quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Chile: a esquerda que a direita aplaude.

 

A distância que separa o dizer do fazer é sempre muito grande. As contradições da realidade desafiam a coerência e testam a firmeza dos valores nos quais acreditamos. Na seara da política, o balanço de perdas e ganhos na construção da governabilidade dilui os compromissos de campanha a ponto de torná-los irreconhecíveis e transforma esta distância em abismo.

As explicações pela não realização das promessas veiculadas são sempre as mesmas: não houve arrecadação suficiente, os juros das dívidas sufocaram o orçamento, não estávamos em maioria no Legislativo, a herança dos governos anteriores impediu os avanços desejados, o conservadorismo da sociedade frustrou nossos propósitos, e assim por diante. É como se o então candidato ao cargo não soubesse de antemão em que terreno estava pisando, ignorasse que as alternativas por ele apresentadas deviam corrigir os problemas criados por quem o antecedeu e, sobretudo, que seu partido não seria a única força no gramado traiçoeiro dos jogos de poder. 

Nas linhas que seguem, reuniremos promessas, fatos e medidas que permitem pensar criticamente o mandato de Gabriel Boric à frente do governo do Chile. Se você, como nós, não se contenta com a explicação de que tudo seria bem pior se a extrema direita tivesse vencido o pleito, as nossas reflexões são um convite a perceber como as posições dos setores progressistas podem negar o que se propunham.

 

1. Quem te viu...e quem te vê...

Simples e direta, a expressão do senso comum que usamos como título traduz a mescla de raiva e decepção de quem se sente traído por alguém em quem depositou a sua confiança. No Chile, a comprovação deste sentimento é registrada nas pesquisas do instituto CADEM de agosto deste ano, quando os números mostraram que o atual Presidente da República tem a aprovação de apenas 24% dos entrevistados, o segundo pior índice entre os mandatários que o antecederam.[1] As razões desta avaliação estão em diferentes campos da vida em sociedade. Vamos a alguns deles.

Em primeiro lugar, é necessário resgatar que, em sua trajetória política, Boric e outros integrantes da sua equipe criticaram duramente os governos que, entre 1990 e 2010, cederam aos interesses da elite e  mantiveram o país com um dos maiores índices de desigualdade da América Latina. Na eco dos protestos de outubro de 2019, a candidatura de Boric às eleições presidenciais de 2021 lançava a ideia de um “novo Chile” a ser erguido com mudanças que corrigiriam as injustiças que mais pesavam nos ombros do povo.[2] Nos discursos de campanha, não faltaram ataques aos grupos econômicos e aos tratados comerciais que relegavam o país a um papel subordinado no âmbito do capitalismo mundial, à brutalidade da violência policial e à impunidade dos seus atos em várias regiões do país. As promessas de resolver a crise habitacional se mesclavam às de viabilizar mudanças significativas na seguridade social, na educação e na saúde, num processo que deslancharia uma vez que a nova Constituição tivesse eliminado os impedimentos legais existentes.

Contudo, desde o início do mandato, os chilenos assistiram a um filme bem diferente do que estavam esperando. Dos problemas que cercaram a formatação da nova Constituição aos que levaram à sua rejeição, em setembro de 2022, a realidade escancarou a incapacidade de o governo costurar no meio popular as condições que sustentariam as mudanças alardeadas. As concessões para viabilizar a elaboração de mais uma Carta Magna mostraram recuos significativos em relação aos propósitos iniciais do novo governo.[3] Daí em diante, a escolha de apostar todas as fichas numa negociação pragmática com o Congresso levou a equipe de Boric a trilhar caminhos que rumavam na direção oposta à de um país mais justo e menos desigual. Alguns exemplos ajudam a entender este processo.

 Em vários momentos de 2023, os noticiários chilenos reportaram que, em função das cobranças indevidas das Instituições de Saúde Previdenciária (ISAPRES), em cujas mãos estão os cuidados médicos de 25% dos chilenos, as mesmas deveriam devolver aos usuários o equivalente a um bilhão e 155 milhões de dólares. A grita dos empresários de que isso colocaria em risco o atendimento da população fez com que, graças a um acordo com o Congresso, o governo perdoasse a dívida com os usuários em nome da saúde financeira das seguradoras privadas.

