Ao eclodir, um conflito armado levanta
perguntas para as quais é difícil encontrar respostas que ultrapassem a névoa
das aparências. Dos porta-vozes aos jornalistas e influenciadores sociais, as
narrativas dialogam com a parte do senso comum mais propensa a suscitar um
clima de aprovação. A busca deste consenso é ainda mais aprimorada e cuidadosa
quando as organizações da resistência são o inimigo a ser vencido.
Longe de serem apenas uma
pedra no sapato, a coordenação e a eficácia destes grupos denunciam a presença
de injustiças nunca sanadas e obstaculizam os planos de dominação. Por isso, destruir
as organizações da resistência demanda execrar suas ações e seus membros,
cortar os vínculos com suas bases de sustentação e desferir golpes que
transformem a sua causa em objetivo irrealizável.
Resgatar estes elementos
na conjuntura do Oriente Médio impõe desvendar o que está em jogo na Síria, no
Líbano e na Faixa de Gaza, onde EUA, Israel, União Europeia e Arábia Saudita
coordenam em diferentes graus de protagonismo e subordinação as ações que fazem
vingar seus interesses na região. O esforço que aqui começamos resgatará o que
costuma ser esquecido e menosprezado por uma mídia que aumenta a névoa e impede
a passagem do que pode dissipá-la. Assim, você conseguirá entender o que está
acontecendo e verificar até que ponto o mundo se distancia da paz que brota da
justiça.
1. Síria 2025: servir ao imperialismo cortando as rotas da resistência.
No dia 8 de dezembro de
2024, o grupo fundamentalista Hayat Tahir Sham (HTS - Organização para a
Libertação do Levante) entrava em Damasco, capital da Síria, pondo fim ao
regime de Bashar al-Assad. Em Washington, Joe Biden, comemorava o feito
dizendo: “Até que enfim o regime de Assad
acabou. Brutalizou, torturou e matou literalmente centenas de milhares de
sírios inocentes. A queda do regime é um ato fundamental de justiça”.[1]
Estar a serviço do
imperialismo transformava um grupo considerado “terrorista” pelo Conselho de
Segurança da ONU em
“promotor da justiça”. Num passe de mágica, Biden esquecia que o HTS havia nascido da célula
síria da Al Qaeda e que os
EUA haviam colocado uma recompensa de 10 milhões de dólares a quem desse
informações capazes de levar
à captura do seu líder, e atual presidente da Síria, Ahmed al-Shara'a.[2] A gritante incoerência vislumbrada
até pela mídia mais fiél à ordem dominante foi rapidamente calada à medida que
dois elementos justificavam esta mudança de postura: o fim da rede de suprimentos bélicos produzidos por Teerã que usava a
Síria como ponte para abastecer a resistência libanesa do Hezbollah e os grupos
armados da Faixa de Gaza; e a desmoralização da Rússia que, centrada na guerra em território ucraniano,
foi incapaz de manter al-Assad no poder. Concretamente, ao apoiarem os rebeldes
do HTS, EUA, Reino Unido e Israel abriam caminhos para reconfigurar o
equilíbrio de poder no Oriente Médio sem que nenhum de seus soldados fosse
ferido ou morto nos enfrentamentos...e isso era o que mais importava.
No amanhã da vitória, Ahmed
al-Shara'a se deparava com uma Síria dividida em grupos étnicos cujas milícias haviam
recebido apoio do exterior em vários momentos do passado (como no caso dos
curdos, armados pelos EUA a fim de combater as tropas do Estado Islâmico), com
uma infraestrutura quase totalmente destruída e com 70,0% dos habitantes
precisando de ajuda humanitária para sobreviver.[3] Um
país, portanto, cuja viabilidade depende de o novo governo fazer convergir os
interesses destes grupos num plano de reconstrução nacional a ser viabilizado
com financiamentos externos que, por sua vez, dependem de acertar as contas com
os interesses dos credores.
Enquanto a liderança dos rebeldes trocava o uniforme de batalha
pelo terno do estadista, Israel colocava as mãos na sua parte do botim de
guerra. Pouco depois da queda do regime, Tel Aviv declarava inválido o Acordo
de Separação, assinado com a Síria em 1974. Imediatamente, as tropas israelenses
ocupavam a faixa de terra de 70 km que servia de zona de amortecimento entre as
colinas de Golã (sob controle israelense) e os territórios governados por
Damasco.[4]
A ação era seguida pelo anúncio da expansão dos assentamentos de colonos judeus
nas áreas anexadas e de ações militares de caráter intimidatório nos povoados
próximos à região.[5] O fato de os primeiros serem considerados ilegais pelo direito
internacional e de a ocupação militar de fatias do território representar uma
flagrante violação da soberania síria não foi denunciado nem pelos governantes
ocidentais nem pelas análises dos comentaristas internacionais.
A suspeita de que o apoio aos rebeldes sírios era um passo essencial
para seguir na construção do Grande Israel ganhou ulteriores confirmações nos
meses seguintes. Com o pretexto de eliminar centros de armazenamento de armas
do Hezbollah e núcleos de seus combatentes na Síria, até meados de março, as
forças armadas de Israel haviam ampliado a ocupação militar em 600 km quadrados[6] e, no
final de junho, completavam a instalação de 10 novas bases do exército a partir
das quais realizariam incursões que chegariam a 40 km de Damasco, a capital do
país.[7]
O projeto de Tel Aviv para o futuro da Síria é claro: um país dividido
por grupos étnicos cujas forças armadas e identidades culturais inviabilizam a
construção de uma nação unida e politicamente estável. Desta forma, não só as
forças armadas sírias deixariam de ser uma ameaça à segurança da fronteira
norte de Israel, como teriam bem mais dificuldades para se opor aos planos de sua
progressiva expansão territorial na região sul do país.[8] A obra
se completaria com o afastamento de Damasco da influência do Irã e a completa
destruição das células do Hezbollah.
À luz deste plano, é possível entender dois outros elementos da ação de
Tel Aviv. O primeiro deles começou imediatamente após a queda do governo de
Bashar al-Assad, quando a força aérea israelense atacou mais de 400 instalações militares sírias,
num processo que se manteve até o final de agosto e segue como ameaça latente. O
segundo, ganha cor e forma no envolvimento de Tel Aviv com o
jogo sectário das facções que recortam a Síria em áreas de influência para
criar o que apelidou de “corredor de Davi”.
