sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Oriente Médio: destruir a resistência para a opressão avançar.

 


Ao eclodir, um conflito armado levanta perguntas para as quais é difícil encontrar respostas que ultrapassem a névoa das aparências. Dos porta-vozes aos jornalistas e influenciadores sociais, as narrativas dialogam com a parte do senso comum mais propensa a suscitar um clima de aprovação. A busca deste consenso é ainda mais aprimorada e cuidadosa quando as organizações da resistência são o inimigo a ser vencido.

Longe de serem apenas uma pedra no sapato, a coordenação e a eficácia destes grupos denunciam a presença de injustiças nunca sanadas e obstaculizam os planos de dominação. Por isso, destruir as organizações da resistência demanda execrar suas ações e seus membros, cortar os vínculos com suas bases de sustentação e desferir golpes que transformem a sua causa em objetivo irrealizável.

Resgatar estes elementos na conjuntura do Oriente Médio impõe desvendar o que está em jogo na Síria, no Líbano e na Faixa de Gaza, onde EUA, Israel, União Europeia e Arábia Saudita coordenam em diferentes graus de protagonismo e subordinação as ações que fazem vingar seus interesses na região. O esforço que aqui começamos resgatará o que costuma ser esquecido e menosprezado por uma mídia que aumenta a névoa e impede a passagem do que pode dissipá-la. Assim, você conseguirá entender o que está acontecendo e verificar até que ponto o mundo se distancia da paz que brota da justiça.

 

1.     Síria 2025: servir ao imperialismo cortando as rotas da resistência.

No dia 8 de dezembro de 2024, o grupo fundamentalista Hayat Tahir Sham (HTS - Organização para a Libertação do Levante) entrava em Damasco, capital da Síria, pondo fim ao regime de Bashar al-Assad. Em Washington, Joe Biden, comemorava o feito dizendo: “Até que enfim o regime de Assad acabou. Brutalizou, torturou e matou literalmente centenas de milhares de sírios inocentes. A queda do regime é um ato fundamental de justiça”.[1]

Estar a serviço do imperialismo transformava um grupo considerado “terrorista” pelo Conselho de Segurança da ONU em “promotor da justiça”. Num passe de mágica, Biden esquecia que o HTS havia nascido da célula síria da Al Qaeda e que os EUA haviam colocado uma recompensa de 10 milhões de dólares a quem desse informações capazes de levar à captura do seu líder, e atual presidente da Síria, Ahmed al-Shara'a.[2] A gritante incoerência vislumbrada até pela mídia mais fiél à ordem dominante foi rapidamente calada à medida que dois elementos justificavam esta mudança de postura: o fim da rede de suprimentos bélicos produzidos por Teerã que usava a Síria como ponte para abastecer a resistência libanesa do Hezbollah e os grupos armados da Faixa de Gaza; e a desmoralização da Rússia que, centrada na guerra em território ucraniano, foi incapaz de manter al-Assad no poder. Concretamente, ao apoiarem os rebeldes do HTS, EUA, Reino Unido e Israel abriam caminhos para reconfigurar o equilíbrio de poder no Oriente Médio sem que nenhum de seus soldados fosse ferido ou morto nos enfrentamentos...e isso era o que mais importava.

No amanhã da vitória, Ahmed al-Shara'a se deparava com uma Síria dividida em grupos étnicos cujas milícias haviam recebido apoio do exterior em vários momentos do passado (como no caso dos curdos, armados pelos EUA a fim de combater as tropas do Estado Islâmico), com uma infraestrutura quase totalmente destruída e com 70,0% dos habitantes precisando de ajuda humanitária para sobreviver.[3] Um país, portanto, cuja viabilidade depende de o novo governo fazer convergir os interesses destes grupos num plano de reconstrução nacional a ser viabilizado com financiamentos externos que, por sua vez, dependem de acertar as contas com os interesses dos credores.

