No
calendário dos povos, 2020 ficou para trás. Seria ótimo se, ao
findar um ano tão sofrido, fosse possível começar um novo tempo
sem o fardo por ele deixado. Infelizmente, as angústias do passado
ressoam entre as esperanças de 2021, marcam o ritmo dos seus passos,
fazem tremer as projeções dos economistas e deixam perplexos
aqueles que querem mudar os rumos do presente.
O
mundo que levou sete meses para chegar ao primeiro milhão de vítimas
da Covid-19 dobrou esse número 90 dias depois e, diante das novas
cepas do coronavírus, mais contagiosas e mais letais do que as
anteriores, assiste a uma nova enxurrada de dor e sofrimento sem
saber ao certo quando sairá deste pesadelo.
Enquanto
as vacinas permanecem na esfera dos sonhos de consumo, as
paralisações das atividades econômicas em vários países ameaçam
a recuperação dos estragos produzidos pela crise e projetam a
necessidade de tempos ainda mais longos para que o emprego e a renda
voltem aos patamares de 2019.
Em
2020, o esforço dos estados para manter vivo o capital alcançou
níveis inéditos e promete novas medidas ao longo deste ano. Com
base nos dados da União Europeia e de outros 97 países, o Bank of
America afirma que, em meados de dezembro, a injeção de dinheiro
público já havia alcançado os 25 trilhões de dólares, quase 30%
do PIB global de 2019, estimado em 83 trilhões e 840 bilhões de
dólares.
Quando
é para salvar o capital com estímulos ao consumo, isenções
fiscais, perdão das dívidas, empréstimos a juros irrisórios, o
dinheiro nunca é um problema, ainda que parte considerável dos
investidores use os recursos públicos para buscar na valorização
artificial das ações os lucros que a produção real não pode
oferecer.
Entre
os exemplos mais emblemáticos deste processo, encontramos o caso da
Tesla, uma empresa de carros elétricos cujas ações conheceram uma
valorização de 734,4%, em 2020. Um resultado fantástico que não
pode ser explicado pelo lucro de 721 milhões de dólares, o primeiro
da história, após um prejuízo de 862 milhões de dólares em 2019.
Graças a esta façanha, o patrimônio pessoal de Elon Musk, o maior
acionista da empresa, passou de 27 bilhões e 700 milhões de
dólares, em 2019, para 160 bilhões e 700 milhões de dólares em
2020, um aumento de 482%.
Enquanto
poucos felizardos sorriam ao ver suas fortunas crescerem como
cogumelos na chuva, milhões de trabalhadores tinham suas vidas
inundadas por uma enxurrada de sofrimentos.
Ao
passar o bastão do tempo, 2020 emitiu inúmeros gemidos de angústia
e de dor cujos ecos permeiam os primeiros vagidos de 2021. A análise
que aqui iniciamos busca resgatar os sons que permitem delinear os
desafios dos próximos meses.
Quando
as boas notícias escondem as ruins.
No
dia 26 de janeiro, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou um
novo relatório com as estimativas do PIB para 2021. A cooperação
internacional para controlar a pandemia, a manutenção das politicas
destinadas a frear os efeitos da crise econômica e a eficácia das
vacinas são as colunas sobre as quais os técnicos do Fundo assentam
as apostas de uma aceleração das atividades econômicas no segundo
semestre deste ano.
Vejamos
o que dizem os números:
Quadro
1: Estimativas de crescimento do PIB veiculadas em out de 2020 e em
jan de 2021.
Países
|
2021
(out)
|
2021
(jan)
|
Diferença
em pontos percentuais
|
Mundo
|
5,2%
|
5,5%
|
0,3
|
Estados
Unidos
|
3,1%
|
5,1%
|
2,0
|
Zona
Euro (19 países)
|
5,2%
|
4,2%
|
-
1,0
|
China
|
8,2%
|
8,1%
|
-
0,1
|
Japão
|
2,3%
|
3,1%
|
0,8
|
América
Latina e Caribe
|
3,6%
|
4,1%
|
0,5
|
Fonte:
elaboração própria a partir dos dados do FMI.
De acordo com o FMI, em 2021, a economia
mundial deve crescer 5,5% em relação ao patamar de 2020, na que se
configura como uma melhora de 0,3 ponto percentual em relação às
estimativas divulgadas em outubro passado. O PIB da China que, em
2020, registrou uma alta de 2,3%, teve a projeção de crescimento de
2021 reduzida em 0,1 ponto percentual.
Por sua vez, a economia estadunidense, após sofrer uma queda de 3,5%
no ano passado, deve crescer 5,1%, superando levemente a produção
de riquezas registrada em 2019.
Apesar da melhora na projeção de
desempenho, Japão e América Latina continuam precisando de parte
considerável do próximo ano para recomporem as perdas da crise.
Realidade semelhante é apontada na Zona Euro onde a gravidade da
pandemia fez as expectativas de crescimento caírem 1 ponto
percentual.
No dia 26 de janeiro, a Conferência das
Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) divulgou
os dados relativos aos investimentos estrangeiros que se destinam às
atividades produtivas. O impacto da crise econômica que assolou a
economia mundial em 2020 é visível na redução de 42,31% destes
recursos que passaram de um trilhão e 489 bilhões de dólares, em
2019, para 859 bilhões de dólares em 2020.
Os EUA assistiram a uma queda de 49% ao
registrar a entrada líquida de apenas 134 bilhões de dólares,
enquanto a Europa se deparou com um desinvestimento de 4 bilhões de
dólares. Ou seja, no balanço de entradas e saídas, no lugar de
registrar um saldo positivo, o velho continente perdeu uma pequena
parte do capital produtivo instalado no seu território.
A América Latina viu esse tipo de
investimento cair 37% ao passar de 160 bilhões de dólares para 101
bilhões de dólares. No México, o recuo foi de apenas 8%, enquanto
no Brasil atingiu os 50% devido, sobretudo, à frustração do
programa de privatizações.
Na contramão da tendência mundial, a
China viu estes recursos aumentarem 4% em relação a 2019 para um
total de 163 bilhões de dólares. Pela primeira vez na história, o
gigante asiático superou os EUA como destino dos investimentos
estrangeiros diretos com um resultado que, apesar de pequeno,
confirma as preocupações mundiais que apontávamos em nossa análise
de dezembro de 2020.
