terça-feira, 16 de julho de 2019

Minha Mãe tem uma namorada


Certa vez uma revista no Brasil, publicou uma série de reportagens sob o título: crônica do amor torto, na qual contava histórias reais de homens e mulheres maduros, que depois de criar seus filhos resolveram viver o que realmente sentiam - foram viver seus verdadeiros amores. A sociedade chamava estes amores de amor torto. Uma das matérias levava o título: mamãe tem uma namorada.
Quando tivermos acesso ao conto Carta para a mãe, de Vitória Noronha, uma jovem estudante escritora, que gosta de fazer o verbo delirar, como diria nosso saudoso poeta Manuel de Barros e gosta de escrever contos, nos recordamos exatamente deste tema. Por isto, decidimos publicar imediatamente, este que é um dos seus diversos contos, os quais, Vitória Noronha, reuniu em sua pequena e robusta obra sob o título Acerto de contos.
Estamos felizes por ter conhecido esta garota tão jovem, promissora e ousada, que nesta terra, na qual, dizem não haver muito apreço a leituras e “escrevinhações”, lê, escreve, não apenas para si, mas para nós. Continuaremos publicando seus contos, porque gostamos e porque é preciso.

Boa leitura.


Carta para a mãe

Um dia assistindo Tudo sobre minha mãe, eu consegui entender tudo. Não apenas o filme, mas a mim. E minha mãe.  Eu não gosto de dizer para as pessoas a importância da família, porque isso não existe sempre, quase nunca existe. Formar uma família é uma tarefa difícil, além de ser uma tarefa imposta as pessoas, uma daquelas bem difíceis para selar o contrato de casamento. Aprender a lidar consigo mesmo é difícil, criar um emaranhado de pessoas desconhecidas é um pouco pior, para não dizer que é horrivelmente desnecessário. Talvez com sorte, você tenha sido criado em uma família unida pelo acaso. Não. Pelas circunstâncias. Acaso não é, porque ele não teria coragem de dar esse sofrimento ao ser humano. Já basta ter nascido. Mas o que eu acho interessante é que estamos acostumados a superestimar as famílias e colocando-as em pedestais, quando na verdade não há nada de extraordinário nisso. A família é aquela que entende. O ser humano.
Eu venho de uma situação um pouco ofuscada. Infelizmente. As pessoas veem mas não querem ver. Nem dizer. Eu sei de tudo, mas elas acham que sabem antes de mim, sobre algo que me diz respeito. Eu entendo a frase “Amor só de mãe” como um conjunto de palavras reconfortantes. Porque, para mim, ela sempre esteve ali. Comecei a conviver de verdade com ela, aos 13 anos e entender a sua vida. Eu sempre acabei tendo um pouco de dificuldade para defendê-la mas ela nunca teve problemas para me defender. Sempre digo que queria ser como ela, mas penso que é quase impossível.
Conheço muitas pessoas da mesma idade que eu, com pais divorciados, e isso não é problema. A questão é que eu cresci com uma mulher-mãe solteira, de sexualidade “duvidosa” para os outros e com duas crianças para criar. Quando eu a vi com uma mulher pela primeira vez, eu soube. Mas inconscientemente. A nossa cabecinha se abre e nós só conseguimos pensar: o que é possível? Quando se é criança, tudo é possível? Ou nada? Eu pensava que a sexualidade era algo que a gente podia “consertar”. Ao invés de sofrer por não ser aceita pela mãe, eu sofria por saber que um dia ela não poderia ser aceita. Mas ela sempre esteve a frente de seu tempo.
Nossa relação, se fixa quando descobrimos a dificuldade que eram nossos encontros. Já morei longe dela, e assim era mais difícil, o sofrimento demorava muito para passar. Mesmo quando me estabeleci na mesma casa que ela, os horários eram grandes, diferentes e causadores de distancia. Minha mãe sempre teve uma letra linda e eu adorava receber cartas dela. A saudade aumentava e, como linhas paralelas, nós nunca tivemos tempo uma para a outra. E a distância de um cômodo para o outro era enorme, mas para não causar incômodo, sempre me dava carinho através da escrita, do papel rasgado e da caneta. Eu tenho poucas lembranças da infância.