Enquanto a liderança dos rebeldes trocava o uniforme de batalha pelo terno do estadista, Israel colocava as mãos na sua parte do botim de guerra. Pouco depois da queda do regime, Tel Aviv declarava inválido o Acordo de Separação, assinado com a Síria em 1974. Imediatamente, as tropas israelenses ocupavam a faixa de terra de 70 km que servia de zona de amortecimento entre as colinas de Golã (sob controle israelense) e os territórios governados por Damasco.[4] A ação era seguida pelo anúncio da expansão dos assentamentos de colonos judeus nas áreas anexadas e de ações militares de caráter intimidatório nos povoados próximos à região.[5] O fato de os primeiros serem considerados ilegais pelo direito internacional e de a ocupação militar de fatias do território representar uma flagrante violação da soberania síria não foi denunciado nem pelos governantes ocidentais nem pelas análises dos comentaristas internacionais.

A suspeita de que o apoio aos rebeldes sírios era um passo essencial para seguir na construção do Grande Israel ganhou ulteriores confirmações nos meses seguintes. Com o pretexto de eliminar centros de armazenamento de armas do Hezbollah e núcleos de seus combatentes na Síria, até meados de março, as forças armadas de Israel haviam ampliado a ocupação militar em 600 km quadrados[6] e, no final de junho, completavam a instalação de 10 novas bases do exército a partir das quais realizariam incursões que chegariam a 40 km de Damasco, a capital do país.[7]

O projeto de Tel Aviv para o futuro da Síria é claro: um país dividido por grupos étnicos cujas forças armadas e identidades culturais inviabilizam a construção de uma nação unida e politicamente estável. Desta forma, não só as forças armadas sírias deixariam de ser uma ameaça à segurança da fronteira norte de Israel, como teriam bem mais dificuldades para se opor aos planos de sua progressiva expansão territorial na região sul do país.[8] A obra se completaria com o afastamento de Damasco da influência do Irã e a completa destruição das células do Hezbollah.

À luz deste plano, é possível entender dois outros elementos da ação de Tel Aviv. O primeiro deles começou imediatamente após a queda do governo de Bashar al-Assad, quando a força aérea israelense atacou mais de 400 instalações militares sírias, num processo que se manteve até o final de agosto e segue como ameaça latente. O segundo, ganha cor e forma no envolvimento de Tel Aviv com o jogo sectário das facções que recortam a Síria em áreas de influência para criar o que apelidou de “corredor de Davi”.

Trata-se de uma faixa de terra que parte do sul sírio ocupado pelos drusos e alcança as áreas controladas pelas forças curdas na região norte, passando pelo deserto da Badia (lar do Estado Islâmico) e incorporando a base militar estadunidense de Al-Tanf, na fronteira com o Iraque. Israel entende que controlar este corredor, num jogo de alianças e atritos com as forças locais, cortará as ligações dos grupos xiitas que conectam Teerã, Bagdá, Damasco e Beirute,[9] e transformará a região ocupada pelos drusos numa barreira de contenção diante da possibilidade de o novo governo sírio não pacificar as relações com Tel Aviv.

Sabendo que, neste momento, as milícias locais controlam áreas em todas as regiões da Síria e têm mais poder do que as forças de segurança do governo, entendemos por que Israel vê com bons olhos o fato de os curdos não terem dissolvido suas forças armadas no novo exército sírio e garantirem certa autonomia administrativa em relação ao governo central.[10] Do mesmo modo, a relação com os drusos deu novos passos[11] à medida que Tel Aviv interveio militarmente em sua defesa na cidade de Sweida, onde um incidente envolvendo os beduínos locais desencadeou enfrentamentos entre os dois grupos.

Na ocasião, o poder de fogo israelense teve como alvos até as próprias forças do exército sírio que se dirigiam à região na que havia sido anunciada como uma intervenção para acabar com o conflito.[12] Oficialmente, o bombardeio das tropas de Damasco foi justificado alegando a possibilidade de uma matança maior. Ainda que o histórico das novas forças armadas sírias (compostas por militantes e aliados de linha dura do HTS que atuam com orientações bem próximas às da Al Qaeda) permitisse pensar nesta possibilidade,[13] o recado ao governo de Ahmed al-Shara'a e às demais milícias é outro: nem pensem em usar suas forças contra os drusos pois investir contra eles levará a acertar contas com Israel.

Diante da urgência de receber financiamentos para reconstruir uma economia devastada por 13 anos de guerra civil, Damasco ofereceu a Washington a primazia nos investimentos imobiliários e a parceria para explorar as jazidas de hidrocarbonetos no norte do país. Em resposta, Trump removeu as sanções econômicas impostas ao antigo regime, mas a chegada dos recursos almejados depende de Damasco assumir o controle do território.