Trata-se de uma faixa de terra que parte do sul sírio ocupado pelos
drusos e alcança as áreas controladas pelas forças curdas na região norte,
passando pelo deserto da Badia (lar do Estado Islâmico) e incorporando a base
militar estadunidense de Al-Tanf, na fronteira com o Iraque. Israel entende que
controlar este corredor, num jogo de alianças e atritos com as forças locais, cortará
as ligações dos grupos xiitas que conectam Teerã, Bagdá, Damasco e Beirute,[9] e transformará
a região ocupada pelos drusos numa barreira de contenção diante da
possibilidade de o novo governo sírio não pacificar as relações com Tel Aviv.
Sabendo que, neste momento, as milícias locais controlam áreas em todas
as regiões da Síria e têm mais poder do que as forças de segurança do governo,
entendemos por que Israel vê com bons olhos o fato de os curdos não terem dissolvido
suas forças armadas no novo exército sírio e garantirem certa autonomia
administrativa em relação ao governo central.[10] Do
mesmo modo, a relação com os drusos deu novos passos[11] à
medida que Tel Aviv interveio militarmente em sua defesa na cidade de Sweida,
onde um incidente envolvendo os beduínos locais desencadeou enfrentamentos
entre os dois grupos.
Na ocasião, o poder de fogo israelense teve como alvos até as próprias
forças do exército sírio que se dirigiam à região na que havia sido anunciada
como uma intervenção para acabar com o conflito.[12]
Oficialmente, o bombardeio das tropas de Damasco foi justificado alegando a
possibilidade de uma matança maior. Ainda que o histórico das novas forças
armadas sírias (compostas por militantes e aliados de linha dura do HTS que
atuam com orientações bem próximas às da Al Qaeda) permitisse pensar nesta
possibilidade,[13]
o recado ao governo de Ahmed
al-Shara'a e às demais milícias é outro: nem pensem em usar suas forças contra os
drusos pois investir contra eles levará a acertar contas com Israel.
Diante da urgência de receber financiamentos para reconstruir uma
economia devastada por 13 anos de guerra civil, Damasco ofereceu a Washington a
primazia nos investimentos imobiliários e a parceria para explorar as jazidas
de hidrocarbonetos no norte do país. Em resposta, Trump removeu as sanções
econômicas impostas ao antigo regime, mas a chegada dos recursos almejados depende
de Damasco assumir o controle do território.
A União Europeia quer o mesmo futuro para o país e planeja entrar nos projetos
de reconstrução, entre outras coisas, para afastar a Rússia dos planos do
governo sírio. De fato, apesar de Moscou ter abrigado a fuga de Bashar-al-Assad,
Damasco busca manter relações com o governo Putin a fim de criar uma espécie de
contrapeso à injerência ocidental.[14] Enquanto
isso, a Arábia Saudita trata de fazer com que a sua ajuda humanitária afaste os
sírios da influência iraniana e assegure a Riad um lugar de destaque nas
relações do novo governo com os países árabes.[15]
De dezembro de 2024 ao momento em que escrevemos, as forças de Ahmed al-Shara'a não dispararam um
único tiro para deter as centenas de incursões militares com as quais Tel Aviv golpeou
o território sírio, assim como em nenhum instante Washington condenou as violações
israelenses da soberania do país. Resta saber se e até quando os setores mais
radicais do HTS aceitarão que a manutenção do atual governo depende de ele
vestir a camisa de força costurada pelo Ocidente.
Os noticiários têm
registrado ações incipientes de uma resistência popular armada contra a ocupação
israelense no sul da Síria, mas não encontramos elementos para entender a
composição e as possibilidades de crescimento de suas forças.[16] Finalizando,
podemos dizer que para acabar com a ponte entre Irã, Hezbollah, Hamas e cortar
a influência da Rússia, os interesses estadunidenses, europeus e israelenses
estão transformando a Síria numa areia movediça que pode engolir o seu futuro. Nela,
a primeira a pagar o preço será a mesma população que o Ocidente dizia ter
libertado da opressão de Bashar al-Assad.
2. Líbano: o que será do Hezbollah?
Identificar a origem dos movimentos de resistência é uma tarefa essencial
para entender os embates nos quais estão envolvidos. O caso do Hezbollah é um dos
que exige a paciência de percorrer várias páginas da história. Começamos
lembrando que, desde a independência da França, em 1943, o Líbano foi invadido
por Israel em oito ocasiões, todas elas relacionadas com as consequências da
expulsão de 750.000 palestinos pelas tropas israelenses, em 1947. Na época, o
sul do Líbano recebeu cerca de 100.000 refugiados aos quais se juntaram novos
contingentes entre 1956 e 1967.
A Organização para a Libertação da Palestina (OLP) estabeleceu uma
espécie de administração própria no sul do Líbano e, em 1969, um acordo entre
Yasser Arafat e o chefe do exército local colocou os campos de refugiados sob o
controle das forças palestinas. Em função disso, milhares de combatentes da
resistência buscaram refúgio e foram treinados nestes espaços de onde foram
lançados vários ataques ao território israelense.
Com o tempo, a ação militante da OLP não elevou apenas a percepção de
Tel Aviv de que estes campos de refugiados eram um problema para a sua
segurança, como acirrou atritos e disputas entre as forças político-religiosas
que dividiam os cargos no governo do Líbano. Atualmente, há um consenso entre
os historiadores quanto ao fato de que a guerra civil, que eclodiu em 1975 (e
se encerrou em 1990), foi o resultado de um período de crescente divisão
interna entre setores que apoiavam o direito à resistência dos palestinos a
partir do território libanês e aqueles que se opunham a isso.[17]
Em 1978, durante os enfrentamentos que varriam o Líbano e alegando que a
invasão era a resposta ao ataque da OLP que havia sequestrado e matado 38
israelenses, o exército de Tel Aviv invadiu o sul do país para expulsar da
região os guerrilheiros palestinos. As tropas ocuparam a área até o Rio Litani
e aí permaneceram até que a Resolução 425 da ONU condenou a invasão, pediu a saída
imediata das forças armadas israelenses e criou um corredor de segurança mantido
pelos contingentes da própria ONU.
Neste processo, Tel Aviv começou a armar e financiar as forças dos
cristãos maronitas libaneses, cujos serviços seriam utilizados quatro anos
depois durante uma nova invasão com a mesma finalidade. Em junho de 1982, e
tendo como pretexto a tentativa de assassinato do embaixador israelense em Londres,
os soldados israelenses invadiram novamente o Líbano. Na ocasião, as milícias
dos cristãos maronitas massacraram entre 2.500 e 3.500 palestinos nos campos de
refugiados de Sabra e Chatila. A ação despertou a indignação mundial e forçou o
início da retirada das tropas israelenses do país. O saldo da invasão foi
aterrorizante: cerca de 20.000 pessoas haviam sido mortas em território libanês,
a maioria delas era de civis, enquanto Tel Aviv amargava a perda de 654
soldados.