Diante delas, o discurso do presidente da
China na abertura do Fórum Econômico Mundial em Davos, mostrou que
o seu país acredita no multilateralismo e na cooperação
internacional e que está preparado para responder às políticas que
marcham em sentido contrário.
De um lado, Xi Jinping defendeu que, diante
das incertezas que marcam a recuperação econômica global, é
necessário aumentar a integração entre os países, promover o
crescimento sustentável e inclusivo, abandonar os preconceitos
ideológicos, reduzir a divisão entre nações desenvolvidas e em
desenvolvimento e somar forças diante dos desafios globais criados
pela pandemia. De outro, deixou claro que “Construir
pequenos círculos ou começar uma nova Guerra Fria para rejeitar,
ameaçar ou intimidar outros países (...) irá só empurrar o mundo
para a divisão e até para os confrontos”.
Diplomaticamente, Pequim mandou um recado a Joe Biden: a China não
quer guerra, mas não se dobrará às manobras dos EUA que buscam
reafirmar a supremacia estadunidense.
As marcas de Trump no governo Biden
A relação dos EUA com a China continua ao
centro das expectativas que cercam a definição da política externa
de Biden. As tensões aumentaram em janeiro quando, no apagar das
luzes do seu mandato, Donald Trump
levantou as restrições da Casa Branca aos contatos diretos com os
diplomatas taiwaneses. Trata-se de um passo que amplia o apoio de
Washington à independência de Taiwan e entra em confronto aberto
com a China que vê a ilha como parte inviolável do seu território.
A confirmação de que se trata de uma
política de Estado, e não de um gesto inoportuno do ex-presidente,
veio no dia 28 de janeiro quando, após a China aumentar suas
atividades militares em volta da ilha, Biden reafirmou os
compromissos dos EUA com Taiwan.
Pequim recebeu a fala do presidente
recém-eleito como uma ameaça, à medida que o “compromisso”
estadunidense implica em levar adiante a política de armar Taiwan,
iniciada em julho de 2019 (quando o Congresso dos EUA aprovou uma
venda de armas de caráter defensivo no valor de 2 bilhões e 200
milhões de dólares ao governo de Taipé), e em aprofundar o apoio
político e econômico aos movimentos independentistas da ilha.
A resposta do Ministério da Defesa chinês
não deixa margem a dúvidas: “Seriamente,
dizemos a essas forças independentistas taiwanesas: aqueles que
brincam com o fogo se queimarão e a independência de Taiwan
significa guerra”.
Horas depois, os EUA acusaram o golpe e
buscaram colocar panos quentes dizendo que as tensões atuais não
devem levar “a nada que se
pareça com um enfrentamento”.
Mas, apesar do tom
tranquilizador de Washington, é inegável que as posições
defendidas por China e EUA elevaram em alguns graus a temperatura do
caldeirão onde fervem as tensões entre os dois países.
Se isso não bastasse, Trump também acusou
Pequim de genocídio pela forma como trata os uigures, uma minoria
étnica da província de Xinjiang que vem denunciando condições de
trabalho análogas à escravidão nas lavouras de algodão e a
esterilização em massa de suas mulheres.
Ao fazer isso, o ex-presidente não só
comprometeu Biden que, durante a campanha eleitoral, chamou Xi
Jinping de “mafioso” e usou o termo “genocídio” para se
referir à relação de Pequim com esta minoria étnica, como busca
mostrar o acerto de suas posições em relação à China e a
necessidade de Biden seguir os passos por ele traçados.
Inicialmente, um dos caminhos com os quais
o novo presidente dos EUA planejava pressionar o gigante asiático
estava em somar forças com aliados tradicionais para articular uma
política de contenção às aspirações chinesas. A primeira
tentativa desta construção seria com a União Europeia, mas esta
possibilidade se esgotou antes mesmo de ser viabilizada.
No dia 30 de dezembro de 2020, UE e China
fecharam o acordo de investimentos que vinha sendo negociado há 7
anos. As mais de mil páginas que definem as relações entre as
partes assentam-se em três pilares fundamentais para a UE:
transparência no sistema de subsídios com o qual o Estado beneficia
as empresas chinesas dentro e fora do país; maior igualdade de
condições de acesso aos mercados chineses por parte das empresas
europeias; e regras que freiam a transferência de tecnologia para a
China. Pode parecer pouco, mas, no momento, é quanto basta para
Pequim dialogar com os interesses dos principais países do bloco a
fim de impedir a aproximação dos EUA com a UE.
O clima de cooperação desejado pelo FMI
como ambiente capaz de transformar estimativas de crescimento em
realidade é ameaçado também por outras duas medidas assinadas por
Trump antes de deixar a Casa Branca.
Na primeira delas, o ex-presidente coloca
Cuba na lista de países que patrocinam o terrorismo internacional em
função da recusa de Havana de extraditar os guerrilheiros do
Exército de Libertação Nacional da Colômbia acusados de
realizarem um atentado a bomba em Bogotá, em janeiro de 2019.
Esta medida situa Trump na posição que os estadunidenses consideram
correta e cobre com o manto da desconfiança o desejo de Biden de
melhorar as relações com Cuba.
Ainda mais grave pelas consequências que
projeta, o ex-presidente dos EUA acusa o Irã de sediar o novo
quartel general da Al Qaeda e de apoiar os huties do Iêmen uma
organização rebelde que há anos enfrenta uma coalizão liderada
pela Arábia Saudita e que Trump colocou na lista das organizações
que Washington considera terroristas.
Ao golpear o Irã com estas afirmações, o
ex-presidente incendeia o ambiente no qual Biden pretende retomar as
negociações para a assinatura de um novo acordo nuclear com Teerã.
Um ambiente cuja temperatura subiu após o Irã afirmar que se recusa
a aceitar pré-condições referentes à produção de urânio
enriquecido nas instalações do país e pede que, além de remover
as sanções, Washington pague uma indenização correspondente aos
danos econômicos por elas causados.
Neste contexto, o obstáculo mais sério à
retomada do diálogo está justamente no processo de enriquecimento
do urânio. Em julho de 2019, Teerã optou por ultrapassar a barreira
dos 3,67% destinada a fabricar o combustível para as usinas
nucleares que produzem a energia elétrica do país e elevou os
estoques deste material a um patamar doze vezes superior ao volume
máximo previsto no acordo de 2015.
