmo nos meses frios do ano, e, durante a visita dos possíveis compradores, homens e mulheres são expostos completamente nus para que estes possam realizar uma inspeção completa das peças nas quais estão interessados.
Para não mostrar sinais de apatia e depressão, os escravos recebem estimulantes (pimenta, gengibre e tabaco) ou, como costuma ocorrer no Rio de Janeiro, são obrigados a dançar alegremente durante o exame físico a fim de convencer os interessados de sua saúde excelente, elevando assim o preço de venda. Caso isso venha a falhar, socos, tapas, pontapés e ameaças de serem chicoteados são fartamente distribuídos aos que não atendem às ordens recebidas.
Ao chegar na senzala, os cativos são novamente marcados a fogo com as iniciais do nome e sobrenome do seu dono para que, ao gravar na carne o vínculo de propriedade, se facilite o reconhecimento e a reapropriação de cada fugitivo. Entre os que se destinam às plantações, não são poucos os casos em que se registra a prática da primeira hospedagem, uma surra inicial com açoites ministrada ao recém-chegado com a finalidade de baixar a crista dos possíveis rebeldes.
A relação dos senhores com a massa escrava se baseia no princípio do use e abuse. A duração da jornada de trabalho não conhece limites e, sobretudo nas épocas de corte e moagem da cana, passa das 15 horas diárias. Em geral, a labuta vai de segunda a segunda com cinco dias de descanso por ano: Natal, Epifania, Páscoa, Ascensão e Pentecostes.
Sendo o escravo batizado e cristão, o fato de não respeitar os domingos e demais dias santos chega a suscitar escrúpulos entre os religiosos. Mas a autoridade eclesiástica liquida a questão argumentando que as necessidades da produção justificam o não cumprimento dos preceitos da igreja.
A alimentação dos moradores da senzala é resolvida de três maneiras. Alguns senhores não fornecem nenhuma ração, mas permitem que seus cativos trabalhem aos domingos num pedacinho de terra de onde devem tirar o sustento e só fornecem pequenas porções de mel grosseiro na época da colheita. Outros não concedem dias livres, mas proporcionam uma escassa quantia de farinha e carne-seca. Os mais humanos, acrescentam à comida um dia livre por semana. Porém, mesmo nas situações mais favoráveis, a produção do escravo destinada a si próprio está sempre sujeita ao arbítrio e às conveniências do senhor, razão pela qual, na senzala, a fome não é exceção, mas regra.
Como mercadoria, o cativo pode ser vendido, alugado, penhorado e morto. Apesar da legislação não admitir o direito de vida e morte, senhores e feitores assassinos de escravos não são incomodados pela justiça cujas autoridades estão preocupadas na manutenção da ordem escravista e não na preservação da incolumidade dos africanos. Até mesmo no século XIX, as denúncias de crime que chegam nos tribunais são freqüentemente respondidas por investigações e sentenças que atribuem a morte do cativo a um acidente ou ao suicídio”.
- “Esta situação vale para todos os escravos ou há diferenças entre uma região e outra?”
- “Grosso modo, podemos dizer – responde a coruja ao espetar o ar com a ponta da asa – que, de início, a maior parte dos africanos que chega no Brasil é destinada aos canaviais, mas, nas cidades, já a partir do século XVII, assistimos à introdução dos chamados negros-de-ganho.
Trata-se de homens e mulheres escravos que prestam serviços ou executam algum ofício nos centros urbanos. Neste grupo encontramos barqueiros, carregadores, mascates, oleiros, marinheiros, carpinteiros, ferreiros, serradores, sapateiros etc. que, diária ou semanalmente, entregam ao seu dono uma quantia combinada ficando com o pouco que sobra para a sua própria manutenção. Mesmo ruins, suas condições de vida são um pouco menos duras em relação às que encontramos no ambiente rural. Apesar disso, a jornada de, no mínimo, 12 horas somada à precariedade da moradia e da alimentação levam a vida útil da maioria destes escravos a não superar a marca dos dez anos.
As escravas, além de servirem de amas-de-leite, parceiras sexuais de seus senhores e dar conta dos trabalhos domésticos, situação corriqueira em todas as plantações, nas cidades são forçadas a se dedicar ao comércio de rua e, no caso das mais atraentes, a se prostituir em tempo parcial ou integral.
Cativos doentes, cegos ou inválidos são forçados à mendicância tanto para juntar dinheiro para seus senhores como para obter o próprio sustento. Em caso de doença terminal, incapacidade total ou morte, são jogados porta afora para evitar que seus amos tenham que arcar com os gastos do funeral. No Rio de Janeiro, por exemplo, é comum encontrar o cadáver de algum escravo pelas ruas da cidade. Quando isso acontece, um soldado se posiciona sobre ele com uma caixa na qual recolhe a contribuição dos passantes e o corpo só é removido do local quando nela já se encontra a quantia suficiente para custear as despesas do enterro.
- “Nádia, agora fiquei curioso – intervém o secretário ao parar de escrever. Se há homens e mulheres escravos, significa que podem procriar e que, pouco a pouco, o tráfico poderia ser substituído pelo aumento da população nascida no cativeiro! Certo?!?”
- “Errado! – responde a coruja sem pestanejar. Se você refletir sobre o que acabo de dizer, não só vai perceber facilmente que a exploração colonial do Brasil precisa de um constante e crescente fluxo de escravos como a reposição destes é praticamente inviável com a procriação que ocorre nas senzalas. Além da mortalidade que atinge 80 em cada 100 crianças nascidas vivas, a chance de uma das 20 restantes chegar à idade adulta é muito reduzida na medida em que o recém-nascido é submetido às mesmas condições adversas dos pais e a possibilidade de contrair doenças que o levem à morte é realmente muito grande. Isso não só explica o baixo preço de uma criança escrava, como a falta de interesse dos senhores de engenho investirem recursos em seu crescimento na medida em que os riscos e os custos são bem maiores daqueles com os quais se deparam na compra de um africano adulto.
Ao que tudo indica, só as ordens religiosas cuidam da reprodução de seus escravos. Silva Lisboa escreve que os Jesuítas deixam seus engenhos e fazendas cheios de numerosos cativos entre os quais é raro encontrar alguém da costa da África. Koster, por sua vez, observa que, em Pernambuco, o plantel dos Beneditinos já é totalmente crioulo, sendo que o mesmo acontece com o dos Carmelitas. Os frades incentivam a procriação nas senzalas a ponto de permitir o casamento de homens livres com escravas, mas não o contrário, isto é de escravos com mulheres livres, pois, neste caso, pelas regras da época, os filhos não poderiam ser forçados ao cativeiro”.[2]
- “Diante desta realidade, como é possível manter submissa a massa escrava sabendo que, com o tempo, ela passa a ser numericamente maior dos brancos tanto na cidade como no campo?”
- “Para este propósito, as elites criam o que podemos chamar de um verdadeiro sistema de terror que se apóia não só na violência efetivamente praticada, como na ameaça permanente de que esta vai desatar o seu rigor contra qualquer expressão de rebeldia.
Por exemplo, quando incorre em faltas leves, o cativo é colocado no tronco (dois grandes pedaços de madeira retangular que imobilizam pés, mãos e pescoço) ou no vira-mundo (um pesado grilhão de ferro que prende pés e mãos e obriga o sentenciado a uma posição incômoda e, não raro, deformante).
Em caso de fuga, após a aplicação de até 100 açoites nos pelourinhos das cidades ou na presença dos demais colegas de sofrimento da fazenda, o corpo do supliciado, já em carne viva, é banhado com vinagre, água salgada ou pimenta e jogado numa cela. Se conseguir sobreviver, vai passar o resto da vida no libambo (uma argola de ferro ao redor do seu pescoço com uma haste à qual é fixado um chocalho ou uma placa com dizeres aviltantes) ou preso a um sistema de correntes que dificultam seus movimentos.
Para extrair confissões, se usam os anjinhos, dois anéis de ferro que vão comprimindo os polegares da vítima na medida em que cada aperto de um pequeno parafuso diminui progressivamente o seu diâmetro, provocando dores horríveis.
Outro castigo bastante comum consiste na aplicação de uma máscara de folhas de flandre sobre o rosto do escravo. A este devemos acrescentar a castração, a destruição dos dentes a marteladas, a amputação dos seios, o vazamento dos olhos, as marcas no rosto com ferro em brasa, as queimaduras provocadas pelas fagulhas das caldeiras quando o cativo é acorrentado com o corpo nu bem próximo de suas chamas.
A lista dos horrores se completa com os casos menos freqüentes de africanos emparedados vivos, afogados, estrangulados, arremessados ao fogo ou esmagados na moenda de cana. Se a isso somamos o suplício das longas jornadas de trabalho, não vamos ter nenhuma dificuldade em entender o que significa viver o inferno das senzalas”.
- “Confesso que fiquei horrorizado... Parece mesmo que a maldade humana não tem limites...”, diz a boca ao externar sentimentos de compaixão.
A coruja permanece silenciosa. O piscar de seus olhos parece indicar que reações de espanto, aparentemente tão acertadas, não bastam para compreender a profundidade de séculos de história e, muito menos, para entender os limites da luta pela liberdade que vão se manifestar nas mais variadas formas de resistência e rebeldia dos escravos. Ciente da necessidade de colocar cada coisa em seu lugar, a ave se aproxima, apóia a asa no ombro do secretário e com voz pausada sussurra:
- “Não assuste. Esta é apenas parte da realidade de um período no qual, como em tantos outros, o lucro ocupa o centro das preocupações da sociedade e faz girar ao seu redor os elementos que o justificam e o tornam racional.
Pra início de conversa, as investidas de Portugal na África e no Brasil são saudadas e apóiadas pelos próprios papas como uma forma de levar o cristianismo pelo mundo. Entendidas como uma verdadeira cruzada da fé, a serviço de Deus e do rei, as expedições que vão alimentar a colonização e o tráfico de escravos têm os abusos e as culpas de seus integrantes e patrocinadores automaticamente perdoadas pelas bulas papais.
Por sua vez, os escravos são considerados eleitos de Deus e escolhidos, à semelhança de Cristo, para salvar a humanidade através do sacrifício. Em 1633, o Padre Antonio Vieira, expressa esta compreensão da igreja católica ao falar aos escravos de um engenho da Bahia: Cristo despido e vós despidos; Cristo sem comer e vós famintos; Cristo em tudo maltratado e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que se for acompanhada de paciência também terá merecimento de martírio. [3] Enquanto aos cativos se recomenda a submissão com a promessa de um futuro glorioso nos céus, os senhores são ameaçados com os castigos divinos e terrestres (a rebelião e a sedição) caso não diminuam os maus-tratos. Ou seja, de acordo com esta lógica, a escravidão não é condenada pela igreja desde que moderada, justa, racional, rentável e equilibrada.
Ao mesmo tempo, as elites alimentam preconceitos pelos quais o cativeiro passa a ser justificado, assimilado e aceitado com naturalidade. O ato de arrancar o negro de sua terra natal é apresentado como um benefício para ele próprio enquanto caminho para afastá-lo da barbárie e levá-lo à civilização. Além disso, atribuem ao africano más qualidades, como a preguiça, a libidinagem, a malícia, a vadiagem, o caráter traiçoeiro e maldoso, invocadas para justificar tanto o peso do trabalho como os castigos corporais.
O cimento da estrutura racista da sociedade ganha consistência na medida em que se inculcam nos africanos sentimentos de inferioridade, uma péssima idéia de si mesmos e de suas etnias, além de estigmas associados á cor negra. As diferenças de pigmentação da pele se tornam assim um elemento distintivo que dá origem a uma hierarquia pela qual o mulato é melhor que o negro, o moreno melhor que o mulato e assim por diante. Some a esta realidade as propriedades negativas atribuídas ao trabalho manual, considerado digno de seres inferiores, e terá uma idéia do ambiente criado pela classe dominante colonial para promover a destruição das culturas africanas e desqualificar seus valores.
A prova da eficácia do conjunto destas medidas está no isolamento social com o qual vai se defrontar a massa escrava. Por mais de três séculos, não há nenhum setor da sociedade vitalmente interessado em abolir o sistema escravista, pois, bem ou mal, todos acabam vivendo à custa do trabalho escravo”.
- “Então, pelo visto, na senzala e fora dela não há nada que ajude a organização dos cativos...”
- “Exatamente! – confirma a coruja com uma frieza assustadora. A simples identidade de cor não basta para gerar a solidariedade entre os negros. Além das pressões externas e da violenta repressão a que estão submetidos, há outros elementos que dificultam a possibilidade de uma resposta capaz de destruir a ordem existente.
Vale a pena lembrar, por exemplo, que nem todos os cativos se encontram na mesma situação. Quando analisamos os mais de três séculos de escravidão, nos deparamos com negros livres e escravos; cativos submetidos ao terrível trabalho das plantações ou das minas ao lado de outros que sofrem uma exploração mais branda; libertos e alforriados que passam fome convivem com outros que já são donos de um certo número de escravos; negros expropriados de todo o fruto do seu trabalho se deparam com os que têm acesso a uma remuneração da sua labuta; cativos que se rebelam ou insurgem acabam esmagados por regimentos formados por negros e pardos que buscam no recrutamento militar a possibilidade de deixar para trás a condição de escravos. Enfim, do mesmo modo em que, na África, a identidade de cor não consegue impedir que as tribos desenvolvam formas de escravidão e alimentem o próprio tráfico, no Brasil, esta não evita que, em graus diferentes, muitos cativos colaborem com os brancos para subjugar os negros.
O simples fato de todos serem vítimas da escravidão não basta para que teçam entre eles ações capazes de destruí-la. No próprio ambiente rural, as diferenças entre os escravos empregados na produção e os que se dedicam aos serviços domésticos da casa-grande confere aos últimos uma posição ligeiramente mais elevada em relação aos demais, o que lhes permite minorar seus próprios sofrimentos. Escolhidos por sua beleza, inteligência, seus hábitos de asseio ou de higiene, sua aceitação aumenta na medida em que assimilam os valores dominantes. Isso faz com que a perda da identidade africana seja vista como um meio para ocupar os postos que proporcionam um maior grau de liberdade, segurança e prestígio.
A todos estes fatores devemos acrescentar as hostilidades e os conflitos que se instalam nas senzalas em função das diferenças étnicas aí presentes. Os membros de várias nações africanas não esquecem as rixas de suas tribos no país de origem e as rivalidades que delas nascem acabam se somando às diferenças de língua, cultura e crença religiosa fazendo com que, muitas vezes, a divisão prevaleça sobre a união.
As coisas se tornam difíceis também em função da constante renovação do contingente de escravos que ocorre ora para expandir as atividades produtivas, ora para substituir os que já não rendem o desejado pelos senhores. O fato de não ter vínculos com os que se encontram no plantel e, às vezes, de não falar, a mesma língua acaba dificultando as relações, emperrando o desenvolvimento de ações coletivas e a transmissão da experiência de luta acumulada.
Para entender o conjunto de obstáculos que se impõe à organização dos escravos, há um último elemento que nem sempre é levado em consideração. Estou me referindo á dispersão geográfica, ou seja, às distâncias consideráveis que separam uma plantação da outra e que, associadas ao rígido controle dos feitores, impedem a comunicação entre os cativos dos vários engenhos”.
- “Puxa, mas, desse jeito, parece impossível esboçar uma reação...”, concluem os lábios perplexos.
- “Eu não diria isso – afirma Nádia ao sublinhar sua fala com o movimento ritmado da asa. De um lado, é preciso reconhecer que a grande maioria dos escravos não foge, não participa de levantes, nem atenta contra a vida de seus feitores ou senhores. À exceção da geração que chega à abolição, a maior parte dos cativos vive a escravidão até a morte. Isso não significa que aceitam pura e simplesmente este amargo destino, mas tão somente que estes homens e mulheres se comportam como todos os seres humanos em circunstâncias extremamente desfavoráveis, ou seja, tendem a se adaptar para tentar sobreviver. Para eles, resistir à escravidão, via de regra, é sinônimo de resistir ao trabalho. O cativo precisa ser mau trabalhador para não ser um bom escravo. Daí o relaxamento, a incúria, a subserviência fingida, o trato ruinoso dos animais e das ferramentas, a sabotagem, enfim, um processo que leva quem está submetido à escravidão a estabelecer limites de tolerância que não deixam de ser percebidos.
Outra forma de resistência amplamente relatada pelos historiadores é o banzo. Definido como profunda saudade da África, descreve a situação em que o negro cai em depressão, se recusa a trabalhar e a comer, definhando muitas vezes até a morte. Mais do que expressão de um sentimento para com a terra natal, esta situação se configura como uma forte rejeição da condição estranha e hostil na qual o africano é mergulhado, a tal ponto de não permitir ao escravo nenhuma identificação com o espaço físico, com o grupo dos que partilham a sua sorte e, menos ainda, com o universo opressor do branco.
Por sua vez, o suicídio, desconhecido no continente africano, se torna comum em terras brasileiras como forma de escapar a uma realidade odiosa e de grandes sofrimentos. Estimulado pela crença de que seus espíritos voltariam para a África, o pôr fim à própria vida assume as feições de um enfrentamento na medida em que priva o branco de seu capital humano. Nesta mesma linha, encontramos também os abortos praticados pelas negras nas plantações e nos engenhos. Muitas entre as poucas crianças que nascem vivas são sacrificadas pelas mães com o propósito de impedir que os filhos de suas entranhas tenham que passar pelos mesmos sofrimentos.
A fuga individual é, sem dúvida, outra forma de resistência amplamente utilizada, apesar dos inúmeros perigos que oferece. Chamados a escolher entre o cativeiro e a busca da liberdade, muitos escravos enfrentam a severa vigilância dos feitores, as perseguições dos capitães-do-mato, o desconhecimento do terreno e dos recursos que permitem sobreviver em regiões hostis mesmo sabendo que, ao serem recapturados, poderiam ser fustigados até a morte para servir de exemplo aos demais.
A violência individual contra senhores e feitores é mais freqüente nos canaviais. Matar membros da casa-grande é algo mais raro, que geralmente ocorre através da ação de pequenos grupos ou em momentos de tensão excepcional. Mesmo assim, o desejo de destruir os brancos é algo difundido e profundo e, em geral, se manifesta através de símbolos e rituais.
As práticas religiosas realizadas nas senzalas estão relacionadas a formas coletivas em que se manifesta a rebeldia escrava. Nelas, as danças desempenham um papel relevante exacerbando os gestos, exercitando a ginga, dotando o corpo de extraordinária mobilidade, destreza e velocidade de movimentos. Aos poucos, os passos que na África eram utilizados nos rituais ganham no Brasil as características de uma arte marcial. Os negros criam e adaptam seus golpes à necessidade de enfrentar o corpo a corpo com os capitães-do-mato, encarregados de capturá-los vivos para que possam ser publicamente supliciados ou reconduzidos ao trabalho forçado.
Se as incertezas quanto à origem e ao sentido da palavra capoeira estão longe de terminar, pesquisas recentes revelam uma relação cada vez mais próxima entre danças, tradições marciais e lúdicas do continente africano e as formas de autodefesa desenvolvidas pelos escravos no Caribe e no Brasil. No arquivo histórico de Angola, em Luanda, há gravuras da dança n’golo que confirmam a semelhança com os golpes da capoeira antiga. O fato desta não ser a única expressão conhecida pelas etnias de escravos aqui desembarcados pelos traficantes, leva a concluir que a capoeira tem diversos pais espalhados por toda a África, mas só em nossas terras evolui até se tornar uma arte marcial propriamente dita.[4] O que aos olhos de amos e feitores parece não passar de uma dança ou de um ritual, a avó da capoeira atual leva o negro a fazer com que o corpo duramente submetido ao peso da escravidão possa vir a ser usado como arma, como instrumento de luta pela liberdade.
É nesse emaranhado de recusas, rejeições e formas de resistência que os negros dão origem a revoltas seguidas de fugas das quais, via de regra, nascem os quilombos”.
- “Quilombos... Eu já ouvi falar,... mas... será que você poderia tratar um pouco mais deste assunto?”, solicita o secretário ao expressar uma curiosidade insólita.
- “A palavra quilombo – diz a ave balançando o corpo – é a incorporação à língua portuguesa de um termo africano que significa esconderijo. No Brasil, se torna sinônimo de núcleo de escravos fugidos que procuram abrigo em locais de difícil acesso para neles construírem padrões africanos de organização social.
Em geral, esta forma de enfrentar a ordem escravista acaba predominando nas regiões rurais. É aí que, ao lado de grandes concentrações de cativos nas senzalas, nos deparamos com um rigor desenfreado na aplicação dos castigos, condições de trabalho desumanas, uma maior possibilidade de encontrar facilmente esconderijos naturais e de dar vida tanto a uma economia de subsistência como a ações que visam a defesa e a ampliação do próprio quilombo em povoados chamados de mocambos.
Por ser uma crítica viva à escravidão, os quilombolas são temidos pelos brancos a tal ponto que qualquer ajuntamento de africanos fugidos do cativeiro já é considerado alvo de ataque e eliminação independentemente do número de pessoas que nele se escondem.
Num dispositivo governamental de 6 de março de 1741, por exemplo, é considerado quilombo o lugar onde encontram-se reunidos cinco escravos. E, em 20 de agosto de 1847, a Assembléia Provincial do Maranhão aprova a Lei N.º 236 que, no artigo 12 diz: Reputar-se-á escravo quilombado, logo que esteja no interior das matas, vizinho ou distante de qualquer estabelecimento, aquele que estiver em reunião de dois ou mais com casa ou rancho. Para a elite maranhense, a reunião de dois negros em fuga sob o teto da mesma choça já cheira a conspiração”.
- “A sua explicação deixa uma vontade de conhecer um pouco mais a vida e as relações que são construídas no interior destes refúgios onde os escravos fugidos buscam abrigo”, confessam os lábios numa intervenção inesperada que surpreende o próprio faro da coruja.
- “É pra já! – responde a ave com um brilho especial no olhar. Mas, como a explicação não é das breves, é bom você levantar, tomar um café e dar uma boa espreguiçada porque vem aí o capítulo no qual vou tratar de...”