Outro caso que atingiu diretamente a população é o dos preços da energia elétrica. A ser realizado em três parcelas entre julho de 2024 e janeiro de 2025, o reajuste das tarifas residenciais (que soma, em média, 60%) se destina a cobrir a dívida de mais de 6 bilhões de dólares do Estado com as empresas de geração e distribuição após o congelamento dos valores do fornecimento em 2019. Este aumento ocorre num momento em que a renda de muitas famílias está sob pressão em função da situação econômica do país e encolherá o poder de compra dos salários. Para ir ao encontro dos 40% que compõem a população mais vulnerável, o governo oferece um subsídio temporário.

A burocracia para ter acesso à ajuda governamental e o valor da mesma despertam dúvidas em relação à capacidade de esta medida reduzir o impacto da conta de luz no orçamento dos mais necessitados, ao número de famílias que conseguirão cumprir as exigências legais e ao que acontecerá quando o valor da conta for integralmente pago também pelos consumidores beneficiados pelo subsídio. Contudo, para além das questões “técnicas”, a explicação do aumento das tarifas deixou o gosto amargo de um governo que se rende às empresas por não ver na estatização dos serviço uma saída para a situação atual e por não dispor de alternativas que afastem a faca das geradoras e distribuidoras privadas da garganta dos consumidores residenciais.[4]

Da energia elétrica passamos à demanda mundial de lítio, mineral indispensável para a fabricação de baterias, que coloca o Chile numa posição privilegiada. Segundo maior produtor depois da Austrália, o país definiu a exploração deste recurso no final de março deste ano, quando o governo anunciou a entrega de 26 jazidas à iniciativa privada (cerca de 18% das reservas existentes). No mesmo dia, Boric anunciou que manteria o controle estatal em outras duas (com a possibilidade de estabelecer parcerias público-privadas) e realizaria um estudo de viabilidade técnica em mais 38 salinas.

Graças às concessões, a produção de lítio do Chile pode dobrar em uma década.  Porém, a que parece uma boa notícia desperta dúvidas diante de uma pergunta elementar: quem irá se beneficiar desta abundante riqueza nacional? O que aconteceu com a exploração do cobre no início da ditadura, em setembro de 1973, sugere que poucos se fartarão com a que os empresários descrevem como uma chance de ouro para o país. Os termos do acordo de livre comércio que o governo Boric assinou com a União Europeia em dezembro de 2023 agravam as impressões de que os trabalhadores chilenos terão pouco a ganhar.

Além de escancarar as portas à competição das empresas do bloco em todos os setores da economia, o texto prevê o fim da venda do lítio a preços menores dos praticados no mercado mundial para as sediadas no território nacional. Esta medida proporcionava certa vantagem competitiva à produção interna de produtos de maior valor agregado. Pôr fim a ela significa correr o risco de perder a concorrência pela produção da União Europeia, com o consequente fechamento de indústrias locais. Ou seja, além da possibilidade de os europeus participarem da exploração de lítio, das concorrências públicas e de outros empreendimentos, com o respectivo envio de lucros ao exterior, o tratado arma uma arapuca para a indústria nacional cuja competitividade terá que pressionar os custos do trabalho e contar com uma modernização dos equipamentos para ter preços e qualidade à altura das mercadorias oferecidas pelo velho continente.[5]

Se isso não bastasse, as solicitações de novas atividades de extração de ouro, prata e pedra-pomes em território indígena não ameaçam apenas as belas paisagens, as antigas florestas nativas e a biodiversidade de regiões preservadas, mas a própria sobrevivência das comunidades atingidas. Segundo a interpretação jurídica dominante, as normas que regulam a mineração, estão acima da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Chile é signatário, que obriga as mineradoras a realizarem consultas para definirem a extensão dos projetos e as compensações pelos estragos produzidos.[6] Vistos como um estorvo para os interesses do “Deus Capital” e dos que a ele servem, os indígenas têm sua sobrevivência ameaçada num processo que priva suas comunidades dos elementos que estão na base de sua existência.