Em dezembro de 2020, o Parlamento iraniano
contrariou mais uma vez o acordo de 2015 ao aprovar uma lei que
impede as inspeções da ONU nas instalações nucleares do país e
elevar a 20% a taxa de enriquecimento do urânio.
Esta medida, além de reafirmar a independência do país em questões
de política nuclear, guarda uma relação direta com as eleições
presidenciais, marcadas para junho deste ano.
De um lado, a piora da realidade econômica
trazida pelas sanções dos EUA desgastou o apoio popular ao atual
presidente Hassan Rouhani, um moderado que gostaria de melhorar as
relações com o Ocidente. De outro, fortaleceu os setores que pregam
o enfrentamento aberto com os Estados Unidos e que, partindo do fato
de que não foi o Irã a romper o acordo, criaram as condições para
a aprovação da lei.
Recusar o cumprimento desta norma ou
atrasar o processo de enriquecimento a 20% daria aos grupos radicais
motivos suficientes para acusar a cúpula dirigente de submeter o
país aos desmandos estadunidenses. Com uma opinião pública
sensível a esse tipo de discursos, a possibilidade de uma derrota
eleitoral de Rouhani colocaria em maus lençóis o próprio aiatolá
Ali Khamenei que, no papel de autoridade máxima do país, vê com
bons olhos a ideia de recolocar o Irã na rota de aproximação ao
Ocidente.
Neste campo minado, os primeiros passos de
Biden, de um lado, se afastam das reivindicações iranianas ao negar
o fim das sanções antes da assinatura de um novo acordo, e, de
outro, estendem a mão a Teerã ao retirar o apoio militar à
coalizão liderada pela Arábia Saudita na guerra contra os huties,
no Iêmen.
Quanto à inclusão dos rebeldes iemenitas
na lista de organizações que Washington considera terroristas, o
novo governo dos EUA parece querer adiar a sua decisão para o
momento em que as críticas da ONU relativas às dificuldades que
esta inclusão impõe à entrega da ajuda humanitária à população
iemenita criarem um clima que justifica a volta à situação
anterior às últimas medidas de Trump.
As agruras do Brexit e as angústias
que a direita planta na Europa.
Contrariando os temores gerados pelo forte
atraso nas negociações do Brexit, o acordo para que o Reino Unido
deixasse amigavelmente a União Europeia saiu nos estertores de 2020.
Mas as comemorações que ambos os lados fizeram para festejar o
feito foram rapidamente caladas pelos primeiros dissabores da
separação.
O ponto crucial da negociação entre as
partes estava no interesse de Bruxelas de fixar as regras de uma
concorrência justa e leal na produção das mercadorias destinadas à
exportação. A UE temia que o Reino Unido recorresse a subsídios ou
a uma flexibilização da legislação trabalhista e ambiental a fim
de aumentar a vantagem competitiva das suas empresas rumo a uma
elevação das vendas externas que diminuísse os impactos negativos
da saída do bloco.
Ao serem aplicadas, estas medidas
colocariam os países da União Europeia diante da necessidade de
impor tarifas alfandegárias às exportações britânicas, o que,
por sua vez, seria respondido por Londres com medidas semelhantes.
Nesta espiral de retaliações, o fluxo de comércio sofreria uma
redução considerável, prejudicando as empresas instaladas nos dois
territórios. Ao fixar mecanismos de vigilância e sanções em caso
de descumprimento, o acordo trouxe alívio aos capitalistas de ambos
os lados.
Contudo, isso não significa que não haja
perdas e prejuízos tanto no Reino Unido como na União Europeia. A
França, por exemplo, é o país mais afetado pelo corte de 25% a 35%
das cotas pesqueiras em águas britânicas reservadas às frotas dos
países da UE. Do lado britânico, as empresas escocesas que atuam na
pesca de mariscos esbarram nos rígidos controles sanitários dos
produtos que se destinam à União Europeia. Os fortes atrasos nos
embarques já fizeram apodrecer uma quantidade considerável do
pescado por falta de condições de armazenamento. Além de encarecer
os custos para o consumidor final, esta situação ameaça reduzir as
frotas pesqueiras e, obviamente, os empregos do setor.
Lojas e restaurantes da Grã Bretanha e da
União Europeia já estão sentindo no aumento dos preços dos
importados os efeitos negativos do rigor com o qual são efetuadas as
fiscalizações alfandegárias. Aumentos dos preços atingem também
os produtos que, por conterem partes fabricadas fora da UE e do Reino
Unido, sofrem a imposição de tarifas alfandegárias. De fato, as
regras do país de origem fazem com que muitas empresas que dependem
de insumos importados fora desses territórios paguem mais impostos
ao exportar seus manufaturados do Reino Unido para a União Europeia
e vice-versa. O encarecimento destes produtos, e a consequente queda
nas vendas, estão levando muitos fabricantes a suspenderem boa parte
das importações que garantem seus suprimentos e a cancelarem as
encomendas recebidas. Esta situação deve perdurar até que se
encontrem fornecedores locais que se encaixem nas normas definidas
pelo acordo.
A soma entre a redução do volume de
comércio, a elevação dos tempos e o aumento dos custos das viagens
levaram as transportadoras a cancelarem os contratos assinados antes
do Brexit e a renegociar tanto os valores dos fretes, como os prazos
de entrega.
As novas regras alfandegárias têm criados
surpresas desagradáveis também para os caminhoneiros encarregados
de levar as exportações britânicas aos mercados europeus. Além
das filas intermináveis nos postos de fiscalização e da demora na
realização dos procedimentos alfandegários, a queixa mais comum
diz respeito ao sequestro dos lanches e demais produtos alimentícios
que trazem de casa. Segundo as normas da União Europeia, os
viajantes procedentes de países fora do bloco não podem introduzir
qualquer produto que contenha carne, leite e seus derivados, sob pena
de retenção pelos fiscais que atuam nas fronteiras.