2.     O quilombo de Palmares.

Recuperadas as energias, o corpo assume novamente o seu lugar na mesa. Esticados, os braços se alongam sobre as folhas do relato enquanto o entrelaçar-se dos dedos parece prepará-los para a etapa que está por vir.
Apóiando o queixo na ponta da asa esquerda, Nádia retoma pensativa o caminho já percorrido. O silêncio de reflexão só é rompido pelo rápido virar das folhas e pelos gestos com os quais a direita parece desenhar no ar o que está preste a ser transformado em palavras. Limpada a garganta, um “É isso!” pronunciado em alto e bom som sinaliza que a ave já está pronta para iniciar os trabalhos.
- “Em primeiro lugar – diz a coruja cadenciando as palavras – vale a pena lembrar que o quilombo de Palmares ganha este nome porque na região onde serão construídas suas aldeias abundam várias espécies de palmeiras. Estas, mescladas a espinhos, cipós e arbustos típicos da floresta tropical, dão origem a uma mata fechada que, em muitos trechos, forma uma barreira natural impenetrável.
Quase nada sabemos sobre os escravos que dão origem a este quilombo, mas alguns relatos apontam o ano de 1597 como o período provável de sua fundação. Durante uma noite, um grupo de, aproximadamente, 40 cativos teria fugido de um engenho da capitania de Pernambuco, atual estado de Alagoas, após massacrar a população livre que aí se encontra. Sabendo que a notícia se espalharia rapidamente pelas áreas vizinhas e que logo estariam sendo perseguidos, aos rebelados não resta outra saída a não ser a fuga. Em sua peregrinação, chegam a um lugar áspero e montanhoso onde de uma das serras, muito íngreme, se pode observar toda a região. No topo desta, que, pela sua forma, ganha o nome de Serra da Barriga, vão abrir clareiras e levantar choças cobertas de palha.
De início, o medo dos castigos, os perigos e as dificuldades da vida na selva levam bem poucos negros a fugirem para Palmares. Pressionados pelas necessidades, os quilombolas não demoram em realizar incursões nas fazendas e engenhos mais próximos com o intuito de seqüestrar escravos, raptar mulheres, se abastecer de armas, pólvora, ferramentas de trabalho, além de, não poucas vezes, exercer sua vingança ateando fogo nas plantações e matando os feitores.
Diante destes assaltos, os senhores de engenho se defendem como podem. No início do século XVII, a gravidade do problema atrai as atenções das autoridades coloniais. Em 1602, Diogo Botelho, terceiro governador geral do Brasil, organiza a primeira expedição contra o quilombo. Esta retorna dizendo ter desbaratado o refúgio dos negros, mas, seis anos depois, a notícia de que Palmares continua dando muitas dores de cabeça é levada ao rei de Portugal por Diogo de Menezes.
Sobrevividos aos primeiros ataques, os rebeldes palmarinos vão intensificando suas ações. A fama de Palmares aumenta  e estimula novas fugas de escravos que vão se somando à população quilombola”.
- “Bom, depois de falar da sua origem, será que daria para dizer algo sobre como é a vida neste reduto de negros fugidos?”, solicitam os lábios entre a curiosidade e o temor de que a pergunta acabe aumentando o trabalho de redação.
Balançando a cabeça em sinal de aprovação, a ave começa a organizar as idéias. Após um rápido bater de asas que espalha pó e ferrugem sobre os papéis já escritos, Nádia fixa o olhar na caneta ainda imóvel e diz:
- “Dos fragmentos de história que falam deste momento, sabemos que, para poder matar a fome, os palmarinos se dedicam inicialmente à caça, pesca, à coleta de frutas e raízes. Com o tempo, criam instrumentos de madeira para lavrar a terra e, após encontrar minério de ferro em seu território, começam a forjar armas de corte e ferramentas para o trabalho agrícola.
Nas clareiras abertas na mata, as terras recebem plantações de milho, feijão, mandioca, batata, cana-de-açúcar, legumes, uma grande variedade de árvores frutíferas ao mesmo tempo em que nas aldeias do quilombo se criam porcos e galinhas.
Os cativos que fogem para Palmares são inicialmente submetidos a um período de prova durante o qual executam vários trabalhos. Julgados merecedores de confiança, ingressam numa família e começam a ter acesso à terra.
Pouco a pouco, a penúria dos primeiros tempos é vencida graças a um trabalho coletivo que desenvolve uma economia comunitária de auto-subsistência onde, fora os objetos de uso pessoal, as terras, os instrumentos de trabalho, as casas e as oficinas pertencem ao mocambo. Com base na propriedade coletiva de todos estes recursos, as famílias cultivam a terra não só para o próprio sustento, mas também para produzir um excedente a ser utilizado por toda a comunidade. Além de servir de provisão para a ocorrência de períodos de seca, pragas ou ataques externos, esta parte da produção é destinada à alimentação de guerreiros, idosos, doentes e artesãos que não realizam trabalhos agrícolas.
Entre a população dos mocambos palmarinos, os homens constituem a esmagadora maioria. Como nas fazendas e nos engenhos a maior parte dos escravos é do sexo masculino, o número de mulheres que fogem para o quilombo é, proporcionalmente, bem menor. A constante penúria de representantes do gênero feminino dá origem à família poliândrica, na qual uma mulher se relaciona com mais homens de uma mesma aldeia. Na divisão do trabalho, a esmagadora maioria dos homens está empenhada nas atividades produtivas ao passo que às mulheres, chefes dos núcleos familiares assim constituídos, cabe a organização, a coordenação e a supervisão das várias atividades produtivas.
Além disso, é importante lembrar que os membros da comunidade palmarina têm origem étnica diferenciada e que a presença de índios, pardos e brancos em seu meio acaba atenuando as características das identidades tribais africanas. Desta mistura, nasce uma língua na qual dominam as expressões dos idiomas falados pelos negros, mas que incorpora elementos tanto do tupi como do português. Processo bem parecido ocorre também com a religiosidade onde as imagens das divindades cultuadas na África partilham altares com as de Jesus, Nossa Senhora da Conceição e São Brás.
Pouco sabemos das instituições políticas anteriores a 1630. Os documentos existentes revelam que todos os moradores reunidos em assembléia escolhem os membros de um conselho. Este, por sua vez, elege um chefe, cujos poderes, apesar de amplos, não dispensam a consulta popular quando estão em jogo decisões cruciais para a vida do quilombo. Nesta época, o número de negros congregados na Serra da Barriga não passa de mil e seus esforços de ampliar a revolta entre a massa escrava dificilmente seriam coroados de sucesso não fosse por uma ajuda tão inesperada quanto decisiva: o ataque holandês a Pernambuco”.
- “Holandeses...?!? Na capitania de Pernambuco...?!? Por que é que eles resolvem vir até aqui? E o que é que isso tem a ver com Palmares?”, prorrompe a língua numa seqüência de perguntas.
Após um longo suspiro, a coruja levanta as asas e fechando os olhos diz:
- “Calma! Uma coisa por vez! Pra início de conversa, é bom lembrar que, até a segunda metade do século XVI, os territórios dos atuais estados da Bélgica e da Holanda são parte do Reino da Espanha. Com o progresso das cidades que neles se desenvolvem vai florescendo também uma próspera burguesia de comerciantes e agiotas. A adesão desta à reforma protestante fortalece o seu espírito nacionalista e acaba incentivando a luta contra a dominação espanhola. A situação se torna cada vez mais tensa até que, em 1567, os comerciantes holandeses organizam uma rebelião contra o rei da Espanha que, há tempo, vem cobrando salgados impostos sobre suas atividades.
Em resposta, os ibéricos enviam uma expedição punitiva que só consegue exacerbar os ânimos. Os enfrentamentos continuam até 1609 quando a Espanha se vê obrigada a assinar uma trégua na qual reconhece a separação dos territórios.
No início do século XVII, a República das Províncias Unidas (Holanda e Bélgica) possui uma frota de navios mercantes bem superior a de todos os países europeus juntos e suas principais cidades são as maiores praças financeiras e mercantis do continente. Quanto ao Brasil, o que você não sabe é que, até este momento, são os comerciantes daquelas terras a financiar parte da instalação dos engenhos, além de controlar uma boa fatia do transporte e da comercialização do açúcar.
O problema é que, após a guerra, o trono português passa para as mãos da Espanha, e estes negócios extremamente lucrativos correm o risco de ir por água abaixo na medida em que o rei espanhol proíbe terminantemente que os holandeses comercializem os gêneros produzidos nas colônias do seu reino. Diante desta realidade, a burguesia da República das Províncias Unidas se vê obrigada a ir buscar tais produtos nos países de origem, ou seja, a se instalar em territórios coloniais já ocupados por outras nações européias.
O açúcar brasileiro está entre as mercadorias mais cobiçadas. Por isso, após várias tentativas, em fevereiro de 1630, o litoral de Pernambuco é invadido pelas tropas holandesas na altura da cidade de Olinda. Cinco anos depois, graças ao apoio de setores da elite local, estas mesmas forças já detêm o controle das capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte.
Silenciadas as armas, banqueiros e companhias comerciais impulsionam a retomada da produção açucareira através de empréstimos destinados à reconstrução dos engenhos destruídos ou depredados durante a guerra enquanto a esquadra holandesa ajuda a superar a escassez de escravos investindo pesado nas rotas do tráfico com a África.
Em 1644, porém, as relações entre os novos colonizadores e os proprietários dos engenhos começam a se complicar na medida em que os últimos não têm condições de pagar as altas taxas de juros que pesam sobre os créditos obtidos. Diante de um possível calote, os credores respondem ameaçando confiscar terras, bens, gado e escravos como forma de saldar as dívidas. Esta medida alimenta o ódio dos senhores e a idéia de expulsar os holandeses começa a ganhar consistência.
Os primeiros sinais de revolta explodem no Recife em 13 de junho de 1645. Aos vários  enfrentamentos que se sucedem, em 1652, acaba se somando a declaração de guerra da Inglaterra que obriga a República das Províncias Unidas a desviar amplos recursos para responder às investidas das forças armadas inimigas. Ao mesmo tempo, Londres começa a abastecer de armas, dinheiro e munições os revoltosos pernambucanos de cuja ação espera um ulterior enfraquecimento da capacidade de resposta da Holanda, sua direta concorrente na disputa pela hegemonia marítima e comercial.
No ano seguinte, a frota de guerra portuguesa chega ao litoral de Pernambuco. Enfraquecidos pelas derrotas diante dos ingleses e sem condições de sustentar seus domínios no Brasil, em 26 de janeiro de 1654, aos holandeses não resta outra alternativa a não ser a de assinar a rendição”.
- “E...o que é que isso tem a ver com Palmares?”, questiona o secretário enquanto a coruja faz uma pausa para retomar o fôlego.
- “Simples, meu querido bípede apressado! – responde Nádia demonstrando não ter perdido o fio da meada. Se o seu cérebro acompanhou o desenrolar dos acontecimentos, não vai ter dificuldade em perceber que tempo de guerra é sinônimo não só de tensão, como de grande confusão. A debandada das autoridades coloniais portuguesas, o êxodo de senhores de engenho para o sul e a mobilização militar para enfrentar os holandeses provocam a desorganização do sistema de vigilância e repressão da qual se aproveitam tanto os índios quanto os negros.
Esta situação desencadeia uma sucessão de fugas espontâneas e isoladas, desarticuladas entre si e sem um nível de organização consciente. Em alguns casos, os escravos aproveitam para acertar contas com amos e feitores, incendeiam os canaviais, destroem os engenhos e, munidos de armas de fogo, facões e lanças, se dirigem para Palmares.
Após sua incorporação no quilombo, os fugitivos são organizados em colunas cujas expedições vingadoras pelo litoral da capitania apressam a derrota dos portugueses e assustam os próprios holandeses sob cuja dominação as condições de vida e de trabalho da massa escrava se tornam ainda mais amargas. O maior rigor na aplicação dos castigos visa não só coibir as possibilidades de novas rebeliões como arrancar mais trabalho dos africanos recém-chegados para pagar os juros extorsivos e preservar o padrão de vida dos senhores de engenho.
Mesmo assim, a quantidade de escravos que aproveita da invasão holandesa para fugir é tamanha que, em pouco tempo, o quilombo fica superpovoado. Isso leva os negros a fundarem novos mocambos no interior da Serra da Barriga e até longe dela, em lugares onde as terras são férteis e podem ser facilmente defendidas. De acordo com uma crônica de 1678, a população de Palmares chega a ser estimada em cerca de 20.000 pessoas.
Majoritariamente composto por negros de origem africana, o quilombo abriga também um crescente número de índios, mamelucos, pardos e brancos que, durante a invasão holandesa, aí se refugiam para escapar de um conflito em cujo desfecho não têm o menor interesse. A fartura que agora reina em território palmarino atrai tanto pequenos proprietários das redondezas como até mesmo soldados das expedições organizadas para destruir os mocambos.
A laboriosidade dos quilombolas, reconhecida pelas próprias autoridades portuguesas, não deixa dúvidas quanto ao fato de que é por ser escravo, e não por ser negro, que o africano trazido pelos traficantes produz pouco e mal nas plantações e nos engenhos.
Em tempo de paz, o aumento da população acompanhado pela expansão das roças e das atividades artesanais produz excedentes que começam a ser trocados por armas, munições e sal em vários pontos da capitania. Em muitos povoados, o intercâmbio pacífico cria uma rede de interesses que se opõe aos que procuram destruir Palmares. Compostos por camponeses que não se utilizam de trabalho escravo, seus moradores atuam no sentido de conviver com os mocambos. Pois, caso estes venham a sucumbir, as pastagens e as roças formadas para a própria subsistência acabariam nas mãos dos grandes proprietários pernambucanos aos quais haviam sido legalmente cedidas pela coroa ou pelos governantes locais. Por isso, além de servir de base avançada para as incursões quilombolas, estes setores se preocupam em fornecer-lhes informações sobre as posições do inimigo e em criar empecilhos às expedições punitivas”.
- “Sendo assim, podemos concluir que Palmares tem um futuro promissor...”, conclui o humano sem esconder sua intenção de reduzir o trabalho que lhe cabe.
Em resposta à tentativa de chegar logo aos finalmentes, a ave deixa transparecer um sorriso maroto. O balançar da cabeça sinaliza que o resgate deste capítulo da história ainda vai conhecer novas etapas e, ao recostar o corpo na pilha de livros, não perde a chance de repreender o seu ajudante:
- “A pressa é sempre uma péssima conselheira, sobretudo quando se trata de analisar as lutas dos oprimidos. Por isso, espante a preguiça e use as energias para entender as pegadas que o passado faz chegar até nós!
Contrariando suas expectativas, o quilombo começa a enfrentar problemas sérios justo após a derrota dos holandeses, quando as autoridades coloniais portuguesas se voltam para a tarefa de destruir o inimigo interno que se esconde nas matas. Além da urgência de extinguir um perigoso foco de rebeldia escrava, outras três razões levam a elite a investir contra os mocambos palmarinos.
A primeira delas deita raízes na necessidade de envolver nestas campanhas militares a multidão de famintos e belicosos ex-combatentes que, vencida a guerra contra a Holanda, reivindicam as recompensas prometidas como pagamento dos sacrifícios suportados. Como as terras arrebatadas já foram apropriadas pelos senhores de engenho, a única maneira de reduzir o descontentamento deste contingente é envolvê-lo num novo projeto de conquista como condição para ter acesso a um mais gordo botim.
Ao lado deste grupo, há outro formado por negros que entre a escravidão e a promessa de deixar o cativeiro, caso viessem a integrar as tropas portuguesas, haviam escolhido a segunda possibilidade por acreditar que, em caso de vitória, conquistariam de vez a própria liberdade. Desiludido com a não ratificação de suas alforrias, parte deles se integra a Palmares enquanto os demais não hesitam em dar sinais claros de insubordinação.
Última, mas não menos importante, é a posição dos senhores de engenho em função dos prejuízos sofridos durante a guerra. O desejo de recuperar os escravos fugidos é fartamente alimentado pela prostração econômica da capitania onde a falta de recursos impede a importação imediata de africanos em número suficiente para recuperar as lavouras. Sabendo que, nesta época, 200 cativos têm o mesmo valor de um engenho de primeira categoria, ninguém vai ter dificuldades em entender porque a perspectiva de caçar negros em Palmares ganha um incentivo econômico que não pode ser desconsiderado.
Impulsionadas por estas razões, no segundo semestre de 1654, as autoridades coloniais iniciam uma série de expedições militares que se estendem até 1659. Além de fracassarem ou conseguirem resultados bem inferiores ao esperado, os palmarinos capturados não se submetem ao trabalho escravo e, cedo ou tarde, acabam fugindo novamente para o quilombo”.
- “Que mal lhe pergunte, por que todas estas investidas armadas acabam sendo derrotadas?”.
- Como já disse nas páginas anteriores, a região ocupada pelo quilombo é de mata fechada e de difícil acesso. Além de impedir a localização exata dos mocambos e de ocultar os guerreiros palmarinos, a própria selva impõe enormes dificuldades às expedições que procuram destruir os redutos de resistência. Nesta época, entre o litoral e a Serra da Barriga, não há nenhum caminho pelo qual possam transitar carros e carruagens. Isso significa que, além da rede para dormir e das roupas, cada soldado deve carregar nas costas uma pesada mochila com todos os mantimentos aos quais se somam uma boa porção de pólvora, balas, espingarda, espada, facão e cabaça de água.
Com a coluna marchando em fila indiana entre despenhadeiros e áreas onde a vegetação dificulta o seu avançar, os comandantes não só não podem contar com a vantagem tática da surpresa, como são vítimas dos quilombolas que se ocultam na mata. As condições adversas do clima, a fadiga, as doenças e a fome, via de regra, se encarregam sozinhas de dobrar a resistência dos expedicionários. Quando as coisas se complicam, graças à rede de informantes espalhados pelos povoados, os chefes conseguem evacuar os mocambos abrangidos pelos planos inimigos e esconder suas populações selva adentro.
Ao chegarem num destes, os comandantes acampam suas colunas e, em seguida, enviam pequenos grupos de soldados para vasculhar o mato. Contando com o conhecimento do terreno, os palmarinos provocam os destacamentos a fim de afastá-los de suas bases para, em seguida, desferir contra eles ataques que costumam ser mortais.
A aparente superioridade bélica das forças oficias é neutralizada pelo peso excessivo do armamento e pela demora na repetição dos tiros, o que permite aos negros usar com certa vantagem as armas de que dispõem em ataques rápidos e desconcertantes seguidos de fugas para o interior da selva.
Pouco a pouco, estes elementos criam as condições para que o desespero e o pânico tomem conta das tropas oficiais e levem muitos soldados a desertarem. Frente a esta realidade, as autoridades coloniais se deparam com dois problemas essenciais: a exata localização das povoações palmarinas e o desenvolvimento de uma tática militar adequada ao meio geográfico.
Enquanto isso, entre 1667 e 1670, os quilombolas multiplicam suas ofensivas nas redondezas de Serinhaém, Ipojuca, Porto Calvo e Penedo com o objetivo de libertar os escravos das fazendas e dos engenhos, justiçar amos e feitores, conseguir armas e munições, queimar os canaviais e mergulhar o inimigo num clima de terror.
Nos anos seguintes, as coisas não são muito diferentes e os governantes reagem preparando novas expedições e prometendo a quem delas participasse a propriedade dos negros aprisionados, o perdão dos crimes cometidos e, aos nobres, a nomeação para funções da vida pública. Apesar das dificuldades, as tropas oficiais começam a lançar mão de uma tática adotada com sucesso contra os índios na Bahia: construir casas fortificadas e entrepostos que servem de bases avançadas às quais são remetidas mensalmente determinadas quantidades de comida, armas, munições e demais recursos necessários para prolongar os assaltos e destruir os meios de sobrevivência dos adversários.
Além de reduzir a distância entre os soldados e os centros de abastecimento, a presença de destacamentos fixos permite oferecer um tratamento brando aos quilombolas que se rendem e uma ação mais rigorosa contra os que, ao oferecer resistência, caem nas malhas da repressão”.