Os historiadores são unânimes em apontar as consequências da invasão
israelense de 1982 como o elemento que levou à criação do Hezbollah. Diante dos
massacres e das relações que Israel havia estabelecido com as milícias locais,
alguns líderes xiitas do Líbano queriam uma resposta militar à invasão. A
ruptura com o Movimento Amal (um grupo político com uma importante milícia
xiita), o apoio militar do Irã e a aliança com outros grupos do sul do Líbano levaram
ao nascimento do Hezbollah (Partido de Deus, em árabe).
Em 1985, uma carta aberta anunciava oficialmente a criação do grupo e
afirmava a destruição de Israel como seu objetivo fundamental pelo fato de este
inimigo ser “o maior perigo para as
nossas gerações futuras e para o destino das nossas terras, especialmente
porque glorifica as ideias de colonização e expansão, iniciadas na Palestina”.[18] Trocado
em miúdos, se Israel pode expulsar os Palestinos do território que a ONU
designou para eles e invade o Líbano para caçá-los, não há por que o Hezbollah
respeitar este país cujas pretensões expansionistas podem fazer com que o próprio
Líbano seja a próxima vítima.
A penetração do grupo no sul do país e o crescimento da sua capacidade
militar não seriam possíveis sem o apoio explícito da população local. Gradualmente,
o Hezbollah começou a desempenhar também um papel ativo na política libanesa e,
em 1992, disputou pela primeira vez as eleições nacionais. À medida que o
Hezbollah se fortalecia e enfrentava as forças de ocupação israelenses, o grupo
se tornava alvo de Tel Aviv. O primeiro ataque ocorreu em abril de 1996, numa
operação que durou menos de duas semanas. Deste momento em diante, a tensão com
o Hezbollah na fronteira norte de Israel sempre marcou presença, ainda que com
diferentes graus de intensidade.
No final de maio de 2000, as forças armadas israelenses se retiraram
definitivamente do sul do Líbano. No mês seguinte, a ONU traçou uma fronteira
não oficial entre os dois países, conhecida como Linha Azul. O espaço deixado
por Israel foi ocupado pelo Hezbollah que, por sua vez, nunca reconheceu a
legitimidade da Linha Azul à medida que isso implicava em perdas territoriais
para o Líbano.
Em 2006, o grupo lançou uma série de ataques com foguetes contra várias
cidades do norte de Israel e, no dia 12 de julho, seus
combatentes cruzaram a Linha Azul matando oito soldados de Tel Aviv e fazendo
dois reféns. “A resposta israelense foi
implacável e envolveu uma operação militar que incluiu o bloqueio e um intenso
bombardeio de cidades, vilas, aeroportos, pontes e muitas outras estruturas
importantes no Líbano. A guerra durou 33 dias, durante os quais o Hezbollah
também lançou uma saraivada de foguetes contra Israel. Segundo dados oficiais,
1.191 pessoas morreram no Líbano, a maioria delas civis. Em Israel, 121
soldados e 44 civis foram mortos.”[19]
Apesar disso, a estrutura do Hezbollah saiu intacta do enfrentamento. “A Comissão Winograd, criada pelo governo
israelense para avaliar o resultado da guerra, concluiu em 2008 que a operação
foi um fracasso e que Israel tinha iniciado «uma longa guerra, que terminou sem
uma vitória militar clara».”[20]
Nas duas décadas que separam os acontecimentos de 2006 dos dias
atuais, o Hezbollah foi se fortalecendo política e militarmente. As imagens das
“cidades dos mísseis” divulgadas em 2024 mostravam o avanço do seu poder de
fogo e da sua capacidade de fustigar o norte de Israel durante longos períodos
de tempo. Com a Síria de Baschar al-Assad servindo de corredor para reabastecer
seus paióis em troca do apoio para ele se manter no poder, o grupo integrou o
Eixo da Resistência com o Irã, o Iêmen, Hamas e Jihad Islâmica.
Os lançamentos de foguetes em apoio à resistência na Faixa de Gaza
levaram ao esvaziamento populacional de vários assentamentos israelenses na
região norte do país e alimentaram o debate no interior do território libanês sobre
a necessidade e a utilidade de apoiar os palestinos. Diante dos ataques,
ninguém podia esperar a ausência de uma reação à altura dos planos de Tel Aviv,
do apoio incondicional recebido dos seus aliados e do esforço de minar a
influência de Teerã no Oriente Médio. O desenrolar dos acontecimentos mostra
que o ataque ao Hezbollah, em outubro do ano passado, não se limitou à resposta
militar, mas foi ocupando um espaço crescente na política local. Vejamos os
passos deste processo.
Entre meados de setembro e 1º de outubro de 2024, as explosões simultâneas
de pagers e, em seguida, de walkie-talkies usados por integrantes do Hezbollah
mataram 37 membros do grupo e feriram cerca de 3.000. Em seguida, pesados
bombardeios contra as estruturas do Hezbollah assassinaram o seu líder, Sayyed Hassan Nasrallah, e cerca de 1.000 pessoas, a grande
maioria das quais era de civis.[21]
Segundo vários analistas, atacar bairros
residenciais de Beirute, bombardear famílias que saíam da cidade por rotas que
o exército de Tel Aviv havia definido como seguras, além, obviamente, de
atingir as posições do grupo libanês visava levar a opinião pública a dizer que
o Hezbollah não podia sustentar Gaza à custa do Líbano. Produzir esta afirmação
era um passo essencial para isolar politicamente a resistência.[22]
Enquanto aviões e mísseis devastavam o território
libanês, os soldados israelenses enfrentavam seríssimas dificuldades para
avançar no sul do país. Se o Hezbollah não dispunha de meios para deter os
ataques aéreos, tinha preparação de sobra para transformar os combates em campo
aberto numa prova de fogo para a invasão em curso. O passar dos dias revelava que,
quanto mais duras as agressões bélicas, mais Tel Aviv insistia na narrativa
pela qual eram as ações de Hezbollah que o obrigavam a atacar o país.
Esta postura transformava o agressor de civis
indefesos em um defensor da justiça e a resistência num provocador cuja contenção
impunha dor e morte a pessoas inocentes. A ideia de neutralizar o Hezbollah
começou a ganhar espaço entre os principais atores da política libanesa para os
quais ou o governo de Beirute se decidia a confrontar o grupo, ou teria que
aceitar violações contínuas e crescentes por parte de Tel Aviv. Neste contexto,
cada ataque aéreo fortalecia politicamente as facções libanesas alinhadas com o
Ocidente e reafirmava a necessidade de desmantelar as forças do Hezbollah como
condição para pacificar as relações entre os dois países.