A União Europeia quer o mesmo futuro para o país e planeja entrar nos projetos de reconstrução, entre outras coisas, para afastar a Rússia dos planos do governo sírio. De fato, apesar de Moscou ter abrigado a fuga de Bashar-al-Assad, Damasco busca manter relações com o governo Putin a fim de criar uma espécie de contrapeso à injerência ocidental.[14] Enquanto isso, a Arábia Saudita trata de fazer com que a sua ajuda humanitária afaste os sírios da influência iraniana e assegure a Riad um lugar de destaque nas relações do novo governo com os países árabes.[15]

De dezembro de 2024 ao momento em que escrevemos, as forças de Ahmed al-Shara'a não dispararam um único tiro para deter as centenas de incursões militares com as quais Tel Aviv golpeou o território sírio, assim como em nenhum instante Washington condenou as violações israelenses da soberania do país. Resta saber se e até quando os setores mais radicais do HTS aceitarão que a manutenção do atual governo depende de ele vestir a camisa de força costurada pelo Ocidente.

Os noticiários têm registrado ações incipientes de uma resistência popular armada contra a ocupação israelense no sul da Síria, mas não encontramos elementos para entender a composição e as possibilidades de crescimento de suas forças.[16] Finalizando, podemos dizer que para acabar com a ponte entre Irã, Hezbollah, Hamas e cortar a influência da Rússia, os interesses estadunidenses, europeus e israelenses estão transformando a Síria numa areia movediça que pode engolir o seu futuro. Nela, a primeira a pagar o preço será a mesma população que o Ocidente dizia ter libertado da opressão de Bashar al-Assad.

 

2.      Líbano: o que será do Hezbollah?

Identificar a origem dos movimentos de resistência é uma tarefa essencial para entender os embates nos quais estão envolvidos. O caso do Hezbollah é um dos que exige a paciência de percorrer várias páginas da história. Começamos lembrando que, desde a independência da França, em 1943, o Líbano foi invadido por Israel em oito ocasiões, todas elas relacionadas com as consequências da expulsão de 750.000 palestinos pelas tropas israelenses, em 1947. Na época, o sul do Líbano recebeu cerca de 100.000 refugiados aos quais se juntaram novos contingentes entre 1956 e 1967.

A Organização para a Libertação da Palestina (OLP) estabeleceu uma espécie de administração própria no sul do Líbano e, em 1969, um acordo entre Yasser Arafat e o chefe do exército local colocou os campos de refugiados sob o controle das forças palestinas. Em função disso, milhares de combatentes da resistência buscaram refúgio e foram treinados nestes espaços de onde foram lançados vários ataques ao território israelense.

Com o tempo, a ação militante da OLP não elevou apenas a percepção de Tel Aviv de que estes campos de refugiados eram um problema para a sua segurança, como acirrou atritos e disputas entre as forças político-religiosas que dividiam os cargos no governo do Líbano. Atualmente, há um consenso entre os historiadores quanto ao fato de que a guerra civil, que eclodiu em 1975 (e se encerrou em 1990), foi o resultado de um período de crescente divisão interna entre setores que apoiavam o direito à resistência dos palestinos a partir do território libanês e aqueles que se opunham a isso.[17]

Em 1978, durante os enfrentamentos que varriam o Líbano e alegando que a invasão era a resposta ao ataque da OLP que havia sequestrado e matado 38 israelenses, o exército de Tel Aviv invadiu o sul do país para expulsar da região os guerrilheiros palestinos. As tropas ocuparam a área até o Rio Litani e aí permaneceram até que a Resolução 425 da ONU condenou a invasão, pediu a saída imediata das forças armadas israelenses e criou um corredor de segurança mantido pelos contingentes da própria ONU.

Neste processo, Tel Aviv começou a armar e financiar as forças dos cristãos maronitas libaneses, cujos serviços seriam utilizados quatro anos depois durante uma nova invasão com a mesma finalidade. Em junho de 1982, e tendo como pretexto a tentativa de assassinato do embaixador israelense em Londres, os soldados israelenses invadiram novamente o Líbano. Na ocasião, as milícias dos cristãos maronitas massacraram entre 2.500 e 3.500 palestinos nos campos de refugiados de Sabra e Chatila. A ação despertou a indignação mundial e forçou o início da retirada das tropas israelenses do país. O saldo da invasão foi aterrorizante: cerca de 20.000 pessoas haviam sido mortas em território libanês, a maioria delas era de civis, enquanto Tel Aviv amargava a perda de 654 soldados.