- “Pelo que você acaba de dizer, as forças coloniais começam a mudar sua forma de atuação. Mas, enquanto isso dá os primeiros passos, o que está acontecendo em Palmares? Será que a organização do quilombo permanece igual ao que era?”
- “Na verdade – responde Nádia ao piscar os olhos -, a ampliação do número de escravos que aí se refugiam leva os mocambos palmarinos a desenvolverem uma estrutura centralizada, e relativamente complexa, que busca aperfeiçoar tanto os vínculos de cooperação recíproca como os mecanismos de defesa militar propriamente ditos. Além de trocarem informações, se ajudarem em tempos de seca e más colheitas ou abrigarem as povoações atingidas pelas expedições coloniais, os quilombolas criam formas de assistência militar para enviar comandantes e destacamentos de guerreiros a defender as áreas ameaçadas pelo inimigo comum.
Ao que tudo indica, os moradores de cada mocambo elegem em assembléia um grupo de autoridades chamadas Maiorais às quais cabe exercer funções político-administrativas e que gozam de completa autonomia para as questões locais. Ao lado delas, encontramos os Cabos-de-guerra, comandantes militares designados pelo que podemos chamar de chefe de estado da confederação palmarina e aprovados pelo seu conselho, composto por representantes dos Maiorais.
Apesar de sua posição hierárquica, este chefe não detém um poder absoluto sobre seus subordinados devendo observar um complexo conjunto de normas que definem suas funções legais e militares. Escolhido por sua coragem, força e capacidade de comando, o ocupante deste posto pode ser destituído caso sua conduta não seja condizente com as normas do quilombo. O seu governo efetivo é circunscrito à área de Macaco, o principal povoado de Palmares, e não lhe é permitido tomar decisões que atingem os demais mocambos sem ouvir o conselho dos Maiorais. Entre as personagens que ocupam o cargo, encontramos Ganga-Zumba que chega na Serra da Barriga durante a ocupação holandesa e se empenha a celebrar o pacto de ajuda militar recíproca entre as povoações palmarinas.
No que diz respeito às instituições militares, há uma milícia permanente de soldados profissionais distribuídos em guarnições pelos mocambos ou organizados em destacamentos móveis para as operações guerrilheiras. Nas situações de emergência, porém, todos os homens válidos são convocados a pegarem em armas.
Apesar do crescente investimento no treinamento de suas forças armadas e de sua estrutura administrativa, a organização social de Palmares não nasce da necessidade de sufocar conflitos que deitam raízes numa ordem de exploração ou de privilégios, mas sim da urgência de assegurar a defesa e a sobrevivência do quilombo diante dos desafios impostos pelo seu crescimento interno e pelas expedições cada vez mais ameaçadoras organizadas pelas autoridades coloniais.
Mas a vida em Palmares não é um mar de rosas – acrescenta a coruja preocupada em não mistificar um momento de luta. A expedição de 1677, comandada por Fernão Carrilho, impõe derrotas que desencadeiam um profundo descontentamento na massa palmarina. Esta acusa o seu chefe supremo, Ganga-Zumba, de ter agido com inépcia e irresponsabilidade ao comandar, bêbado, a principal operação de guerra contra as tropas coloniais que conseguem destruir o mocambo de Amaro (com mais de mil casas) e capturar dezenas de guerreiros, além de autoridades locais e de dois filhos de Ganga-Zumba.
Em todos os vilarejos do quilombo, com exceção de Macaco, a população realiza assembléias que pedem a deposição do chefe palmarino. Levada ao conselho geral, esta proposta acaba sendo derrotada pelas manobras internas de Ganga-Zumba.
Longe de diminuir, o descontentamento em relação ao chefe supremo aumenta e Zumbi conspira para depô-lo pela força. Sentindo-se ameaçado, Ganga-Zumba aceita iniciar as conversações de paz que as autoridades coloniais vêm oferecendo após a expedição de Fernão Carrilho. Deste processo nasce o Pacto de Recife, assinado em 5 de novembro de 1678. A paz com os portugueses prevê a liberdade para os nascidos no interior do quilombo (o que implica em reconduzir os demais ao cativeiro), a concessão de terras para viverem e cultivarem, a garantia de poder comercializar os próprios produtos com os povoados vizinhos e a outorga do título de vassalo da coroa a Ganga-Zumba.
Os termos do acordo acirram a oposição e as resistências internas, sobretudo pela cláusula que devolve à senzala todos os fugitivos abrigados no quilombo. O número reduzido dos que seguem o antigo chefe (de 300 a 400 pessoas) revela a falta de confiança dos palmarinos nos compromissos assinados pelas autoridades coloniais.
Diante dos acontecimentos, Zumbi reúne os guerreiros do seu mocambo e marcha contra os que ainda se mantêm fiéis a Ganga-Zumba. Com as adesões conseguidas em sua jornada, o novo líder leva as tropas rumo ao principal mocambo de Palmares. Percebendo a impossibilidade de enfrentar seus adversários, Ganga-Zumba foge para Cacaú. Mas, após derrotar uma frágil resistência armada, as forças leais a Zumbi ocupam Macaco e este assume o cargo mais alto da confederação palmarina.
Apesar da vitória, os problemas estão longe de terminar. De um lado, a deserção de importantes comandantes militares, fugidos com Ganga-Zumba, leva a crer que, de agora em diante, os portugueses contam com informações completas sobre a vida e a organização de Palmares. De outro, nem toda a população e autoridades de Macaco se dispõem a serem fiéis ao novo chefe.
Sem perder tempo, Zumbi subordina a vida do quilombo às exigências da guerra contra as expedições oficiais. De um lado, promove um sangrento expurgo dos partidários de Ganga-Zumba, e, de outro, desloca mocambos para lugares estrategicamente mais seguros, acelera a busca de armas e munições, intensifica o adestramento militar de todos os homens válidos, multiplica os pontos de vigilância e observação nas orlas das matas, reforça o sistema defensivo de Macaco e decreta uma lei pela qual toda tentativa de deserção é punida com a morte”.
- “Pelo visto, isso altera vários aspectos da sociedade palmarina. Mas será que antes de passar aos próximos acontecimentos, você poderia dizer mais alguma coisa sobre Zumbi?”, pede o secretário ao procurar entender melhor a figura deste homem que intervém de forma decisiva num momento crítico da vida de Palmares.
Ouvida a solicitação, a ave começa a andar pensativa de um lado a outro da mesa. Após instantes de silêncio nos quais a memória tenta recuperar as informações disponíveis, o franzir das plumas da testa anuncia que pode atender o novo pedido. Só mais um rápido piscar de olhos e...
- “Das poucas notícias que temos, parece que Zumbi nasce em 1655 num dos vários mocambos palmarinos. Capturado naquele mesmo ano pela expedição comandada por Brás da Rocha Cardoso, o menino é dado como presente ao padre português Antonio Melo, do distrito de Porto Calvo, próximo à região de Palmares. Nas cartas escritas pelo padre a um amigo da cidade do Porto, em Portugal, consta que, após batizá-lo com o nome de Francisco, lhe ensina a ler, o faz seu coroinha, mas nunca chega a tratá-lo como escravo.
Em 1670, porém, para surpresa do próprio Antonio Melo, o adolescente de 15 anos foge para Palmares, onde assume o nome de Zumbi. Anos depois, quando já é chefe do quilombo, Zumbi volta a visitar o padre que o acolheu pelo menos três vezes e, sabendo da miséria em que este se encontra, lhe leva alguns presentes.
Em 1672, é eleito Maioral e, no ano seguinte, se torna Cabo-de-guerra após os combates que levam à derrota da expedição de José Bezerra. Aos 22 anos, Zumbi comanda parte das milícias palmarinas contra as investidas das tropas e Fernão Carrilho, ocasião na qual a direção geral das operações militares está nas mãos de Ganga-Zumba.
Não existem relatos que comprovem o seu casamento com uma mulher branca chamada Maria que o teria supostamente acompanhado após uma incursão num engenho. Consta que deve ter tido, pelo menos, cinco filhos e que durante uma batalha contra os homens de Manuel López Galvão, recebe um ferimento que o deixa coxo.
A sua coragem e o seu espírito de liderança impressionam também as autoridades coloniais. Numa crônica encomendada pelo governador Pedro Almeida, Zumbi é descrito como negro de singular valor, grande ânimo e constância rara cuja capacidade de ação juízo e fortaleza aos nossos serve de embaraço e aos seus de exemplo”.[5]
Pronunciadas estas últimas palavras, a coruja interrompe o relato. Seu rosto assume uma expressão séria e compenetrada. Passo a passo, se aproxima do secretário e apóiando a asa esquerda no ombro deste ordena:
- “Vamos voltar aos fatos que nos levam ao desfecho deste capítulo da nossa história! Como estávamos dizendo, as mudanças no interior do quilombo não procuram só consolidar a posição de Zumbi, como preparam seus povoados para novos e mais duros enfrentamentos com as forças coloniais.
         Mas isso não é tudo. Fortalecida a sua liderança, o novo chefe palmarino procura minar a de Ganga-Zumba em Cacaú e recebe uma ajuda inesperada que facilita os seus planos.
Usando como pretexto o fato de que a concentração de negros livres em Cacaú representa um perigo para a manutenção da ordem em suas propriedades, os senhores de engenho lançam mão de contingentes armados para cercar os territórios entregues a Ganga-Zumba. Em seguida, começam a realizar incursões para capturar escravos fugidos das propriedades e, sem se deixar intimidar pelos protestos do próprio Ganga-Zumba, começam a devastar as roças e a impedir o comércio entre Cacaú e as populações vizinhas.
         Os quilombolas que haviam acompanhado o antigo líder se sentem ludibriados. Uns voltam para Palmares, outros começam a contrabandear armas, a ajudar escravos fugidos a chegarem no quilombo ou a transmitir informações. Este processo forja novas lideranças que a história conhece pelos nomes de João Mulato, Canhongo, Amaro e Gaspar. Ao permanecerem em Cacaú, os quatro conspiram ativamente contra Ganga-Zumba. Sentindo-se descobertos, resolvem apressar os acontecimentos envenenando o antigo chefe e matando seus homens de confiança.
         Só Gana-Zona, irmão de Ganga-Zumba, escapa do massacre e organiza a resistência em Cacaú. A luta entre as duas facções degenera em carnificina e os combates prosseguem mato adentro até que as tropas oficiais resolvem intervir. Capturados e degolados os líderes, seus cerca de 200 seguidores são entregues como escravos aos proprietários da região. A tentativa de esvaziar Palmares com a criação de uma área onde parte dos antigos quilombolas poderia supostamente viver em liberdade chega ao fim.
         Diante dos acontecimentos, os palmarinos multiplicam suas irrupções em diferentes pontos do litoral. Grupos de até 50 homens entram de surpresa em povoados e plantações para se apoderarem de escravos, armas e munições. Os senhores de engenho que viajam pela capitania são freqüentemente assaltados e despojados de todos os seus haveres. Um clima de medo e insegurança toma conta da região.
Em 16 de fevereiro de 1680, o governador entrega ao capitão-mor, André Dias, o desafio de reprimir os destacamentos armados do quilombo. Seguidos fracassos o obrigam a oferecer a Zumbi o perdão e a liberdade caso este opte por depor as armas. Uma nova seqüência de enfrentamentos e incursões marca a resposta negativa de Palmares e sinaliza a intensificação dos conflitos.
Preocupada com a situação, a elite local pressiona as autoridades para que organizem uma verdadeira cruzada contra o quilombo. Em 1693, este anseio acaba se espalhando pela capitania na medida em que os efeitos da queda do açúcar no mercado internacional são agravados pela estiagem e pela inflação que espalham a fome entre a população. Sob a pressão dos senhores de engenho, o fato dos palmarinos não conhecerem estes males e manterem suas invasões leva pequenos proprietários, comerciantes, assalariados rurais, ou seja, grande parte dos setores pobres da população livre a verem no aniquilamento do quilombo a única possibilidade de pôr fim aos seus sofrimentos.
Em dezembro do mesmo ano, cerca de 3.000 homens entre brancos, negros, índios e mamelucos começam a se concentrar em Porto Calvo para a guerra contra Palmares. No início de janeiro de 1694, a tropa comandada por Domingos Jorge Velho já soma cerca de 9.000 homens (exército que supera em mais de 2.000 soldados aquele com o qual os holandeses haviam conquistado Pernambuco) e inicia sua marcha em direção a Macaco”.[6]
- “As coisas estão ficando feias. Resta saber se as dificuldades que ajudaram a destruir as expedições anteriores vão dar mais uma mãozinha aos quilombolas...”, especulam os lábios intrigados diante da demonstração de força colonial.
- “O problema, querido secretário, é que, diante das mudanças que vão ocorrendo, a construção das vitórias palmarinas do passado não garante a invencibilidade dos seus guerreiros – comenta Nádia em tom nada animador.
As expedições que visam destruir o quilombo após a derrota dos holandeses impõem uma guerra prolongada atenuada apenas por breves intervalos de paz. Além dos problemas provocados pelos seguidos deslocamentos das populações não-combatentes dos povoados ameaçados, e da conseguinte perda de suas casas, lavouras e oficinas, a tática de guerra que, durante anos, tem proporcionado as vitórias de Palmares começa a não ter o efeito desejado diante das ações do poder colonial que a tornam inoperante.
Uma delas consiste na criação de novos arraiais que ajudam a reduzir as distâncias entre os centros de abastecimento e as tropas. Para você ter uma idéia, se até 1650, uma expedição levava de 20 a 30 dias só para penetrar na região de Palmares, Domingos Jorge Velho chega na Serra da Barriga em uma semana. Além de reduzir a carga a ser levada por cada soldado, esta proximidade permite destruir sistematicamente as plantações palmarinas das redondezas graças a destacamentos móveis que, com base nestes povoados, têm melhores possibilidades de realizarem incursões mato adentro.
A isso é necessário acrescentar que Zumbi tem tamanha confiança nos recursos bélicos reunidos sob a sua liderança a ponto de considerá-los suficientes para derrotar qualquer adversário. Os armazéns de víveres, os cinco quilômetros de cerca, as defesas naturais, as armas e o treinamento de seus guerreiros fariam com que, mesmo sitiadas, as forças palmarinas pudessem resistir, esgotar seus agressores e impor-lhes novas derrotas. O problema é que Zumbi não conta com uma vantagem técnica que agora está ao alcance de seus inimigos: o canhão.
Contrariando as previsões quilombolas, Domingos Jorge Velho usa os 22 dias de sitio a Macaco para construir uma outra cerca que permita ao seu exército de se proteger dos ataques palmarinos e cuja distância das fortificações inimigas deixa o principal mocambo de Palmares na alça de tiro de suas 6 peças de artilharia pesada.
Ciente da impossibilidade de vencer a expedição usando as táticas costumeiras, Zumbi reúne o conselho de guerra que opta pela única manobra militar capaz de oferecer resultados promissores. Na noite entre o dia 5 e 6 de fevereiro, uma coluna de negros tenta aproveitar uma brecha nas posições inimigas para descer da montanha e tentar desferir um ataque pelas costas deixando os soldados coloniais entre dois fogos. Descoberta por uma sentinela, a tentativa fracassa pela rápida resposta dos contingentes da expedição.
Ao amanhecer, os canhões destroem as defesas de Macaco e as tropas de Domingos Jorge Velho irrompem na cidadela dando início a uma verdadeira carnificina. Apesar de sua resposta heróica, a resistência palmarina é destroçada, as casas são queimadas e 510 quilombolas são feitos prisioneiros.
Esmagado o principal reduto, a matança se espalha pelos demais mocambos. Das mulheres e crianças poupadas para serem vendidas como escravas, grande parte se deixa morrer de fome ou mata os próprios filhos para não vê-los submetidos ao cativeiro.
Zumbi escapa com vida e, nos meses seguintes, trata de reagrupar o que resta do seu exército. Em dezembro de 1694, o pequeno contingente começa a realizar novas incursões. A notícia de que o líder palmarino está vivo e à frente de um grupo armado chega logo aos ouvidos do governador que não hesita em tomar medidas imediatas para detê-los.
Durante uma ação dos quilombolas para se apoderarem de armas e munições, Antonio Soares, homem de confiança de Zumbi é feito prisioneiro. Torturado, se recusa a falar até que seus algozes lhe propõem trocar a garantia de vida e liberdade pela delação do esconderijo do chefe guerreiro.
Na noite entre 19 e 20 de novembro de 1695, Soares guia as forças coloniais que tomam posição à espera do amanhecer. Ao clarear do dia, o delator sai do mato para uma pequena clareira e começa a chamar Zumbi que aparece pouco depois acolhendo-o sem desconfiar de nada. Em resposta, Soares o apunhala no estômago e dá o sinal aos soldados que o acompanham.
Gravemente ferido, o líder de Palmares não se rende. Ajudado pelos companheiros que estão com ele, luta até a morte contra o destacamento das tropas coloniais.
No dia seguinte, a cabeça de Zumbi é cortada, salgada e enviada para Recife onde o governador manda que a mesma seja espetada numa vara e colocada no lugar mais freqüentado da cidade, entre outras coisas, para atemorizar os negros que o consideravam imortal.
Enquanto isso, a Antonio Soares são concedidos o perdão e a liberdade. Ele vai viver longos anos e, após sua morte, Frei Loreto Couto o incorpora na galeria dos  beneméritos da história pernambucana”.
- “Com um final deste, dá mesmo para dizer que a luta de Palmares adiantou muito pouco...”, comenta a boca entre a perplexidade e o desconcerto.
- “Eu não teria tanta certeza”, rebate a coruja com firmeza.
- “Mas, Nádia, pensa bem, dos mocambos não resta pedra sobre pedra... a derrota dos negros acaba de ser selada por uma vara em cima da qual está espetada a cabeça de Zumbi... o delator do líder palmarino é premiado com a liberdade e o reconhecimento público, enfim, pior do que está é impossível!”
A ave sorri e, sem titubear, aponta a asa para o secretário como quem está preste a disparar um tiro certeiro. Os breves instantes de silêncio que se estabelecem entre os dois preparam o terreno para que suas palavras sejam ouvidas e assimiladas.
- “O que as grossas lentes de seus óculos não lhe permitem ver é justamente o sentido mais profundo desta história. A morte de Zumbi, apresentada como uma vitória, é também a maior das derrotas. O poder colonial consegue a cabeça do líder palmarino, mas não o que mais queria: a sua submissão. Por isso, enquanto os funcionários da coroa vêem nesta morte o fim da rebelião escrava, o próprio Domingos Jorge Velho não partilha do generalizado otimismo. Sua desconfiança se confirma tempos depois, quando novos grupos armados começam a atacar os povoados do litoral.
Comandadas por Camoanga, as ações dos quilombolas levam o governador de Pernambuco a realizar várias expedições para destruir as forças do novo líder. Iniciadas em janeiro de 1700, as investidas das tropas oficiais só conseguem encontrá-lo e matá-lo quatro anos depois.
As poucas notícias que temos narram que um certo número de combatentes palmarinos consegue fugir para a Paraíba, onde fundam o quilombo de Cumbe, cujas forças repelem vários ataques coloniais e conseguem resistir até 1731. Há também indícios de que, entre 1696 e 1710, grupos de escravos fugidos continuam procurando refúgio na região de Palmares e dando várias dores de cabeça às autoridades.
Após enfrentar mais de 30 expedições militares ao longo de quase um século de lutas em territórios palmarinos, os escravos fugitivos continuam reafirmando com o seu sangue a incessante busca da liberdade em meio a uma realidade disposta a sufocar qualquer sinal de rebelião.
Por ironia da história, no mesmo ano em que Macaco sucumbe às forças de Domingos Jorge Velho, em Minas Gerais são descobertas as primeiras jazidas de ouro. Desde então e até o fim do século XVIII, a mineração vai concentrar as atenções da elite colonial. Os escravos desembarcados no Rio de Janeiro convergem quase totalmente para esta região e a estes se juntam os negros que os contratadores mandam comprar nas capitanias em que a atividade econômica apresenta menor rendimento.
Com a produção do açúcar em crise, Pernambuco perde um grande número de cativos. A diminuição destes no conjunto da população faz com que as fugas e as incursões se tornem raras e, em geral, bem pouco expressivas. Ao concentrar as atenções e o tráfico de escravos nas regiões auríferas, o poder desloca também os futuros cenários da resistência escrava. É sobre isso que vou falar no próximo capítulo ao tratar de...