Esta estratégia não se esgotou com o cessar-fogo
assinado em 27 de novembro de 2024. Ao contrário, daquele momento em diante,
ela continuaria nos ataques aéreos, marítimos e terrestre, sobretudo, contra o
sul do Líbano, que, até o dia 25 de outubro deste ano, haviam somado mais de
270 vítimas civis em milhares de violações do cessar-fogo.[23] Esta ameaça sem trégua
que paira sobre a população não só impede que a vida ganhe ritmos mais próximos
da normalidade, como trata de convencer as vítimas de que nada mudará se o
Hezbollah não depuser as armas.[24]
Na seara da política institucional, o cerco em volta
do Hezbollah ficou mais apertado em janeiro de 2025, quando o general Joseph
Aoun, um cristão maronita apoiado por EUA e Arábia Saudita, foi eleito Presidente
do país pelo Parlamento. Uma semana depois, o mandatário substituiu o
Primeiro-Ministro Najib Mikati, que contava com a preferência do Hezbollah, por
Nawaf Salam. Aprovado pelos votos de 84 dos 128 parlamentares, Nawaf traduzia uma
alteração importante no equilíbrio de poder entre as facções libanesas. De
fato, além do apoio de cristãos e drusos, parlamentares muçulmanos sunitas e
até alguns aliados do Hezbollah serraram fileiras em volta do seu nome alegando
a necessidade de mudanças voltadas a fazer com que o país obtivesse o apoio
árabe e internacional.[25]
Alguns meses depois, em meio à pressão de Estados
Unidos, Israel, França e Arábia Saudita para costurar um cronograma de
desarmamento do Hezbollah, governo e parlamento definiram que a tarefa de
garantir a soberania e a segurança das fronteiras seria entregue somente ao
Exército. Com o monopólio do uso da força garantido pela lei, o governo de
Beirute começaria a desarmar o Hezbollah. Realizada esta tarefa, os EUA
mediariam um cessar-fogo definitivo com Israel que, sem a ameaça do grupo xiita
libanês, teoricamente, não teria razões para invadir os territórios a sul do
Rio Litani.[26]
Com a legitimidade do direito internacional no brejo
do descaso, quem garantirá o cumprimento de um acordo desta natureza? Diante da
fragilidade das instituições internacionais, em que medida o fim da resistência
armada do Hezbollah será um convite aberto ao avanço israelense no sul do
Líbano? Vendo o apoio incondicional que Tel Aviv recebeu dos EUA na Faixa de
Gaza, o silêncio de Washington diante das violações da soberania da Síria e a
sua inércia diante do descumprimento do cessar-fogo assinado com o Líbano, como
esperar que Israel será forçado a cumprir o que pactuará com Beirute? Bastam
estas perguntas para entender a desconfiança do Hezbollah de que, uma vez neutralizada
a sua capacidade militar, teremos um Líbano bem mais exposto às incursões de
Tel Aviv.
Para pressionar o desarmamento do grupo, Arábia
Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e EUA vincularam a liberação de fundos
para a reconstrução do país ao cumprimento desta medida. Enquanto isso, Israel
segue atingindo as estruturas civis do sul do Líbano a fim de destruir o que o
Hezbollah já conseguiu viabilizar em termos de recuperação econômica.
Entre o cessar-fogo e a primeira semana de setembro
deste ano, o grupo xiita já havia efetuado reparos e construções de moradias
por um valor correspondente a um bilhão e cem milhões de dólares e, no início
de setembro, apresentou um plano de recuperação do sul do país no montante de 3
bilhões de dólares a ser realizado pela iniciativa privativa. A dedicação do
Hezbollah à tarefa de fazer a vida da população voltar à normalidade se contrapõe
aos atrasos do governo central em transformar em obras os 250 milhões de
dólares do empréstimo obtido junto ao Banco Mundial dos quais só 40 milhões seriam
destinados ao sul do Líbano.[27]
Este cenário permite entender por que Israel, no dia
11 de outubro de 2025, realizou uma onda de ataques aéreos tendo como alvos máquinas de
escavação e tratores que atuavam na recuperação da estrada que liga as cidades
de Saida e Nabatieh, uma rota vital para os moradores do sul do país.[28] Quinze
dias depois, drones israelenses repetiriam o feito em Wadi al-Asafir, onde uma
escavadeira que operava na área foi totalmente destruída.[29]
Ao que tudo indica, o objetivo de mostrar a inutilidade dos esforços da recuperação
caso a resistência não for desarmada continuará marcando os ataques contra as
estruturas civis.[30]
Na seara da
disponibilidade de armamentos pelo exército do Líbano, reparamos que os Estados
Unidos fornecem apenas o que serve para administrar coercitivamente os atritos
internos. Entre os suprimentos, não há nada capaz de afetar as operações da
aviação militar e do exército israelenses e nem de derrubar seus mísseis e
drones.
Enquanto isso, as
pressões contra o Hezbollah não param de crescer. No dia 30 de setembro, por
exemplo, o presidente da França, Emmanuel Macron, apoiou a realização de uma
conferência organizada pela Arábia Saudita que acontecerá no final de 2025 e na
qual os países árabes e europeus, os EUA e as nações do Commonwealth se
encontrarão para reunir os meios que levem ao desarmamento do grupo.[31]
Mas, o que pensa o povo
cuja vida segue no incômodo espaço entre o prego e o martelo?
No momento em que
escrevemos, os resultados de uma pesquisa do Centro Consultivo de Estudos e
Documentação do Líbano mostra uma forte oposição interna ao desarmamento do
Hezbollah em função, sobretudo, da ausência de uma estratégia defensiva em
condições de repelir as agressões israelenses. Pelos números apurados, 71,7%
dos entrevistados acreditam que o exército do país não pode lidar sozinho com
estes ataques enquanto 58,0% se recusam a aceitar que o Hezbollah entregue as
armas sem um plano nacional de defesa capaz de garantir a integridade
territorial do Líbano.[32]
Ao que tudo indica a
ideia pela qual a resistência é uma barreira imprescindível à expansão de
Israel continua ecoando entre a população libanesa, apesar dos sofrimentos impostos
por Tel Aviv. Resta saber até quando este eco poderá ser ouvido.
3.