Os historiadores são unânimes em apontar as consequências da invasão israelense de 1982 como o elemento que levou à criação do Hezbollah. Diante dos massacres e das relações que Israel havia estabelecido com as milícias locais, alguns líderes xiitas do Líbano queriam uma resposta militar à invasão. A ruptura com o Movimento Amal (um grupo político com uma importante milícia xiita), o apoio militar do Irã e a aliança com outros grupos do sul do Líbano levaram ao nascimento do Hezbollah (Partido de Deus, em árabe).

Em 1985, uma carta aberta anunciava oficialmente a criação do grupo e afirmava a destruição de Israel como seu objetivo fundamental pelo fato de este inimigo ser “o maior perigo para as nossas gerações futuras e para o destino das nossas terras, especialmente porque glorifica as ideias de colonização e expansão, iniciadas na Palestina”.[18] Trocado em miúdos, se Israel pode expulsar os Palestinos do território que a ONU designou para eles e invade o Líbano para caçá-los, não há por que o Hezbollah respeitar este país cujas pretensões expansionistas podem fazer com que o próprio Líbano seja a próxima vítima.

A penetração do grupo no sul do país e o crescimento da sua capacidade militar não seriam possíveis sem o apoio explícito da população local. Gradualmente, o Hezbollah começou a desempenhar também um papel ativo na política libanesa e, em 1992, disputou pela primeira vez as eleições nacionais. À medida que o Hezbollah se fortalecia e enfrentava as forças de ocupação israelenses, o grupo se tornava alvo de Tel Aviv. O primeiro ataque ocorreu em abril de 1996, numa operação que durou menos de duas semanas. Deste momento em diante, a tensão com o Hezbollah na fronteira norte de Israel sempre marcou presença, ainda que com diferentes graus de intensidade.

No final de maio de 2000, as forças armadas israelenses se retiraram definitivamente do sul do Líbano. No mês seguinte, a ONU traçou uma fronteira não oficial entre os dois países, conhecida como Linha Azul. O espaço deixado por Israel foi ocupado pelo Hezbollah que, por sua vez, nunca reconheceu a legitimidade da Linha Azul à medida que isso implicava em perdas territoriais para o Líbano.

Em 2006, o grupo lançou uma série de ataques com foguetes contra várias cidades do norte de Israel e, no dia 12 de julho, seus combatentes cruzaram a Linha Azul matando oito soldados de Tel Aviv e fazendo dois reféns. “A resposta israelense foi implacável e envolveu uma operação militar que incluiu o bloqueio e um intenso bombardeio de cidades, vilas, aeroportos, pontes e muitas outras estruturas importantes no Líbano. A guerra durou 33 dias, durante os quais o Hezbollah também lançou uma saraivada de foguetes contra Israel. Segundo dados oficiais, 1.191 pessoas morreram no Líbano, a maioria delas civis. Em Israel, 121 soldados e 44 civis foram mortos.”[19] Apesar disso, a estrutura do Hezbollah saiu intacta do enfrentamento. “A Comissão Winograd, criada pelo governo israelense para avaliar o resultado da guerra, concluiu em 2008 que a operação foi um fracasso e que Israel tinha iniciado «uma longa guerra, que terminou sem uma vitória militar clara».”[20]

Nas duas décadas que separam os acontecimentos de 2006 dos dias atuais, o Hezbollah foi se fortalecendo política e militarmente. As imagens das “cidades dos mísseis” divulgadas em 2024 mostravam o avanço do seu poder de fogo e da sua capacidade de fustigar o norte de Israel durante longos períodos de tempo. Com a Síria de Baschar al-Assad servindo de corredor para reabastecer seus paióis em troca do apoio para ele se manter no poder, o grupo integrou o Eixo da Resistência com o Irã, o Iêmen, Hamas e Jihad Islâmica.