Mas se perder a refeição é irritante e
pagar mais pelos mesmos produtos dói no bolso, vários problemas
mais sérios ainda não tiveram tempo de se manifestar. Sem a livre
circulação de pessoas entre Reino Unido e União Europeia, os
profissionais de várias áreas (como medicina, enfermagem,
arquitetura e engenharia) que, antes do Brexit, tinham seus diplomas
homologados automaticamente, agora terão que passar por testes e
processos burocráticos suplementares para reconhecer os títulos de
estudo conseguidos fora do país. Nas universidades, os programas de
intercâmbio sofrerão restrições e a possibilidade de trabalhar no
exterior dependerá da concessão de vistos específicos.
Mas o primeiro atrito mais sério do
período pós-Brexit é motivado pelo atraso no fornecimento das
vacinas produzidas pela Oxford-Astra Zeneca. A UE investiu bilhões
de euros na produção desta vacina e esperava receber 80 milhões de
doses até o final de março. De acordo com as informações
disponíveis, o bloco conseguirá apenas 31 milhões de doses, menos
da metade do previsto, enquanto o abastecimento do imunizante no
Reino Unido não enfrenta restrições.
A Astra Zeneca alega que a Grã Bretanha
reservou as doses e aprovou o imunizante antes da Comissão Europeia
encarregada deste processo, razão pela qual ela está recebendo a
vacina segundo o cronograma esperado sendo que, devido à forte
demanda, a UE terá que esperar um pouco mais. Diante deste quadro, a
Espanha teve que suspender a imunização em Madri e a França está
preste a fazer o mesmo em Paris. A tensão com o fabricante do Reino
Unido acirra os ânimos, alimenta o nacionalismo nos dois lados e
levou a Comissão Europeia a ameaçar o bloqueio das exportações da
vacina da Pfizer, produzida na Bélgica.
Mas os problemas da Europa não se limitam
ao desgaste causado pelos primeiros passos do Brexit. Após os
embates infrutíferos contras as políticas de combate da pandemia, o
partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AFD, na sigla em
alemão) trata de reorganizar suas fileiras em volta de temas que
mostram a piora das condições de vida em amplos setores da
população. Entre eles, as filas de idosos nas paróquias onde se
distribui comida e os aposentados que, apesar de doentes, trabalham
repondo mercadorias nas prateleiras dos supermercados, entregando
jornais de madrugada ou recolhendo material reciclável nas lixeiras
espalhadas pelas ruas são parte do arsenal com o qual a AFD mostra
que o governo não cuida dos alemães.
As estatísticas oficiais estimam que a
população maior de 65 anos em risco de pobreza (ou seja, com uma
renda inferior aos 430 euros mensais) passou de 4,7% em 2005 para
15,7% em 2019, perfazendo um contingente de quase 2,7 milhões de
pessoas. A porcentagem deste grupo que se vê obrigada a trabalhar
passou de 8% em 2009, para 18% em 2019, tornando as cenas que
citávamos bem mais visíveis e corriqueiras em qualquer cidade do
país.
Em janeiro deste ano, começou a ser paga
uma renda básica que se destina a complementar as aposentadorias
mais baixas de quem mantêm filhos, cônjuge ou outras pessoas sob os
seus cuidados. Estima-se que o benefício seja concedido a um milhão
e 300 mil pessoas, menos da metade das que se encontram em risco de
pobreza.
Difícil dizer até que ponto esta medida
conseguirá minorar o ressentimento que muitos alemães têm em
relação ao governo ao ver que os esforços de uma vida não são
reconhecidos com uma aposentadoria da qual podem tirar o seu sustento
sem depender de mais um trabalho precário ou da caridade alheia.
Na Romênia, enquanto a mídia andava
ocupada com os seguidos escândalos de corrupção que cercam o
governo, os setores mais conservadores aproveitaram 2020 para
organizar suas fileiras e, sem fazer alarde, criaram um partido para
influir diretamente nas disputas parlamentares e governamentais.
Contando com o apoio de sacerdotes ortodoxos radicais e das forças
armadas, a Aliança para a União dos Romenos (AUR) se apresentou ao
país como uma identidade antissistema, baseada em valores
tradicionais de família, fé cristã, identidade nacional e
liberdade, e com um discurso contrário à permanência na União
Europeia, ao matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, ao aborto e à
minoria húngara que mora no país.
Em dezembro do ano passado, a AUR surpreendeu ao conseguir 9% dos
votos na que foi a sua primeira disputa eleitoral.
Silenciosamente e explicitando uma forte
identificação com os anseios dos setores da sociedade que não
costumam manifestar publicamente suas opiniões, mas que são
sensíveis ao nacionalismo e aos apelos do conservadorismo, a direita
continua semeando os elementos que esgarçam as bases da frágil
identidade Europeia construída a duras penas após a segunda guerra
mundial.
A economia do Brasil nos números do
emprego
De
acordo com as estimativas oficiais, o PIB de 2020 deve sofrer uma
retração entre 4,0% e 4,5%. Apesar de negativo, não se trata de um
resultado ruim, sobretudo quando comparado às expectativas
catastróficas que se desenhavam no começo da pandemia e ao
desempenho dos demais países da América Latina.
Para
2021, as projeções do Banco Central indicam um crescimento em torno
de 3,5%, ou seja, não será este ano que a economia do país voltará
ao patamar de 2019, que, por sua vez, ainda carregava as perdas da
recessão de 2015 e 2016.
Além
do avanço da pandemia, o horizonte de 2021 é marcado por vários
fatores econômicos que agravam a sensação de incerteza. Entre
eles, destacamos três que, a nosso ver, são determinantes para
delinear com maior precisão os rumos do futuro.
O
primeiro guarda relação com o número de vagas extintas em 2020.
Ingenuamente, muitas pessoas focam suas atenções na taxa de
desemprego ou no número de desocupados e não percebem as perdas de
postos de trabalho que as regras estatísticas acabam ocultando. Para
tomarmos o pulso desta realidade, vamos resgatar os dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD-contínua), do IBGE, que se
referem ao trimestre composto pelos meses de setembro, outubro e
novembro e compará-los com o mesmo período de 2019:
Quadro
2 – emprego e desemprego no trimestre set-out-nov de 2019 e 2020
Indicador
|
Set-Nov
2019
|
Set-Nov
2020
|
Diferença
|
Var
%
|
População
Econ. Ativa
|
171.401.000
|
176.014.000
|
4.613.000
|
2,7
|
Na
força de trabalho
|
106.279.000
|
99.601.000
|
-
6.678.000
|
-
6,3
|
Ocupada
|
94.416.000
|
85.578.000
|
-
8.838.000
|
-
9,4
|
Desocupada
|
11.863.000
|
14.023.000
|
2.160.000
|
18,2
|
Fora
da força de trabalho
|
65.122.000
|
76.413.000
|
11.291.000
|
17,3
|
Fonte:
elaboração própria a partir dos dados do IBGE.