Palestina: um povo em resistência que não se dobra ao agressor
O extermínio é o único meio capaz de vencer um povo
que transforma o medo em força para lutar pela liberdade. Mas para atirar
impunemente em mulheres e crianças, devastar suas casas, bombardear hospitais,
escolas, campos de refugiados e lugares de culto, usar a fome como arma de
guerra e torturar presos até a morte é necessário que o opressor convença a
maioria de que esta é a justa punição a ser infligida a alguém cuja selvageria
não merece compaixão. Isso permite pleitear a impunidade aos crimes cometidos e
continuar chamando de justo e verdadeiro somente o que atende aos interesses do
genocida.
Os acontecimentos na Faixa de Gaza são o último e
trágico exemplo desta realidade. Nas reflexões que seguem, não iremos resgatar
a cronologia dos massacres sofridos pela população palestina, mas como os
planos de Israel precisavam de um motivo para eliminar a resistência no
território onde era mais forte.
Para muitos, a operação “Inundação de Al-Aqsa”,
realizada por Hamas, Jihad Islâmica e demais grupos armados da Faixa de Gaza em
7 de outubro de 2023, não passa de um ato injustificável e condenável. Propositadamente
isolada do sistemático descumprimento das resoluções da ONU por parte de Israel
e da sua histórica negação dos direitos humanos para os palestinos, a incursão terrestre
desta resistência choca na exata medida em que todos esquecem as operações
promovidas pelas forças armadas de Tel Aviv que, mensalmente e durante os 75
anos anteriores, tiveram como alvo a população palestina.
A título de exemplo, basta pensar que, de janeiro de
2023 a agosto do mesmo ano, a ONU alertava que os 219 palestinos assassinados e
os mais de 8.000 feridos em ações do exército israelense formavam um
contingente superior ao total registrado no ano anterior.[33] Infelizmente, poucos no
mundo souberam destas mortes e menos ainda foram aqueles que não viram nelas um
castigo merecido pelo simples fato de envolver os palestinos.
Sabendo que as consequências eram potencialmente
devastadoras, o que explica a Inundação de Al-Aqsa? Pelo que pudemos perceber,
a incursão no território israelense próximo à Faixa de Gaza ocorreu num
contexto em que a Questão Palestina repousava no baú do esquecimento das
preocupações mundiais, com os países árabes assinando acordos de cooperação com
Israel e diante da impossibilidade material de criar um Estado Palestino devido
à crescente ocupação ilegal dos territórios da Cisjordânia e do cerco que
estrangulava a Faixa de Gaza.
Com as portas do diálogo hermeticamente fechadas, o
ataque da resistência visava criar uma onda de choque que trouxesse a Questão Palestina
de volta à agenda internacional pelo único caminho que restava: cravando um
espinho na garganta de Israel. O histórico de Tel Aviv não alimentava nenhuma
ilusão quanto à possibilidade de uma resposta não devastadora, mas o custo futuro
do não fazer implicaria numa ulterior e silenciosa espoliação do pouco que os
palestinos ainda tinham.
Sabendo que a ação foi preparada ao longo de dois
anos de planejamento e treinamento dos combatentes da resistência, muitas vezes
à luz do dia, algumas perguntas inquietam nossas reflexões. Como é possível que
um dos mais eficientes serviços secretos do mundo tenha deixado passar em
branco uma preparação tão demorada? Com a fronteira entre Israel e a Faixa de
Gaza vigiada 24 horas por dia através de soldados e do que há de mais moderno
em sistemas de alerta e monitoramento, como acreditar que tudo isso não alertou
em relação à iminência do ataque? Por que a apuração de uma falha desta
magnitude continua enfrentando fortes resistências do governo Netanyahu?
Os fatos e os testemunhos aos quais tivemos acesso por
diferentes meios de comunicação contam uma história diferente da oficial. Vamos
a eles.
Quatro dias após o ataque às bases militares e aos
vilarejos israelenses, um funcionário do governo do Egito e um parlamentar dos
Estados Unidos afirmaram que, no dia 4 de outubro, Israel foi informado de que
Hamas estava planejando “algo grande”.[34] A suspeita de que Tel Aviv
sabia, mas não tomou providências, foi silenciada alegando que a comunicação
deve ter sido feita a quem não tinha meios para compreender sua gravidade, como
se os representantes dos serviços secretos egípcios passassem informações
sigilosas a uma telefonista ou a um soldado raso.
Segundo uma publicação da mídia israelense do dia 13
de novembro de 2023, na noite entre o dia 6 e 7 de outubro, o Gabinete do
Primeiro-Ministro, Benjamin Netanyahu, foi alertado sobre sinais preocupantes
vindos da Faixa de Gaza. De acordo com a matéria: “A informação foi repassada a uma
série de altos funcionários do Estado-Maior, da Diretoria de Operações e do
Gabinete do Primeiro Ministro, da sala de operações que funciona 24 horas por
dia 7 dias por semana e da Divisão de Pesquisa de Inteligência Militar, que
deve receber e processar em tempo real todos os materiais coletados pela
comunidade de inteligência. Nos casos em que estamos lidando com assuntos de
importância imediata e urgente, é papel da sala de operações distribuir ainda
mais esses materiais. O gabinete do chefe do Estado-Maior distribuiu os
materiais do grupo por meio de um aplicativo semelhante ao WhatsApp em um
celular criptografado no qual vários membros seniores do estabelecimento de
defesa estão localizados, incluindo o coronel S., o oficial de inteligência do
Gabinete do Primeiro Ministro e o primeiro-ministro”.[35]
Entre o final de novembro e os primeiros dias de
dezembro de 2023, a mídia mundial fez ecoar a notícia, inicialmente divulgada
pelo The New York Times, pela qual o governo israelense sabia dos planos de
Hamas um ano antes dos mesmos serem concretizados. Apelidado de “Muro de
Jericó”, o documento interno trazia detalhes de uma ofensiva que destruiria
fortificações em volta da Faixa de Gaza e teria como alvos bases militares
importantes nas proximidades da linha de fronteira. Em resposta, o governo de
Tel Aviv alegou que oficiais de alta patente do exército e do próprio serviço
secreto teriam avaliado que a dificuldade de a resistência palestina levá-la a
cumprimento era motivo suficiente para não se preocuparem com seus planos.