Os lançamentos de foguetes em apoio à resistência na Faixa de Gaza levaram ao esvaziamento populacional de vários assentamentos israelenses na região norte do país e alimentaram o debate no interior do território libanês sobre a necessidade e a utilidade de apoiar os palestinos. Diante dos ataques, ninguém podia esperar a ausência de uma reação à altura dos planos de Tel Aviv, do apoio incondicional recebido dos seus aliados e do esforço de minar a influência de Teerã no Oriente Médio. O desenrolar dos acontecimentos mostra que o ataque ao Hezbollah, em outubro do ano passado, não se limitou à resposta militar, mas foi ocupando um espaço crescente na política local. Vejamos os passos deste processo.

Entre meados de setembro e 1º de outubro de 2024, as explosões simultâneas de pagers e, em seguida, de walkie-talkies usados por integrantes do Hezbollah mataram 37 membros do grupo e feriram cerca de 3.000. Em seguida, pesados bombardeios contra as estruturas do Hezbollah assassinaram o seu líder, Sayyed Hassan Nasrallah, e cerca de 1.000 pessoas, a grande maioria das quais era de civis.[21]

Segundo vários analistas, atacar bairros residenciais de Beirute, bombardear famílias que saíam da cidade por rotas que o exército de Tel Aviv havia definido como seguras, além, obviamente, de atingir as posições do grupo libanês visava levar a opinião pública a dizer que o Hezbollah não podia sustentar Gaza à custa do Líbano. Produzir esta afirmação era um passo essencial para isolar politicamente a resistência.[22]

Enquanto aviões e mísseis devastavam o território libanês, os soldados israelenses enfrentavam seríssimas dificuldades para avançar no sul do país. Se o Hezbollah não dispunha de meios para deter os ataques aéreos, tinha preparação de sobra para transformar os combates em campo aberto numa prova de fogo para a invasão em curso. O passar dos dias revelava que, quanto mais duras as agressões bélicas, mais Tel Aviv insistia na narrativa pela qual eram as ações de Hezbollah que o obrigavam a atacar o país.

Esta postura transformava o agressor de civis indefesos em um defensor da justiça e a resistência num provocador cuja contenção impunha dor e morte a pessoas inocentes. A ideia de neutralizar o Hezbollah começou a ganhar espaço entre os principais atores da política libanesa para os quais ou o governo de Beirute se decidia a confrontar o grupo, ou teria que aceitar violações contínuas e crescentes por parte de Tel Aviv. Neste contexto, cada ataque aéreo fortalecia politicamente as facções libanesas alinhadas com o Ocidente e reafirmava a necessidade de desmantelar as forças do Hezbollah como condição para pacificar as relações entre os dois países.

Esta estratégia não se esgotou com o cessar-fogo assinado em 27 de novembro de 2024. Ao contrário, daquele momento em diante, ela continuaria nos ataques aéreos, marítimos e terrestre, sobretudo, contra o sul do Líbano, que, até o dia 25 de outubro deste ano, haviam somado mais de 270 vítimas civis em milhares de violações do cessar-fogo.[23] Esta ameaça sem trégua que paira sobre a população não só impede que a vida ganhe ritmos mais próximos da normalidade, como trata de convencer as vítimas de que nada mudará se o Hezbollah não depuser as armas.[24]

Na seara da política institucional, o cerco em volta do Hezbollah ficou mais apertado em janeiro de 2025, quando o general Joseph Aoun, um cristão maronita apoiado por EUA e Arábia Saudita, foi eleito Presidente do país pelo Parlamento. Uma semana depois, o mandatário substituiu o Primeiro-Ministro Najib Mikati, que contava com a preferência do Hezbollah, por Nawaf Salam. Aprovado pelos votos de 84 dos 128 parlamentares, Nawaf traduzia uma alteração importante no equilíbrio de poder entre as facções libanesas. De fato, além do apoio de cristãos e drusos, parlamentares muçulmanos sunitas e até alguns aliados do Hezbollah serraram fileiras em volta do seu nome alegando a necessidade de mudanças voltadas a fazer com que o país obtivesse o apoio árabe e internacional.[25]