O
quadro 2 mostra que o número de pessoas com mais de 14 anos aumentou
2,7%, enquanto o contingente daquelas que integram a força de
trabalho (o grupo dos ocupados e dos que desejam encontrar um
emprego) caiu 6,3%. Considerando que o país atravessou uma das mais
duras crises econômicas da sua história, a forte redução dos que
integram a força de trabalho num cenário de crescimento da
população economicamente ativa é uma primeira indicação de que
um grupo expressivo de brasileiros e brasileiras deixou de procurar
uma ocupação em função da baixíssima oferta de vagas do mercado
de trabalho.
Os
números que seguem confirmam a gravidade da situação ao mostrar
que o contingente de ocupados perdeu 8 milhões e 838 mil pessoas.
Deste total, 2 milhões e 160 mil indivíduos ingressaram no grupo
dos que continuam procurando uma ocupação e, justamente por isso,
são considerados desocupados.
Mas,
onde estão aqueles que, ao perderem seus empregos desistiram de
encontrar um e os que, apesar de terem mais de 14 anos de idade não
estão na força de trabalho do país por não estarem procurando um
trabalho?
Seguindo
as regras que orientam as pesquisas do IBGE, este grupo passou a
integrar a população que está fora da força de trabalho e que, no
período considerado, conheceu um aumento de 17,3% em relação aos
mesmos meses de 2019. Isso significa que, para termos uma ideia das
vagas que faltam, precisamos somar os mais de 14 milhões de
desempregados a uma parte considerável das 11 milhões e 291 mil
pessoas que elevaram este contingente.
Diante
deste quadro, a segunda preocupação diz respeito, justamente, a
como este grupo que reúne cerca de 25 milhões de pessoas que deseja
trabalhar, precisa desta renda, procura emprego ou desistiu
momentaneamente de encontrar um por não ver possibilidades de
encontrá-lo, vai conseguir meios para sobreviver.
A
pesquisa Datafolha divulgada no dia 25 de janeiro confirma esta
preocupação ao mostrar que 69% dos quase 67 milhões de brasileiros
que receberam o auxílio emergencial não têm outra fonte de renda.
Entre os beneficiados, 32% economizaram algum dinheiro, mas, para os
68% restantes, o que entrou foi totalmente gasto nas compras do
dia-a-dia. Isso significa que, já neste mês de fevereiro, parte
considerável da população que continua sem uma ocupação e sem
perspectivas de encontrá-la em prazos razoavelmente curtos está
engrossando os setores que vivem na pobreza e poderão criar tensões
sociais em função à penúria em que se encontram.
Sem
nenhum tipo de auxílio emergencial, em 2021, a renda dos
trabalhadores deve encolher 8% em relação a 2020, reduzindo ainda
mais o consumo das famílias e a possibilidade de este contribuir
para a recuperação da economia.
Parte
deste efeito negativo pode ser compensada pela poupança que, em
2020, viu seus recursos aumentarem em 166 bilhões e 310 milhões de
reais em relação ao patamar de 2019.
Oriundo de uma redução de gastos diante das incertezas do futuro,
este dinheiro deve voltar ao consumo assim que a melhora da economia
e do emprego convencer as pessoas de que podem gastar as reservas
guardadas para os tempos difíceis. Mas, no momento em que
escrevemos, nada garante que isso venha a acontecer em curto prazo.
A
última preocupação diz respeito ao nível de atividade dos setores
da economia e às apostas do empresariado num cenário em que a
pandemia não dá sinais de trégua e a vacinação da população
caminha a passos de lesma cansada.
A
evolução do emprego em cada setor ajuda a termos uma visão do país
a partir da realidade dos trabalhadores.
Vamos
aos dados:
Quadro
3: quadro comparativo do número de vagas em cada setor
Setor
|
Empregos
Set-Nov
2019
|
Empregos
Set-Nov
2020
|
Diferença
|
Var.
%
|
Agricultura,
pecuária, pesca, etc.
|
8.388.000
|
8.479.000
|
91.000
|
1,1
|
Indústria
geral
|
12.105.000
|
10.972.000
|
-
1.134.000
|
-
9,4
|
Construção
civil
|
6.925.000
|
5.922.000
|
-
1.004.000
|
-
14,5
|
Comércio,
reparação veículos aut.
|
17.833.000
|
15.970.000
|
-
1.863.000
|
-
10,4
|
Transporte,
armazenagem, correio
|
4.911.000
|
4.281.000
|
-
630.000
|
-
12,8
|
Alojamento
e alimentação
|
5.613.000
|
4.112.000
|
-
1.501.000
|
-
26,7
|
Informação,
comunicação, finanças, etc.
|
10.572.000
|
10.266.000
|
-
307.000
|
-
2,9
|
Adm.
pública, defesa, seguridade, etc
|
16.561.000
|
16.621.000
|
60.000
|
0,4
|
Outros
serviços
|
5.088.000
|
4.077.000
|
-
1.011.000
|
-
19,9
|
Serviços
domésticos
|
6.400.000
|
4.853.000
|
-
1.547.000
|
-
24,2
|
Fonte:
elaboração própria a partir dos dados do IBGE.
Na
comparação entre os mesmos trimestres de 2019 e 2020, as marcas da
crise são particularmente visíveis nos serviços domésticos, de
alojamento e alimentação onde o corte de vagas ficou acima dos 20%,
ao passo que os setores de comunicação, informação e finanças
foram os menos atingidos com uma perda de 2,9%.
Fruto
da redução dos lançamentos imobiliários diante da queda da
demanda por moradias e salas comerciais, a construção civil viu o
seu mercado de trabalho encolher 14,5%.
A
redução de 12,8% nas vagas dos setores de transporte, armazenagem e
correio reflete tanto o impacto da crise nas atividades econômicas,
como a forte redução no número de passageiros no transporte aéreo
e terrestre.