Mais tarde, apareceram confirmações de que, semanas
antes do 7 de outubro, a Agência de Inteligência dos Estados Unidos (CIA)
produziu duas avaliações, imediatamente partilhadas com Israel, pelas quais as
chances de um conflito palestino-israelense estavam aumentando
consideravelmente, sendo que o informe de 28 de setembro apontava que Hamás
estava preparado para realizar ataques através da fronteira da Faixa de Gaza. No
dia 5 de outubro, um telegrama da CIA alertava quanto à possibilidade crescente
de violência por parte da resistência palestina e, no dia seguinte, “autoridades dos EUA fizeram circular
relatórios de Israel indicando atividade incomum por parte do Hamas”.[36]
No dia 17 de janeiro de 2024, a BBC
divulgou o testemunho de três jovens mulheres, recrutas do exército israelense
e cuja função específica era de buscar indícios de qualquer atividade suspeita
a partir de seus postos de observação. Todas afirmaram que, nos meses
anteriores ao ataque de 7 de outubro, relataram a seus superiores a realização
de ensaios de ataques, simulação de tomada de reféns e a presença de
agricultores agindo de forma estranha nas proximidades da cerca que divide
Israel da Faixa de Gaza. “«Nós os víamos ensaiando o ataque
todos os dias», disse Noa
[nome fictício], que ainda serve no
exército, à BBC. «Eles tinham até uma maquete de tanque usada para treinar como
tomar o controle. Eles também tinham maquetes de armas sobre a cerca e também
mostravam como iriam explodi-las e, em um ataque coordenado, assumir o controle
das forças, matar e sequestrar».”[37]
Seguindo na reportagem, a
matéria acrescentava: “Numa base
diferente ao longo da fronteira, Gal [nome fictício], diz que também observou a intensificação dos exercícios. Ela
acompanhou, através de um balão de vigilância, a construção, no coração de Gaza,
de uma réplica de uma arma automatizada israelense usada na fronteira. Várias
mulheres também descrevem bombas sendo plantadas e detonadas perto da cerca –
conhecida como Muralha de Ferro de Israel – aparentemente para testar sua
potência. Imagens de 7 de outubro mostraram, mais tarde, grandes explosões
realizadas antes que os combatentes do Hamas passassem em alta velocidade em
motocicletas. (...) Noa diz ter perdido as contas de quantas vezes reportou o
que viu. Dentro da unidade, todos «levavam a sério e repassavam, mas no final
eles (pessoas de fora da unidade) não faziam nada a respeito».”[38]
Em 19 de junho de 2024, o site do G1 repercutiu as informações
veiculadas por uma TV israelense no dia anteior pelas quais o Exército de Tel
Aviv havia ignorado um relatório com detalhes das ações de Hamas na Faixa de
Gaza que começou a circular no dia 19 de setembro de 2023 entre altos
funcionários dos serviços de inteligência. A matéria dizia textualmente: “O documento, a que a emissora
teve acesso, descrevia
detalhadamente os exercícios realizados por unidades de elite do Hamas.
Incluía ataques simulados a um posto do Exército na fronteira e instruções
específicas para o tratamento de soldados e reféns. (...) As soldadas Yael
Rotenberg e Maya Desiatnik, que sobreviveram ao massacre, relataram, três
semanas depois [do 7 de
outubro], terem informado a seus comandantes
sobre os exercícios que observavam perto da fronteira e se intensificavam na
frequência. Ouviram
deles que o relato não era importante e que não havia nada
que pudesse ser feito a respeito”.
[39]
No dia 6 de outubro de 2024, uma nova reportagem da
BBC levantou que, no ataque ocorrido um ano antes, alguns equipamentos de
vigilância não estavam funcionando ou podiam ser facilmente destruídos por
Hamas. O texto também questionava o fato de tão poucos soldados israelenses
estarem armados em uma base tão próxima da fronteira, a demora na chegada dos
reforços, até que ponto a infraestrutura do local deixou as pessoas
desprotegidas, as falhas numa cerca considerada impenetrável e, novamente, as
razões pelas quais a inteligência nada preparou, apesar dos avisos recebidos.[40]
A nosso ver, estes fragmentos apontam para uma única
explicação plausível: Israel conhecia os planos da resistência na Faixa de
Gaza, deixou que se realizassem e se preparou para suscitar um nível de
indignação e de raiva capaz de justificar o golpe com o qual pretendia
aniquilar os grupos armados e forçar os palestinos a deixarem o território. Alguns
elementos pouco divulgados na mídia internacional descrevem como isso foi
feito.
O primeiro deles é a aplicação irrestrita da
“Diretiva Hannibal” conduzida pelas forças armadas israelenses. Vejamos do que
se trata.
A orientação que faz referência ao general
cartaginês que, no ano 181 antes de Cristo, optou por se envenenar a fim de não
ser feito prisioneiro pelos romanos foi elaborada em 2006, depois que soldados da
infantaria israelense foram capturados pelo Hezbollah sem que seus colegas
abrissem fogo por medo de alevejá-los. A libertação dos reféns foi paga com a
soltura de um grande número de presos da resistência libanesa, razão pela qual o
exército israelense considerou que o risco de matar os reféns era aceitável
diante do elevado preço para trazê-los de volta. Desta forma, adotar a Diretiva
Hannibal sempre teve um único significado: abrir fogo, ainda que isso implique
em matar alguém do próprio povo.[41]
Os testemunhos dos civis israelenses que assistiram
à resposta do seu exército ao 7 de outubro confirma a aplicação indiscriminada
desta orientação. Dois casos ilustram o que isso significou em termos de fogo
amigo. O primeiro deles é relatado por Yasmin Porat, sobrevivente de um ataque
com tanques israelenses no Kibutz Be’eri, ao Canal 12 de Israel. De acordo com
a reportagem: “Na
casa de Pessi Cohen, de acordo com Porat, os combatentes palestinos trataram
mais de uma dúzia de civis israelenses "humanamente" e garantiram que
não sofreriam mais danos. Os palestinos forneceram água e permitiram que
saíssem para o gramado para escapar do calor.
De
acordo com Porat, os combatentes queriam que as autoridades israelenses, que
eles pensavam que já estariam se concentrando na área, lhes garantissem
passagem segura de volta a Gaza, onde libertariam os civis na fronteira. As
demandas dos combatentes foram transmitidas a Porat por meio de Suhayb
al-Razim, um motorista de microônibus palestino de Jerusalém Oriental ocupada,
que eles também capturaram e forçaram a servir como tradutor de hebraico.
Al-Razim havia sido capturado no início do dia enquanto transportava foliões
israelenses de e para a rave Supernova.
A
pedido dos combatentes palestinos, Porat chamou a polícia israelense para que
os atiradores pudessem negociar sua saída. Depois de vários telefonemas com a
polícia, os reféns e seus captores esperaram a chegada das forças israelenses.
Quando essas forças finalmente chegaram à casa de Pessi Cohen, começaram a
atirar sem aviso prévio, disse Porat.
"Estávamos
do lado de fora e de repente houve uma saraivada de balas contra nós da [unidade israelense] YAMAM. Todos nós começamos a correr para encontrar cobertura",
disse Porat ao Canal 12.