Alguns meses depois, em meio à pressão de Estados Unidos, Israel, França e Arábia Saudita para costurar um cronograma de desarmamento do Hezbollah, governo e parlamento definiram que a tarefa de garantir a soberania e a segurança das fronteiras seria entregue somente ao Exército. Com o monopólio do uso da força garantido pela lei, o governo de Beirute começaria a desarmar o Hezbollah. Realizada esta tarefa, os EUA mediariam um cessar-fogo definitivo com Israel que, sem a ameaça do grupo xiita libanês, teoricamente, não teria razões para invadir os territórios a sul do Rio Litani.[26]

Com a legitimidade do direito internacional no brejo do descaso, quem garantirá o cumprimento de um acordo desta natureza? Diante da fragilidade das instituições internacionais, em que medida o fim da resistência armada do Hezbollah será um convite aberto ao avanço israelense no sul do Líbano? Vendo o apoio incondicional que Tel Aviv recebeu dos EUA na Faixa de Gaza, o silêncio de Washington diante das violações da soberania da Síria e a sua inércia diante do descumprimento do cessar-fogo assinado com o Líbano, como esperar que Israel será forçado a cumprir o que pactuará com Beirute? Bastam estas perguntas para entender a desconfiança do Hezbollah de que, uma vez neutralizada a sua capacidade militar, teremos um Líbano bem mais exposto às incursões de Tel Aviv.

Para pressionar o desarmamento do grupo, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e EUA vincularam a liberação de fundos para a reconstrução do país ao cumprimento desta medida. Enquanto isso, Israel segue atingindo as estruturas civis do sul do Líbano a fim de destruir o que o Hezbollah já conseguiu viabilizar em termos de recuperação econômica.

Entre o cessar-fogo e a primeira semana de setembro deste ano, o grupo xiita já havia efetuado reparos e construções de moradias por um valor correspondente a um bilhão e cem milhões de dólares e, no início de setembro, apresentou um plano de recuperação do sul do país no montante de 3 bilhões de dólares a ser realizado pela iniciativa privativa. A dedicação do Hezbollah à tarefa de fazer a vida da população voltar à normalidade se contrapõe aos atrasos do governo central em transformar em obras os 250 milhões de dólares do empréstimo obtido junto ao Banco Mundial dos quais só 40 milhões seriam destinados ao sul do Líbano.[27]

Este cenário permite entender por que Israel, no dia 11 de outubro de 2025, realizou uma onda de ataques aéreos tendo como alvos máquinas de escavação e tratores que atuavam na recuperação da estrada que liga as cidades de Saida e Nabatieh, uma rota vital para os moradores do sul do país.[28] Quinze dias depois, drones israelenses repetiriam o feito em Wadi al-Asafir, onde uma escavadeira que operava na área foi totalmente destruída.[29] Ao que tudo indica, o objetivo de mostrar a inutilidade dos esforços da recuperação caso a resistência não for desarmada continuará marcando os ataques contra as estruturas civis.[30]

Na seara da disponibilidade de armamentos pelo exército do Líbano, reparamos que os Estados Unidos fornecem apenas o que serve para administrar coercitivamente os atritos internos. Entre os suprimentos, não há nada capaz de afetar as operações da aviação militar e do exército israelenses e nem de derrubar seus mísseis e drones.

Enquanto isso, as pressões contra o Hezbollah não param de crescer. No dia 30 de setembro, por exemplo, o presidente da França, Emmanuel Macron, apoiou a realização de uma conferência organizada pela Arábia Saudita que acontecerá no final de 2025 e na qual os países árabes e europeus, os EUA e as nações do Commonwealth se encontrarão para reunir os meios que levem ao desarmamento do grupo.[31]

Mas, o que pensa o povo cuja vida segue no incômodo espaço entre o prego e o martelo?

No momento em que escrevemos, os resultados de uma pesquisa do Centro Consultivo de Estudos e Documentação do Líbano mostra uma forte oposição interna ao desarmamento do Hezbollah em função, sobretudo, da ausência de uma estratégia defensiva em condições de repelir as agressões israelenses. Pelos números apurados, 71,7% dos entrevistados acreditam que o exército do país não pode lidar sozinho com estes ataques enquanto 58,0% se recusam a aceitar que o Hezbollah entregue as armas sem um plano nacional de defesa capaz de garantir a integridade territorial do Líbano.[32]

Ao que tudo indica a ideia pela qual a resistência é uma barreira imprescindível à expansão de Israel continua ecoando entre a população libanesa, apesar dos sofrimentos impostos por Tel Aviv. Resta saber até quando este eco poderá ser ouvido.