Diante de tamanha submissão do Governo Boric, não é de estranhar que os Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) no país estejam na contramão do que vem acontecendo no continente. De acordo com a Comissão Econômica Para a América Latina e Caribenha (CEPAL), em 2023, os IED no Chile cresceram 19% em relação ao ano anterior, enquanto na região por ela representada os 184 bilhões e 304 milhões de dólares que entraram mostram uma queda de 9,9% na mesma base de comparação.[7]

Engana-se quem imagina que os reflexos deste indicador na economia chilena se traduzam numa redução da taxa de desemprego. De fato, a maior parte da extração do lítio e das demais atividades de mineração demanda um número reduzido de trabalhadores. As marcas desta realidade são visíveis nas taxas de desemprego. Em março de 2022, quando Boric foi empossado, 7,5% da força de trabalho estava desocupada. Desde então, não houve um único mês em que a taxa de desemprego ficasse abaixo deste índice que chegou a 8,7% em agosto deste ano.[8]

O balanço da primeira metade do mandato mostra a decepção popular em relação aos resultados efetivamente apresentados pelo governo Boric. Por muito que a cobrança de 1% sobre os lucros das grandes mineradoras de cobre leve algum recurso às comunidades atingidas por suas atividades; que o pagamento da pensão alimentícia aos pais tenha se tornado obrigatório; que os cidadãos filiados ao Fundo Nacional de Saúde tenham acesso a cuidados médicos gratuitos e que o salário mínimo tenha sido gradualmente reajustado dos 440.000 Pesos, em maio de 2023, para os atuais 500.000 Pesos (um aumento real considerado pequeno diante da inflação acumulada desde o último reajuste), o fato de o gerenciamento das contribuições para a aposentadoria não registrar nenhuma mudança aduba a insatisfação popular na exata medida em que os valores dos futuros benefícios não sairão dos vergonhosos patamares atuais.[9]

Último, mas não menos importante, está o fato de o aparato policial do Estado ter sido fortalecido sem passar por nenhum tipo de reformulação de sua filosofia de ação. Durante a campanha eleitoral, a reforma dos Carabineiros (um corpo policial com funções semelhantes às da polícia militar brasileira) foi um dos principais destaques do então candidato Gabriel Boric. Diante dos mais de 400 casos de violações dos direitos humanos na repressão que se abateu sobre os manifestantes em outubro de 2019, mudar a atuação da corporação foi apresentada como uma tarefa urgente. Contudo, após dois anos e meio de mandato, a posição do governo em relação aos carabineiros mudou do vinho para a água.

Para compreender esta mudança, é importante lembrar que, desde 2015, o Observatório do Narcotráfico do Ministério Público alertava as autoridades de que o país estava deixando de ser um ponto de passagem do comércio internacional de entorpecentes para se tornar produtor dos mesmos, o que implicava no acirramento das disputas territoriais por organizações criminosas internacionais. Os governos anteriores nada fizeram para conter este avanço que elevou a violência dos crimes a um patamar que os chilenos não conheciam.[10]

Neste cenário, o governo Boric ponderou que qualquer crítica à atuação dos carabineiros enfraqueceria a instituição. A reforma deste corpo policial foi assim colocada no baú do esquecimento e a violência da sua atuação nunca deixou de ter como alvo os movimentos sociais. O “Boric do passado” que sempre denunciou a militarização da ordem pública como caminho perverso para enfrentar os problemas do Chile vestiu a roupa de um Presidente que ampliou este processo nos territórios indígenas e com as organizações que incomodam o seu caminhar.[11] A seguir, falaremos mais sobre isso.

 

2. A injustiça...em nome da lei.

A vitória de Gabriel Boric nas eleições de 2021 soprou ventos de esperanças entre os os mais pobres. As ocupações de áreas nos perímetros urbanos recebiam a promessas de que nenhuma delas seria despejada até o Estado resolver o problema da moradia com a construção de casas populares. Por sua vez, os indígenas Mapuches esperavam uma ação que freasse a progressiva apropriação de suas terras por empresas florestais e fazendeiros.[12]

Contudo, poucos meses após a posse, as coisas mudaram. Nas áreas indígenas, onde a ausência de diálogo e de um mínimo de justiça haviam levado a ações mais contundentes (como a queima de maquinário das empresas florestais), a militarização foi reforçada com a mobilização de milhares de policiais. Aos povos que reivindicavam o reconhecimento de direitos ancestrais, o novo governo respondeu com repressão, impunidade dos carabineiros, processos judiciais que despertaram críticas da própria Comissão de Direitos Humano da ONU e ações nas quais transparece o claro propósito de punir quem luta.[13]

Duas leis se tornaram peças-chave deste processo. A primeira delas, de abril de 2023, é conhecida como “Lei Naín-Retamal”, do sobrenome de dois carabineiros mortos em serviço, que exclui a culpabilidade de condutas adotadas por militares e forças policiais no cumprimento de suas funções. Apesar de prever a possibilidade de as vítimas questionarem juridicamente os atos cometidos contra elas, as dificuldades de instaurar um processo desse tipo e os pressupostos que amparam as condutas das forças de segurança fazem com que muitos vejam nesta norma um caminho para legalizar a impunidade dos carabineiros.[14]