         2. Os quilombos em Minas Gerais e Mato Grosso.

         Anunciado o tema desta etapa, Nádia apóia o queixo na ponta da asa. Pensativa, alterna olhares para o alto a gestos que tornam visível o esforço de resgatar as lutas perdidas nas entranhas do tempo. Os movimentos ritmados da cabeça ainda sinalizam o rápido costurar de idéias e situações, quando o secretário interrompe bruscamente o silencioso meditar da coruja:
         - “No final do capitulo anterior, você acenou à descoberta do ouro em território brasileiro, será que daria para tratar um pouco mais deste assunto?”
         - “Pode ser um bom começo...”, comenta satisfeita a ave ao vislumbrar um possível fio da meada. “No período que vai de 1695 ao final do século seguinte, constatamos a existência de duas formas de exploração do ouro que se utilizam do trabalho escravo: o faiscamento e as lavras. O primeiro termo tem sua origem nos depósitos que se encontram nos leitos dos rios e são chamados de faisqueiros devido ao brilho, semelhante ao de uma faísca, que o metal produz um ao ser atingido pelos raios do sol.
Apesar da facilidade de acesso, o ouro encontrado garimpando o fundo dos cursos de água é pouco e acaba sendo extraído por um punhado de pessoas. Os homens livres constituem a maior parte dos que se dedicam a esta atividade e, ao lado deles, há escravos que ora trabalham para seus senhores, ora fazem isso por conta própria com o propósito de garantir o seu sustento e tentar comprar a tão sonhada liberdade.
Bem mais rentáveis, as lavras exigem maiores investimentos e um grande número de cativos na medida em que se faz necessário cavar galerias que acompanhem os veios nas profundezas do subsolo e transportar o minério até a superfície.
Quanto às condições de trabalho, a busca do ouro apresenta aspectos piores em relação àqueles que encontramos nos canaviais. Praticado na estação seca, o faiscamento impõe ao escravo que exerça suas atividades dentro da água, suportando neste meio as baixas temperaturas do inverno por horas a fio. Por outro lado, os negros que trabalham enfurnados sob a terra são obrigados a extrair o minério no interior de galerias inseguras onde o ar é quase irrespirável. Como a prioridade é o ouro e não a vida de quem se esfola, os escravos correm sempre o risco de serem vítimas de graves doenças pulmonares, de morrerem afogados, soterrados ou asfixiados pelos gases dos depósitos subterrâneos.
Se isso não bastasse, na pressa de explorar as minas, há uma ocupação extremamente desordenada e desorganizada do território. Nas regiões que hoje pertencem ao estado de Minas Gerais, por exemplo, no lugar de desenvolver a agricultura e garantir uma rede de abastecimento para depois dar início à mineração, ocorre exatamente o contrário. A escassez que marca presença em vários pontos da capitania, eleva os preços e faz com que uma grande quantidade de pessoas se depare com sérias dificuldades de acesso aos gêneros de primeira necessidade. Até equilibrar a relação entre oferta e procura, a fome vai reinar soberana e elevar significativamente o número de mortos entre a massa escrava.
Para você ter uma idéia, no início de 1700, um boi é vendido em São Paulo por cerca de 2.000 Reis, mas, pelo mesmo animal, pagam-se até 120.000 Reis em Minas Gerais. A galinha que custa aos paulistas não mais de 160 Reis, chega entre os mineiros a 4.000 Reis e um alqueire de farinha de mandioca comprado entre os primeiros por 640 Reis, precisa de pelo menos 43.000 Reis para ser adquirido pelos segundos. As mesmas razões que tornam mais caros os gêneros de primeira necessidade acabam inflacionando também o preço dos escravos. O cativo vendido no litoral por 85.000 Reis chega a ser negociado entre o triplo e o sêxtuplo desta quantia nas regiões de extração de ouro.[7]
Com tamanha diferença nas possibilidades de lucro, o novo mercado acaba atraindo grande parte dos bens disponíveis. Se, de um lado, a procura vinda das zonas auríferas mobiliza correntes comerciais entre pontos do país que, até então, levavam uma existência isolada, de outro, acaba provocando a escassez e a conseqüente alta dos preços nas demais regiões. Em São Paulo, por exemplo, entre 1690 e 1709, o feijão registra uma alta de 200%, o açúcar de 300%, o toucinho de 500% e o milho de 1300%.[8] Estas distorções diminuem na medida em que o comércio incentiva o povoamento de várias áreas do interior que se dedicam à agricultura e à pecuária e que o tráfico de escravos volta a satisfazer as necessidades dos senhores no país inteiro.
As dificuldades de abastecimento crescem também na medida em que as autoridades coloniais aproveitam as novas redes de comércio para rechear os cofres com a cobrança de pesados impostos. Até 1750, um alqueire de sal, por exemplo, é vendido no Rio de Janeiro por 720 Reis, mas, na hora de entrar em Minas Gerais, a coroa impõe uma taxa de 750 Reis que, somada aos problemas de conservação, às dificuldades do trajeto, à distância a ser percorrida e aos ganhos de seus vendedores, eleva o preço deste produto a não menos de 3.600 Reis o alqueire.
O mesmo processo se faz presente na comercialização dos instrumentos de trabalho. Cem quilos de ferro manufaturado em ferramentas valem no Rio entre 4.800 e 6.000 Reis. Ao serem enviados ao mercado mineiro, as taxas, que são proporcionais ao peso e não ao valor das mercadorias, elevam em 4.500 Reis o preço deste produto que acaba sendo adquirido por não menos de 14.000 Reis”.[9]
- “Sendo assim, a fome e o duro trabalho devem criar entre os escravos uma situação explosiva...”
- “Quanto a isso você pode estar certo – confirma a coruja. Em Minas Gerais, as fugas são uma constante ao longo de todo o século XVIII. Muitos também são os casos de cativos que matam seus senhores e a história registra a ocorrência de, pelo menos, 4 conspirações (em 1711, 1719, 1728 e 1756) descobertas pelas autoridades antes de sua realização. Os poucos dados disponíveis nos impedem de determinar a quantidade de escravos envolvidos, suas reais chances de vitoria e até mesmo quando podemos falar de verdadeiras conspirações ou de ações menores delatadas por cativos que tentam se vingar dos seus desafetos ou ganhar a confiança dos senhores.
Por sua vez, os documentos oficiais que se referem às expedições organizadas para destruir os quilombos revelam que, de 1711 a 1798, o território mineiro abriga nada menos do que 127 refúgios de escravos. Entre eles há os do Campo Grande, com mais de 20 anos de existência, ou os que são destruídos e reconstruídos seguidas vezes. É o caso, por exemplo, dos mocambos erguidos nas proximidades da cidade de Mariana contra os quais o poder colonial se vê obrigado a organizar seis expedições (em 1711, 1733, 1760, 1770, 1772 e 1780) sem, contudo, conseguir sua total destruição.[10]
O fato da maioria dos quilombos abrigarem pequenas comunidades e terem sido descobertos por acaso, leva a crer que o número dos que não são conhecidos pelas autoridades deve ser bem maior”.
- “Será que todos eles se assemelham a Palmares?”.
- “A impossibilidade de levantar a organização de cada quilombo - diz Nádia ao se aproximar do secretário -, não pode nos levar ao erro de atribuir a eles as características da sociedade palmarina. A depender do número de fugitivos, da localização geográfica e das necessidades impostas pelas ameaças das forças coloniais, a vida nestes esconderijos revela alguns dos aspectos que vou listar.
Nas regiões auríferas de Minas Gerais, a alimentação dos quilombolas tem como base ora a coleta de frutas e raízes, ora os produtos cultivados em suas roças, ou, ainda, o resultado da caça, da pesca, da criação de animais em cativeiro, do roubo e do comércio com as vilas mais próximas. Aqui e acolá, algumas expedições punitivas encontram armazéns e roças já formadas. Ao que tudo indica, a agricultura parece ter sido praticada pelos maiores quilombos na medida em que as atividades de coleta e o banditismo, por si só, não conseguem alimentar sua população e o grande número de pessoas dificulta o deslocamento imposto pela necessidade de defender os mocambos das ações do aparato repressivo.
Entre as atividades econômicas mais importantes, está a mineração clandestina que abre aos quilombolas a possibilidade de criar redes de comércio com a população local. O ouro extraído com o trabalho coletivo é usado para comprar os gêneros alimentícios que não são produzidos e para garantir o abastecimento regular de armas, pólvora e chumbo. A maior parte destas trocas não percorre os caminhos legais e, apesar do rígido controle fiscal praticado pelas autoridades, envolve amplos setores das povoações mais próximas dos mocambos. Estas vêem nas necessidades dos negros fugitivos uma boa fonte de lucro na medida em que trocam o ouro por um valor menor do que é pago no mercado oficial e cobram deles um preço bem mais elevado pelos produtos a serem adquiridos.
A escolha do lugar e a organização do quilombo são determinadas tanto pelas atividades econômicas desenvolvidas por seus moradores, como pelas necessidades de defesa e de abastecimento do próprio reduto, inclusive através de saques e assaltos. Uma localização próxima das rotas comerciais e do escoamento do ouro, por exemplo, garante que o aprovisionamento seja feito, prioritariamente, através da troca ilegal dos produtos furtados com os moradores dos povoados mais próximos. É o caso, de Vila Rica, atual Ouro Preto, onde as montanhas que cercam a cidade permitem aos quilombolas acompanhar as movimentações que ocorrem nas ruas, escolher o melhor momento para suas incursões ou para a compra do que precisam e voltar a se esconder na mata sem sofrer nenhuma baixa.
O fato de não contar com defesas naturais consistentes, obriga alguns quilombos a cavar uma série de trincheiras, como ocorre no Campo Grande, ou a cercar a área ocupada com um valo cheio de estrepes, como em Pedra Menina, para tentar conter o avanço dos soldados.
Boa parte dos fracassos das investidas oficiais pode ser atribuída às informações que chegam nos mocambos através de pessoas que têm no comércio com os quilombolas uma importante fonte de renda. Esta rede de contatos não age só no sentido de possibilitar o rápido deslocamento dos negros que aí se escondem como proporciona um elo de ligação entre estes e os escravos urbanos, facilitando o aliciamento, a fuga e algumas tentativas de sublevação. Se isso não bastasse, muitas vezes, os guias das expedições punitivas são africanos capturados nos ataques das tropas oficiais que, graças ao conhecimento do terreno, despistam os soldados ou levam os destacamentos por caminhos que favorecem as emboscadas.
Vários elementos indicam que o deslocamento dos quilombos se impõe tanto pela necessidade de garantir a sobrevivência de seus integrantes quanto pela impossibilidade de fazer frente às tropas repressoras. Para alguns historiadores seriam estas as razões que explicam o baixo número de seus moradores nas regiões auríferas. Quanto menor a população dos mocambos, maior seria a sua mobilidade e a possibilidade real de satisfazer as necessidades vitais de seus membros. Esta constatação é sustentada também pelo fato de que o esgotamento das velhas jazidas e a descoberta das novas criam um incessante fluxo migratório. Na medida em que a maior parte do trabalho é realizada por escravos e que os próprios quilombos têm sua sobrevivência vinculada à mineração, não é de estranhar que a extração do ouro acabe influenciando não só o tamanho como a própria transferência dos mocambos”.
Escritas as últimas palavras, a mão direita apóia a caneta na mesa. Os dedos do secretário procuram um momento de descanso enquanto os olhos percorrem as principais ponderações do relato.
Num canto da mesa, Nádia aguarda que dos breves instantes de reflexão nasça uma nova pergunta. Sem impacientar-se, a ave cruza as asas na altura do peito, fixa o olhar no humano que está à sua frente e marca com as batidas da pata o rápido passar do tempo. Mais alguns segundos e seus ouvidos começam a captar uma pergunta já esperada:
- “Com tantas fugas e quilombos pipocando em Minas Gerais, como é que as elites conseguem manter o controle sobre a massa escrava?”
- “A ação das autoridades coloniais e dos próprios senhores de escravos – diz a coruja ao recostar o corpo na pilha de livros – revela medidas que buscam tanto a prevenção das fugas, a captura dos fugitivos e a destruição dos quilombos por eles criados, como a adesão dos cativos às regras e possibilidades do sistema.
Em 1710, por exemplo, os escravos são proibidos de portar armas de qualquer natureza. Quatro anos depois, novas regras não lhes permitem circular pelas vilas ou fora delas sem a autorização de seus donos. No dia 15 de janeiro de 1718, é vetado aos negros andar pelas ruas após às 21.00 hs., e, em 20 de dezembro daquele ano, um bando estabelece as penalidades para aqueles que, sabendo da existência de um quilombo, não o denunciam às autoridades.
Boa parte destas normas é reafirmada nos meses seguintes, muitas vezes com punições mais severas. Em 1756, por exemplo, o escravo que for preso portando uma faca de ponta é condenado a uma pena de cem açoites diários durante dez dias.
A necessidade do sistema se preservar através da repressão leva à criação de um grupo voltado para a recaptura dos fugitivos e a destruição dos quilombos: os homens-do-mato. Para o exercício desta profissão, o indivíduo deve conhecer bem tanto a área na qual vai atuar como as artimanhas utilizadas pelos escravos. A atividade é regulamentada por uma série de normas que, além do mais, fixam a quantia a ser paga quando da devolução de um fugitivo e o número de dias em que este pode ficar a serviço do seu captor  antes de ser devolvido ao antigo dono.
No combate aos quilombos, as ordens régias obrigam os moradores dos povoados a acatarem os recrutamentos feitos por estas milícias e a arcarem com boa parte dos custos das expedições. Via de regra, quando a situação exige operações de maior envergadura, além de organizar a tropa, o governo da capitania fornece armas, munições e profissionais especializados. As Câmaras dos povoados afetados pela ação dos quilombolas entram com o dinheiro e os equipamentos necessários, enquanto os proprietários devem fornecer víveres para a tropa e escravos para o transporte das cargas.
Ao longo do século XVIII, as autoridades mineiras concedem 467 patentes de homem-do-mato. Entre os que estão oficialmente habilitados para a função, encontramos 3 negros escravos e 67 forros.[11] Apesar da quantidade de cativos confiáveis representarem quase uma exceção, a presença de 14,5% de africanos que compraram a sua liberdade ilustra como o sistema escravista incorpora parte dos ex-escravos em defesa de sua própria ordem.
Com estas medidas, há outras que buscam manter a rebeldia escrava no interior de limites considerados suportáveis. Além de permitir o trabalho nos dias de descanso e de tolerar a mineração clandestina, o furto do ouro torna-se um fato corriqueiro. Apesar da estrita vigilância dos feitores, os africanos reduzidos ao cativeiro usam destes meios para comprar comidas, bebidas, fumo, peças de roupa e para adquirir a própria liberdade. Como, de início, o preço dos escravos é extremamente elevado, são poucos os que conseguem a carta de alforria. De acordo com as estatísticas do Códice Costa Matoso, entre 1735 e 1749, os africanos alforriados representam, em média, 1,2% da massa escrava. Mas a possibilidade do cativo obter a própria liberdade ganha fôlego a partir de 1750, quando a quantia paga por cada escravo começa a cair significativamente. Dos poucos dados disponíveis, sabemos que, em 1786, já temos 123.048 negros ou mulatos forros, algo como 34% da população de Minas Gerais, sendo que, em 1808, este número sobe para 177.593, 41% do total de moradores.[12]
Se a isso acrescentamos o fato de que parte dos alforriados se torna senhor de escravos, não é difícil entender que a possibilidade de passar da condição de cativo à de forro-proprietário não só dilui o potencial de reação da massa escrava, como, ao materializar nestes indivíduos uma chance de afirmação social, passa a funcionar como um mecanismo de preservação do próprio sistema escravista.
Quando as terras de Minas Gerais não oferecem mais tanto ouro, a agricultura e a pecuária vão se afirmando como atividades lucrativas. De fonte de mantimentos para as lavras, a pecuária cresce a tal ponto que, em 1765, está em condição de vender parte de sua produção para o Rio de Janeiro.
Em 1808, a economia escravista mineira ganha novo impulso na medida em que, com a transferência da Corte de Lisboa, a cidade do Rio de Janeiro se torna o centro político do império português e, desta forma, dá origem a um mercado urbano de alto nível de renda e em constante expansão. No mesmo período, os cafezais que se espalham nas áreas fluminenses e paulistas do vale do Paraíba encontram no sul de Minas Gerais uma importante fonte de abastecimento de gado bovino, cavalos, mulas e porcos.
Em faixas menores, prosperam o cultivo do tabaco, da cana-de-açúcar e do algodão. Este último possibilita o surgimento de uma indústria artesanal que, em 1828, chega a produzir 7 milhões e 400 mil metros de tecido. Grosseiro e destinado ao consumo dos pobres, o pano de Minas vai marcar presença em grande parte do Brasil até por volta de 1880”.[13]
- “Em Mato Grosso, a história da resistência escrava deve percorrer os mesmos caminhos...”, afirma a boca na tentativa de chegar logo aos finalmentes.
Indiferente à pressão do secretário, a coruja não perde a pose. Vagarosamente, esboça um mapa e traça no papel sinais incompreensíveis. Minutos depois, o seu rosto assume um ar severo e, balançando a cauda com movimentos que acompanham o gesticular das asas, diz:
- “Ao estudar a formação e a vida dos quilombos os humanos erram quando imaginam que todos estes esconderijos têm as mesmas características. Agindo assim, os bípedes da sua espécie forjam modelos que aplicam indistintamente a todas as situações. O resultado é uma visão mistificada da história que oculta a realidade dos fatos. Apesar das semelhanças, uma análise atenta permite entender não só as particularidades da situação em que os negros dão vida a novas formas de luta e resistência como desvenda a maneira pela qual o poder colonial age para esvaziar o seu potencial e submeter os escravos às exigências de acumulação da época”.
Recebido como um balde de água fria, o comentário da ave ganha um tom de suave reprovação e de sábio conselho. Entre a tentativa de corrigir o erro e o desejo de conhecer mais algum caminho da história, os lábios oferecem uma espécie de pedido de desculpas com um “E então...” que faz a coruja retomar o relato no ponto em que havia sido deixado:
- “Apesar das poucas informações disponíveis, vale a pena dedicar algumas páginas à resistência escrava na região de fronteira entre o Brasil e os domínios da coroa espanhola.
No século XVII, os bandeirantes paulistas já conhecem parte da área que hoje pertence ao estado de Mato Grosso. Empurrados pela busca de índios a serem escravizados, seus contingentes palmilham os territórios inexplorados do interior e, em 1719, encontram ouro nas margens do Rio Coxipó, um afluente do Cuiabá. Três anos mais tarde, o precioso metal é descoberto nas águas do córrego da Prainha, nas proximidades da colônia do Rosário. A divulgação dessas notícias atrai um grande número de aventureiros que, num curto espaço de tempo, esgotam as lavras a céu aberto. As dificuldades que ameaçam a sobrevivência dos povoados recém-formados levam os mineradores a organizarem expedições que marcham rumo ao interior na esperança de encontrar jazidas mais ricas e duradouras.
O povoado de Cuiabá vai se formando nestas constantes idas e vindas e, apesar dos problemas de acesso e dos enfrentamentos com os indígenas, nesta época, constitui o ponto mais avançado da ocupação portuguesa no oeste do país.
Em 1731, garimpeiros itinerantes encontram o precioso metal na região do Rio Guaporé onde, em 19 de março de 1752, é fundada a Vila Bela da Santíssima Trindade que, em seguida, vai abrigar a sede da capitania de Mato Grosso.
Desta forma, a ocupação portuguesa se apodera de terras que, pelo Tratado de Tordesilhas, pertenceriam à Espanha. Ao adentrar-se na floresta amazônica – território de mata fechada que, por isso mesmo, ganha o nome de Mato Grosso – os novos povoados chegam a apenas 30 léguas das missões espanholas no continente. Por se tratar de uma região ocupada violando um acordo com Madri, Portugal sabe que a única maneira de garantir a sua posse é atraindo um grande número de pessoas para as vilas e arraiais já existentes.
Os primeiros escravos chegam por volta de 1752 e seu trabalho se destina, principalmente, à mineração do ouro. Ao lado desta atividade, os cativos são usados também na agricultura, na pecuária e nas obras públicas. Por ser uma região destinada a conter possíveis avanços espanhóis, o governo da capitania manda construir fortalezas e núcleos de povoamento fortificados. Seja as guarnições militares como os edifícios das autoridades governamentais são levantados graças ao trabalho escravo.
A grande distância do litoral e o esgotamento das minas de ouro levam a economia mato-grossense a se dedicar à produção extensiva de gado, à agricultura, ao plantio da cana-de-açúcar. Os escravos são progressivamente transferidos da mineração para estas atividades e o tamanho dos plantéis vai caindo na medida em que as ligações da capitania com o mercado externo se tornam muito tênues. Se na época do ouro encontramos até 200 cativos a serviço de um mesmo proprietário, em 1850 este número não passa de 30.
As mudanças que se desenrolam no interior das senzalas não reduzem o rigor da escravidão que continua tendo na coerção a principal forma de garantir a submissão dos negros. Ao lado dos castigos severos, porém, encontramos mecanismos sutis de dominação. Entre eles se destaca a concessão de um pedaço de terra de onde, além do próprio sustento, o escravo extrai um excedente graças ao qual pode juntar recursos para comprar a sua liberdade. Longe de ser uma expressão de bondade dos senhores, esta possibilidade se transforma em mais um mecanismo de espoliação. Além de abrir caminhos à dedicação, submissão e fidelidade dos cativos, a luta pela alforria leva o interessado a ampliar as horas de trabalho, a aprofundar a sua exploração, a conter o seu potencial de revolta e, para sair da senzala, se obriga a devolver ao dono uma polpuda quantia em dinheiro justo quando a sua capacidade produtiva não compensa o investimento realizado.
Como nas demais regiões, também em Mato Grosso os cativos resistem à escravidão com pequenos enfrentamentos diários e com a criação de quilombos. As fugas são constantes e, por viverem numa região de fronteira, os negros são estimulados pelas autoridades espanholas a buscar a liberdade em seus territórios. Sabendo que esta postura não passa de uma retaliação pela ocupação de uma área que deveria pertencer aos domínios da Espanha, os portugueses, por sua vez, procuram sublevar e atrair os índios submetidos à exploração dos espanhóis. As evasões de ambos os lados se tornam tão preocupantes para a manutenção da ordem que as autoridades coloniais dos dois países chegam a formular acordos de devolução. Todavia, a possibilidade de atravessar a fronteira para se pôr a salvo continua sendo uma alternativa tanto para índios e negros fugitivos, como para os colonos que não têm condições de saldar suas dívidas.
A fuga do cativeiro, porém, ainda está longe de ser uma garantia de liberdade. De fato, além da ação das autoridades coloniais e das dificuldades de organizar a vida na mata, os negros penetram em áreas densamente povoadas por tribos indígenas. Se, em alguns casos, estas se tornam aliadas dos fugitivos ao transmitir-lhes técnicas de sobrevivência, em outros representam um perigo a mais a ser enfrentado na medida em que vêem neles os possíveis invasores de suas terras”.
- “Com todos estes problemas, será que vamos encontrar quilombos expressivos nesta região?”, indaga o ajudante da coruja ao revelar uma certa decepção.
- “Com certeza!” – responde a ave desconfiada. “De sua chegada nestas terras até a abolição, não são poucos os agrupamentos de escravos que tratam de construir as condições materiais de sua liberdade. Alguns mocambos vão ter uma vida tão curta que não deixam registros, mas há pelo menos três quilombos sobre os quais temos informações mais consistentes: Quariterê, Sepotuba e Rio Manso.
Situado nas imediações do Rio Galera, o Quariterê é derrotado pela primeira vez em 1770 por uma expedição que parte de Vila Bela e é comandada por João Leme do Prado. Ao falar sobre a organização dos negros, o provedor da Fazenda Real e Intendência do Ouro, Felipe José Nogueira Coelho, diz que este quilombo existe desde o tempo da mineração de ouro na região do Rio Guaporé. Portanto, na hora de enfrentar as forças coloniais, já tem cerca de três décadas de vida.
De acordo com o mesmo relato, a população do Quariterê é composta por 79 negros e cerca de 30 índios, governados por uma rainha de nome Thereza que apóia o exercício de suas funções numa espécie de Parlamento. Os esforços para defender o quilombo e manter o sigilo sobre sua localização ocupam um lugar central entre as preocupações de seus moradores e são garantidos por uma disciplina férrea. Por isso, a depender da gravidade de seus atos, insubordinados e desertores podem ser enforcados, enterrados vivos ou terem as pernas quebradas.
Os quilombolas se dedicam à agricultura (que cobre com fartura as necessidades de alimentação), ao cultivo do fumo e do algodão, à forja dos metais para a fabricação de armas e ferramentas. Além das atividades econômicas destinadas a garantir o próprio sustento, os habitantes do Quariterê estabelecem contatos com os povoados portugueses das redondezas. Graças à sua habilidade em desenvolver esta rede de relações, o quilombo consegue se abastecer dos produtos essenciais que não produz e recebe preciosas informações sobre as ações de seus perseguidores.
Apesar da destruição provocada em 1770, os negros que escapam ao ataque embrenhando-se na mata retornam ao antigo mocambo. Durante a expedição de 1795, organizada com o objetivo de encontrar novas jazidas de ouro e caçar escravos fugitivos, o Quariterê é, mais uma vez, encontrado e destruído. Os 45 membros que compõem a tropa se impressionam não só com a beleza natural, a fertilidade da terra, a abundância de caça e pesca, mas também com as grandes plantações de milho, feijão, mandioca, amendoim, batata, fumo, algodão, banana, ananás e com a criação de galinhas que garantem aos quilombolas uma fartura fora do comum.
Nesta época, as funções de comando no interior do quilombo são exercidas por idosos que sobreviveram à primeira investida armada. São eles a se responsabilizar também pelos cuidados dos doentes, pela orientação religiosa e pela reestruturação da base econômica do mocambo.
Impressionados com a capacidade organizativa e produtiva do Quariterê numa época em que Vila Bela, Cuiabá e os demais povoados enfrentam constantes quebras da produção e uma fome crônica que gera um perigoso descontentamento entre a população, as autoridades decidem colocar a seu serviço as habilidades desenvolvidas pelos quilombolas aprisionados durante a expedição.
É assim que, no dia 7 de outubro de 1795, os 54 presos partem para fundar a Nova Aldeia Carlota (nome escolhido em homenagem à princesa do Brasil). Transformados à força em súditos da coroa, os antigos quilombolas recebem mantimentos para muitos meses, uma grande variedade de sementes, as ferramentas necessárias, além de porcos, patos e galinhas para iniciar a criação. As autoridades esperam dar vida a um núcleo populacional cuja prosperidade futura possa ser colocada a serviço de seus interesses, a exemplo do que vinha acontecendo com a Vila Maria (hoje cidade de Cáceres), para onde haviam sido levadas algumas dezenas de índios fugidos da Missão de Chiquitos.
Mas, apesar do investimento realizado, a aldeia Carlota não se torna um povoado dinâmico e produtivo. A razão do fracasso deve ser procurada num elemento bem simples, mas que as autoridades dificilmente podem compreender: a sua população não é mais de pessoas livres e responsáveis por sua liberdade, mas de quilombolas derrotados, chamados a agirem a serviço do rei”.
- “Nádia, se a memória não me engana, você citou outros dois quilombos. Será que estes têm sorte melhor que a do Quariterê? Vai falar sobre eles agora ou mais tarde?”, indaga a boca em tom frio e distante.
- “Isso é pra já!”, exclama a coruja com uma prontidão que ignora as expressões de desencanto presentes nos gestos e nas palavras do secretário. “O quilombo do Sepotuba, localizado nas imediações da Vila Maria, a um passo da fronteira com a Bolívia, é, sem dúvida, o de vida mais longa. Ao falar sobre ele, em 1863, o presidente da província, Herculano Ferreira Pena, lhe atribui mais de cem anos de existência. Tamanha longevidade leva a supor que os quilombolas são muito hábeis tanto na organização de sua defesa e na construção de relações que permitem conhecer de antemão as investidas armadas das autoridades, como na estruturação de sua vida econômica e política.
Bem pouco se sabe das relações que os negros desenvolvem no interior do Sepotuba e menos ainda sobre as reais dimensões de sua população. A única certeza é que sua maior expansão ocorre entre 1865 e 1870 quando as tropas do Paraguai invadem o Brasil dando início ao conflito armado entre os dois países. A guerra faz com que as autoridades se vejam obrigadas a ampliar o recrutamento de soldados entre os homens livres da população. Diante do alistamento obrigatório, a fuga para o quilombo passa a ser a única alternativa viável para um grande número de pessoas.
Cientes do descontentamento provocado pelo conflito, os quilombolas se aproveitam da situação não só para dar abrigo aos que não querem ser recrutados como para atrair os desertores. De fato, os ex-soldados, além de trazer armas de fogo, chegam no Sepotuba com informações preciosas sobre as operações militares em curso e a exata localização das tropas. Com estes elementos, os guerreiros do quilombo começam a realizar ataques mais ousados, até mesmo contra propriedades bem próximas dos grandes centros.
Apesar de conhecerem o medo que estas incursões espalham por toda a região, as autoridades temem que o deslocamento de parte dos soldados para enfrentar os negros acabe enfraquecendo suas posições contra o inimigo externo. O máximo que conseguem fazer é armar pequenos destacamentos não para enfrentar o quilombo, mas sim para caçar os desertores que nele procuram abrigo. Em 1865, um destes grupos consegue capturar um quilombola, mas, no dia seguinte, é atacado por mais de cem homens armados de espingardas e facas que lhe impõem uma derrota humilhante.
Situação bem parecida é vivenciada pelos quatro mocambos que formam o quilombo localizado nas cabeceiras do Rio Manso, entre a freguesia da Chapada dos Guimarães e a Vila do Rosário. Pouco se sabe sobre a sua origem, mas as informações de um espião de nome Manuel, um crioulo que se faz passar por quilombola e chega a morar no Rio Manso, revelam que, em 1868, o quilombo é habitado por 293 pessoas. Destas, 260 são homens, maiores de 16 anos, bem armados, que, além de marcar presença nos povoados mais próximos, contam com o apoio de informantes em Cuiabá.[14]
Terminada a guerra do Paraguai, a Assembléia Legislativa da província cria um fundo destinado a equipar uma força capaz de destruir o esconderijo dos negros. Os proprietários da Chapada, constantemente ameaçados pelas incursões dos mocambeiros, participam dos custos fornecendo os víveres necessários ao aprovisionamento dos soldados. No dia 5 de agosto de 1871, 80 homens deixam Cuiabá sob o comando do capitão Luciano Pereira de Souza. Durante três meses, a expedição perambula sem sucesso na área que vai das cabeceiras dos rios Jangada e Roncador até as margens do rio Manso seguindo pistas que se revelam falsas.
Graças à ação dos informantes e de parte dos soldados que se solidarizam com os quilombolas, os mocambos são sistematicamente esvaziados antes da chegada da tropa. Sem ter sequer a chance de experimentar um enfrentamento direto, o destacamento acaba desacreditado pelos proprietários e pelas próprias autoridades. Ao seu retorno, os soldados levam como prisioneiros para Cuiabá apenas 7 escravos, 3 mulheres livres, e 8 crianças. Apesar dos esforços empreendidos, os quilombolas conseguem driblar os planos que pretendem devolvê-los à escravidão”.
- “Para ser sincero, esperava algo mais...” - comenta o secretário ao deitar a caneta nas folhas do relato. “Neste capítulo não aparecem grandes líderes, ações heróicas, enfim nada empolgante ...”, continuam os lábios sem esconder a decepção.
Passo a passo, a ave se aproxima e apóia suavemente a asa esquerda no ombro do humano que permanece imóvel ao seu lado. Um sorriso maroto delata que a coruja não só não se surpreendeu com os comentários, como era exatamente esta a reação que esperava suscitar com seu jeito despojado de resgatar a história. Um longo suspiro... Um rápido piscar de olhos... E...
- “Apesar do cérebro avantajado, os bípede da sua espécie têm a estranha capacidade de enfiar o pé na jaca toda vez que substituem o raciocínio pela empolgação, a razão pelo sentimento. Quando isso acontece, a lenda expulsa a pesquisa histórica e a mistificação das personagens impede a necessária analise das contradições presentes na realidade e das possibilidades que estas abrem ao processo de luta. Desta forma, os olhos humanos se tornam incapazes de perceber que o quotidiano enfrentamento dos que vivem à custa do nosso suor só é possível graças à teimosa e silenciosa ação de homens e mulheres comuns cujos nomes a história não registra.
A imensa maioria dos quilombos que marca presença ao longo de séculos de escravidão é o resultado do esforço diário de pessoas simples cuja liberdade, conquistada a duras penas, está quase sempre por um fio. São elas que possibilitam a existência destas comunidades, às vezes pequenas e aparentemente insignificantes, onde uma organização política e militar hierárquica, apoiada numa disciplina rígida, convive com a solidariedade e o compromisso coletivo de usar todos os meios disponíveis para enfrentar a ordem escravista. Vitoriosos ou derrotados, grandes ou pequenos, famosos ou desconhecidos, os quilombos são o testemunho vivo de quem aceita correr o risco de desafiar uma ordem aparentemente invencível”.
Pronunciadas as últimas palavras, Nádia se afasta e deixa que um silêncio de reflexão tome conta da sala. De costas para o secretário que procura se refazer da inesperada lição, a ave, sem pressa, reúne as idéias que, ao concluir esta parte do relato, abrem as portas das próximas etapas. Mais alguns instantes e, sem olhar para trás, diz:
- “Num rápido balanço do século XVIII, podemos afirmar que a irrupção da mineração do ouro cria, de um lado, vários problemas econômicos e sociais, mas, de outro, é justamente a descoberta do precioso metal a salvar e fortalecer o escravismo colonial num momento em que a queda dos preços do açúcar põe em cheque os interesses dominantes. Uma vez reequilibrado o valor pago pelos escravos e com o açúcar novamente em alta, as plantações de cana se recuperam, mantêm uma participação substancial entre os produtos exportados e, por volta de 1795, conhecem uma nova fase de prosperidade.
A esta altura, também os territórios que hoje pertencem ao Maranhão se incorporam à produção das fazendas voltadas ao mercado externo fornecendo algodão e arroz com base no trabalho escravo. É para estas regiões que vamos dirigir agora o nosso olhar, pois o tema do próximo capítulo é...”