 

3.     Palestina: um povo em resistência que não se dobra ao agressor

O extermínio é o único meio capaz de vencer um povo que transforma o medo em força para lutar pela liberdade. Mas para atirar impunemente em mulheres e crianças, devastar suas casas, bombardear hospitais, escolas, campos de refugiados e lugares de culto, usar a fome como arma de guerra e torturar presos até a morte é necessário que o opressor convença a maioria de que esta é a justa punição a ser infligida a alguém cuja selvageria não merece compaixão. Isso permite pleitear a impunidade aos crimes cometidos e continuar chamando de justo e verdadeiro somente o que atende aos interesses do genocida.

Os acontecimentos na Faixa de Gaza são o último e trágico exemplo desta realidade. Nas reflexões que seguem, não iremos resgatar a cronologia dos massacres sofridos pela população palestina, mas como os planos de Israel precisavam de um motivo para eliminar a resistência no território onde era mais forte.

Para muitos, a operação “Inundação de Al-Aqsa”, realizada por Hamas, Jihad Islâmica e demais grupos armados da Faixa de Gaza em 7 de outubro de 2023, não passa de um ato injustificável e condenável. Propositadamente isolada do sistemático descumprimento das resoluções da ONU por parte de Israel e da sua histórica negação dos direitos humanos para os palestinos, a incursão terrestre desta resistência choca na exata medida em que todos esquecem as operações promovidas pelas forças armadas de Tel Aviv que, mensalmente e durante os 75 anos anteriores, tiveram como alvo a população palestina.

A título de exemplo, basta pensar que, de janeiro de 2023 a agosto do mesmo ano, a ONU alertava que os 219 palestinos assassinados e os mais de 8.000 feridos em ações do exército israelense formavam um contingente superior ao total registrado no ano anterior.[33] Infelizmente, poucos no mundo souberam destas mortes e menos ainda foram aqueles que não viram nelas um castigo merecido pelo simples fato de envolver os palestinos.

Sabendo que as consequências eram potencialmente devastadoras, o que explica a Inundação de Al-Aqsa? Pelo que pudemos perceber, a incursão no território israelense próximo à Faixa de Gaza ocorreu num contexto em que a Questão Palestina repousava no baú do esquecimento das preocupações mundiais, com os países árabes assinando acordos de cooperação com Israel e diante da impossibilidade material de criar um Estado Palestino devido à crescente ocupação ilegal dos territórios da Cisjordânia e do cerco que estrangulava a Faixa de Gaza.

Com as portas do diálogo hermeticamente fechadas, o ataque da resistência visava criar uma onda de choque que trouxesse a Questão Palestina de volta à agenda internacional pelo único caminho que restava: cravando um espinho na garganta de Israel. O histórico de Tel Aviv não alimentava nenhuma ilusão quanto à possibilidade de uma resposta não devastadora, mas o custo futuro do não fazer implicaria numa ulterior e silenciosa espoliação do pouco que os palestinos ainda tinham.

Sabendo que a ação foi preparada ao longo de dois anos de planejamento e treinamento dos combatentes da resistência, muitas vezes à luz do dia, algumas perguntas inquietam nossas reflexões. Como é possível que um dos mais eficientes serviços secretos do mundo tenha deixado passar em branco uma preparação tão demorada? Com a fronteira entre Israel e a Faixa de Gaza vigiada 24 horas por dia através de soldados e do que há de mais moderno em sistemas de alerta e monitoramento, como acreditar que tudo isso não alertou em relação à iminência do ataque? Por que a apuração de uma falha desta magnitude continua enfrentando fortes resistências do governo Netanyahu?

Os fatos e os testemunhos aos quais tivemos acesso por diferentes meios de comunicação contam uma história diferente da oficial. Vamos a eles.

Quatro dias após o ataque às bases militares e aos vilarejos israelenses, um funcionário do governo do Egito e um parlamentar dos Estados Unidos afirmaram que, no dia 4 de outubro, Israel foi informado de que Hamas estava planejando “algo grande”.[34] A suspeita de que Tel Aviv sabia, mas não tomou providências, foi silenciada alegando que a comunicação deve ter sido feita a quem não tinha meios para compreender sua gravidade, como se os representantes dos serviços secretos egípcios passassem informações sigilosas a uma telefonista ou a um soldado raso.