A segunda lei foi sancionada em 24 de novembro do ano passado e é popularmente conhecida como a “Lei da Usurpação”. De acordo com o texto aprovado, a reintegração de posse de um imóvel pode ocorrer a partir do momento em que o proprietário comprova a propriedade do mesmo. Os motivos que levaram à ocupação, os danos causados pelos ocupantes e a resistência ao desalojamento apenas definem a gravidade das penas que sempre incluem a prisão e o pagamento de multas.[15]

Vista pelo olhar da elite, trata-se de uma norma que dispensa qualquer consideração da realidade social subjacente às ocupações. Pobre ou não pobre, sem teto ou indígena, nas áreas rurais ou na cidade, a regra é clara: ocupou o que não te pertence, você vai em cana! Vista pelo olhar dos marginalizados, esta norma criminaliza e persegue aqueles que, vítimas de abusos, da exploração e da precariedade da renda, querem uma casa para morar ou resistem à desapropriação de seus territórios ancestrais. Alguns exemplos ajudam a visualizar os efeitos deste processo. Comecemos pelas áreas urbanas.

Na madrugada do dia 16 de maio deste ano, cerca de 400 policiais despejaram as 200 famílias da Ocupação do Cerro Navia, uma das mais organizadas da região metropolitana de Santiago, capital do Chile. Há anos, os sem teto vinham negociando com o Ministério da Habitação uma solução definitiva para o problema da moradia que os levou a ocupar aquela área onde havia um grande lixão e que, após ter sido limpada pelos sem teto, aumentou em cerca de 100 vezes o seu valor comercial. A entrada repentina dos uniformizados, a destruição dos barracos, o uso de bombas de gás lacrimogêneo e a violência com a qual se tratou de neutralizar a possível resistência dos moradores não pouparam adultos e crianças. A reintegração solicitada pela imobiliária Guzmán Nieto garantiu a “limpeza” de uma terra valorizada com o trabalho alheio a custo zero. A lei foi cumprida. A propriedade ganhou do direito à moradia e centenas de famílias ficaram sem um lugar onde se abrigar.[16]

O clima de intimidação e ameaça não atinge apenas as ocupações existentes. Ao coletar os acontecimentos deste processo, nos deparamos com a denúncia de invasão de uma rádio comunitária, do refeitório popular Luisa Toledo e do Clube de Idosos Anos Felizes na cidade de Villa Francia, conhecida por suas lutas pelos direitos humanos desde os tempos da ditadura e, atualmente, pelo apoio aos movimentos populares. Pouco depois das 5 da manhã do dia 6 de julho deste ano, um forte contingente policial levou o transmissor, os computadores e os documentos contábeis; quebrou pisos, tetos e paredes em busca de armas supostamente escondidas nestes locais; e inutilizou móveis e utensílios. Apesar de os registros da operação não apontarem a apreensão de armamento, nove pessoas foram colocadas em prisão preventiva e outras cinco tiveram que cumprir medidas cautelares.

A Ministra do Interior, Carolina Toha, felicitou os agentes pelo sucesso da operação que, somente 24 horas depois, divulgaram imagens de uma sacola com armas artesanais rudimentares supostamente encontrada numa caixa escondida embaixo da terra nas proximidades das instalações vasculhadas. De acordo com as declarações oficiais, este armamento seria usado em ações violentas no âmbito das comemorações pelos três anos da morte de Luisa Toledo, mãe de dois militantes assassinados pela ditadura e conhecida por suas lutas contra a violência policial. Sendo assim, pela versão oficial, a polícia teria evitado os crimes que estavam a um passo de serem realizados.

A ideia de que tudo não passou de uma montagem para intimidar os movimentos deita raízes em alguns fatos que a Ministra do Interior prefere ignorar. O primeiro dele é que as instalações da rádio estavam fechadas há dias e sem ninguém em seu interior, logo, a busca de armas poderia ter ocorrido bem antes, mas isso reduziria o impacto midiático da batida policial. Quem entrou de gaiato de navio foi um grupo de estudantes, vindos de Santiago, que chegaram em 5 de julho e pernoitaram na rádio para participar das comemorações do dia seguinte. Quando os policiais chegaram, os rapazes estavam dormindo, sem armas, sem drogas e sem nada que permitisse presumir que iriam cometer algum crime. Por isso, a juíza que tratou inicialmente do caso declarou ilegal a sua detenção que só foi transformada em prisão preventiva através de um recurso do Governo junto ao Ministério Público. Último, mas não menos importante, todos os 9 detidos e os 5 atingidos por medidas cautelares pertencem a movimentos estudantis, a grupos de direitos humanos ou estão entre os que apoiam a luta por moradia em volta das atividades organizadas em Villa Francia. Em relação ao armamento supostamente desenterrado, muitos sorriram ao perceberem que, com ele, não seria possível realizar o que as autoridades deixaram entender. Diante dos fatos levantados pela defesa, é difícil acreditar na versão do governo que mantém as acusações apresentadas.[17]