         4. A Balaiada e a insurreição dos escravos no Maranhão.

         Ainda atordoado, o secretário coça a cabeça e após uma longa espreguiçada, levanta da mesa na tentativa de ganhar tempo. Diante do cansaço e das duras respostas da coruja, o cérebro trama um pequeno atraso como forma de devolver à ave o doce gostinho da vingança.
Mas enquanto as pernas ensaiam uma saída estratégica, Nádia senta no dicionário e acompanha cada gesto do seu ajudante. Entendida a razão de ser daquela movimentação, espeta o humano com um “Parece criança...!” que faz os pés voltarem sobre os próprios passos.
Sem pronunciar palavra, o corpo retoma o seu lugar. Com a caneta firme entre os dedos, um gesto discreto da mão direita sinaliza que já está pronta para continuar os trabalhos.
- “No início desta etapa – diz a coruja ao limpar a garganta –, é necessário esboçar a situação econômica e política em que se dá o desenvolvimento dos quilombos nas áreas que hoje pertencem ao Maranhão. O impulso inicial para o povoamento das regiões mais próximas ao litoral é vinculado à fase de prosperidade da produção açucareira nordestina, mas, por surpresa dos colonizadores, as terras arenosas e pouco férteis não oferecem as mesmas condições favoráveis encontradas em outras capitanias. Às dificuldades geográficas, se somam a escassez de força de trabalho e a presença ameaçadora de grupos indígenas. O resultado final é o surgimento de pequenas vilas cuja economia mal consegue dar conta do consumo interno.
A própria situação dos engenhos é tão grave que, em 21 de abril de 1688, as autoridades se vêem obrigadas a isentar por seis anos a execução das dívidas dos proprietários e, em 1694, a Câmara de São Luís proíbe a fabricação de doces, pois, ao controlar a comercialização do pouco açúcar disponível, as confeitarias tornam o produto inacessível à maioria dos habitantes.
Situação semelhante é vivida pelas demais culturas agrícolas, entre elas o algodão que, junto aos rolos de pano grosseiro e às drogas do sertão (cacau, cravo, salsaparrilha), são usadas como moeda de troca até por volta de 1750.
Além dos plantios de cana e algodão, da coleta dos produtos da floresta, da caça e da pesca, a pequena lavoura e a pecuária são atividades importantes para a economia da região. Diante da reduzida oferta de cativos africanos, grande parte dos trabalhos é realizada por indígenas escravizados e por colonos pobres vindos de outras regiões do litoral nordestino. A penúria é tamanha que a miséria marca presença constante em amplos setores da população.
As coisas começam a mudar em 1755, quando a Companhia de Comércio do Grão Pará e Maranhão introduz medidas destinadas a desenvolver a lavoura”.
- “Quer dizer que a partir de agora as coisas vão melhorar!”, prorrompem os lábios numa afirmação que faz a coruja balançar a cabeça para negar as expectativas do secretário.
- “Resta saber para quem... – retoma Nádia ao confirmar com a voz o que os gestos haviam anunciado. Na verdade, esta empresa vai fornecer ferramentas, mantimentos e escravos africanos através de créditos a serem pagos com os produtos da terra, mais especificamente com a ampliação das lavouras de arroz e algodão destinadas ao mercado internacional. Desta forma, a Companhia mantém por 20 anos o monopólio da navegação, do tráfico de africanos, da venda de mercadorias trazidas da Europa e da compra dos produtos da colônia a serem levados para o velho continente.
Pouco a pouco, a economia de subsistência é trocada pelas lavouras de exportação, o escravo negro substitui o indígena como força de trabalho a ser explorada, as terras destinadas à expansão das culturas de arroz e algodão desalojam as fazendas de gado que se instalam em novas áreas do interior. Se a economia como um todo se transforma e passa a gerar mais riquezas, a apropriação destas continua nas mãos de um punhado de proprietários de terras e de comerciantes.
A sobrevivência do povo simples corre no fio da navalha. As fontes de renda para os pobres são escassas e a penúria tem presença garantida à sua mesa. Os sobrados e demais sinais de ostentação que aparecem em setores limitados da sociedade maranhense revelam que as elites estão mais preocupadas em garantir luxo e conforto para si próprias do que em desenvolver a produção”.
- “E... quanto aos escravos africanos?!?”, pergunta o secretário com a prudência de quem busca encaixar uma peça solta do quebra-cabeça da história.
- “O primeiro contingente desembarca em território maranhense no final do século XVII, mas é só entre 1755 e 1777 que seu número começa a aumentar, pois, neste período, a Companhia do Grão Pará e Maranhão traz cerca de 12.000 africanos. Com os novos investimentos, o tráfico de escravos vai se intensificando e, de 1812 a 1820, registra a chegada de 41.000 cativos.[15]
As fugas e a construção de quilombos marcam presença desde os primórdios de 1700. Ainda que seja difícil estabelecer o seu número, suas dimensões reais, formas de organização e capacidade de resistência, os registros históricos mencionam freqüentemente a formação de mocambos em áreas próximas das fazendas ou no interior das matas. Via de regra, tanto para satisfazer suas necessidades, como para produzir algum excedente destinado às trocas, os negros abrem clareiras na mata para plantar milho, arroz, mandioca e algodão. Parte dos quilombos combina a agricultura de subsistência com a mineração do ouro, o que proporciona maiores recursos para o comércio com a população local.
Apesar de várias fontes usarem a palavra rei para apontar os chefes quilombolas, os próprios relatos nelas contidos mostram que se trata de líderes escolhidos por consenso e que podem ser destituídos quando deixam de merecer a confiança coletiva. Há descrições que revelam também a presença de uma estrutura militar hierárquica e uma rede de contatos entre os próprios quilombos tanto para a troca de informações como para o planejamento de ações conjuntas. Em alguns casos, os dados deixam transparecer a existência de mocambos menores, localizados nas proximidades das fazendas, que servem de postos avançados tanto para as funções de vigilância, como para a realização de ataques e incursões armadas.
No Maranhão, as possibilidades de fuga e sobrevivência dos africanos são ampliadas por algumas características que não encontramos em outras regiões. A primeira delas está no fato de que, muitas vezes, as propriedades que usam a força de trabalho escrava estão perto de áreas incultas, despovoadas ou habitadas por populações indígenas hostis, que escapam ao controle do estado e nas quais os quilombolas podem se sentir relativamente seguros.
A este elemento é necessário acrescentar a fraqueza e ineficiência que, durante décadas, caracterizaram as forças destinadas à repressão. Os batalhões de elite do exército, em 1810, contam com pouco mais de 2.000 soldados, a maior parte dos quais não sai da capital. As tropas de segunda linha são mais numerosas, porém bem menos equipadas e pouco confiáveis. Capitães-do-mato existem, mas, por sua vida errante, sua origem social baixa e sua autonomia diante das autoridades são vistos com extrema desconfiança. Acrescente a isso as dificuldades trazidas pela estação das chuvas, a extensão do território, as intermináveis discussões sobre os custos das expedições, a inexperiência dos militares, os desentendimentos entre os comandantes das várias forças e as relações entre livres e quilombolas e não terá dificuldades em entender porque os mocambeiros passam longos períodos sem enfrentar as forças do estado ou conseguem derrotar facilmente muitas missões punitivas.
Outro fator que contribui para enfraquecer a capacidade de resposta dos senhores maranhenses é a distância que separa a elite da população livre e pobre. O número de brancos que defendem os interesses portugueses é extremamente reduzido sendo que grande parte destes se concentra nas cidades e povoados do litoral.
A ampla maioria das camadas mais baixa é de origem negra, indígena ou nordestina. Ao mesmo tempo em que um setor deste contingente busca preservar o sistema escravista (na medida em que suas atividades econômicas dependem dele) uma outra grande fatia mal sobrevive à margem das fazendas e se recusa a integrar as tropas oficiais destinadas à perseguição dos quilombolas. Submetidas às arbitrariedades, facilmente colocadas sob suspeita pelas autoridades e com graus diferenciados de convivência com os quilombos, estas pessoas tendem a se identificar mais com os escravos fugidos do que com a ordem dominante.
Se as condições econômicas são muito duras para a maior parte da população livre, os escravos encontram nestas terras um verdadeiro inferno. A alta mortalidade e as constantes situações de insubordinação no interior das fazendas são um indicativo do grau de penúria e opressão a que os negros são submetidos. Não tendo nada a perder e aproveitando da fragilidade dos aparatos repressivos, a resistência dos africanos se manifesta freqüentemente no assassinato de feitores e fazendeiros. Diante do medo e da falta de proteção das autoridades, não são poucos os proprietários das regiões mais distantes do litoral que optam por estabelecer acordos de convivência com escravos e quilombolas a fim de evitar possíveis vinganças”.
- “Bom, Nádia, agora já conhecemos um pouco da economia do Maranhão e como os quilombos vão ganhando espaço nestas terras. Mas o que gostaria de saber é justamente o que vai acontecer entre os moradores dos mocambos e o povo simples...”, diz a boca ao expressar em palavras a ânsia delatada pelo menear da cabeça.
- “Para entender a história temos que dar um passo de cada vez!” – afirma a ave num convite a afugentar a pressa. “Ao tratar de enxergar logo os finalmentes, você perde de vista o processo que explica a razão de ser dos fatos e como estes amadurecem no interior das relações e das contradições da época. Sem esta análise paciente, os acontecimentos parecem mais obra do acaso do que o resultado de ações humanas destinadas a manter, fazer avançar ou superar a ordem existente.
Voltando às terras maranhenses, constatamos que a capacidade da elite controlar o descontentamento das massas populares começa a fazer água a partir de 1819 quando, após atingir o seu auge, em poucos meses, os preços do algodão caem pela metade. Com o fim da relativa prosperidade trazida pela exportação deste produto, a sociedade local mergulha numa fase de escassez de gêneros de primeira necessidade que vai se prolongar por mais de duas décadas levando a pobreza do povo a níveis insuportáveis.
Em contrapartida, o estímulo comercial à produção do açúcar volta a se manifestar. A passos lentos, o centro da produção maranhense se desloca do vale do rio Itapecurú e da margem ocidental do Parnaíba para as comarcas de Viana, Guimarães e Alcântara onde se abrem novas frentes agrícolas. O ritmo das mudanças na base econômica, porém, está longe de acompanhar o das demandas básicas da população que procura os meios para garantir sua sobrevivência física.
Na medida em que a lavoura tradicional se desagrega, a vigilância dos senhores se enfraquece. Fugas e motins aumentam a olhos vistos e, com estes, cresce também o medo das elites quanto à possível generalização da revolta dos negros.
No cenário político, a Guerra de Independência inaugura no Maranhão um período de instabilidade que vai até o início da década de 1840. Entre 1822 e 1824, 1831 e 1832, 1838 e 1840, ocorrem várias rebeliões, sublevações e outros movimentos armados fruto das disputas pelo poder entre setores da elite da província que levam o governo central a intervir.
Nas facções liberais encontramos tanto agricultores pobres, vaqueiros, empregados de fazendas e os marginalizados da população urbana, como latifundiários e profissionais liberais que passam longe de se identificar com as chamadas classes inferiores. Esta aliança entre grupos de interesses tão diferenciados explica porque as idéias de igualdade social e governo do povo somem dos documentos na medida em que os setores mais abastados impõem progressivos distanciamentos dos movimentos sociais, seguidas aproximações ao governo conservador e novas mediações entre os rebeldes e a legalidade para esvaziar as lutas e restabelecer a ordem.
Em 1838, o descontentamento popular diante do caos em que se encontra a economia maranhense e dos abusos das elites é acirrado pelo recrutamento maciço das tropas do império. Praticado de forma indiscriminada pelos conservadores com o objetivo de enfraquecer e perseguir os proprietários do interior, associados aos liberais, o alistamento obrigatório leva pra cadeia os que se recusam a integrar as forças armadas oficias.
No dia 13 de dezembro, um grupo de sertanejos, liderados pelo vaqueiro Raimundo Gomes Vieira, ataca a prisão de Vila da Manga para libertar vários homens aí detidos e dirige às autoridades um proclama no qual reivindica o fim das arbitrariedades. Um mês depois, os rebeldes recebem o apoio de Manuel Francisco dos Anjos Ferreira, o Balaio, que já havia libertado numa ação semelhante o próprio filho, preso pelas mesmas razões.
Durante o primeiro semestre de 1839, o movimento se estende até o Piauí e os enfrentamentos com o poder local atingem o ponto mais alto com a tomada da cidade de Caxias, o maior centro comercial do sertão maranhense, em julho do mesmo ano. Em suas ações, os balaios, nome com o qual os rebeldes passam a ser chamados, chegam até as margens do Rio Parnaíba usando táticas que procuram desorientar as tropas oficiais. Após os ataques, seus contingentes não enfrentam os soldados em campo aberto, mas, divididos em pequenos grupos, fogem da perseguição percorrendo rapidamente grandes extensões de mata para, em seguida, se reagrupar e consolidar novamente as posições conquistadas.
As coisas começam a mudar em função de dois processos quase simultâneos. De um lado, após ocupar Caxias e apoderar-se de farto material bélico, os cerca de 11.000 balaios tomam consciência de sua força. Diante das novas possibilidades de luta, as discussões sobre a natureza e o caráter do movimento fazem aparecer as primeiras divergências internas. O sucesso alcançado leva alguns setores a radicalizarem suas posições e rejeitarem os antigos vínculos com o grupo liberal, que, até então, havia sido o mentor teórico da luta.
Por outro lado, reconhecendo a necessidade de abafar a Balaiada, a elite de Alcântara reúne lavradores, agregados e feitores em batalhões provisórios para garantir a defesa de suas propriedades e frear a ampliação do movimento. Ao mesmo tempo, com o apoio de liberais e conservadores, Luís Alves de Lima, futuro Duque de Caxias, é empossado governador da província em 7 de fevereiro de 1840.
Além de reorganizar as forças locais, solicitar reforços em Pernambuco, regularizar o pagamento dos soldados e introduzir uma rigorosa prestação de contas dos gastos com o abastecimento e a manutenção das tropas, Luís Alves divide seus 8.000 homens em três colunas que atacam os rebeldes em pontos estratégicos: Caxias, Pastos Bons, Vargem Grande, Brejo, Icatú e Miritiba. Impedidos de realizar sua estratégia, os balaios começam a sofrer seguidas e pesadas derrotas”.
- “E... como é que os negros entram nesta história?”, pergunta a curiosidade ao perceber que os quilombos estão fora deste cenário.
- “Tenha calma que já vamos tratar disso – diz a coruja ao tranqüilizar o secretário. Ainda que seja difícil estabelecer um vínculo direto entre os mocambos do Codó e os quilombolas que lutam na Balaiada, liderados por Cosme Bento das Chagas, sabemos que, em novembro de 1839, este inicia uma rebelião simultânea em várias fazendas da região de Itapecurú Mirim.
Com a fuga dos lavradores e aproveitando da confusão reinante, Cosme reúne cerca de 3.000 negros e estabelece uma base de operações na fazenda da Lagoa Amarela, nas proximidades do Rio Preto, onde a população pobre e livre é mais numerosa. Ao proclamar-se tutor da liberdade e partidário dos liberais, o líder de pouco mais de 40 anos de idade procura se aliar aos balaios ao ver na expansão do movimento rebelde a oportunidade de libertar do cativeiro os escravos maranhenses.
Na fase ascendente de suas lutas, os chefes da Balaiada não se preocupam com os negros insurretos e, apesar dos apelos contra as arbitrariedades e dos discursos inflamados em favor da igualdade, em nenhum momento se atrevem a reivindicar a libertação dos cativos, mesmo porque não são poucos os liberais que vivem à custa do trabalho destes. Mas, diante das derrotas, não resta a eles outra opção a não ser a de radicalizar os objetivos da luta para procurar a união com os quilombolas de Cosme. É assim que, em meados de 1840, o líder dos negros se torna a figura que mais assusta os fazendeiros.
Diante do novo ciclo de enfrentamentos, a estratégia de Luís Alves de Lima busca impedir a qualquer custo a união entre homens livres e escravos e entre os próprios escravos. Neste sentido, além de aprimorar o treinamento e a estratégia de atuação de suas tropas, em 22 de agosto de 1840, publica um decreto de anistia. Aos rebeldes que se entregam e passam a colaborar com as forças oficiais, o governador não só garante o perdão de seus atos, como oferece em prêmio os bens confiscados aos que teimam em continuar a luta. Entre os primeiros a aceitar a oferta, encontramos o chefe balaio, Francisco Ferreira Pedrosa que, acompanhado por 1700 homens, se integra ao exército para destruir o quilombo da Lagoa Amarela.
Se isso não bastasse, em janeiro de 1841, Raimundo Gomes se afasta de Cosme e, com o apoio de um grupo de rebeldes e de índios da aldeia São Miguel, tenta cercar a Vila do Rosário. Encurralado, com o seu contingente faminto e sem munição, depõe as armas com cerca de 700 combatentes. A Balaiada está no fim.
Enquanto os setores populares se retiram do campo de luta ou passam a apoiar as forças oficiais, os quilombolas de Cosme não se entregam. Após a derrota da Lagoa Amarela, o líder negro reorganiza o quilombo em Guadalupe, um lugar situado entre o antigo esconderijo e a Vila do Brejo, com cerca de 200 homens, numa última tentativa de salvar a rebelião que definha.
O problema é que agora os negros estão sob fogo cruzado. De um lado, os soldados não cessam seus ataques e, de outro, os rebeldes que debandaram conhecem o terreno tão bem quanto os quilombolas e não param de persegui-los. Vendo seu grupo dizimado, Cosme leva os remanescentes em direção ao Rio Itapecurú, além do qual seria mais fácil encontrar abrigo seguro. Mas, em fevereiro de 1841, todo o seu contingente é cercado e exterminado. Preso, o líder negro é condenado a morte e executado em setembro de 1842”.
- “O que não consigo entender – diz, espantado, o ajudante da coruja – é porque os setores marginalizados da sociedade acabam se voltando com tanta crueldade contra os guerreiros do quilombo que tinham sido seus aliados na tentativa de dar continuidade ao movimento balaio...”
- “Não é difícil encontrar uma resposta a esta indagação – responde a ave ao apóiar o queixo na ponta da asa esquerda. Em primeiro lugar, quando analisamos os setores envolvidos na Balaiada, percebemos que entre eles predominam, sem sombra de dúvida, os que ocupam as camadas mais baixas da sociedade. Trata-se de gente simples do campo e da cidade, das casas de farinha e dos canaviais, das chapadas e dos currais. Pessoas, enfim, para as quais a anistia e a possibilidade de se apossar das terras e dos bens dos rebeldes não é uma chance a ser desperdiçada no cenário de miséria presente em território maranhense.
Além disso, do início ao fim do movimento, os líderes não colocam em discussão a questão do trabalho escravo e, apesar da radicalidade demonstrada após a conquista de Caxias, não se afastam das teses defendidas pelo Partido Liberal. Embora permeados por reivindicações sociais que refletem as expectativas de pobres, mestiços, caboclos e até mesmo de indígenas, os documentos balaios não revelam qualquer identidade com a luta dos escravos. A aliança com os negros de Cosme Bento das Chagas se dá mais em função das derrotas amargadas do que por um aprofundamento da consciência social de suas lideranças.
Ao mesmo tempo, com as rebeliões escravas se espalhando por toda a província, o envolvimento dos quilombolas na Balaiada provoca nas elites um pânico maior do que a própria Balaiada, uma vez que este ameaça as bases do sistema escravista. Consciente da distância que separa os balaios dos escravos rebelados, a cúpula da pirâmide social não tem grandes dificuldades em ganhar o apoio dos primeiros para esmagar os que atentam contra as bases do seu poder”.
- “Mas, não são todos pobres?!?”, insiste a boca ao não se dar por vencida.
A ave sorri e, balançando a cabeça, responde:
- “O fato da grande maioria dos rebeldes ter condições de vida que não se afastam muito das que são impostas aos escravos das plantações maranhenses, não significa que as pessoas livres e marginalizadas se dispõem a lutar pelo fim da escravidão. Seus valores e suas idéias são permeadas pela visão de mundo das elites que leva a maior parte desta camada a aceitar o trabalho escravo como um elemento normal e natural da sociedade daquele tempo.
Se isso não bastasse, quando as necessidades coloniais desembarcam nestas terras grandes contingentes de negros escravos, há um choque de interesses com as camadas que formam a base da pirâmide social. A quase totalidade da população pobre ligada à pecuária ou que exerce atividades de subsistência nas cidades e no campo vê a chegada dos africanos como uma ameaça direta à manutenção de suas já precárias condições de vida. Ao representar a perda de oportunidades de trabalho para milhares de pessoas, a presença dos cativos reduz ainda mais as poucas possibilidades de afirmação social e transforma os negros em concorrentes indesejados da população marginalizada.
Se você somar todos os elementos listados até agora, vai entender porque, apesar da miséria comum, o povo simples continua arredio a uma aliança com os escravos.
- “Sendo assim, então devemos esperar que, com a derrota da Balaiada e dos quilombolas de Cosme Bento das Chagas as revoltas escravas do Maranhão chegam ao fim...”.
- “As coisas não são tão simples como parecem. O fato de um determinado movimento ter sido derrotado não significa que já foram superadas as contradições que lhe deram origem. Se o quilombo do Cosme, ao ter sua ação ampliada pelas condições excepcionais criadas pela Balaiada, impressiona pelo tamanho e pelo medo que desperta nos proprietários de escravos, os mocambos da região entre os rios Turiaçu e Gurupí conseguem ter uma vida bem mais longa e, no século XIX, cada um deles chega a reunir entre 200 e 600 pessoas. Sua longevidade se deve não só à distância em que se encontram dos principais povoados como à habilidade dos negros em desenvolver uma ampla base econômica.
Além da caça, pesca, coleta de frutas e raízes ou da agricultura de subsistência, os quilombolas se dedicam à criação de gado, ao plantio e à comercialização de fumo e algodão bem como à extração do ouro. Estas atividades possibilitam a formação de uma rede de contatos e de convivência com a população livre que supera o nível das trocas ocasionais e chegam a estabelecer linhas de comércio regular com regatões, fazendeiros e até negociantes de vilas como Santa Helena, Carutapera e Turiaçu. Em outras palavras, o interesse de um segmento da população, e até da elite, em manter relações pacíficas com estes mocambos acaba dificultando a ação repressiva, já emperrada por questões de ordem administrativa. De fato, até 1852, parte deste território pertence ao Pará e, apesar das autoridades maranhenses reconhecerem a gravidade da situação criada pelos escravos fugitivos, poucas vezes conseguem coordenar seus esforços com os governantes paraenses, o que facilita tanto a atuação defensiva dos quilombolas, como suas incursões nas propriedades da região.
Em 1834, as duas províncias articulam uma expedição na área da Vila do Turiaçu. As tropas conseguem encontrar o mocambo do Maracassumé e prender certo número de seus integrantes. O aparente sucesso da expedição leva as autoridades a anunciar a extinção dos quilombos do Turiaçu, mas, alguns anos depois, os documentos encontrados relatam novas queixas sobre as ações dos negros fugidos que se abrigam na região. Em 1853, uma tropa sai de São Luís em direção ao mesmo distrito. Os soldados matam 20 quilombolas e aprisionam outros 46. Apesar de ser grande o número dos que conseguem fugir, as autoridades não titubeiam em proclamar sua vitória.
A notícia da existência de minas de ouro no Maracassumé atrai vários grupos interessados na sua extração. Após as fracassadas tentativas de assentar colonos chineses e japoneses nesta área, a Goldmining Company arrenda por sete anos a região dos Montes Áureos e importa da Inglaterra toda a maquinaria necessária para dar início à lavra. Por razões ainda inexplicadas, as autoridades maranhenses  não renovam a concessão. Pouco a pouco, a região volta a ser controlada pelos quilombolas que, de 1860 a 1870, fazem do garimpo a principal fonte de sustentação econômica”.
- “Ao que tudo indica, os governantes desta província não têm vida fácil em sua luta contra os quilombos...”, comenta o secretário ao visualizar o vaivém dos enfrentamentos.
- “Não mesmo! – arremata a ave. Além da Balaiada, há um segundo momento da história do Maranhão que deixa os senhores de cabelos em pé. Durante a Guerra do Paraguai, a demanda de soldados obriga todas as províncias a darem sua contribuição enviando para os campos de batalha tanto os recrutas como parte de seus batalhões da Guarda Nacional. O encolhimento dos contingentes locais gera uma redução drástica do policiamento e dos mecanismos de controle da massa escrava. Estes elementos, somados aos rumores sobre a possível abolição da escravatura, levam os quilombolas da região de Viana a aumentarem suas incursões e ameaças.
É assim que, nos dias 8 e 9 de julho de 1867, cerca de 400 homens do quilombo São Benedito do Céu saqueiam a fazenda Santa Bárbara, ocupam o engenho Timbó e, após se apoderarem de suas armas e munições, invadem Vila Nova Anadia. Tamanha ousadia deita raízes tanto no fato de alguns negros terem fugido daqueles lugares (o que acrescenta o desejo de vingança ao conhecimento detalhado do campo de luta), como na possibilidade de usar as antigas relações de amizade para obter o apoio dos demais escravos e garantir assim o sucesso do ataque.
Mas, após a vitória inicial, em 10 de julho, chega uma tropa de 120 soldados que desaloja os quilombolas. Dois dias depois, graças aos reforços vindos em sua ajuda, os negros são obrigados a se retirar das matas circunstantes e vários deles são feitos prisioneiros.
As notícias se espalham como um rastilho de pólvora. Aterrorizada, a população da vizinha São Vicente Ferrer quer abandonar a vila e a polícia mal consegue impedir que isso aconteça. Problemas semelhantes ocorrem em outros municípios e, diante do pânico que toma conta das pessoas livres, os escravos de várias regiões do Maranhão se mostram insubordinados e audaciosos em desafiar seus feitores, como se estivessem à espera do resultado dos enfrentamentos para engrossar as fileiras dos quilombolas.
Temendo o pior, o presidente da província, Menezes Doria, envia uma expedição com a ordem de destruir São Benedito do Céu ao mesmo tempo em que usa os órgãos de governo para tranqüilizar a população ao divulgar notícias segundo as quais a situação já teria sido controlada.
No dia 17, com as informações extraídas dos prisioneiros, os soldados chegam no quilombo onde só encontram um homem e um menino de dois anos. Destruídas e queimadas as casas, já sem víveres e em meio às desavenças dos comandantes, os contingentes oficiais se retiram do local.
Mas os enfrentamentos ainda estão longe do fim. Em 27 de agosto, um novo contingente armado marcha em direção do reduto quilombola. Duas semanas depois, atacada pelos mocambeiros, a expedição sofre várias perdas, mas consegue capturar um número significativo de pessoas. Ao sair da região após três dias de combates, podemos dizer que as forças oficiais abandonam o terreno de operações numa situação de empate. Derrotados ao saírem das matas, os negros deixam de empreender ações semelhantes ao mesmo tempo em que as batidas realizadas pelos soldados não conseguem erradicar os quilombos que nelas encontram abrigo.
Paralelamente a isso, o governo da província envia a todas as Câmaras Municipais um questionário detalhado no qual pede informações sobre a quantidade de escravos e de mocambos presentes no município, a localização exata destes esconderijos, suas relações comerciais e o armamento com o qual poderiam estar contando. Com base nos dados obtidos, dá início a uma ação seletiva que visa o desarmamento dos escravos de várias fazendas com o intuito de inviabilizar qualquer possibilidade de insurreição.
A relativa tranqüilidade das elites volta a ser assegurada não só graças à repressão, mas também pelas mudanças que começam a ganhar terreno na economia da província. O fim do tráfico com a África e a venda dos escravos para as lavouras de café do sul do país, pouco a pouco, transformam os cativos numa parcela bem pequena da população. De 1870 em diante, a falta de braços para as lavouras locais começa a ser suprida por colonos nordestinos. A seca de 1877 leva ao Maranhão um grande contingente de cearenses que as autoridades assentam em lugares estratégicos, nas áreas mais afastadas das fazendas já constituídas e, algumas vezes, nas de alguns quilombos.
É o caso, por exemplo, da colônia Prado que vai aproveitar em benefício próprio o trabalho de desmatamento e as roças do quilombo do Limoeiro. Ou seja, a partir deste momento, as ações armadas contra os mocambos não visam mais a destruição dos trabalhos aí realizados. Uma vez conquistada a área, esta é entregue aos nordestinos que fogem da seca e passa a ser defendida pelas forças de elite do exército que, ao garantir a ocupação do território, impedem o avanço das atividades quilombolas”.
- “Bom, Nádia, pelo visto o seu relato caminha rumo à abolição!”, diz a boca enquanto o estalar dos dedos parece comemorar antecipadamente o fim dos trabalhos.
- “Nada disso! – responde prontamente a ave jogando um balde de água fria nas ilusões que assanham o corpo cansado do secretário. Antes de enfrentar o processo histórico que leva ao fim da escravidão em nossas terras, vamos nos deter sobre um momento das lutas escravas na Bahia. Por isso, sossegue o seu facho porque vem aí o capítulo onde vou analisar...