A
indústria apresenta uma perda de 9,4% com a extinção de mais de 1
milhão e 100 mil postos de trabalho. Além do fechamento de um
elevado número de fábricas,
o corte de vagas reflete a redução das atividades produtivas diante
da incerteza na manutenção do nível da demanda após o fim do
auxílio emergencial, os efeitos negativos da desvalorização do
real frente ao dólar e a falta de insumos para a fabricação de
vários produtos que, a partir de outubro de 2020, levaram a uma
situação de escassez de matérias-primas em 11 dos 19 setores
pesquisados pela Fundação Getúlio Vargas.
Alguns
exemplos ajudam a termos uma ideia do impacto destes fatores.
Com
o dólar médio acima dos R$ 5,20, os exportadores que vendem parte
da sua produção no mercado interno impuseram preços que trariam os
mesmos ganhos das vendas para outros países. Foi o que ocorreu, por
exemplo, com o quilo do fio de algodão que passou de R$ 13,00 no
inicio de 2020 para R$ 30,00, em dezembro do mesmo ano, encarecendo
as roupas muito acima do que a maioria dos consumidores podia pagar.
O
aumento de 45% das compras online, registrado no ano passado, fez
disparar a demanda de embalagens plásticas e de papelão. No caso
das primeiras, as empresas produtoras se depararam com os entraves
criados pela redução de 36% da capacidade produtiva da Braskem, a
única empresa do país a fabricar resina plástica para este fim, o
que fez os preços das embalagens aumentarem entre 60% e 80%. Por sua
vez, o preço do quilo do papelão, devido aos efeitos da
desvalorização do real e das exportações no mercado interno,
subiu de R$ 10,00 para R$ 18,00.
A
partir de outubro do ano passado, empurrados pela ideia de evitar o
transporte público nos deslocamentos do trabalho e melhor se
protegerem do contágio, muitas pessoas pensaram em comprar um carro.
Em
novembro, o aumento da demanda superou as expectativas mais otimistas
do setor automobilístico ao ficar 15,5% acima do nível registrado
mesmo mês de 2019. Contudo, devido à forte diminuição da produção
nas montadoras, quem foi às concessionárias acreditando que sairia
de lá dirigindo um carro zero quilômetros foi convidado a entrar
numa fila de espera que, a depender do modelo, variava de 90 a 180
dias.
Segundo
o Índice de Preços ao Produtor, do IBGE, em 2020, a somatória
destes fatores fez os preços da indústria aumentarem 19,40%, sendo
que 7,11 pontos percentuais do total auferido se devem à
desvalorização de 25,2% do real diante do dólar.
A
contratação de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem para
atender às necessidades da pandemia constitui parte significativa da
elevação de 0,4% dos postos de trabalho na administração pública.
A
agropecuária é o setor que apresenta os melhores resultados com um
aumento das vagas de 1,1%. Únicos setores a crescerem em relação a
2019, a agricultura e a pecuária devem este resultado, sobretudo, ao
aumento da demanda da China que contribuiu fortemente para fazer com
que suas exportações somassem 100 bilhões e 810 milhões de
dólares, uma elevação de 4,1% em relação ao desempenho de 2019.
A
exuberância destes números e a ênfase que é dada à sua
divulgação escondem que a felicidade dos latifundiários foi paga
com a tristeza dos consumidores brasileiros que se depararam com a
forte elevação dos preços de vários produtos.
Ao
levantar o valor da Cesta Básica na cidade de São Paulo, o DIEESE
calcula que, entre janeiro e dezembro de 2020, o óleo de soja, por
exemplo, teve seus preços médios elevados em 118,5%, o arroz
agulhinha em 61,41%, a carne bovina em 24,84% e o café em pó em
21,67%.
Enquanto
o agronegócio lavava a égua com lucros superiores às suas melhores
expectativas, os trabalhadores eram obrigados a fazer das tripas
coração para comprar o básico.
Um
país de pernas para o ar
Diante
da alta dos preços dos alimentos, do número de vítimas da Covid-19
e da forma como o governo lidou com a pandemia, os movimentos sociais
e os partidos de esquerda esperavam uma queda significativa da
aprovação do Presidente da República nas pesquisas de opinião.
Infelizmente,
em dezembro de 2020, todos eles ficaram pasmos diante do relatório
do Datafolha que apontava um aumento consistente das pessoas que
apoiam o governo Bolsonaro em relação ao mesmo mês de 2019. As
sensações não foram muito diferentes ao ver que, mesmo depois do
caos no sistema de saúde em Manaus (AM), a aprovação do Presidente
se mantinha longe de um patamar que possibilitasse o impeachment.
Vamos
iniciar nossas reflexões resgatando os resultados das pesquisas
citadas:
Quadro
4: aprovação do governo Bolsonaro - Datafolha dez de 2019 e de
2020 e jan de 2021
Indicador
|
Dezembro
2019
|
Dezembro
2020
|
Janeiro
2021
|
Ótimo/bom
|
30%
|
37%
|
31%
|
Regular
|
32%
|
29%
|
26%
|
Ruim/péssimo
|
36%
|
32%
|
40%
|
Não
sabe
|
1%
|
3%
|
3%
|
Fonte:
elaboração própria a partir dos relatórios do Datafolha
Realizada
entre os dias 8 e 10 de dezembro, a última pesquisa de 2020 revela
que, em relação ao mesmo mês de 2019, Bolsonaro havia ampliado em
sete pontos percentuais o contingente de pessoas que consideravam o
seu governo como ótimo e bom, ao passo que a desaprovação caia de
36% para 32%.
Um
mês e dez dias depois, quando a falta de oxigênio em Manaus,
elevava o número de vidas perdidas pela Covid no Amazonas, a
porcentagem de ótimo e bom caiu de 37% para 31% e a de ruim e
péssimo foi a 40%.
Em
primeiro lugar, é importante ressaltar que, apesar de a pesquisa
Datafolha realizada em 20 e 21 de janeiro de 2021 indicar uma piora,
os índices apresentados ainda mostram um nível de aprovação
superior ao de junho do ano passado quando, ao apelar à
possibilidade de um golpe militar, o Presidente da República viu a
porcentagem de ótimo e bom cair a 29% e a de ruim e péssimo chegar
a 44%.