Das cidades, passamos agora aos conflitos em território Mapuche. No Chile, sobram estudos que descrevem as falcatruas e os assassinatos de indígenas com os quais a expropriação de suas terras foi realizada durante mais de um século e meio. De acordo com o historiador e doutor em antropologia, Martín Correa Cabrera, o Estado protagonizou um longo período de guerras, violência, perseguições e mortes do qual os chilenos quase nada conhecem. À medida que o exército avançava sobre o território indígena, lotes de 500 hectares eram leiloados a colonos e fazendeiros que se aproveitavam de sua localização para sufocar a sobrevivência das comunidades remanescentes.

Além da força das armas e dos leilões que começaram em 1868, os arquivos existentes revelam inúmeras falcatruas graças às quais, por exemplo, falsos Mapuches vendiam as terras de uma comunidade a um privado que registrava em cartório as propriedades assim adquiridas e expulsava os verdadeiros indígenas de seus territórios ancestrais. As suspeitas de cumplicidade dos cartórios neste processo são alimentadas pelo fato de as mesmas pessoas atuarem ora como notários, ora como testemunhas do comprador, ora como procuradores dos futuros proprietários. O processo de “pacificação” dos conflitos com os indígenas foi feito devastando casas e roças, estuprando mulheres e crianças, mergulhando os povos originários numa situação caótica de angústias e incertezas. O golpe foi tão devastador que as comunidades remanescentes levaram mais de um século para terem condições de lutar para reaver o que lhes foi tirado.

A partir de 1974, já em plena ditadura, a entrada das empresas florestais em território indígena contou com o apoio e o envolvimento dos militares. Todas elas conseguiram títulos legais de propriedade, mas, na memória dos Mapuches estes papéis não têm legitimidade alguma por serem fruto de enganação, de coação e de uma legalidade alicerçada no poder do dinheiro. Por outro lado, em 2020, cerca de 500 comunidades que cumpriam os requisitos legais para que a ampliação de suas terras fosse reconhecida pelo Estado assistiram à completa paralisação deste processo. O motivo é simples: cada  hectare pleiteado vale, em média, sete vezes mais do que a mesma área de um terreno agrícola qualquer e é disputado pela iniciativa privada.[18]

À medida que, numa perspectiva histórica percebemos que foi o Estado a instaurar o conflito com os Mapuches, e não o contrário, a lei de desapropriação dos territórios ocupados pelos indígenas com o intuito de reintegrá-los às áreas da comunidade ganha as feições de um passo para a eliminação legal de suas comunidades. Isso dá origem a situações que seriam cômicas se não fossem trágicas e à constante violação de direitos elementares. Alguns exemplos ajudam a entender os absurdos que estão sendo cometidos.

Em março deste ano, o líder comunitário Atílio Huenteman, de 90 anos anos de idade, e cuja família mora no setor El Infiernillo de Trapa-Trapa bem antes do seu nascimento, se entregou à polícia ao saber que havia um mandato de prisão contra ele. A empresa de investimentos TAMA S.A., instalada na mesma região há pouco mais de 22 anos, processou Atílio por usurpação das terras das quais se diz proprietária em função dos documentos apresentados ao Tribunal de Justiça de Santa Bárbara que expediu o mandato de prisão.