Quando morava em roça e vivia com a mãe e irmão, eu entendia que o mundo era limitado e que isso era o necessário, já bastava naquela época estudar e andar de bicicleta, nadar em rio e se sujar de barro. Eu acredito que deve ser difícil se abrir com duas crianças pré-pré-adolescentes sobre tudo. O tudo são os assuntos básicos relacionados a divorcio, dinheiro, estudo, sexo, sexualidade, crescimento. Até hoje, com todos meus anos de vida – que são poucos – eu não conheço tudo sobre minha mãe. Mas sua relação com as mulheres me fez entender o mundo e por que é importante expandir nossos horizontes e parar de olhar apenas para nossos pés mineiros. Quando saí da fase-dos-porquês, que aliás eu não tenho nenhuma lembrança, e entrei na fase-de-entender-tudo, ela soube marcar em seu calendário biológico o dia em que eu poderia compreender sua existência e o porquê de tudo que ela vive e tudo que eu via. A frase que antecede uma conversa séria é sempre a mesma, e eu sempre a odiei porque eu sinto que o planeta pode parar por tempo indeterminado até o final de uma conversa como essas.
- A mamãe precisa te contar uma coisa. – e dizendo com um ar sereno como se não fosse uma conversa séria, e não deveria ser mesmo. Eu apenas disse que queria saber o que era a “coisa”, porque crianças são curiosas e isso também não está errado.
- Se eu gostasse de mulheres, você ainda me amaria? – para uma criança, essa frase não tem o menor sentido, por vários e infinitos motivos. Quando crescemos com uma mãe, um pai, um irmão, e não apenas isso, mas crescemos numa cidade de 3 ruas que acabam em outras ruas de terra, o mundo é limitado. Mas o mundo é limitado porque ali ele não precisa ter muitas possibilidades, não precisamos saber o que existe fora dele. Além disso, crianças sempre possuem respostas na ponta dos fios de cabelo, e eu sempre tive muito. A questão é que, das frases que minha mãe diz até hoje e que me marcam, essa foi a mais difícil de responder e interpretar.
Quando ampliamos o nosso mundo e encontramos e conhecemos outras coisas e possibilidades, tudo fica mais fácil, porque acabamos percebendo que não éramos os únicos, e pensar isso chega a ser egoísta demais. Eu nunca soube defender minha mãe, mas também nunca escondi nada sobre ela. Quando estava na escola e eu tinha certeza que as pessoas sabiam sobre sua sexualidade, eu não conseguia elaborar uma defesa boa o suficiente que desarmasse a ofensa e que também me deixasse em paz. Eu nunca soube defendê-la. Isso sempre me deixou muito triste, porque eu tenho a sensação de que esse tipo de situação não muda, não evolui. Mas em relação a mim, a minha mãe, nos tornamos mulheres gigantes e que sabem defender uma e outra de cada jeito especifico.
Eu queria que, todos tivessem a sensação de ser criados e criadas por uma mulher-mãe solteira e lésbica, porque essa experiência é “única”. Com aspas, porque a experiência não é única, mas é ofuscada. Apagada. É uma experiência que não é aceita para partilhar, e quando partilho, torna-se um bicho de sete cabeças, mas na verdade não é bicho com cabeça nenhuma. É uma mulher, oprimida como todas as outras, claro que não da mesma forma, mas que é silenciada cada vez que abre os olhos, a boca e ouvidos. Só que, desde sua adolescência passou por essas situações e teve a heterossexualidade compulsória empurrada por sua garganta e provavelmente perdeu boa parte de sua vida com isso. Mas ela é mãe, e mães, por si só, não esquecem situações como essas.
Ela sempre gritou muito, não consegue falar baixo nem como o próprio reflexo e sempre me irritou por conta disso. Mas as mulheres são “sempre histéricas”, não podem levantar a voz, nem amar outra mulher, nem abortar, nem trabalhar, nem transar. As mulheres saem das barrigas das mães livres, mas são aprisionadas em pouquíssimo tempo, e a busca por essa liberdade tem que ser anunciada com gritos o tempo todo. Ainda que seja uma mulher com uma letra delicada e que ama colar post-its e cartas pela casa, com mensagens cheias de carinho, eu a vejo como uma das pessoas mais fortes presentes em minha vida. Sei que, felizmente, existem muitas como ela. Mas não existem como ela, na minha vida.