Como
é possível que, entre os dias 8 e 10 de dezembro do ano passado,
quando o país amargava 179.000 mortes pela Covid e a mídia não
parava de denunciar a forma criminosa com a qual o governo lidava com
a pandemia, o nível de aprovação tenha subido em relação ao que
havia sido detectado um ano antes?
Podemos
encontrar alguns indícios de resposta na parte do relatório onde a
pesquisa Datafolha compara a escolha dos principais problemas do país
de acordo com a opinião das pessoas entrevistadas.
Levando
em consideração que cada uma delas podia apontar um único
problema, temos o resultado que segue:
Quadro
5: principais problemas apontados nas pesquisas de dezembro de 2019 e
de 2020
Categorias
|
05-06/12/2019
|
08-10/12/2020
|
Saúde
|
19%
|
27%
|
Desemprego
|
13%
|
13%
|
Economia
|
8%
|
8%
|
Corrupção
|
8%
|
7%
|
Educação
|
14%
|
6%
|
Governantes/governos/políticos/política
|
1%
|
5%
|
Violência/segurança
|
13%
|
4%
|
Covid/coronavírus/pandemia
|
-
- -
|
3%
|
Fome/miséria
|
2%
|
2%
|
Inflação
|
-
- -
|
2%
|
Má administração/falta de adm./governabilidade
|
-
- -
|
1%
|
Presidente
Bolsonaro
|
-
- -
|
1%
|
Meio
ambiente
|
1%
|
1%
|
Distribuição
da renda/desigualdade social
|
-
- -
|
-
- -
|
Salário
|
1%
|
-
- -
|
Outro
problema
|
10%
|
11%
|
Não
sabe
|
5%
|
8%
|
Fonte:
elaboração própria a partir dos dados do Datafolha
Não
é de estranhar que, tanto em 2019, como em 2020, o atendimento à
saúde seja apontado como o principal problema do Brasil e nem que,
no ano passado, as lacunas do SUS tenham mostrado uma gravidade ainda
maior diante do avanço do coronavírus. O que causa espanto é que,
algumas linhas depois, a pandemia tenha recebido apenas 3% dos votos
dos entrevistados e que a avaliação negativa da ação política do
presidente, governadores, ministros e parlamentares em geral não
seja proporcional ao descaso com o qual trataram a saúde pública
nos últimos anos.
É
como se a Covid-19 não passasse de uma doença qualquer, cuja
evolução não depende de políticas nacionais para combater o
vírus, mas tão somente de um sistema de saúde eficiente. Ou seja,
as pessoas veem o SUS como uma espécie de entidade independente da
ação governamental e das normas aprovadas pelos legisladores que,
ao destinar recursos abaixo do que seria necessário para prestar um
bom atendimento à população são aqueles que determinam as lacunas
e os problemas dos serviços oferecidos.
Seguindo
na análise do quadro 5, percebemos que a fome, a miséria, o
salário, a desigualdade social e a má administração do país ou
não foram indicados como problemas principais ou receberam
pouquíssimos votos. É como se todas estas questões não passassem
de uma espécie de doença crônica ou de uma fatalidade em relação
às quais pouco pode ser feito ou cuja presença é naturalizada a
ponto de ser desconsiderada pelos entrevistados como causa de
problemas maiores.
Em
relação à desigualdade social e à distribuição da renda, porém,
acreditamos que outros elementos contribuem para explicar a ausência
de pontuação deste problema no governo Bolsonaro e o fato de,
também nos governos Dilma e Temer estas questões terem recebido, no
máximo, 1% das indicações dos entrevistados.
Não
é segredo para ninguém que, nas duas últimas décadas, os
sindicatos e a maioria dos setores da própria esquerda deixaram de
tratar a exploração do trabalho como problema que está na base das
principais contradições da sociedade. Ao mesmo tempo, não faltavam
dirigentes sindicais e empresários que, ao valorizar as políticas
de participação nos lucros e resultados, transformavam o salário
variável em espelho do esforço pessoal e caminho que permitiria ao
funcionário provar o seu valor.
Ao
sair do radar das organizações que deveriam defender os
trabalhadores, o lugar da exploração do trabalho como explicação
da desigualdade social e da péssima distribuição da renda foi
ocupado por elementos que dependem quase exclusivamente do esforço
individual, do mérito de quem não se acomoda, da disposição para
sair da mesmice e buscar novas oportunidades, do talento de quem
arrisca o certo pelo incerto para crescer ainda mais.
Pouco
a pouco, o senso comum passou a ver o enriquecimento pessoal como o
coroamento natural dos que lutam para ter mais. Sob esta ótica,
ganhar dinheiro é algo legítimo, que não empobrece ninguém e está
nos sonhos e nas vontades dos trabalhadores que querem ser patrões
para fazerem o mesmo.
O
Quadro 5 revela também que, na comparação entre os dois períodos,
o desemprego e a condução da economia mantiveram os mesmos índices,
indicando que os estragos da pandemia receberam um tratamento que não
agravou a percepção popular destes problemas.
A
queda de um ponto percentual no quesito corrupção não surpreende
quem acompanha os acontecimentos. O esvaziamento da operação
lava-jato, as denúncias que cercam as autoridades do judiciário que
articulavam as investigações e uma presença inconstante na mídia
deram a este tema um tom muito diferentes em relação àquele que
caracterizou o período anterior ao impeachment da Presidente Dilma
Rousseff.
Seguindo
na ordem de importância, percebemos que a educação perdeu 8 pontos
percentuais. Ainda que parte destes votos possa ter migrado para a
saúde, não deixa de ser estranho que todas as dificuldades que
cercaram as diferentes tentativas de ensino remoto não tenham
marcado as opiniões das pessoas em dezembro de 2020.
Violência
e segurança pública perderam nove pontos percentuais, o que leva a
crer que a primeira diminuiu e a segunda aumentou. Infelizmente, para
entender esta queda, não podemos contar com o levantamento da
quantidade de crimes cometidos, da relação entre a sua evolução
em 2020 e as respectivas comparações com 2019. O máximo que
podemos fazer é formular algumas hipóteses a serem verificadas no
caminhar de 2021.