O líder indígena e a comunidade a que pertence têm registros históricos, fotográficos e jornalísticos tanto da sua presença na região como da luta para defender as terras ancestrais das ações da mesma empresa. Contudo, o fato de não ter a escritura da área objeto de disputa faz dele o encabeçador de uma invasão que precisa ser removida para que a TAMA tenha acesso às terras cujo título de propriedade está em suas mãos. Atílio se entregou para evitar uma invasão dos carabineiros que, a exemplo do que ocorreu em outras comunidades, costumam destruir casas e roças, matar animais domésticos, confiscar ferramentas de trabalho e utensílios para dificultar a continuidade da vida dos seus membros.[19]

Mas isso não é tudo. No governo Boric, ser indígena em resistência é sinônimo de ver pisoteados direitos processuais elementares. Prisões preventivas com base em provas inacessíveis aos advogados de defesa, nenhuma consideração para o status de quem vê sua luta sendo colocada no banco dos réus, ações que buscam aumentar o sofrimento físico e psíquico dos presos, acusações de associação a organizações criminosas baseadas em testemunhas sem nomes e sem rosto, manutenção da prisão após o cancelamento de uma condenação pelo tribunal e sentenças com base em leis que não eram invocadas desde o fim da ditadura militar integram o cardápio que submete a resistência indígena a uma nova prova de fogo. Três casos ilustram o que acabamos de escrever.

O primeiro deles é o da líder Cláudia Nahuelan Llempi, 30 anos de idade, da comunidade de Pacuno, mãe de três filhos, sendo que o menor tem apenas 5 anos, detida em janeiro de 2024 por associação a organização criminosa. Na audiência que antecedeu a prisão, a advogada de defesa foi impedida de conhecer as provas apresentadas pela promotoria e Cláudia, no lugar de ser internada na prisão de Arauco, próximo da sua casa, foi enviada ao distante presídio de Concepción, o que dificulta as visitas da família, dos integrantes da comunidade e de quantos desejem manifestar a própria solidariedade. O processo foi movido pela empresa florestal Arauco que, há anos, tenta se apropriar de terrenos de cultivos defendidos pelos indígenas sob a liderança de Claudia e já apresentou denúncias contra vários integrantes da comunidade.

Em nenhum momento, o fato de ser “mãe cuidadora” foi levado em consideração nem em relação à prisão, nem ao local onde esta seria efetivada. Se isso não bastasse, parte dos funcionários do presídio ampliam o sofrimento psíquico com insinuações que procuram dobrar a líder indígena. Não foram poucos os agentes penitenciários que, diante da esperada ausência de visitas, diziam que ela já havia sido esquecida, que sua advogada deve ter negociado por baixo dos panos a fim de não correr riscos e que era melhor ela se acostumar com a ideia de que não tinha mais filhos. Nos dias em que familiares ou integrantes da comunidade reuniam as condições para ir ao presídio, sofriam um tratamento discriminatório em relação ao reservado a outros presos: chegavam às 11.00 da manhã, esperavam até às 14.30 para conseguir despachar o que haviam trazido e eram submetidos a vistorias demoradas e humilhantes. Finalizados os procedimentos, o tempo de visita não passava de meia-hora.

Ao falar do caso de Cláudia, a advogada de defesa, Daniela Sierra, afirmou com todas as letras que a sua prisão “Viola as normas nacionais e internacionais que regulam como devem ser os processos penais contra aqueles que estão sendo investigados, e que usa o direito penal para subjugar e aplicar tormento psicológico”. E acrescenta: “É uma resposta do Estado, na qual utiliza sua ferramenta mais brutal, o direito penal e a privação da liberdade, para fugir de sua responsabilidade para com o povo Mapuche”.[20]

Diante dos absurdos que levaram à condenação de Ernesto Llaitul, Esteban Henríquez, Nicolás Alcamán e Ricardo Reinao a 15 anos e meio de reclusão por suposta participação em um incêndio criminoso, a greve de fome dos 4 líderes indígenas e as pressões ininterruptas das comunidades fizeram com que, em 9 de fevereiro deste ano, o Tribunal de Apelações de Concepción anulasse por unanimidade a sentença que motivou sua detenção e ordenou um novo julgamento. Diante do veredicto e da inconsistência das provas, as empresas florestais retiraram o processo, mas, surpreendentemente, a promotoria manteve as acusações, fazendo o mesmo voltar à primeira instância. Desta forma, os 4 presos Mapuches viram rejeitadas suas demandas de aguardar o novo julgamento em liberdade.