Em meio ao tiroteio que se seguiu, um comandante palestino, mais tarde
identificado como Hasan Hamduna, negociou sua própria rendição com as forças
israelenses. Eles o instruíram a se despir e sair com Porat.
Quando
eles saíram, Porat pediu aos israelenses que parassem de atirar, o que eles
fizeram. Então ela viu vários moradores do kibutz deitados no chão - pessoas
que, com uma exceção, acabariam mortas. Questionada se as forças israelenses
podem tê-los matado, Porat respondeu: "sem dúvida". "Eles
eliminaram todos, incluindo os reféns. Porque houve fogo cruzado muito, muito
pesado", disse Porat. "Fui libertada aproximadamente às 17h30. A luta
aparentemente terminou às 20h30. Após fogo cruzado insano, dois projéteis de
tanque foram disparados contra a casa. Entre os mortos pelos projéteis do
tanque estavam Adi Dagan e o parceiro de Porat, Tal Katz.
Hadas
Dagan ficou ferido, mas sobreviveu - o único israelense além de Porat a sair
vivo da batalha. Em outra entrevista no mês passado,
Porat revelou que, de acordo com Hadas Dagan, o bombardeio do tanque também
matou Liel Hatsroni, uma menina de 12 anos que os propagandistas israelenses
alegavam ter sido assassinada por palestinos.
(...)
Nof Erez, um coronel da força aérea israelense, chegou a chamar a resposta
israelense a 7 de outubro de «Hannibal em massa».”[42]
As imagens de carros destruídos e de casas incendidadas
ou reduzidas aos escombros percorreram o mundo. O que poucos se perguntaram é
quem produziu tamanha devastação. A resposta que atribuía a responsabilidade
aos palestinos parecia óbvia demais para ser questionada, ainda que ninguém
conseguisse explicar como e porque cerca de 250 deles haviam morrido
carbonizados. Inicialmente ensaiada pelos depoimentos de civis que viram perplexos
os tanques, soldados e helicópteros de combate do seu próprio exército dispararem
contra tudo o que se movia foi confirmada em fevereiro de 2025 pelo então
Ministro da Defesa, Yoav Gallant.
Durante a entrevista, Gallant confirmou que o fogo de
helicópteros, drones, tanques e soldados havia sido liberado. Suas palavras
confirmavam o relatório oficial pelo qual, durante a ação das forças de Tel
Aviv em 7 de outubro, foram disparados cerca de 11.000 projeteis, mais de 500
bombas de uma tonelada e 180 mísseis. Tudo isso sem que fosse possível distinguir
quem era quem.[43]
Então, quantos dos 1.139 israelenses que constam do registro oficial de mortos
faleceram pela ação do seu próprio exército? Infelizmente, esta é uma pergunta
para a qual nunca teremos uma resposta.[44]
A segunda medida para elevar a indignação se baseou em
narrativas amplamente divulgadas por Israel após o ataque. Relatos de bebês
decapitados, crianças queimadas vivas e mulheres estupradas pela resistência
palestina percorreram o mundo como um rastilho de pólvora. Baseadas em
afirmações de altos graduados do exército israelense, as acusações caíram por
terra nas investigações da própria mídia israelense.[45] Sem registros em vídeo,
sem provas forenses e, no caso das mulheres supostamente violentadas, sem que
nenhuma delas se apresentasse aos órgãos competentes apesar dos seguidos apelos
das autoridades, a insustentabilidade das acusões se tornou cada vez mais clara
com os relatos dos sobreviventes e a recusa do governo de criar uma comissão de
investigação independente.[46]
No dia 11 de outubro de 2023, o porta-voz do exército,
major Nir Dinair, disse durante uma entrevista ao Business Insider que suas
declarações se baseavam apenas em relatos de militares israelenses e
acrescentava: "Isso é uma evidência
suficiente, na minha perspectiva". "Eu, como militar, não vou
investigar ou contar o número de bebês cujas gargantas foram cortadas ou
decapitadas".[47] Israel não estava
interessado em apurar a verdade, e sim em fazer com que as histórias chocantes
que ricocheteavam na mídia mundial pintassem os palestinos como animais
selvagens e desumanos, um passo fundamental para justificar a resposta genocida
que começava a ser executada.
O esforço de Tel Aviv para eliminar a resistência na
Faixa de Gaza pode se visualizado pelos números do genocídio. Divulgados em 5
de outubro de 2025, os dados mostram que, em quase dois anos de bombardeios e
incursões terrestres: 2 milhões e 400 mil palestinos foram submetidos à fome; mais
de 200.000 toneladas de explosivo mataram 67.139 pessoas e deixaram outras
9.500 desaparecidas; entre os mortos, encontramos mais de 20.000 crianças, 1.670
profissionais de saúde, 254 jornalistas, 140 integrantes da defesa civil e 540
trabalhadores humanitários; mais de 12.000 abortos espontâneos foram
registrados devido à fome e à falta de assistência médica; os feridos chegaram a
169.583, o que inclui 4.800 amputados, 1.200 casos de cegueira e cerca de
19.000 pessoas que precisam de reabilitação de longo prazo; cerca de 6.700
civis foram detidos, sendo que este número inclui 362 profissionais de saúde,
48 jornalistas e 26 trabalhadores da defesa civil; 38 hospitais e 96 centros de
saúde foram bombardeados ou ficaram inoperantes; 165 instituições educacionais
foram completamente destruídas e 392 parcialmente danificadas; 785.000
estudantes continuam privados do acesso à educação; quase 2 milhões de civis
foram deslocados e 293 abrigos e centros de deslocados foram alvos de
bombardeios e ações do exército; 650.000 crianças correm o risco de morte por
desnutrição e 40.000 bebês menores de um ano têm suas vidas ameaçadas pela
escassez de fórmula infantil; a destruição atingiu também 94% das terras
agrícolas, 725 poços de água, 5.080 km de rede de eletricidade, 700 Km de redes
de água e esgoto e a maior parte do sistema viário da Faixa de Gaza; a
estimativa inicial das perdas materiais é de 70 bilhões de dólares.[48] Interpretar esses números
como expressão do direito de Israel se defender do terrorismo é assumir a cumplicidade
por um genocídio premeditado.
Após dois anos de massacres, Tel Aviv não conseguiu
nenhum dos objetivos que se propunha. O exército fracassou tanto em libertar os
reféns com o uso da força, como em provocar um êxodo em massa da população (objetivo
que possibilitaria a incorporação imediata da Faixa de Gaza ao território
israelense) e em forçar a rendição dos integrantes da resistência. Quanto mais
bombardeava e matava, mais as notícias que percorriam o mundo provocavam o
colapso da imagem de Israel, levando até um número considerável de judeus a
condenar as ações de Tel Aviv e a marcar a fronteira entre o que é ser judeu e
o que significa estar envolvido no projeto do Grande Israel cultivado pelo
sionismo.