5. A Bahia do século XIX e a Revolta dos Malês.

Firme em seu propósito de resgatar mais um período histórico, a coruja dá um rápido passar de olhos nas últimas páginas do relato. Emitindo sons incompreensíveis, o bico parece costurar os dados que permitem delinear o ambiente no qual se desenvolvem as ações da resistência escrava. Instantes depois, Nádia estufa o peito e, ao levantar a ponta da asa, sinaliza que vai dar início ao relato.
- “Após muitos anos de marasmo – diz ao desenhar círculos no ar –, a economia baiana começa a conhecer uma nova fase de prosperidade entre 1788 e 1789. Os plantios de algodão e tabaco se expandem em várias regiões, enquanto os engenhos aumentam na medida em que o preço do açúcar volta a subir no mercado internacional.
A retomada dos investimentos nos produtos de exportação eleva o tráfico de escravos para a província, mas a produção de alimentos para o consumo local não acompanha o crescimento das cidades e dos povoados”.
- “Em outras palavras, deve ter um bocado de gente passando necessidade...”, irrompe o secretário sem fazer cerimônias.
- “E põe bocado nisso! De acordo com alguns estudos, em Salvador, 90% da população livre atravessa o século XIX no limiar da pobreza. E não é pra menos. Acontece que, além da escassez de produtos de primeira necessidade, na capital da Bahia temos uma elevadíssima concentração de renda. Os 10% mais ricos detêm nada menos do que 67% da riqueza, ao passo que os 60% mais pobres disputam não mais do que 6,7% da mesma.[16]
Apesar da distância entre o topo e a base da pirâmide social, só os miseráveis não dispõem de escravos a seu serviço. Ter um cativo trabalhando para si é algo tão corriqueiro que constitui uma aspiração comum a todas as pessoas livres e aos próprios alforriados.
Nas cidades e povoados do interior, a situação não é muito diferente a não ser pelo fato de que aqui a população escrava representa 60% do total e tende a crescer ainda mais na medida em que a expansão agrícola demanda maiores quantidades desta força de trabalho. Após a rebelião ocorrida no Haiti, em 1792, basta a simples presença de tamanho contingente de cativos para elevar a preocupação dos senhores com uma possível sublevação local sobretudo quando, na virada do século, as incursões dos negros fugidos tornam inseguras as principais vias de comunicação.
Embora a presença dos quilombos na Bahia coincida com a chegada dos primeiros africanos em seus territórios, é a onda de revoltas que se espalha após 1807 a fazer com que o medo tome conta das elites. O problema é que parte considerável dos mocambos está bem próxima dos centros habitados e dos engenhos e sobrevive tanto graças ao comércio com setores da população como dos ataques às fazendas e povoados das redondezas.
Entre os mocambos que se desenvolvem nas imediações de Salvador, encontramos uma economia cada vez mais integrada à vida da escravidão urbana. Ao mesmo tempo em que servem de refúgio ou simples ponto de passagem dos cativos em fuga, é a partir deles que os quilombolas entram na cidade para vender seus produtos confundindo-se com os moradores locais.
Facilmente destruídos pelas ações policiais, estes quilombos são invariavelmente reconstruídos pelos que escapam da repressão e, em pouco tempo, voltam a atrair novos fugitivos.
         Como já dissemos, no início do século XIX, o número de escravos na Bahia cresce, impulsionado pela expansão dos cultivos destinados à exportação. Entre os africanos trazidos pelo tráfico, o grupo daqueles que as autoridades coloniais chamam de huassás começa a criar problemas entre 1806 e 1807, período em que é descoberta uma tentativa de conspiração por eles organizada. Ao que tudo indica, a rede de contatos entre os huassás em Salvador e os que vivem nos engenhos do Recôncavo havia reunido armas e munições para um levante a ser realizado durante a festa de Corpus Christi, dia em que a vigilância seria relaxada em função das celebrações religiosas.
         Descoberta a ameaça, as autoridades agem com extrema rapidez: prendem e executam os líderes do movimento, açoitam publicamente dez escravos que integram o grupo, restringem a circulação de cativos e livres, impõem o toque de recolher e mandam vigiar as fontes públicas, tanto por estas serem um ponto de encontro diário dos cativos como por temer um possível envenenamento da água.
         Sabendo que qualquer esperança de sucesso depende da possibilidade de vincular a iniciativa urbana a um levante geral no campo, em abril de 1807, o governador planeja a destruição sistemática dos quilombos que se escondem nas matas em volta da cidade e a repressão das manifestações culturais de origem africana, como os batuques, por suspeitar que estas fortalecem a união entre os escravos de vários grupos étnicos e fomentam a rebelião.
         Mas, apesar dos esforços das autoridades, as fugas continuam a acontecer e o perigo potencial dos quilombos não demora em se transformar em ameaça real. No início de 1808, a Vila de Nazaré das Farinhas é atacada por cerca de 300 quilombolas. A ação conta com o apoio de centenas de rebeldes em Salvador que procuram se unir ao levante. A intervenção imediata das tropas oficiais intercepta os revoltosos que se dirigem a Nazaré e, dois dias depois, vence os negros armados impondo muitas baixas e punindo exemplarmente os 95 rebeldes capturados.
         Apesar do rigor das medidas impostas nos meses seguintes, em 1810, o governo da Bahia é chamado a suprimir mais uma rebelião e, quatro anos depois, una nova grande revolta explode a norte dos limites urbanos de Salvador.
Em fevereiro de 1814, aos gritos de «Liberdade!» e «Morte aos Brancos!», cerca de 250 quilombolas atacam e incendeiam as armações de pesca da baleia de Itapoã e sublevam os escravos aí empregados matando entre 50 e 100 pessoas. Na tentativa de ampliar o levante, os revoltosos marcham em direção do Recôncavo. No trajeto, queimam dois engenhos, tomam armas e cavalos, eliminam quem tenta detê-los. Chamados a intervir, os soldados interceptam a coluna quilombola em Santo Amaro de Ipitanga, impõem 50 baixas às forças rebeldes e submetem um grande número de prisioneiros a castigos brutais. Vendo que a derrota é inevitável, parte dos negros sublevados se enforca para não cair nas garras dos militares enquanto outros conseguem se adentrar na mata onde dão vida a um novo mocambo.
         Um mês depois, os inquéritos que apuram os fatos de Itapoã ainda não estão concluídos quando chegam em Salvador as notícias de um novo levante. Em 20 de março, os quilombolas atacam um engenho nas proximidades da cidade de Cachoeira e tentam tomar de assalto a Vila de Maragogipe. No desenrolar dos acontecimentos, os três libertos que servem de elo de ligação entre os revoltosos são presos e a insurreição é dissipada.
         Apesar de seu alcance limitado, estas ações são uma amostra do clima de instabilidade e incerteza que força tanto os senhores de escravos como as autoridades governamentais a atuarem no sentido de dificultar a organização étnica e de impedir as tentativas de fortalecer os vínculos entre os cativos das áreas urbanas e os mocambos construídos nas redondezas”.
         - “Na cidade de Salvador, vamos ter outras tentativas?”, cutuca a boca levada pela curiosidade.
         - “É o que vamos ver após resgatar alguns elementos que permitem entender o ambiente em que estas se desenvolvem – responde a coruja alimentando as expectativas. O crescimento da economia baseado nas mercadorias destinadas à exportação começa a dar sinais de cansaço por volta de 1820. O grande volume de açúcar que sai dos engenhos, aliado à sua extração da beterraba nos países europeus, faz cair os preços no mercado internacional e atinge duramente a economia baiana. Por sua vez, o plantio do algodão, realizado a muitos quilômetros da costa encontra no elevado custo do transporte o obstáculo que lhe impede de competir com o produto estadunidense nas praças da Europa. Ao mesmo tempo, os donos das plantações de fumo vêem seus lucros encolherem na medida em que as linhas comerciais com a África são dificultadas por leis e tratados internacionais que procuram pôr fim ao tráfico de escravos.
         Se isso não bastasse, na Bahia de 1822 e 1823, a Guerra de Independência leva à destruição de muitos engenhos, ao desvio de recursos e à paralisação das exportações através do porto de Salvador. Com a fuga dos comerciantes portugueses no final dos enfrentamentos, saem de cena exatamente os atores que alimentavam os financiamentos, forneciam escravos, mercadorias, peças de reposição para os engenhos e compravam o açúcar para vendê-lo no mercado europeu. O vazio deixado é agravado pela grande demanda de cativos das plantações de café que se desenvolvem no Vale do Paraíba paulista e fluminense. O preço de um escravo que, em 1819, era, em média, de 214.000 Reis, passa a 266.000 em 1830 e atinge a marca dos 483.000 Reis dez anos depois. Mas, com o açúcar no topo das exportações baianas, as tentativas de driblar as dificuldades levam a expandir o plantio da cana nas áreas antes destinadas à produção de alimentos e a compensar a escassez de escravos com o aprofundamento da exploração da força de trabalho existente.[17]
         A lista das desgraças se completa com a epidemia que atinge o gado da região (reduzindo tanto o número de animais de carga nos engenhos como a oferta de carne), a seca que castiga o nordeste entre 1824 e 1825 e de 1830 a 1833 (elevando sobremaneira os preços dos produtos básicos), o aumento da população e as crescentes dificuldades dos trabalhadores livres encontrarem emprego. Some tudo isso e não terá dificuldades em visualizar a piora das condições de vida da imensa maioria do povo e o clima de agitação social que marca presença tanto através de manifestações pacíficas e relativamente organizadas para pedir aumentos salariais, como dos saques aos armazéns.
         A Bahia só não explode porque a elite reprime duramente livres e escravos, canaliza o descontentamento popular para sentimentos antiportugueses, protege a ordem escravista mantendo a discriminação racial e isola as lutas dos negros das que ganham corpo nas camadas pobres da população.
         É neste clima de revolta contra a degradação das condições de vida que, em 10 de abril de 1830, cerca de 20 africanos atacam três lojas de ferragens e conseguem retirar delas 15 espadas e vários facões de açougueiro. Com estas armas, se dirigem ao mercado de escravos do traficante Wenceslau Miguel de Almeida, onde libertam os cativos que aí se encontram e matam 18 negros que se recusam a participar do inesperado levante. O grupo rebelde ganha a adesão de uma centena de pessoas, mas, após deixar o depósito negreiro, é atacado pelas forças policiais que, contando com melhores armas, conseguem conter os africanos até a chegada dos reforços. Na luta inglória de um contingente que tenta uma rebelião espontânea com espadas e facões contra soldados treinados e munidos de armas de fogo, os negros são cruelmente derrotados e perseguidos. Entre os presos, 50 são publicamente espancados até a morte.
         Ao atingir pela primeira vez o coração de Salvador, é possível que os rebeldes estivessem tentando uma nova estratégia para vencer as forças do poder. A falta de dados para um estudo mais rigoroso deste levante impede chegar a conclusões definitivas, mas, ao que tudo indica, se, até 1830, são os ataques fora da cidade a marcar presença constantes nas tentativas de rebelião, agora é uma vanguarda que procura sublevar africanos recém-chegados para, com eles, tentar mobilizar e atrair para a luta os demais escravos da capital. Apesar de contar com o efeito surpresa e conseguir certo número de adesões, ruas e praças acabam formando uma arapuca que se fecha em volta dos rebelados. Sem as matas para oferecer abrigo, o centro de Salvador, onde se concentram as forças armadas oficiais, é facilmente selado pela ação dos militares cujo maior poder de fogo transforma em carnificina mais uma tentativa de revolta.
         Sufocada a rebelião, o governo da província endurece suas ações: mantém na prisão os acusados de participar da revolta (mesmo quando inocentados por falta de provas) e só permite que deixem a cadeia ao serem vendidos fora da província, obriga os escravos a cumprir rigorosamente o toque de recolher às 9.00 hs. da noite e aumenta as rondas que vasculham a cidade. O rigor destas medidas consegue impedir por algum tempo ações insurrecionais significativas. Isso, pelo menos, até a revolta que os malês preparam na sombra e cuja ameaça vai se tornar pública no início de 1835”.
         - “Malês...?!? Que diabo é isso?!?”
         A coruja emite um longo suspiro e, recostado o corpo na pilha de livros, com expressão séria diz:
         - “Malês é o nome pelo qual são conhecidos os africanos muçulmanos que vivem na Bahia. Ainda que a origem desta palavra seja objeto de controvérsias, parece que ela vem do termo imale que, na língua iorubá, significa islã ou muçulmano. É só na Bahia que vamos encontrar a palavra malê e isso se deve justamente à maior presença iorubá. Ao usar este nome, portanto, não falamos de uma etnia, mas sim de qualquer escravo ou liberto de origem africana que adote o islamismo como sua religião”.
         - “E... como é que uma fé religiosa põe em movimento uma rebelião escrava?!?”, questiona o secretário desconfiado.
         - “Como todas as crenças, o islã tem um papel ambíguo na história da época. Na África ocidental da primeira metade do século XIX, governantes muçulmanos se baseiam em sua religião para promover a expansão militar e a transformam em fiel aliada do poder a serviço de senhores tribais e até mesmo de traficantes de escravos.
         Em terras baianas, o islamismo se torna uma espécie de refúgio dos humildes, um elemento que dá força moral, espiritual, organizativa, que mantém viva a esperança de libertação de milhares de africanos e no qual cativos e alforriados encontram uma de identidade coletiva.
         A dificuldade em apontar o momento exato em que o islã começa a incentivar a rebelião não pode fazer cair no esquecimento os aspectos que, direta ou indiretamente, contribuem para isso. O simples fato de negros africanos manterem intactos os rituais muçulmanos representa um afastamento da própria ordem escravista que, de acordo com a constituição de 1824, elege o catolicismo como religião de Estado, a única com direito a cerimônias públicas. Em outras palavras, professar o islã em grupo já é uma ilegalidade candidata a se tornar caso de polícia.
         Além de apagar a divisão étnica usada pelos escravistas como uma das formas de dominação, os laços religiosos construídos pelo islã facilitam a consolidação de canais de solidariedade e encontram em Salvador as condições favoráveis à sua ampliação. A relativa independência dos escravos urbanos (que precisam sair às ruas para ganhar as quantias exigidas por seus senhores), a presença de numerosos libertos e as relações que se estabelecem entre estes dois grupos fazem com que a penetração muçulmana na comunidade escrava se realize em diferentes níveis de profundidade e envolvimento. Enquanto o número de pessoas que se convertem ao islamismo vai aumentando, os líderes religiosos avaliam seus fiéis, estudam as condições políticas, orientam os discípulos mais próximos a transformarem o compromisso com a religião numa adesão a um processo de transformação social e começam a refletir sobre o melhor momento de fazer eclodir a rebelião, cuja hora é mantida em segredo pelos mestres muçulmanos.
         O fato de saberem ler e escrever em árabe proporciona aos malês mais um caminho para facilitar os contatos pessoais e repassar seus conhecimentos numa língua que não é compreendida pelas autoridades e pelos senhores de engenho.
Conscientes de que um levante estritamente urbano não teria futuro, na medida em que deixaria de fora o grosso da população escrava rural e das vilas do Recôncavo, os libertos malês cuidam de ter adeptos e lideranças no interior. A possibilidade de se deslocar com maior facilidade e de cobrir distâncias mais longas faz com que as atividades profissionais por eles exercidas sejam usadas tanto para o proselitismo religioso como para ampliar a base da revolta. É assim que mascates e artesãos de origem africana usam suas profissões para estabelecer novos contatos, costurar relações mais sólidas e, obviamente, para encobrir o trabalho destinado a garantir o sucesso da rebelião.
Reunidos nas esquinas de cidades e vilarejos, nas casas ou oficinas de alforriados, os malês se encontram, trocam idéias, rezam, tomam refeições, cumprem seus rituais e, no clima de agitação da época, passam do imaginar um mundo melhor, a conspirar e planejar os passos que visam destruir o poder dos brancos. Ou seja, longe de ser uma explosão espontânea ou o fruto de uma decisão apressada, a rebelião de 1835 é o resultado de um longo período de gestação”.
- “Bom, se as coisas estão assim, qual é o plano e quando começa a ser colocado em prática?”, pede a boca entre a curiosidade e a desconfiança.
- “Vários elementos apontam que a rebelião propriamente dita começa a ser planejada em dezembro de 1834. Durante a festa de encerramento do Ramadã, o período de jejum dos muçulmanos, a polícia intervém e destrói o lugar que servia para as celebrações da comunidade. O fato alimenta entre os malês um sentimento de discórdia e de frustração na medida em que, além de ferir o seu orgulho, espalha pela cidade a idéia de fragilidade do seu grupo. Ao temer que uma crise de confiança na causa do islã leve a comunidade a debandar, as lideranças do movimento sinalizam a necessidade de realizar uma ação contundente.
A data escolhida para o levante é o domingo 25 de janeiro, festa de Nossa Senhora da Guia. Naquele final de semana, um grande número de pessoas sairia rumo à então distante localidade do Bonfim. Para o mesmo local se dirigiria também boa parte da polícia com o objetivo de conter os excessos do povo durante os festejos.
Com a cidade esvaziada de homens livres e policiais, os conspiradores poderiam deixar mais facilmente seus esconderijos para percorrer os bairros na tentativa de ganhar a adesão dos escravos que, na manhã do dia 25, iriam buscar água nas fontes públicas ao romper do dia. Com as armas de fogo e as espadas compradas com o dinheiro de um caixa comum, os membros do movimento, divididos em cinco grupos, insurgiriam em vários pontos da cidade.
De início, parte dos rebeldes provocaria incêndios com a finalidade de desviar a atenção da polícia e de levar as tropas a saírem dos quartéis. Com a confusão reinando soberana e na impossibilidade de obter reforços imediatos, os insurretos teriam vida fácil na hora de realizar suas incursões. Feito isso, o grupo que deveria atacar o centro de Salvador se dirigiria ao quartel de São Bento e, após vencer uma possível resistência, se uniria a outro para dar conta da fonte de São Pedro. Em seguida, ambos desceriam rapidamente em direção ao Taboão e à Conceição da Praia, onde, somando forças com outros grupos, enfrentariam o quartel da cavalaria, o mais sério baluarte a ser vencido. Libertados os escravos, trucidados os brancos, mulatos e crioulos encontrados pelo caminho, parte dos revoltosos se manteria nas posições conquistadas, enquanto outros convergiriam para o Cabrito, atrás de Itapagipe, onde, com o apoio dos cativos do Recôncavo, lançariam a batalha final para apoderar-se da cidade”.
- “Você falou em trucidar brancos, mulatos e crioulos...?!?”
- “Exatamente, querido secretário! Em caso de vitória, os malês prevêem uma Bahia só de africanos”.
- “Olha, eu até consigo compreender a razão de ser do ódio em relação aos brancos. Mas pegar de jeito também crioulos e mulatos... me parece demais...”.
- “O problema é que, por sua posição social, estes últimos são vistos como cúmplices da dominação branca e não como suas vítimas. Além de não participarem de nenhuma das mais de 20 revoltas escravas que a Bahia conhece antes de 1835, os afro-brasileiros, nascidos num ambiente em que a escravidão é tida como natural, não têm nenhum outro referencial. Isso não quer dizer que eles sejam escravos felizes e ajustados ao sistema, mas que, ao vivenciar a escravidão, expressam as contradições próprias do seu grupo.
No plano cultural, por exemplo, falam a mesma língua dos brancos, assimilam seus valores e práticas, podem constituir mais facilmente uma família, muitas vezes têm os senhores como padrinhos de batizado e chegam a estabelecer com estes certo grau de cumplicidade. Além disso, mulatos, cabras e crioulos formam o grosso dos contingentes empregados no controle e na repressão dos africanos, são encarregados de manter a ordem nas fontes, praças e ruas de Salvador, de invadir e destruir terreiros religiosos nos subúrbios, de perseguir escravos fugidos e combater as rebeliões.
Apesar de terem suas próprias formas de defesa diante do sistema, as linhas de separação do poder branco que estas criam no interior da ordem escravista são tão tênues que, muitas vezes, nada impede que sejam confundidas com a acomodação pura e simples. Sua resistência quotidiana inclui atitudes de insubordinação, a lentidão na execução dos trabalhos, a destruição de ferramentas, a simulação de doenças, pequenos furtos e certa habilidade para aproveitar-se de sentimentos paternalistas. Por menos conflituosas que sejam suas relações com os senhores, as fugas são freqüentes, mas sua mobilização política se dá mais nos protestos dos pobres livres da cidade do que nas revoltas organizadas por negros escravos e libertos, considerados seres inferiores.
Dadas estas condições, não é difícil entender porque a rebelião consegue apontar, no máximo, para uma aliança entre malês e integrantes das demais etnias africanas. Sabendo que sozinhos não conseguiriam grande coisa, a necessidade de arrastar os escravos para o movimento insurrecional impõe que a identidade religiosa não seja o critério que leva a somar forças. Mas, quanto ao futuro a ser construído, nem esta nem o desejo de reverter a ordem são suficientes para dar vida a um projeto igualitário. Ambos os elementos chegam, no máximo, a vislumbrar uma realidade na qual os senhores de hoje são os escravos de amanhã. A escravidão, que os próprios africanos vêem como algo natural, é mantida só que agora o topo da pirâmide social é ocupado pelas antigas vítimas desta mesma ordem”.
- “Até agora, Nádia, você apresentou vários elementos anteriores ao levante. Será que dá para descrever o que, de fato, acontece naquele 25 de janeiro de 1835?”, solicitam os lábios interessados no desfecho de uma ação tão cuidadosamente preparada.
Passo a passo, a coruja se aproxima, pisca os olhos e, ao apontar a asa esquerda para a caneta, diz:
- “No dia que antecede o levante, as coisas não procedem conforme o planejado. Os últimos preparativos, as informações que correm de boca em boca e os contatos necessários para o desfecho da rebelião não conseguem impedir que o segredo guardado por tanto tempo chegue ao ouvido das pessoas erradas.
No início da noite de sábado, 24 de janeiro, o liberto Domingos Fortunato transmite à mulher Gulhermina Rosa de Souza os comentários ouvidos nas ruas. Pelas conversas dos negros, o intenso movimento de escravos chegados de Santo Amaro, no Recôncavo, seria parte das ações de um levante que tomaria conta de Salvador na manhã do dia seguinte. Momentos depois, a própria Guilhermina confirma as palavras do marido ao escutar de alguns deles que, ao toque da alvorada, os cativos que se dirigem às fontes para apanhar água seriam convocados para uma revolta.
Querendo mostrar sua lealdade, a mulher relata o que sabe ao seu antigo senhor, Souza Velho, e a um vizinho branco. As pessoas que se encontram na casa deste informam o juiz de paz que, por sua vez, denuncia os fatos ao presidente da Bahia, Francisco de Souza Martins.
Ciente da gravidade dos acontecimentos, Francisco toma medidas de emergência: reforça a guarda do palácio, avisa o chefe de polícia, coloca em alerta os quartéis da cidade, manda dobrar as rondas noturnas, envia uma fragata para vigiar o mar de Salvador e encarrega os juizes de paz de organizarem patrulhas extras para revistar as casas de africanos localizadas nas ruas indicadas pelas informações dos delatores.
Por volta de uma hora da manhã, uma destas patrulhas está preste a entrar na loja de Manuel Calafate onde um grupo de 50 a 60 pessoas dá os últimos retoques ao plano de ataque. Recebidos à bala, os soldados são surpreendidos pela reação inesperada dos negros que, após escapar do cerco, se dividem em pequenos grupos. Ao se dispersar pelas ruas da cidade, os revoltosos gritam e batem nas portas de seus parceiros convocando-os a unir-se a eles diante da inesperada mudança de planos.
Em suas primeiras ações, parte dos insurretos ataca a cadeia da cidade com o propósito de libertar Pacífico Licután (um mestre muçulmano muito estimado), os demais presos africanos e se apoderar das armas dos guardas. Apanhados entre dois fogos, são obrigados a desistir.
Com o grupo ampliado por novas adesões, os rebeldes tentam tomar o quartel, mas os soldados de prontidão começam a atirar e frustram a ação cujo objetivo era justamente de conseguir o armamento necessário para sustentar e ampliar a revolta.
Entre às 5 e às 6 da manhã, pelo menos dois novos grupos de africanos vão às ruas, conforme o plano originalmente estabelecido. Nas horas que seguem, enfrentamentos e ataques se sucedem em vários pontos da cidade. A intervenção da cavalaria, porém, dispersa os revoltosos e dá início a uma verdadeira caçada humana.
Muitos africanos conseguem se refugiar nas matas e nos montes das redondezas. Outros tentam fugir a nado e os que não morrem afogados são capturados e fuzilados pelos marinheiros da fragata. O plano de repressão das elites funciona com a precisão de um relógio e, além de derrotar os rebeldes, impede que a insurreição alcance as áreas rurais.
Após quase dois séculos, é difícil calcular o número de africanos que realmente saem às ruas para lutar. O presidente da província declara que este contingente não passa de 200 indivíduos. Os estudos realizados por João José Reis apontam um número ao redor de 600. O fato é que poucos dos cerca de 22.000 africanos que vivem em Salvador entram nas fileiras da insurreição.[18]
Numa rápida avaliação do desenrolar dos fatos, podemos dizer que a frustração do fator surpresa na loja de Manuel Calafate, um dos núcleos centrais da revolta, desestrutura a tática preparada pelos malês e desfere um golpe mortal ao levante armado. Embora os africanos tenham reagido à investida da patrulha e tentem seguir o que havia sido originalmente planejado, a antecipação forçada da revolta e a ação certeira da repressão impedem a concretização de suas esperanças”.
- “Meu Deus! Que desastre!”, comenta a boca entre a perplexidade e o desconcerto.
- “O problema é que as coisas não param por aqui – continua a coruja em tom nada animador. Derrotada a rebelião, os vencedores têm sede de vingança. Um clima de histeria, perseguição e violência contra os africanos toma conta de Salvador e de seus arredores. A menor desconfiança de que algo pode estar sendo tramado leva tanto os soldados como boa parte da população civil a se envolverem em espancamentos e assassinatos de negros pacíficos e inocentes.
As autoridades baianas não descansam. Só nos dias 25 e 26 de janeiro, são presos 45 escravos e 50 libertos. A cidade conhece uma coordenação nunca vista de todos os contingentes armados das forças oficiais que cercam ruas inteiras para invadir as residências de africanos e impedir qualquer tentativa de fuga. Cada quarto é cuidadosamente revistado, seus moradores são interrogados e qualquer objeto suspeito (como amuletos, roupas malês, papéis escritos em árabe) condena seus donos à prisão.
A polícia só respeita as casas dos senhores. Estes, em geral, cooperam com a repressão ainda que, mais tarde, defendam seus escravos no tribunal por temer a perda do capital neles investido. Os cativos acobertados não escapam à delação dos vizinhos. O mesmo acontece com os libertos. Muitos negros são denunciados por ensinarem árabe, distribuir literatura muçulmana, ou, simplesmente, por receber amigos africanos na própria casa. Durante todo o primeiro semestre de 1835, as batidas policiais prendem centenas de suspeitos. Os presídios ficam tão abarrotados que seus administradores não têm recursos para alimentar os prisioneiros.
A vida da comunidade negra é virada pelo avesso. Qualquer elemento que lembre ou recupere a identidade africana e suas expressões de resistência é tido como perigoso, merecedor de investigação, nocivo à ordem social e suficiente para condenar seus portadores.
O próprio trabalho dos advogados de defesa é prejudicado pela multidão que os cerca e insulta com palavrões e ameaças. No clima de caça aos negros que toma conta dos julgamentos, não são poucos os libertos indiciados que se vêem obrigados a apresentar suas defesas por escrito porque não há quem se dispõe a enfrentar a fúria da multidão para assumir suas causas nos tribunais. Centenas deles, presos como suspeitos, mas contra os quais as autoridades não conseguem qualquer prova incriminadora, são deportados para as regiões da África de onde vieram.
Ao todo, dos 16 acusados, inicialmente condenados à morte, onze são escravos. Para as centenas de africanos presos por sua suposta participação no levante, as penas variam em número de açoites e anos de prisão.
Na prática, a rebelião de 1835 encerra o ciclo de revoltas africanas na Bahia. A violenta repressão desatada pelas elites e a atuação permanente de suas forças armadas têm um papel de primeira ordem na tarefa de intimidar possíveis rebeldes. De agora em diante, a história só vai registrar uma suspeita infundada de conspiração malê em 1844.
Longe de representar a aceitação pacífica da escravidão, a rebeldia escrava deixa de se expressar em tentativas insurrecionais, mas continua marcando presença nas relações entre senhores e cativos, na cultura e no dia-a-dia da vida africana na Bahia. Se 1835 marca o fim de um período, a derrota dos malês não é o fim da resistência”.
- “Ainda falta muito?”, pergunta o secretário em voz baixa.
- “O nosso breve passeio pela história está próximo do fim - responde Nádia como quem prepara uma despedida. Mas, para tratar dos últimos momentos das lutas escravas, precisamos delinear com precisão os..."