De
acordo, por exemplo, com os números divulgados pela Secretaria de
Segurança Pública do Estado de São Paulo, de
janeiro a junho de 2020, as polícias civil e militar mataram juntas
514 pessoas, 20,6% a mais em relação às 426 mortes registradas no
mesmo período de 2019 e o maior número da série histórica
iniciada em 2001.
Se, em outros estados da federação, e durante o segundo semestre,
tiver ocorrido algo semelhante, podemos dizer que a percepção da
contenção da violência e da falta de segurança guarda relação,
sobretudo, com o aumento da letalidade policial. Em 2020, não
faltaram situações de abuso de autoridade e uso excessivo da força
por parte de agentes do Estado. Mas estes fatos são considerados
deploráveis por alguns e aplaudidos por muitos outros como uma forma
eficiente de combater a criminalidade.
O
descaso com o meio-ambiente foi outro assunto que teve presença
constante nos noticiários através dos dados e das imagens da
devastação, das acusações de omissão e da postura do ministro
Ricardo Sales, bem mais preocupado em fragilizar os instrumentos que
visam proteger a natureza do que em zelar pela sua preservação.
Apesar de, em 2020, as queimadas do Pantanal terem aumentado 120% e o
desmatamento da floresta amazônica ter crescido 30% em relação a
2019, o meio-ambiente recebeu apenas 1% das indicações populares
como principal problema do país, a mesma porcentagem de 2019.
Sem
menosprezar a possibilidade de as pessoas não verem uma relação
direta entre a preservação da natureza e a vida pessoal de todos os
dias, a baixíssima indicação deste problema ajuda a entender por
que o orçamento de 2021 prevê mais um corte de 27,4% nas verbas
destinadas à fiscalização ambiental e ao combate aos incêndios
florestais.
Pelo visto, as “boiadas” do Ministro Ricardo Salles terão um ano
ainda mais promissor.
Diante
deste quadro, parece claro que o
nosso esforço para fazer o povo ver o país a partir dos problemas
estruturais que marcam a vida coletiva não dialoga com o Brasil real
das pessoas comuns. Para elas, o cotidiano se movimenta nas tramas
dos problemas individuais e imediatos, de uma subjetividade que
define o certo e o errado e na qual a realidade passa longe de
estimular uma reflexão crítica.
As
dúvidas levantadas pelos acontecimentos são combatidas com as
certezas da fé, com a magia dos pensamentos positivos, com o eterno
otimismo da vontade que projeta no futuro o que o presente teima em
negar ou subestimando e, quando necessário, negando os próprios
acontecimentos. Quando ocorre, a reflexão privilegia o que confirma
a visão de mundo do sujeito e o sentido que ele dá aos
acontecimentos. Por isso, as posições de autoridades religiosas e
civis que se alinham com suas crenças, criando uma identidade de
sentidos e percepções do cotidiano, são elevadas pelo indivíduo a
critério de verdade.
O
eco deste movimento que marca a história com a superficialidade e a
teimosia de uma subjetividade que se recusa a acertar contas com a
realidade faz ressoar perguntas que demandam respostas sem as quais
não conseguiremos dialogar com o povo simples:
o que as pessoas veem de positivo na atuação do Presidente, do seu
governo e dos seus seguidores? Será que encontram neles a
possibilidade de expressar livremente ideias e posturas que sufocaram
durante anos? Ou buscam a confirmação de que suas convicções e
suas crenças estão corretas?
Qual
a força real que o povo coloca na determinação de destruir os
avanços da ciência e dos direitos conquistados em anos de luta em
nome de uma moralidade hipócrita, mas que se apresenta com a
chancela do divino? Ou será que o sujeito vê na religião o
alicerce de uma sociedade que, pelo fato de ter a lei de Deus como
único guia, resolverá magicamente todos os problemas com os quais
ele se depara?
Até
que ponto a liberdade
de expressar as convicções mais estapafúrdias como verdade
absoluta é vista como uma afirmação imprescindível da própria
subjetividade? A negação das causas dos acontecimentos que colocam
o dedo nas feridas abertas pelas contradições sociais é parte
deste esforço para afirmar a supremacia da vontade do sujeito e seus
méritos sobre a realidade material? Por que as pessoas se tornaram
incapazes de ver que o “eu
acho” colocado acima de tudo pode ser extremamente nocivo a elas
próprias, aos seus familiares e à sociedade?
Enfim,
o que seduz o povo simples a ponto de desativar sua capacidade de
refletir sobre o que vê e sente a partir dos fatos que desnudam suas
convicções?
Cada
uma destas perguntas é o eco de fatos que nos deixam perplexos.
Em
outubro do ano passado, por exemplo, as secretarias de saúde de
vários estados e municípios se viram forçadas a prorrogar a
campanha de vacinação contra a poliomielite das crianças entre 1 e
5 anos de idade. De acordo com o Ministério de Saúde, até o último
dia da campanha, apenas 44,1% das 11 milhões e 200 mil crianças que
constituíam o público-alvo haviam recebido as gotas da vacina,
menos da metade dos 95% de cobertura vacinal necessários para manter
a doença longe do país.
Perplexos
diante deste fato, perguntamos: em nome de que liberdade, ação
divina, teoria da conspiração, etc., se justifica expor um filho a
uma deformidade permanente por lhe negar a gota que pode salvá-lo
deste sofrimento?
Infelizmente,
nós mesmos não temos as respostas.
Sabemos
apenas que, quando o “EU” é absolutizado como fonte de verdade e
virtude, as únicas preocupações coletivas por ele aceitas são as
que fortalecem a visibilidade do sujeito entre os seus pares.
Neste
cenário desconcertante, a única chance de colocar o indivíduo
diante de uma reflexão necessária é a que aparece na hora em que a
realidade por ele vivida está em aberta contradição com as
escolhas que está preste a fazer. Trata-se de uma pequena abertura
no arcabouço defensivo do sujeito que só pode ser aproveitada por
quem convive e domina a sua mesma linguagem e não por quem, longe
desta realidade, discursa a partir de elementos teóricos ou
parâmetros que, para ele, não fazem sentido algum.
Diante
dos desafios que se agigantam e das angústias que ecoam mundo afora,
acolhemos este desafio como parte do esforço para entender e
dialogar com o povo, uma condição sem a qual será impossível
fazer ressoar nas pessoas a necessidade das mudanças que o
sofrimento impõe.
Brasil,
09 de fevereiro de 2021.