Apesar dos ataques sofridos, a resistência popular e
armada souberam se adequar às necessidades do momento. Entre os escombros de
suas casas, nos campos de refugiados, enfrentando 222 dias de interrupção do
fornecimento de alimentos e suprimentos hospitalares, sem poder contar com
nenhum lugar que merecesse o apelido de “seguro”, a população mostrou a firmeza
e a resiliência típicas de quem, apesar dos lutos e dos sofrimentos, não baixa
a cabeça diante de quem lhe nega o direito à terra e à liberdade.
Isso fez com que, de norte a sul, de leste a oeste, a
causa palestina se tornasse um símbolo de resistência, despertasse o apoio de
milhões de pessoas em vários países, visse governos serem acuados pelos
protestos dos seus cidadãos, levasse as Nações Unidas, o Tribunal Penal
Internacional, a Corte Internacional de Justiça e inúmeras ONGs a condenarem o
governo de Tel Aviv por crimes de guerra e contra a humanidade.
As negociações que seguem em meio ao cessar-fogo imposto
a Netanyahu pelos Estados Unidos, instável e já violado pelas forças armadas
israelenses,[49]
mostram os impasses que a paz encontra para atravessar a ponte que separa o
desejo da realidade.
Nas incertezas que cercam o momento em que escrevemos,
uma coisa é certa: Israel não pagará pelos crimes que cometeu e esta impunidade
o torna apto a retomar a guerra.[50] Cortar a ajuda
humanitária pactuada no acordo de cessar-fogo é parte deste plano. Para termos
uma ideia do que isso significa, basta pensar que, de acordo com o Programa
Mundial de Alimentos da ONU, entre o dia 10 e o dia 21 de outubro, a quantidade
média diária de comida distribuída na Faixa de Gaza foi de 750 toneladas, bem
abaixo das 2.000 toneladas previstas.[51] Desta forma, a
desnutrição se alia às infecções causadas pelas condições catastróficas em que
os palestinos enfrentam a estação fria para ampliar o número de vítimas fatais
e impedir que o povo se recupere do esgotamento em que se encontra.
Ninguém sabe quem governará a Faixa de Gaza e nem se
Israel aceitará entregar à futura administração os mesmos territórios com os
quais o enclave costeiro contava antes do 7 de outubro. Ao que tudo indica,
mantido o fim das hostilidades, Tel Aviv tentará encurralar a população
palestina num espaço menor em relação ao que tinha. Conseguir esse feito
mostrará aos israelenses que valeu a pena morrer para expandir o território e
fortalecerá o Exército para as próximas “missões”.
Em relação ao desarmamento da resistência palestina, Hamas,
Jihad e os demais grupos deixaram a entender que isso só ocorrerá na medida em
que seus contingentes forem integrados a forças armadas destinadas a defender a
soberania dos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, ou seja, no
interior de um futuro Estado palestino. Esta posição faz entrar pela janela o
que Israel, EUA, União Europeia, Reino Unido e a quase totalidade dos países
árabes trataram de expulsar pela porta: a incômoda presença de grupos armados
que existem porque a ocupação israelense existe.
Focar a solução do conflito no desarmamento dos grupos
que atuam na Faixa de Gaza não constrói a paz, mas apenas consolida a apartheid
que, ao sufocar os palestinos, amplia as condições de expansão econômica,
política, militar e territorial de Israel. Ou seja, para as potências
envolvidas, não se trata de fazer justiça para que a resistência perca a sua
razão de ser, mas de silenciar as suas expressões mais contundentes para que os
palestinos aceitem abrir mão dos direitos já reconhecidos pela ONU, de tudo o
que os faz ser um povo e de qualquer resposta às investidas de Israel.[52] No lugar de fazer justiça
para que haja paz, a aposta dominante é que a mesma será obtida pelo
desarmamento dos que reagem à opressão. Se isso não acontecer, Washington e Tel Aviv já deixaram
claro que irão mata-los.
Há muito sangue escorrendo da bandeira palestina que
teima em tremular ao vento deste outubro de dores e esperanças. Mantê-la
hasteada é parte do esforço para que os palestinos e o setor da humanidade que
acolhe seus sofrimentos transformem destruição e genocídio no passo de uma
resistência que luta pela terra e pela liberdade.
Emilio Gennari, Brasil, 27 de outubro de 2025.
[2] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/cn8gy7vd3lwo Acesso
realizado em 08/12/2024.
A
recompensa pela captura do líder do HTS foi retirada no dia 20 de dezembro,
quando a perplexidade manifestada em algumas reportagens da mídia mundial
colocou o governo estadunidense diante da contradição que ele próprio havia
criado com a que, na época, se apresentava como uma inexplicada mudança de
postura. Maiores informações podem ser obtidas em: https://www.bbc.co.uk/news/articles/c07gv3j818ko Acesso
realizado em 22/12/2024.
[4] As Colinas de Golã são uma região de 1.800 Km2 que,
segundo a ONU, pertence à Síria. No entanto, em 1967, durante a Guerra dos Seis
Dias, Israel ocupou dois terços desse território. Após a Guerra do Yom Kippur
em 1973, um armistício foi assinado entre Tel Aviv e Damasco. O pacto previa,
justamente, a existência desta zona desmilitarizada de 70 km. Em 1981, Israel
anexou unilateralmente o território das Colinas de Golã. Em 2019, o presidente
dos EUA, Donald Trump, reconheceu a soberania israelense sobre as Colinas de
Golã, sendo os EUA o único país a fazê-lo.
[17] Vale lembrar que, na tentativa de equilibrar as
divisões internas entre sunitas, xiitas, drusos e cristãos, o Pacto Nacional de
1943 distribuiu o poder público entre as diferentes comunidades religiosas da
forma que segue: a Presidência do país fica a cargo dos cristãos maronitas, o
primeiro-ministro seria um muçulmano sunita e o Presidente da Câmara dos
Deputados seria um muçulmano xiita. No clima do país anterior à guerra civil,
não faltavam questionamentos a esta divisão dos cargos e nem disputas de privilégios
entre os principais grupos religiosos do país. Contudo, como dissemos no texto,
serão os atritos em volta do apoio à resistência palestina a desequilibrar as
relações entre os grupos étnico-religiosos.
Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy805je6pzlo Acesso realizado em 08/10/2025.