No dia 23 de julho, após passarem quase dois anos na cadeia, o Tribunal Penal Oral de Los Angeles absolveu os quatro indígenas. Trata-se de uma pequena vitória que só foi possível graças a três elementos igualmente importantes: a tenacidade dos advogados de defesa que não tiveram medo de enfrentar o Ministério Público, a greve de fome dos detidos, a resistência indígena que ergueu a bandeira da sua libertação em todos os fóruns e com todos os meios.[21]

O caso mais complexo e que melhor explicita a postura do Estado é o de Héctor Llaitul Carrillanca, porta-voz da Coordenação Arauco Malleco (CAM). Diante dos ouvidos moucos das autoridades e das seguidas perdas de território pelos efeitos nefastos dos bosques de pinus e eucalipto nos cultivos das comunidades, os Órgãos de Resistência Territorial que a integram fizeram da queima de equipamentos das empresas um dos caminhos de suas lutas. De acordo com as declarações do próprio Héctor, à medida que o povo Mapuche foi definido como “inimigo interno” a ser combatido com a militarização dos seus territórios, que as investidas do capital se tornaram cada vez mais violentas e que as instituições nada fizeram para bloquear este avanço, a opção de unir luta pacífica a ações contundentes se impôs diante da força dos acontecimentos e da sequência de assassinatos impunes de lideranças indígenas ocorridos depois da volta da democracia.[22]

Preso inicialmente pelas declarações dadas durante uma entrevista na qual, ao apresentar as ideias da CAM como porta-voz da mesma, reivindicou o direito de os  Mapuches se oporem com todos os meios ao genocídio e ao roubo de suas terras, Héctor passou a ser acusado também de roubar madeira. Sem que se apresentassem provas conclusivas ou antecedentes que pudessem incriminá-lo, o trabalho da mídia e do Ministério Público se destinava a tecer a imagem de um terrorista disposto a tudo. Com base em laudos periciais vagos e nos testemunhos de 5 pessoas cuja identidade não foi revelada, no dia 7 de maio de 2024, Héctor foi condenado a 23 anos de reclusão. A sentença detalha que a pena é dividida em 15 anos de prisão por crimes previstos na Lei de Segurança Interna do Estado (criada em 1975, durante a ditadura), cinco por furto simples e três por ataque à autoridade.

Ao tomar conhecimento do veredicto, a  advogada de defesa, Josefa AInardi, apontou o seu caráter altamente político, à medida que, após a volta da democracia ninguém havia sido condenado pela Lei de Segurança, uma vez que o seu conteúdo contraria várias leis que definem como deve ser o processo legal e as normas internacionais relacionadas com os direitos humanos. Por outro lado, como porta-voz, Héctor não podia se omitir nem mentir em relação às posições da CAM, pois, ao fazer isso, estaria traindo a causa dos Mapuches.

Em relação ao roubo de madeira, não só esta prática não integra as ações da CAM como a jurisprudência mostra, por si só, a diferença de tratamento dos sentenciados por este crime. O empresário Walter Araneda Parra, por exemplo, confessou ter desembolsado 130 milhões de Pesos a grupos paramilitares para roubar madeira e pagar a “proteção” para o seu embarque. Nesse “investimento” Walter lucrou 614 milhões de Pesos entre 2019 e 2021. Por ter confessado o crime, foi condenado a 5 anos em liberdade vigiada.[23]

Olhando para o quebra-cabeça da realidade chilena temos a impressão de que Boric está fazendo o impossível para enviar aos investidores um sinal claro de que se mantém firme no esforço de submeter quem pode obstaculizar os seus interesses rumo a um projeto de país do qual pobres e indígenas continuam sendo excluídos. Apesar da força desse compromisso no qual a lei perpetua a injustiça, ventos de resistência começam a soprar em várias regiões do país. Entre os indígenas, a decisão de seguir recuperando as terras que lhes foram roubadas se traduz numa palavra de ordem que ressoa nas comunidades: “Livres ou mortos, jamais escravos!”.[24] Para bom entendedor, meia palavra basta...

 

Emilio Gennari, Brasil, 5 de outubro de 2024.

 



[3] Falamos sobre isso em três análises de conjuntura: “Chile: por que a nova Constituição foi rejeitada?” (de 03/10/2022), “Lições do Chile” (de 13/06/2023) e “Chile: uma vitória com gosto de derrota” (de 22/12/2023), disponíveis no drive: https://drive.google.com/drive/folders/1YoRRdUt1RVr31bNvhMPvIFt8pBwWYoJA?usp=sharing

[8] Ainda não é possível calcular qual será o impacto efetivo da redução gradual da jornada semanal de trabalho das 45 para 40 horas semanais aprovada no primeiro semestre do ano passado. De fato, há poucos meses, o Chile passou das 45 para as 44 horas semanais; até o final de 2026, as empresas deverão ter uma jornada de semanal de, no máximo, 42 horas, sendo que as 40 horas serão alcançadas somente até o final de 2028. O efeito real na qualidade dos empregos, porém, mostra uma clara tendência ao aumento da precarização, à medida que esta mesma lei oferece aos empresários a possibilidade de aprofundar a flexibilização do trabalho para reduzir os custos trabalhistas. Estas e outras informações estão disponíveis em:

- https://www.prensalatina.com.br/2024/08/29/chile-registrou-um-modesto-declinio-na-taxa-de-desemprego/

- https://br.investing.com/economic-calendar/chilean-unemployment-rate-488

- https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1y59v4g5ko

- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/03/02/chile-ante-la-ofensiva-patronal-oponer-y-fortalecer-el-sindicalismo-clasista-y-combativo/

Acessos realizados em 09/09/2024.

[13] Infelizmente, a abrangência e o detalhamento deste processo não encontrará nestas reflexões o espaço do qual precisa para um acompanhamento cronológico e fatual detalhado em função da grande quantidade de material que a ele se refere. Isso nos colocou diante da necessidade de escolher apenas alguns exemplos entre os inúmeros casos aos quais tivemos acessos. Nada impede que, se desejar aprofundar o tema, você percorra as páginas dos arquivos eletrônicos divulgados em:

- https://www.resumenlatinoamericano.org/category/latinoamerica/chile/

- https://www.resumenlatinoamericano.org/category/latinoamerica/nacion-mapuche/

[22] De acordo com um levantamento divulgado em 21 de julho deste ano, de 1999 ao primeiro semestre de 2024, foram assassinadas 24 lideranças indígenas. Em todos os casos, executores e mandantes continuam impunes.

Em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/07/21/nacion-mapuche-chile-mapuche-asesinados-en-democracia/

Acesso realizado em 31/07/2024.

[23] Estas e outras informações sobre o caso estão disponíveis em:

- https://www.redalyc.org/journal/5350/535062214007/535062214007.pdf

- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/07/19/nacion-mapuche-ruta-imperial-carahue-sabotaje-a-camion-forestal-ort-organos-de-resistencia-territorial-lafkenche-leftraru/

- https://www.resumenlatinoamericano.org/2023/11/26/nacion-mapuche-tribunal-de-temuco-fija-fecha-arbitraria-e-ilegal-para-juicio-contra-hector-llaitul-el-gobierno-de-boric-pide-25-anos-de-carcel-para-el-werken-de-la-cam/

- https://www.resumenlatinoamericano.org/2023/11/28/nacion-mapuche-hector-llaitul-lo-que-se-pretende-es-enjuiciar-y-condenar-una-propuesta-politica-para-la-liberacion-de-la-nacion-mapuche/

- https://www.resumenlatinoamericano.org/2023/12/31/nacion-mapuche-hay-una-embestida-del-estado-chileno-contra-el-pueblo-mapuche-video/

- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/01/13/nacion-mapuche-a-62-dias-de-una-huelga-de-hambre/

- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/03/04/nacion-mapuche-la-via-institucional-v-s-resistencia-y-control-territorial/

- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/03/12/nacion-mapuche-con-inclusion-de-testigos-protegidos-comienza-nuevo-juicio-oral-contra-hector-llaitul-quien-en-la-audiencia-expreso-ser-prisionero-politico/

- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/03/14/nacion-mapuche-juicio-contra-el-werken-de-la-cam-hector-llaitul-video-de-sus-abogadas-y-texto-completo-de-su-declaracion-yo-soy-mapuche-y-no-bajare-los-brazos/

- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/03/17/nacion-mapuche-justicia-chilena-para-el-werken-hector-llaitul-por-sus-declaraciones-25-anos-de-carcel-para-walter-araneda-que-roba-madera-con-bandas-paramilitares-5-anos-con-libertad-vigilada/

- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/03/27/nacion-mapuche-exclusiva-con-hector-llaitul-este-juicio-en-mi-contra-fue-orquestado-por-luis-hermosilla/

- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/05/07/nacion-mapuche-hector-laitul-ha-sido-sentenciado-a-23-anos-de-prision-por-la-ley-de-seguridad-interior-del-estado-esta-es-una-condena-politica-contra-el-movimiento-autonomista-mapuche/

- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/05/08/nacion-mapuche-declaraciones-de-josefa-ainardi-abogada-de-hector-llaitul-quien-denuncia-la-aplicacion-de-ley-de-seguridad-de-la-dictadura-militar/

Acessos realizados em 09/09/2024.