Da obra: Acerto de contos
Autora :Vitoria Noronha

sábado, 6 de julho de 2019

A “farsa” chamada déficit da Previdência: a mentira continua.





Continuam mentindo pra você 

ESTA MATÉRIA É DE 2016 e  CONTINUA ATUAL E NECESSÁRIA.


Professora de Economia da UFRJ, Denise Gentil defende a existência de um “cálculo distorcido” pelo mercado financeiro, que rasga a Constituição ao transformar em déficit a parte da contribuição previdenciária reservada à União


15/02/2016 10:47, atualizada às 21/04/2016 16:37


 Nem reforma política nem tributária. O mercado financeiro iniciou 2016 pressionando o governo federal a tirar do papel uma reforma da Previdência, capaz de preencher o rombo de R$ 124,9 bilhões no INSS previsto para este ano. Rombo? Professora de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Denise Gentil dedicou sua tese de doutorado para defender exatamente o oposto: o déficit previdenciário seria uma farsa provocada por uma distorção do mercado financeiro, que fecharia os olhos para um artigo da Constituição que exige participação da União na composição da Seguridade Social, da qual a Previdência faz parte. “Por essa metodologia, houve déficit de R$ 87 bilhões de janeiro a novembro de 2015”, diz.
Acontece que, quando as contribuições previstas pela Carta entram na conta, o déficit se transforma em superávit. O de 2014 foi de R$ 56 bilhões. “A pesquisa que realizei leva em conta todos os gastos com benefícios, inclusive com pessoal, custeio dos ministérios e com a dívida dos três setores: Saúde, Assistência Social e Previdência”, explica. Denise ironiza o “súbito” interesse do mercado financeiro pelo futuro da Previdência e não poupa de críticas o ajuste fiscal implantado pelo governo. “Dilma está fazendo o que os tucanos desejaram, mas não tiveram força política para fazer.”
Brasileiros – A sua tese de doutorado diz que existe uma “farsa contábil” que transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário. Que farsa é essa?
Denise Gentil 


– O artigo 195 da Constituição diz que a Seguridade Social será financiada por contribuições do empregador (incidentes sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro), dos trabalhadores e do Estado. Mas o que se faz é um cálculo distorcido. Primeiro, isola-se a Previdência da Seguridade Social. Em seguida, calcula-se o resultado da Previdência levando-se em consideração apenas a contribuição de empregadores e trabalhadores, e dela se deduz os gastos com todos os benefícios. Por essa metodologia, houve déficit de R$ 87 bilhões de janeiro a novembro de 2015. Pela Constituição, a base de financiamento da Seguridade Social inclui receitas como a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e as receitas de concursos de prognóstico (resultado de sorteios, como loterias e apostas).

De quanto foi o superávit da Seguridade Social no ano passado?


Quando essas receitas são computadas, obtém-se superávit de, por exemplo, R$ 68 bilhões em 2013 e de R$ 56 bilhões em 2014. Mas essa informação não é repassada para a população, que fica com a noção de que o sistema enfrenta uma crise de grandes proporções e precisa de reforma urgente. Há uma ideia de insolvência e precariedade generalizada que, no caso da Previdência, não corresponde à realidade.

Então por que tanta pressão por reforma?


O objetivo é cortar gastos para dar uma satisfação ao mercado, que cobra o ajuste fiscal. Nada é dito sobre os gastos com juros, que entre janeiro e dezembro de 2015 custaram R$ 450 bilhões, o equivalente a 8,3% do PIB. Ocorre que o governo fez enormes desonerações desde 2011. Em 2015, chegaram a um valor estimado em R$ 282 bilhões, equivalente a 5% do PIB, sendo que 51% dessas renúncias foram de recursos da Seguridade Social. Essas desonerações não produziram o resultado previsto pelo governo, que era o de elevar os investimentos. Apenas se transformaram em margem de lucro.

Em 50 anos, o volume dos inativos corresponderá a mais da metade da população brasileira, segundo o IBGE. Mesmo assim não é necessária alguma mudança na lei para garantir aposentadoria no futuro? 