6. Os tortuosos caminhos da abolição.

Forrada de papéis, a mesa é um tapete de palavras sobre o qual o passado caminha, passo a passo, em direção ao presente. Acompanhando o tiquetaquear do relógio de parede, Nádia bate levemente a pata direita na mesa enquanto espera que o secretário se decida a pegar a caneta que repousa entre as folhas brancas. Sem dar sinais de vida, os dedos permanecem imóveis enquanto os olhos do humano percorrem as reflexões já redigidas. De repente, o silêncio é rompido por uma pergunta que os lábios não conseguem deter:
- “Pelo que vimos até agora, o escravismo colonial se sustenta, prioritariamente, graças à repressão e, em menor grau, através do envolvimento de escravos e forros na defesa de sua ordem. Sendo assim, quais são as principais razões que levam à abolição da escravatura no Brasil?”.
Cutucada pela curiosidade, a ave aponta a asa para o peito do secretário e, após um rápido piscar de olhos, responde:
- “Se tudo dependesse só da vontade dos traficantes e dos senhores, você pode ter certeza de que a escravidão continuaria por longos anos. O processo que leva a pôr um ponto final nesta forma de exploração tem como base os interesses econômicos que ganham corpo dentro e fora do Brasil, e vão moldando as condições que tornam possível a passagem para o trabalho assalariado.
- “Você não está querendo dizer que, mais uma vez, a lógica do lucro ganha dos sentimentos de humanidade que deveriam desabrochar após séculos de tamanhos sofrimentos?!? Está...?”
- “Exatamente!”, afirma a coruja ao menear a cabeça para que não reste dúvida em relação às suas palavras. “Pelos meus estudos, as principais causas da abolição da escravatura devem ser procuradas em cinco aspectos fundamentais:
1.     Nos interesses econômicos das principais potências capitalistas da época, com ênfase especial para a Inglaterra;
2.     Nas novas possibilidades de investimento, perante as quais as quantias empatadas na compra e manutenção dos escravos começam a ganhar as cores do desperdício;
3.     Na política migratória dos países europeus interessados em se livrar dos grandes excedentes de desempregados e desocupados cujo descontentamento eleva as tensões sociais;
4.     Na campanha abolicionista que passa a contar com o apoio de setores da elite, da intelectualidade, das classes médias, dos trabalhadores estrangeiros e de parte das forças antes destinadas à repressão das rebeliões escravas;
5.     No vertiginoso aumento das fugas dos escravos que dá o tiro de misericórdia no combalido sistema escravista”.
- “Bom, Nádia, será que dá para ter uma idéia mais precisa disso tudo?”.
- “Com certeza!”, atende prontamente a coruja. “Em primeiro lugar, é necessário sublinhar que a extinção do escravismo no Brasil depende em grande parte das pressões exercidas pela Inglaterra. Apesar de nenhum outro país ter ganhado tanto dinheiro com o tráfico de carne humana ao longo dos séculos XVII e XVIII, é no início de 1800 que o governo de Londres começa a desfraldar a bandeira da abolição.
Acontece que, após constituir parte substancial dos recursos necessários para financiar a revolução industrial, setores da burguesia inglesa começam a ver no sistema escravista um sério empecilho à expansão dos seus negócios.
- “Mas como isso é possível se a rota com a África permite escoar parte das manufaturas deste país?”, pergunta intrigado o secretário.
- “O problema está exatamente aí, ou seja, as relações criadas pelo tráfico viabilizam um mercado só para uma parte pequena da que é agora a produção industrial britânica.
Você deve estar lembrado que, por mais de trezentos anos, a presença européia no continente africano se limita aos entrepostos do litoral onde é realizada a troca de cativos por bugigangas. Na medida em que o interior da África é palmilhado por exploradores e missionários, começam a aparecer novas e surpreendentes possibilidades de comércio. As matérias-primas encontradas neste vaivém de gente, por exemplo, podem ser trocadas por mais tecidos e roupas das fábricas inglesas que, na época, já enfrentam problemas de superprodução.
Para ampliar as vendas, os negros não só devem permanecer na África, como precisam ser estimulados a não andarem nus ou seminus. Não é por acaso que, a partir do final do século XVIII, agentes ingleses começam a fomentar a resistência de líderes tribais contra a ação dos traficantes e, em nome do mesmo inferno prometido aos escravos rebeldes, os missionários tratam de convencer os africanos a abandonarem o hábito de andarem pelados.
Ao mesmo tempo, a campanha pelo fim do tráfico tem mais um objetivo a ser alcançado. Neste período as terras das Antilhas Inglesas já estão esgotadas e produzem bem menos açúcar do que o território excepcionalmente fértil de Santo Domingo, dominado pela França. A produção por escravo da ilha colonizada pelos franceses chega a ser cinco vezes maior do que a de um cativo da Jamaica. Graças a este desnível, o produto de Santo Domingo é vendido pela metade do preço praticado pela Inglaterra, o que leva o governo de Londres a perder progressivamente o controle da comercialização desta preciosa mercadoria.
Diante dos fatos, o governo de sua majestade começa a agir em várias frentes. De um lado, trata de suprimir o tráfico de escravos para a ilha francesa, de insuflar a revolta dos negros que aí se encontram e de usar a esquadra britânica para impossibilitar a importação de açúcar pela França. De outro, Londres começa a repassar fundos para os setores radicais da revolução francesa a fim de incentivar uma campanha abolicionista interna que perde sua razão de ser quando os escravos de Santo Domingo expulsam os franceses e arruínam os canaviais.
A eliminação de um concorrente incômodo, porém, mantém elevado o preço do açúcar e acaba desagradando consumidores, refinadores e armadores de navios. Em função do monopólio comercial que Londres impõe às suas colônias, o fato de pagar mais caro pelo mesmo produto faz com que a quantidade de manufaturas embarcadas na Inglaterra compre nas Antilhas apenas metade do açúcar que poderia adquirir no Brasil. Se isso não bastasse, as embarcações que transportam mercadorias para o nosso país são obrigadas a voltarem praticamente vazias em função das mesmas regras. Vendo seus interesses diminuídos pela rigidez das normas comerciais, setores da elite começam a alimentar um movimento que, em 1807, leva à supressão do tráfico de escravos com as Antilhas e, em 1833, a abolição da escravidão naquelas ilhas torna-se fato consumado.
A implementação destas mudanças leva também à quebra do monopólio comercial mantido até então. Livres das amarras, as companhias inglesas começam a importar diretamente do Brasil açúcar, algodão e outros produtos tropicais a preços bem mais baixos dos que são praticados nos domínios britânicos. Atribuindo esta concorrência desleal ao trabalho escravo, os plantadores das colônias inglesas desencadeiam uma campanha pela abolição do tráfico de cativos. Entre as vitórias conseguidas por este movimento, está o fato de Londres condicionar a aceitação da independência do Brasil ao compromisso de abolir a importação de escravos africanos. O acordo, assinado em 23 de novembro de 1826, prevê a extinção do tráfico no prazo de três anos”.
- “Sendo assim, por que a chegada de negros da África vai cessar bem depois?”
- “O fato é que entre a conveniência política e os interesses econômicos em jogo há um grande abismo a ser colmado - rebate a coruja ao abrir as asas para visualizar a distância entre o dizer e o fazer. Pra início de conversa, do lado inglês, há importantes grupos empresariais para os quais a escravidão brasileira é ainda uma fonte insubstituível de lucros. Cerca de 70% das manufaturas consumidas pelo sistema escravista do Brasil tem como origem as fábricas de Manchester e Liverpool ao passo que as instituições financeiras aqui instaladas garantem o financiamento dos traficantes e ganham polpudas quantias com os seguros dos navios negreiros.
Some a isso o fato de que agora as embarcações britânicas saem dos portos brasileiros abarrotadas de matérias-primas e não terá dificuldades em perceber a falta de razões pelas quais sua majestade deveria boicotar as autoridades locais caso estas não acabem com a escravidão. Ironicamente, grande parte dos capitalistas que sustentou o fim do sistema escravista nas Antilhas se apresenta em terras brasileiras como adversária do abolicionismo.
A partir de 1845, a ampliação dos interesses de um maior número de grupos empresariais começa a pressionar o governo inglês para uma intervenção mais efetiva de sua marinha de guerra que, em 1849 e 1850, chega a pôr em cheque a soberania brasileira. O seqüestro de vários navios negreiros nos portos e nas águas territoriais do Brasil força as elites locais a levar a sério a interrupção deste comércio desumano com a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, em 4 de setembro de 1850. Mesmo assim, o desembarque de africanos no litoral brasileiro só vai se interromper seis anos depois.
Na época dos primeiros tratados internacionais, há outros fatores que garantem a continuidade dos negócios dos traficantes. Na costa da África, a abolição da escravatura nas Antilhas, os acordos que estabelecem o fim do tráfico com o Brasil e a proibição do trabalho escravo em outros países fazem despencar o preço médio de um cativo a um quarto da quantia paga nas décadas anteriores. Mas, do outro lado do oceano, a grande demanda dos cafeicultores brasileiros eleva o valor médio de um africano dos 200.000 a 250.000 Reis, em 1825, para algo entre 700.000 a 990.000 Reis vinte anos depois, diferença que acaba compensando a eventual perda total de algumas cargas humanas e os gastos necessários para driblar as disposições legais.
Assim, os negros que desembarcam no porto do Rio de Janeiro saltam de 25.000, em 1825, para 44.205, em 1829, e, seis anos depois, o número de escravos que chega no litoral brasileiro já é igual ao das épocas anteriores. [19] Para fugir das perseguições, os desembarques são efetuados em baías pouco freqüentadas, fora dos portos principais e mobilizam um verdadeiro exército de pessoas. Entre elas encontramos proprietários de pequenos barcos costeiros, guias para levar os africanos aos pontos de venda e até professores de português que ensinam aos recém-chegados a falarem como veteranos moradores destas terras para, em caso de fiscalização, mostrar que sua vinda é anterior a 1831, ano em que o Brasil reafirma com a Inglaterra o seu compromisso com o fim do tráfico.
Envolvidos nestes negócios estão também os comerciantes ingleses do Rio e de outras cidades litorâneas. Cabe a eles organizar não só os embarques de café e demais mercadorias destinadas aos mercados da Europa e dos Estados Unidos, como fornecer produtos britânicos a serem trocados por escravos na África. Entre os que lucram com a continuidade do negócio encontramos os construtores navais estadunidenses sempre pródigos em oferecer aos traficantes navios velozes e navegadores experientes.
Se isso não bastasse, o comércio de cativos conta também com a cooperação e a cumplicidade das autoridades brasileiras. Além da burocracia dos escalões mais baixos, freqüentemente recrutada entre as famílias da elite de plantadores ou a elas vinculada, oficiais de alta patente do exército e da marinha chegam a usar as instalações governamentais como ponto de apoio dos navios negreiros.
Em 1836, por exemplo, o Coronel Vasques transforma a fortaleza de São João, na entrada do porto do Rio de Janeiro, em depósito de escravos. Em sociedade com o Coronel Tota que controla outra instalação desse tipo na Baia de Botafogo, entre 1838 e 1839, os homens que trabalham para os dois graduados desembarcam nada menos do que 12.570 africanos sem nenhuma interferência oficial. Por volta de 1845, será o próprio Ministro da Guerra a fazer da fortaleza de Santa Cruz, estrategicamente localizada na entrada da Baia de Guanabara, um entreposto receptor de novos escravos.
A coisa é tão escancarada que, entre 1846 e 1848, devem ter sido desembarcados no litoral brasileiro pelo menos 220.000 escravos.[20]
Depois de 1850, as crescentes dificuldades para manter o tráfico com a África aumentam a disputa pelos cativos que já estão em território nacional. As regiões do país com menor participação nas exportações passam a fornecer esta força de trabalho para as fazendas de café, produto cujo volume conhece seguidas altas no comércio exterior. De acordo com algumas estimativas, da Lei Eusébio de Queiroz a 1885, os municípios cafeeiros das províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo absorvem cerca de 300.000 escravos vindos do norte, nordeste e, em menor número, do sul do país”.
- “Com tanto dinheiro e tamanhos interesses em jogo, é difícil pensar em abolir a escravidão...”, comenta a língua perplexa.
- “Você não deixa de ter razão, mas, a bem da verdade, quando falta menos de um século para o fim da escravidão, já encontramos setores que começam a questionar os gastos necessários para sustentar o escravismo colonial. Na última década do século XVIII, um economista anônimo coloca no papel a lista das perdas e ganhos dos senhores. Pelos seus cálculos, a manutenção de um plantel de 100 escravos, necessário para tocar um engenho de açúcar de tamanho médio, teria um custo anual de 1.440.000 Reis. Esta quantia inclui gastos com vestuário, eventuais curativos, uma taxa de juros de 5% sobre o capital empatado na compra dos cativos, 2% de seguro de vida, mas não as despesas com a alimentação, na medida em que estas são supridas com a produção do próprio engenho. Por outro lado, a contratação, por um salário fixo, de 100 negros alforriados custaria não mais de 1.200.000 Reis.
Diante dos números, o nosso economista chega à conclusão de que o proprietário do engenho, além de não desembolsar 10.000.000 de Reis para a compra dos cativos, capital que poderia ser arranhado de uma hora pra outra em função das fugas ou das mortes, pouparia 240.000 Reis se resolvesse empregar trabalhadores assalariados.[21]
Em 1837, num escrito a favor do fim do tráfico, Bulamarque retoma o argumento anterior e faz reparar que, ao contrário dos escravos, uma vez acabados os trabalhos para que foram chamados, os obreiros são despedidos e eis um objeto de grande economia; o que não pode acontecer com os escravos, haja ou não trabalhos que ocupem a todos.[22]
A esta observação devemos acrescentar as considerações do professor Louis Couty que, por volta de 1875, afirma serem necessários mais feitores para vigiar 300 escravos de uma fazenda de café do que contramestres para tomar conta de 1200 operários livres. Ou seja, quando se trata de assalariados, o custo da vigilância é, no mínimo, reduzido a um quarto do total gasto para fazer os cativos trabalharem.[23]
Estas ponderações somadas à ampliação das oportunidades de investimento trazidas pela expansão da economia dão vida a mais um elemento que pinta como racional o fim do trabalho escravo. De fato, sobretudo na segunda metade do século XIX, a crescente presença de bancos, companhias de seguro, estradas de ferro, fábricas de tecidos e outras empresas, ao lado das atraentes oportunidades de ganho oferecidas pelos títulos da dívida pública, criam chances de investimento mais seguras e rentáveis para as quantias antes imobilizadas na compra de escravos.
É assim que grandes fazendeiros do oeste paulista, como Antonio Prado, se associam a vários empreendimentos, investem em aplicações financeiras, ferrovias e imóveis ao mesmo tempo em que procuram explorar até o fim os cativos que já estão em seus plantéis. Para eles, a questão-chave é como substituir a força de trabalho escrava que, na época da abolição do tráfico, é ainda a coluna mestra da cafeicultura”.
- “Bom, pelo que você disse no começo do capítulo, o jeito é colocar imigrantes em seu lugar...”, conclui a boca ao apontar uma saída aparentemente óbvia.
- “Ainda que seja este o caminho pelo qual envereda a história da escravidão, as coisas não são tão simples como você imagina. Na segunda metade do século XIX, milhões de europeus deixam seus países em função dos conflitos e das crises que atingem as nações daquele continente. Grande parte deste contingente se dirige para os Estados Unidos e a Argentina atrás do sonho de Fazer a América, ou seja, de poder enriquecer com o próprio trabalho.
Os fazendeiros paulistas e de outras regiões do país entram na disputa destes braços a partir de 1847 assinando contratos de parceria com os imigrantes. De acordo com os textos de alguns destes, os colonos são obrigados a servir os fazendeiros durante um período que varia de 5 a 6 anos, prazo que pode ser prolongado na medida em que as famílias não conseguem saldar as dívidas contraídas para pagar a viagem e a sua manutenção no Brasil. O que deveria ser exceção, porém, costuma se tornar regra na medida em que, sobre o valor das passagens, os fazendeiros impõem juros extorsivos a cujo montante se soma a obrigatoriedade dos colonos efetuarem as compras nos armazéns da fazenda que cobram preços absurdamente altos para os gêneros de primeira necessidade.
Além disso, os ganhos dos imigrantes são reduzidos também por outro fator. Como força de trabalho inicialmente suplementar da escravidão, recebem a responsabilidade de cuidar dos cafezais em formação. Na medida em que a retribuição corresponde à metade do produto colhido e estas lavouras oferecem resultados bem inferiores em relação às que estão sendo tratadas pelos cativos, os colonos não demoram em perceber que o peso das dívidas e dos juros cobrados sobre elas transforma os contratos de parceria numa forma disfarçada de escravidão branca com a vantagem de que o investimento inicial para trazer uma família alemã ou portuguesa é bem menor do que seria despendido na compra de um único africano.
Diante dos protestos, os fazendeiros reduzem os processos de imigração que ganham novo alento quando, com o avanço da campanha abolicionista, o decreto governamental publicado em 15 de março de 1879, limita a 5 anos a prestação obrigatória de serviços dos trabalhadores estrangeiros, reduz à metade a divida inicial dos imigrantes, proíbe a cobrança de juros sobre a mesma e elimina uma série de abusos presentes nos contratos anteriores, como a chamada dívida solidária que rateava entre uma turma de colonos o que uma de suas famílias não teria condições de pagar. A parceria é substituída por salários que oscilam em torno da quantia desembolsada pelo aluguel e a sustentação de um escravo.
A leve melhora nas perspectivas de vida dos imigrantes não consegue atrair os contingentes esperados. Os números oficiais revelam que a chegada de europeus no Estado de São Paulo é de 10.455 pessoas, entre 1875 e 1879; passa para 15.852, de 1880 a 1884; e atinge 16.036 nos dois anos seguintes.
A imigração só ganha consistência em 1887 quando, sob o impacto do movimento abolicionista, o Estado assume os custos da viagem. Naquele ano, 32.112 trabalhadores estrangeiros desembarcam nos portos brasileiros e em 1888, este contingente pula para 92.086.[24] A frustração das expectativas de enriquecimento e os sacrifícios impostos nos cafezais, levam muitas famílias de colonos a deixarem as fazendas do oeste paulista uma vez cumprido o prazo fixado no contrato e a se transferirem para a capital do Estado onde as indústrias também precisam de sua força de trabalho. O fluxo ininterrupto de imigrantes assim criado garante a empresários da indústria e cafeicultores tanto a força de trabalho necessária a seus empreendimentos como a formação de um exército de desempregados que fixa os salários nos baixos patamares por eles almejados.
Estas mudanças não só reduzem a porcentagem de escravos presente na população urbana e rural como introduzem elementos que contribuem para acelerar a desagregação da ordem escravista. Além de fortalecer a presença das formas de trabalho assalariado no interior da sociedade, os imigrantes ajudam a disseminar idéias contrárias à escravidão. Durante a campanha da abolição, os mascates italianos, por exemplo, penetram nos mais longínquos recantos do estado de São Paulo e, ao atravessar as plantações, entram em contato com os escravos das fazendas, contam-lhes o que está acontecendo em outras regiões e passam a estimular a fuga e a rebelião contra os senhores. Do mesmo modo, milhares de outros imigrantes anônimos das mais diversas profissões aderem em formas e graus diferenciados ao movimento que pede o fim da escravatura”.
- “Isso significa que já estamos a um passo da liberdade!”, afirmam os lábios categóricos.
- “Eu, no seu lugar, não teria tanta certeza”, retoma a ave em tom de dúvida.
- “Como assim?!?”, insiste o secretário ao não se dar por vencido.
- “Acontece que o fim da escravidão não implica no fim da exploração do trabalho humano e, muito menos, na realização da liberdade, já que o lucro, e não a vida dos seres da sua espécie, continuam ocupando o centro da organização da sociedade. O que sua cabecinha precisa entender é que o próprio movimento abolicionista traz em seu bojo as condições que permitem à elite a reorganização de suas forças nos centros de poder e de governo da sociedade”.
- “Daria para ser um pouco mais clara?”
- “Olhe, em grandes linhas, podemos dizer que o abolicionismo passa por duas fases bem distintas sendo que na primeira, até 1885, ganha ênfase a atuação parlamentar.
A bem da verdade, este movimento começa a ganhar corpo por volta de 1860. As pressões dos setores sociais contrários à escravatura se somam a acontecimentos internacionais que levam as classes dominantes a reconhecerem a escravidão como um regime transitório, diante de cujo fim se faz necessário preparar a substituição de um trabalho compulsório por outro que continue garantindo os lucros almejados.
A resposta aos abolicionistas é dada pelo gabinete conservador chefiado por José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco, que, em 28 de setembro de 1871, aprova a que conhecemos como a Lei do Ventre Livre. Por esta norma, os filhos das mulheres escravas são considerados livres e os senhores de suas respectivas mães obrigados a cuidar deles até a idade de 8 anos. Passado esse tempo, o proprietário pode optar entre entregar a criança à tutela do Estado (recebendo deste uma indenização de 600.000 Reis em títulos públicos) ou utilizar-se dos serviços do menor até que complete os 21 anos. Além disso, a lei cria um fundo de emancipação pelo qual cada província pode libertar tantos escravos quantos correspondem à quota de recursos anualmente disponível para este fim e formaliza a possibilidade do cativo reunir dinheiro suficiente para comprar sua própria liberdade, ainda que subordinando a legalização da alforria ao consentimento do senhor.
A aprovação deste conjunto de normas corta o impulso e o impacto das idéias abolicionistas e, na prática, garante que a escravidão possa subsistir por, pelo menos, mais duas gerações. De fato, os senhores se dedicam a fraudar os dispositivos legais não só dando tratamento de escravo às crianças nascidas em suas fazendas, como vendendo-as nestas condições antes que se cumpra o tempo no qual seriam obrigados a libertá-las. Isso sem contar aqueles proprietários que preferem arrancar os recém-nascidos das mães escravas para colocá-los na roda dos expostos, onde são recolhidas as crianças rejeitadas. Nas instituições de caridade que mantêm este serviço, não são poucas as enfermeiras que registram falsamente o falecimento dos pequenos a elas confiados para, em seguida, vender estas criaturas como escravas enquanto as mães das mesmas são alugadas pelo proprietário como amas-de-leite. Não por acaso, após a aprovação da Lei do Ventre Livre, o número dos negros recém-nascidos que são deixados na roda dos expostos do Rio de Janeiro chega a triplicar e a dos pardos a dobrar.
Quanto ao Fundo de Emancipação, as primeiras quotas são distribuídas em maio de 1876 e, até agosto de 1885, só 24.165 cativos (2,1% do total de 1.333.228 pessoas que compõem a população escrava oficialmente registrada como tal) são libertados graças aos recursos disponibilizados por este meio.[25] Em 1880, o fracasso da lei em produzir resultados emancipatórios consistentes dá novo alento aos abolicionistas, liderados por intelectuais que representam os interesses da nascente burguesia empresarial brasileira. Personalidades como Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Bernardino de Campos e Quintino Bocaiúva tentam fazer progredir a via parlamentar da abolição através de propostas tímidas que poderiam ser aceitas pelos escravocratas.
Obedecendo a esta tática de viabilizar mudanças graduais e ordenadas, em 26 e agosto de 1880, Joaquim Nabuco apresenta um projeto de lei pelo qual a escravidão terminaria em 1890 e, naquele ano, os senhores que ainda possuíssem escravos receberiam uma indenização pela libertação compulsória dos mesmos. A preocupação com a manutenção da ordem é tamanha que o artigo 36 deste projeto estabelece punições para os cativos que usam a força como meio para sair do cativeiro.
Apesar das concessões feitas aos escravistas, o projeto é bloqueado e nem chega a ser discutido no plenário. Em 1881, Nabuco não consegue se reeleger e viaja para Londres onde escreve O Abolicionismo. Desta que é considerada uma obra-prima da propaganda política emerge de forma clara um aspecto central do movimento: o escravo não deve passar de um figurante mudo do processo que leva ao fim da escravatura. Para este representante da elite intelectual, a emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos externos e internos de todas as outras. É assim, no Parlamento e não nas fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças da cidade, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o desencadeamento de ódios acalentados, só pode ser prejudicial ao lado que tem por si o direito, a justiça, a procuração dos oprimidos e os votos da humanidade toda”.[26]
- “Isso quer dizer que os escravos não devem passar de espectadores?”
- “Sim, querido secretário. Apesar de O Abolicionismo defender o fim imediato da escravidão sem direito à indenização, a voz das vítimas deve ser a dos abolicionistas que, na busca do progresso da nação, arrogam para si o mandato de representantes deste setor dos oprimidos. Nada de convulsões, agitações em praça pública ou, muito menos, de agressões contra os senhores. O fim do sistema escravista e a passagem para a nova ordem deve se dar pela conciliação dos interesses da nação que, neste caso, se confundem com os dos setores progressistas das elites. Apesar disso, o projeto da facção moderada do abolicionismo esbarra na oposição sistemática dos grupos mais conservadores que apontam a lei de 1871 como caminho único para o fim da escravidão no Brasil.
As coisas parecem avançar em 15 de julho de 1884, dia em que na Câmara dos Deputados é apresentado o projeto do presidente do Conselho de Ministros, Manuel Pinto de Souza Dantas, que concede a emancipação, sem indenização, aos escravos com 60 ou mais anos e aos demais mediante pagamento de uma quantia proporcional à idade legalmente declarada. Esta proposta atinge profundamente os fazendeiros das províncias cafeeiras nas quais se encontram cerca de 500.000 escravos importados entre 1831 e 1851. O problema é que a lei de 7 de novembro de 1831 declara que todos os africanos entrados no Brasil a partir desta data são considerados livres. Para driblar esta norma, os proprietários haviam registrado os escravos com idade maior à real para comprovar que sua chegada ocorrera antes da proibição. Isso significa que um grande número de cativos nas lavouras de café seria libertado sem indenização ou em troca de quantias bem inferiores.
Pressionada pelos latifundiários, a Câmara rejeita o projeto, vota uma moção de desconfiança e derruba o gabinete chefiado por Dantas. Nas eleições realizadas em dezembro de 1884, Dantas é reconduzido à liderança do governo, mas os escravocratas tornam a derrubá-lo em maio de 1885 e, em 28 de setembro do mesmo ano, aprovam a Lei N.º 3.270 que, assumindo o nome de seus autores, passa a ser conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe. De acordo com esta norma, os sexagenários são obrigados a prestarem serviços gratuitos a seus senhores por mais três anos a título de indenização pela alforria ao passo que o valor a ser recebido do Fundo de Emancipação é aumentado em cerca de 20%, o que, em alguns casos, corresponde ao dobro ou ao triplo dos preços de mercado pagos pelos cativos das faixas etárias a serem beneficiadas. Enfim, um verdadeiro negócio da China”.
Terminadas as últimas palavras, a coruja deixa que o silêncio estimule a curiosidade e leve o cérebro humano do secretário a formular novas perguntas. Passo a passo, a ave percorre a breve distância que separa a pilha de livros das folhas do relato. Com as asas cruzadas atrás das costas, seus olhos piscam no ritmo instigante de uma espera onde cada instante carrega o peso das reflexões apresentadas. Mais alguns momentos e a boca cumpre religiosamente as expectativas nela depositadas.
- “E os escravos... ficam esperando sentados?!?”, questiona a língua entre a dúvida e a indagação.
- “Como já vimos – diz a ave com a asa direita apontada para as folhas do relato -, não há momento na história da escravidão brasileira em que suas vítimas não viabilizem alguma forma de luta ou de resistência. Por isso, basta afrouxar um pouco as medidas repressivas para que os cativos possam desferir o golpe que desintegra o já combalido sistema escravista. Em 16 de outubro de 1886, as pressões abolicionistas levam a Câmara a aprovar a lei que proíbe o uso do açoite para punir os cativos. Após promulgar esta norma que bane um dos mais temidos instrumentos de tortura, os escravos começam a fugir em massa das fazendas.
Preocupados com a possibilidade de perderem suas colheitas, os cafeicultores se apressam a chegar a acordos pelos quais a concessão da liberdade é vinculada à obrigação da massa escrava trabalhar como assalariada nas mesmas propriedades por um período que varia entre 2 e 5 anos. Trata-se de oferecer concessões imediatas não para fazer reviver o sistema escravista, mas para garantir a progressiva substituição da força de trabalho empregada nas lavouras.
Esta atitude divide os escravocratas, e, diante do crescimento do abolicionismo radical, centenas de fazendeiros se erguem em defesa da propriedade de seus escravos. Em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, bandos de capangas organizados em milícias privadas agridem e assassinam até mesmo advogados, juizes, promotores e delegados de polícia empenhados em fazer cumprir a lei contra os interesses dos fazendeiros. Militantes das organizações abolicionistas radicais são caçados como feras e massacrados. Escravos processados por crimes contra seus senhores são arrancados das mãos do Estado e linchados em praça pública. Os representantes do sistema escravista jogam assim suas últimas cartas para restabelecer o clima de terror que, durante séculos, havia garantido a sua dominação.
Estes esforços, porém, são destinados ao fracasso na medida em que as ações dos escravos contam agora com o apoio de grupos crescentes de homens livres dos mais variados setores da sociedade. Se, nas décadas anteriores, a ação destes havia condenado ao fracasso inúmeras rebeliões escravas, as mudanças que se afirmam na sociedade alimentam as facções radicais do abolicionismo cujas organizações secretas se articulam para estimular as fugas e dar abrigo aos cativos que abandonam as fazendas.
Na província do Rio de Janeiro, por exemplo, o grupo dirigido por Luís Carlos Lacerda apóia os levantes dos escravos e chega a invadir uma senzala para libertar um negro que está sendo torturado.
Em São Paulo, Antonio Bento dá vida a uma ramificada e complexa organização subversiva cujos núcleos se irradiam da capital em direção ao interior incitando as fugas e providenciando as condições necessárias para que os cativos cheguem em segurança até o quilombo do Jabaquara, nas proximidades da cidade de Santos. Não são os caifazes – como são chamados os membros deste grupo – a dar início ao movimento das fugas em massa, mas o impulsionam a tal ponto que, em 1887-1888, este ganha proporções devastadoras para a organização produtiva das fazendas cafeeiras”.
- “Caifazes...?!? Homens livres organizando um quilombo...?!? Confesso que agora fiquei confuso...”, reconhece o secretário sem disfarçar a cara de espanto.
- “Não assuste por tão pouco - diz Nádia ao abrir as asas. Vou tratar disso tudo na última etapa da nossa viagem pela historia ao resgatar a passagem...