É incrível que a burocracia estatal e uma parte da sociedade (o “mercado”) se preocupem tanto com o que acontecerá daqui a 50 anos. Subitamente, elas foram acometidas por um senso de responsabilidade com o futuro que não dedicam à educação, segurança, saúde… Só ocorre com o futuro da Previdência. Não é suspeito? O que precisamos, aqui e agora, é incluir um contingente enorme de pessoas que não têm acesso à Previdência. Aproximadamente 43% da população economicamente ativa vive sem direito a auxílio-acidente, seguro-desemprego, aposentadoria, pensão. A população envelhecerá, mas o que precisaremos não é de uma reforma previdenciária, mas de uma política macroeconômica voltada para o pleno emprego e que gere taxas elevadas de crescimento. É também necessário políticas de aumento da produtividade do trabalho com investimentos em educação, ciência, tecnologia e estímulos à infraestrutura. Esses mecanismos proporcionarão a arrecadação para o suporte aos idosos. Cada trabalhador será mais produtivo e produzirá o suficiente para elevar a renda e redistribuí-la entre ativos e inativos. Não podemos ficar presos a um determinismo demográfico.

Como estabelecer uma idade mínima de 65 anos para a aposentadoria em um país onde um trabalhador com mais de 40 anos é considerado velho?


A idade mínima que o governo quer instituir é para as aposentadorias por tempo de contribuição (hoje de 30 anos para as mulheres e 35 anos para os homens), que representam 29% das concessões. Ocorre que estes normalmente começaram a trabalhar cedo. Sacrificaram seus estudos, ganham menos, têm saúde mais precária e vivem menos. Essas pessoas formam dois grupos. Os que se aposentam precocemente acabam voltando a trabalhar e a contribuir para o INSS; não são um peso para a União. Outros que se aposentam mais cedo o fazem compulsoriamente porque não conseguem manter seus empregos, na maioria das vezes por defasagem entre os avanços tecnológicos e sua formação ultrapassada, ou pelo aparecimento de doenças crônicas que certos ofícios ocasionam. Estes já são punidos pelo fator previdenciário, que reduz o valor do benefício. Tratar a todos como se o mercado de trabalho fosse homogêneo ao criar idade mínima é injusto e cruel, principalmente numa economia em recessão.

Defensores da reforma pedem que a idade mínima para se aposentar seja a mesma entre homens e mulheres. Como exigir igualdade de tratamento na concessão de benefícios se a mesma igualdade não existe no mercado de trabalho?

Concordo. A Constituinte de 1988 visou compensar o salário menor e a dupla jornada de trabalho da mulher. Levou em consideração o fato de ela cuidar das crianças e dos idosos da família e de ter uma jornada muito superior a dez horas de trabalho diário. Esse desgaste, que compromete a saúde, teria que ser compensado com regras mais brandas de aposentadoria. E, de fato, as estatísticas mostram que as mulheres vivem mais que os homens, mas sofrem muito mais de doenças crônicas a partir dos 40 anos. Vivem mais, mas vivem pior.

Não é aconselhável uma reforma na aposentadoria de deputados e senadores?


As regras para essas aposentadorias foram alteradas. É semelhante às regras previdenciárias do servidor público federal. Para o recebimento integral, exige 35 anos de contribuição e 60 anos de idade sem fazer distinção entre homens e mulheres. Mas a conta sempre ficará para os trabalhadores do setor privado, que já sofreram uma minirreforma da Previdência no apagar das luzes do primeiro governo Dilma, com a revisão das pensões por morte, com as mudanças no seguro-desemprego e no abono salarial, no auxílio-doença, e, muito provavelmente em breve, haverá revisão nas aposentadorias especiais. Isso tudo adicionado à mudança na Previdência dos servidores públicos que aconteceu em 2012.

Surpreende que as mudanças tenham vindo em um governo de esquerda?


O governo Dilma está fazendo o que os tucanos desejaram, mas não tiveram força política para fazer. A esquerda hoje vive o constrangimento enorme de ter que apoiar um governo desconcertante, retrógrado, privatista, conservador até a medula, que ataca os direitos sociais conquistados com muita luta por sua própria base de apoio. Um dia vai às ruas contra o impeachment. No dia seguinte, vive um pesadelo. Tem que se posicionar contra tudo o que o governo propõe no campo do ajuste fiscal. O que realmente quer essa militância de um governo que só pede apoio para se livrar do impeachment sem dar nenhuma contrapartida?