7. Do quilombo do Jabaquara à liberdade das elites.

Ainda sem entender o que as entranhas do tempo lhes reservam, os neurônios humanos buscam nas folhas do relato os elementos que ajudam a compreender um desfecho tão inesperado.
Atenta a cada detalhe, a coruja observa os movimentos do seu ajudante. Paciente, a ave recosta o corpo na pilha de livros e apóia a ponta da asa na cintura com a disposição de quem não se importa em dar tempo ao tempo. Mais alguns instantes, e os lábios começam a expressar as dúvidas anunciadas no final do capítulo anterior:
- “Sabe, Nádia, o que não consigo entender é porque as lutas das senzalas parecem sair das mãos dos cativos justo no âmbito de um movimento que vem facilitar o que sempre quiseram: o fim de sua condição de escravos...”
- “Se você prestou atenção aos elementos apresentados até agora – diz a coruja ao piscar os olhos – não vai ter dificuldade em visualizar a resposta à sua indagação. Em primeiro lugar, nós já vimos como vários fatores presentes na realidade da época impedem que o projeto dos escravos não vá além da conquista de espaços de liberdade. Via de regra, a construção dos quilombos e a preparação das revoltas não estão orientadas para a reorganização geral da sociedade, mas sim para a sobrevivência dos escravos fugitivos ou rebelados em condições que tendem a reproduzir as relações presentes em terras africanas.
Some a isso o fato de que, no final do século XIX, o número de cativos no Brasil é bem menor do que nas décadas anteriores e representa uma porcentagem cada vez mais reduzida da população e não terá dificuldades em entender porque são os abolicionistas a direcionar e controlar as derradeiras manifestações da rebeldia escrava.[27] A aceitação desta situação por parte dos fugitivos tem como base o fato destes perceberem que a atuação dos setores radicais do abolicionismo não tolhe sua ação autônoma, ao contrário, a deseja e cria as condições para que esta possa se realizar de forma ampliada.
O nome do grupo vem de Caifáz, o sumo sacerdote dos judeus que condena Cristo sob a alegação de que é melhor um homem só morrer pelo povo. Para Antonio Bento, assim como os escravocratas têm a seu serviço os capitães do mato, que são os judeus, os abolicionistas contam com os caifazes, os soberanos sacrificadores dos judeus. Ou seja, diante do necessário enfrentamento para pôr fim à escravidão, este setor do abolicionismo atribui a si próprio o papel de lutar para neutralizar parte dos instrumentos de repressão necessários à manutenção do sistema escravista.
A atuação deste movimento conhece duas fases bem distintas. Na primeira, que vai de 1882 a 1887, predominam os procedimentos legais que incluem a coleta de fundos para a compra das cartas de alforria e a defesa dos escravos nos tribunais. Neste momento, os seus integrantes dão vida a uma rede de contatos com os abolicionistas de outros centros urbanos, e até mesmo de outras províncias, que vai criando as condições para proteger e transferir os escravos fugitivos. Além de São Paulo, desde 1882, a cidade de Santos se torna uma das bases mais importantes do movimento.
A necessidade de abrigar um número crescente de pessoas leva à construção do quilombo do Jabaquara. Erguido em lugar de difícil acesso, próximo a Vila Matias, em Santos, este esconderijo mantém boas relações com o quilombo do Pai Felipe, que, desde 1850, ocupa uma área próxima. Os vínculos que se estabelecem entre ambos ajudam os fundadores do Jabaquara a aprimorar suas ações clandestinas, a se familiarizar com as trilhas da Serra do Mar, a defender seu reduto da repressão policial, a conhecer a arte de sobreviver na selva e a maneira de estabelecer relações com a população local. Estes elementos são de extrema importância para a atuação dos caifazes que, no auge das fugas, chegam a reunir no Jabaquara cerca de 10.000 escravos.
Neste período, o grupo conta com pessoas das mais variadas profissões entre as quais se destacam os cocheiros e os ferroviários encarregados de transportar os cativos em fuga e de garantir a transmissão de mensagens entre as regiões onde atuam os núcleos do movimento. De início, o recrutamento de novos membros é controlado por Antonio Bento, mas, com a expansão do grupo, esta tarefa passa a ser realizada pelos próprios caifazes que se encarregam de selecionar e instruir os novos adeptos.
A necessidade de escapar das garras da repressão leva este setor do abolicionismo a desenvolver uma linguagem codificada na qual, por exemplo, as palavras fardo e rolo de fumo são usadas para designar os escravos fugitivos. A organização clandestina atinge tal grau de sofisticação que muitos integrantes só se conhecem depois da abolição.
Alguns elementos levam a supor que o sistema de sinais e códigos, bem como a habilidade em manter o sigilo ao costurar ações e relações tenham sua origem na maçonaria, da qual participa o próprio Antonio Bento, e que, em alguns casos, fornece ajuda financeira ao movimento. Seja como for, o fato é que os caifazes vão construindo uma rede de contatos, tanto visível como secreta, que possibilita a ampliação do trabalho de aliciamento e subversão.
De 1887 em diante, os membros do grupo cessam a prática de atividades legais e, graças aos vínculos já estabelecidos, se dedicam a estimular as fugas nas fazendas do interior. A penetração nos cafezais e nas senzalas ocorre tanto de dia como de noite, ora através de disfarces ora graças às profissões exercidas pelos membros de cada núcleo. É assim que mascates, cobradores, mendigos, viajantes ou até mesmo profissionais contratados para realizar um determinado trabalho dedicam seus esforços a planejar incentivar e realizar as fugas de grandes contingentes de escravos. Cidades do interior como Taubaté, São José dos Campos, Jacareí, Mogí das Cruzes, Guaratinguetá, Caçapava, Santa Isabel, Pindamonhangaba, Piracicaba, Jundiaí, Itatiba, Capivarí, Tatuí, Itú, Campinas, Atibaia, Serra Negra, Itapira, Mogí-Mirim, Amparo, Botucatú, Rio Claro, Limeira e Araras se tornam centros a partir dos quais se desenvolve e se articula a ação do movimento.
Em resposta, as milícias privadas dos cafeicultores mudam de tática. No lugar de capturar os fugitivos para devolvê-los ao cativeiro, os capitães do mato atacam os negros em fuga e não hesitam em matá-los para servirem de exemplo aos demais. Durante algum tempo, sua atuação conta com o apoio das forças policiais e dos corpos do exército, mas, ao longo de 1887, se multiplicam os contingentes armados oficiais que se recusam a aprisionar escravos em fuga e a prender os caifazes. O fim da escravidão passa a ser só uma questão de tempo”.
- “O que não entendo é como estes abolicionistas conseguem organizar a sobrevivência do quilombo do Jabaquara diante do crescente número de fugitivos que nele se abrigam”.
- “Simples!”, responde Nádia sem titubear. “Transformando o antigo escravo em trabalhador assalariado a ser empregado tanto no campo, como na cidade. As fugas em massa deixam propriedades inteiras completamente desprovidas de força de trabalho. A escassez chega a tal ponto que a alguns fazendeiros não resta outra escolha a não ser a de aceitar de volta os fugitivos ou os ex-cativos de outros proprietários como assalariados que vão prestar serviços em troca de, em média, 400 Reis diários. Por sua vez, a introdução de parte deste contingente no trabalho urbano se deve ao aumento da procura de força de trabalho em Santos e ao empenho dos caifazes em vencer a resistência dos contratadores. Isso faz com que a desagregação da ordem escravista não leve ao descontrole das relações sociais, mas seja apenas um momento de transição no qual se afirmam novas relações de trabalho e se fortalecem os setores progressistas da elite que vêem no assalariamento o passo necessário para garantir os seus interesses.
Neste sentido, a organização da vida no Jabaquara contraria as práticas típicas dos demais quilombos. Não são os negros a decidirem suas próprias formas de sobrevivência econômica, os processos de consulta pelos quais são tomadas as decisões internas e nem mesmo os instrumentos necessários para defender este espaço de liberdade. O quilombo do Jabaquara é organizado para eles pelos caifazes e nele a liberdade passa pela aceitação de regras que acabam fortalecendo a passagem para a nova ordem social.
Ao introduzir os fugitivos nesta nova ótica, os membros da organização de Antonio Bento garantem não só a sobrevivência imediata do quilombo, como contribuem para fazer avançar a transição do agonizante sistema escravista para a nova realidade na qual os setores progressistas da elite rural vão continuar segurando as rédeas do poder”.
- “Como isso se torna possível?”, perguntam os lábios intrigados.
- “Ao mesmo tempo em que as fugas aceleram o fim da escravidão pelas vias de fato, fazem progredir a passos largos a ação dos abolicionistas moderados para os quais a ordem deveria ser mantida seja durante como após o processo que levaria as autoridades a decretar o fim da escravatura. Para este grupo, as fugas e as posições radicais dos caifazes se, de um lado, ameaçam a transição pacífica para o trabalho assalariado, de outro, aceleram os tempos da abolição pela via parlamentar.
         Extinta na maior parte das províncias do Brasil, em 1888, a escravidão atinge pouco mais de 600.000 pessoas, cerca de 4% da população do país. O seu atestado de óbito é assinado pela Princesa Isabel, em 13 de maio do mesmo ano, no Paço Imperial do Rio de Janeiro. A lei N.º 3.353 que declara o fim da escravidão e revoga todas as disposições em contrário é assinada com uma pena de ouro doada por subscrição pública e passa a ser lembrada como Lei Áurea.
         Graças a este gesto, a Princesa não ratifica apenas um fato praticamente já consumado. Ao colocar a extinção da escravatura sob a égide do abolicionismo legalista e parlamentar salva a dominação de classe dos setores progressistas da elite rural e veicula entre os dominados a idéia de que sua liberdade não depende das lutas, mas sim das concessões que, das esferas do poder, são oferecidas às camadas que estão na base da pirâmide social.
         Para os parlamentares e para os senhores, a questão da escravidão está oficialmente encerrada. Os ex-escravos são abandonados à própria sorte e, daí em diante, em condições extremamente difíceis, cabe a eles transformar a emancipação legal em realidade material. A lei que garante o status jurídico de homens e mulheres livres não fornece meio algum para tornar efetiva esta liberdade. A igualdade jurídica, por si só, não melhora suas condições de vida e nem elimina os preconceitos alimentados durante mais de três séculos de escravidão”.
         - “Se as coisas estão assim, qual o destino dos escravocratas e dos demais cafeicultores?”.
         - “Para uma parte significativa dos primeiros – responde a coruja ao abrir as asas num gesto que sublinha o triste fim dos que perdem o trem da história – a abolição traz a ruína imediata ou o começo dela. Despojados dos escravos e sem direito à indenização, os escravistas endividados, ou cujas terras têm baixa fertilidade, não dispõem de recursos para pagar salários ou continuar produzindo de forma competitiva e acabam não resistindo aos novos tempos. Seus descendentes diretos conseguem manter o status vendendo os bens dos antepassados ou procurando abrigo à sombra clientelista do Estado.
         Por outro lado, nas áreas mais produtivas do oeste paulista, onde as terras são muito férteis, os fazendeiros que se adaptam às mudanças passam a integrar o núcleo dos mais influentes proprietários rurais do regime capitalista que, aos poucos, vai ganhando consistência. Os anos imediatamente anteriores ao fim da escravidão já haviam despertado entre eles acirradas discussões sobre o tipo, a quantidade e o custo da força de trabalho a ser empregada para substituir os escravos. Os debates que ainda ocorrem no Parlamento e na imprensa revelam o desejo de uma abundante quantidade de braços a serem pagos com salários baratos, pois a eventual escassez de trabalhadores elevaria os ordenados afetando os lucros e a expansão da cafeicultura.
         Após a promulgação da Lei Áurea, a grande maioria das pessoas consideradas desocupadas (algo em torno de 3 milhões), sobrevive graças a uma agricultura de subsistência, tem relações extremamente precárias com o mercado e aceita de forma eventual, como diarista, a execução de tarefas no interior das fazendas. Por ter como ganhar o pão de cada dia, não se submete à disciplina de trabalho exaustiva e embrutecedora que os latifundiários impõem a quem vai substituir a labuta dos escravos.
         Quanto aos negros livres, os fazendeiros sabem que não podem extrair deles o mesmo rendimento dos tempos da escravatura e temem que, diante de qualquer cobrança excessiva, estes podem vir a abandonar as fazendas ou fazer exigências exorbitantes para continuar nelas a fim de garantir as colheitas. Ao contrário do que é seguidamente alardeado pela propaganda da época, a recusa dos proprietários em lançar mão da força de trabalho local (na qual se incluem negros livres, posseiros, caboclos e caipiras) como fator determinante da produção assalariada, não se deve à inferioridade racial ou a uma suposta propensão inata à vadiagem, mas sim às dificuldades objetivas de garantir a submissão a uma disciplina que assegure a sua exploração.
         Nestas condições, o café, produto de ponta do oeste paulista e da economia nacional, precisa de uma grande massa de lavradores desocupados e sem recursos para assegurar que os lucros possam jorrar abundantes nos cofres dos fazendeiros. Com os nordestinos expulsos pela seca e pela estagnação econômica das regiões em que vivem sendo atraídos para os seringais da Amazônia ou os cacauais da Bahia, o jeito é recorrer à maciça imigração de trabalhadores europeus cujos contratos se encarregam de garantir as condições almejadas pelos cafeicultores”.
         - “E... o que vai ser dos ex-escravos que, na época da abolição, já estão trabalhando como assalariados?”
         - “A cafeicultura decadente do Vale do Paraíba enfrenta os três anos anteriores à abolição substituindo o escravo pelo posseiro, em geral, um ex-escravos vindo de outras fazendas. Mas, na medida em que os cafezais vão se extinguindo, parte dos negros se torna pequeno sitiante, parceiro e jornaleiro nas lavouras de subsistência ou no trato do gado.
         No oeste paulista, os anos após a abolição conhecem um progressivo e constante processo de afastamento do ex-escravo das fazendas de café e de substituição de sua força de trabalho pela dos europeus recém-chegados. Parte deste contingente das antigas senzalas se dirige ao Vale do Paraíba onde a decadência econômica da região não abre boas perspectivas de futuro. Uma outra fatia considerável do mesmo se soma aos negros da capital e das demais cidades da província já condenados a uma situação de subemprego ou de marginalidade.
Os dados mostram que não há espaço para eles na indústria e nos serviços urbanos. Em 1893, por exemplo, os trabalhadores estrangeiros representam pouco mais da metade dos moradores da cidade de São Paulo. Apesar disso, ocupam 84% das vagas oferecidas pela indústria, 81% das disponibilizadas pelo setor de transportes e 72% das que existem no comércio. Oito anos depois, os imigrantes constituem 92% do proletariado industrial de São Paulo. Nas demais províncias do sul e sudeste, as coisas não são muito diferentes.[28]
         A procura de trabalhadores nacionais por parte de empresários urbanos e fazendeiros paulistas vai começar por volta de 1920. A partir deste momento, os interesses patronais começam a incentivar a migração interna. Antes desprezada por pertencer a uma raça considerada incapaz de concorrer com os brancos europeus, esta força de trabalho aumenta sua presença nos centros mais dinâmicos da economia e passa ser vista como uma necessidade imperiosa para manter elevados os lucros capitalistas. Neste processo que, em épocas e formas diferentes, busca criar e alimentar contingentes consideráveis de desempregados, a discriminação racial coloca os negros numa posição de inferioridade no interior desta grande reserva de força de trabalho. Ao classificar as pessoas segundo a cor da pele e ao justificar um tratamento discriminatório com base numa suposta inferioridade a ela vinculada, o capitalismo consegue tornar disponível para o trabalho um número elevado de pessoas que podem ser contratadas em troca de salários ainda mais baixos”.
         - “Bom isso é lá no passado, porque agora...”
         - “Continua do mesmo jeitinho!”, intervém Nádia com voz firme e clara. “A verdade nua e crua é que os afro-descendentes ainda enfrentam grandes barreiras para ter acesso ao mercado de trabalho e, quando conseguem, os salários são, em média, bem menores daqueles pagos aos brancos. De acordo com os dados divulgados pelo Fórum de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher e pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, em 2003, o ordenado médio de um homem branco é de R$ 931,00, ao passo que o de um negro é de R$ 428,30. Entre as mulheres as coisas não são diferentes. Enquanto as brancas ganham, em média, R$ 554,60, as negras não passam de R$ 279,70.[29]
         Trocado em miúdos, o ordenado de um branquelo equivale a mais de dois salários pagos a um negro enquanto uma mulher negra precisa trabalhar, em média, três meses e dez dias para ter a mesma renda do primeiro e quase dois meses para igualar a de uma mulher branca. Para bom entendedor... meia palavra basta”.
         De queixo caído, o secretário termina de escrever as últimas palavras do relato. Enquanto os olhos se detêm nos números recém-revelados, o cérebro parece percorrer a história apresentada nas páginas anteriores. Um misto de amargura e inconformidade toma conta da sala ao constatar que, apesar destas situações se desenrolarem sob os nossos olhos, freqüentemente, a indiferença acaba sendo a única resposta. Tudo parece tão natural que somos incapazes de perceber os interesses em jogo e a necessidade de conhecer mais a realidade para poder mudá-la.
         Enquanto a cabeça não consegue domar os pensamentos, a coruja ganha os céus em busca de novos estudos que ajudem os de baixo a serem sujeitos que pensam e preparam a construção de uma sociedade onde haja tudo para todos. Em sua ausência, a sala parece voltar ao que era a não ser por um pequeno sinal avermelhado que marca no calendário o dia 20 de novembro. Mais do que a simples lembrança dos feitos de Zumbi dos Palmares, o pequeno círculo que destaca os dois números parece abraçar os oprimidos de todas as cores para convidá-los a continuar no presente a longa luta pela liberdade.

         Emilio Gennari. 
Brasil, 2006.



         Bibliografia


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[1] Dados publicados em Goulart Maurício (31), pg. 26.
[2] As citações completas podem ser encontradas em Jacob Gorender (28), pg. 350.
[3] Texto citado em João José Reis e Flávio dos Santos Jonas (53), pg. 71.
[4] Dados mais detalhados sobre este processo são discutidos em Carlos Eugênio Líbano Soares (59), pg. 125-150.
[5] Trecho publicado em Décio Freitas (25), pg. 113.
[6] Os dados e a cronologia que vamos seguir a partir deste momento têm como base o estudo de Décio Freitas (25).
[7] Dados publicados em Antonio Mendes Jr. e Ricardo Maranhão (42), pg. 246.
[8] Dados publicados em Maurício Goulart (31), pg. 136.
[9] Dados publicados em Antonio Mendes Jr. e Ricardo Maranhão (42), pg. 251.
[10] Dados publicados em Carlos Magno Guimarães (32), pg. 142.
[11] Dados publicados em Carlos Magno Guimarães (32), pg. 73.
[12] Dados publicados em Jacob Gorender (29), pg. 458.
[13] Idem, pg. 466.
[14] Dados publicados em João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (53), pg. 233.
[15] Idem, pg. 434.
[16] Dados publicados em João José Reis (51), pg. 22-23.
[17] Dados publicados em João José Reis (52), pg. 66.
[18] Dados publicados em João José Reis (51), pg. 107.
[19] Dados publicados em Robert Edgar Conrad (13), pg. 77.
[20] Dados publicados em Jacob Gorender (29), pg. 326.
[21] Idem, pg. 169-170.
[22] Idem, Ibidem, pg. 169.
[23] Idem, ibidem, pg. 62.
[24] Idem, pg. 594.
[25] Dados publicados em Vilma Paraiso Ferreira de Almada (3), pg. 192.
[26] Trecho extraído de Joaquim Nabuco (46), pg. 26.
[27] Segundo as estatísticas oficiais, em 1817-1818, o contingente escravo é de 1.930.000 numa população total de 3.818.000 pessoas. Em 1872, temos cerca de um milhão e meio de cativos, número que, quinze anos depois, cai para pouco mais de 700.000. No mesmo período, os habitantes das províncias brasileiras passam de 8.500.000 para cerca de 13.000.000.
[28] Dados publicados em Jacob Gorender (28), pg.199.
[29] Dados divulgados em Kelly Oliveira, Mulheres brancas recebem o dobro do salário pago às negras, em Gazeta Mercantil, 18/11/2005.