Segundo uma publicação da mídia israelense do dia 13 de novembro de 2023, na noite entre o dia 6 e 7 de outubro, o Gabinete do Primeiro-Ministro, Benjamin Netanyahu, foi alertado sobre sinais preocupantes vindos da Faixa de Gaza. De acordo com a matéria: “A informação foi repassada a uma série de altos funcionários do Estado-Maior, da Diretoria de Operações e do Gabinete do Primeiro Ministro, da sala de operações que funciona 24 horas por dia 7 dias por semana e da Divisão de Pesquisa de Inteligência Militar, que deve receber e processar em tempo real todos os materiais coletados pela comunidade de inteligência. Nos casos em que estamos lidando com assuntos de importância imediata e urgente, é papel da sala de operações distribuir ainda mais esses materiais. O gabinete do chefe do Estado-Maior distribuiu os materiais do grupo por meio de um aplicativo semelhante ao WhatsApp em um celular criptografado no qual vários membros seniores do estabelecimento de defesa estão localizados, incluindo o coronel S., o oficial de inteligência do Gabinete do Primeiro Ministro e o primeiro-ministro”.[35]

Entre o final de novembro e os primeiros dias de dezembro de 2023, a mídia mundial fez ecoar a notícia, inicialmente divulgada pelo The New York Times, pela qual o governo israelense sabia dos planos de Hamas um ano antes dos mesmos serem concretizados. Apelidado de “Muro de Jericó”, o documento interno trazia detalhes de uma ofensiva que destruiria fortificações em volta da Faixa de Gaza e teria como alvos bases militares importantes nas proximidades da linha de fronteira. Em resposta, o governo de Tel Aviv alegou que oficiais de alta patente do exército e do próprio serviço secreto teriam avaliado que a dificuldade de a resistência palestina levá-la a cumprimento era motivo suficiente para não se preocuparem com seus planos.

Mais tarde, apareceram confirmações de que, semanas antes do 7 de outubro, a Agência de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) produziu duas avaliações, imediatamente partilhadas com Israel, pelas quais as chances de um conflito palestino-israelense estavam aumentando consideravelmente, sendo que o informe de 28 de setembro apontava que Hamás estava preparado para realizar ataques através da fronteira da Faixa de Gaza. No dia 5 de outubro, um telegrama da CIA alertava quanto à possibilidade crescente de violência por parte da resistência palestina e, no dia seguinte, “autoridades dos EUA fizeram circular relatórios de Israel indicando atividade incomum por parte do Hamas”.[36]

No dia 17 de janeiro de 2024, a BBC divulgou o testemunho de três jovens mulheres, recrutas do exército israelense e cuja função específica era de buscar indícios de qualquer atividade suspeita a partir de seus postos de observação. Todas afirmaram que, nos meses anteriores ao ataque de 7 de outubro, relataram a seus superiores a realização de ensaios de ataques, simulação de tomada de reféns e a presença de agricultores agindo de forma estranha nas proximidades da cerca que divide Israel da Faixa de Gaza. “«Nós os víamos ensaiando o ataque todos os dias», disse Noa [nome fictício], que ainda serve no exército, à BBC. «Eles tinham até uma maquete de tanque usada para treinar como tomar o controle. Eles também tinham maquetes de armas sobre a cerca e também mostravam como iriam explodi-las e, em um ataque coordenado, assumir o controle das forças, matar e sequestrar».”[37]

Seguindo na reportagem, a matéria acrescentava: “Numa base diferente ao longo da fronteira, Gal [nome fictício], diz que também observou a intensificação dos exercícios. Ela acompanhou, através de um balão de vigilância, a construção, no coração de Gaza, de uma réplica de uma arma automatizada israelense usada na fronteira. Várias mulheres também descrevem bombas sendo plantadas e detonadas perto da cerca – conhecida como Muralha de Ferro de Israel – aparentemente para testar sua potência. Imagens de 7 de outubro mostraram, mais tarde, grandes explosões realizadas antes que os combatentes do Hamas passassem em alta velocidade em motocicletas. (...) Noa diz ter perdido as contas de quantas vezes reportou o que viu. Dentro da unidade, todos «levavam a sério e repassavam, mas no final eles (pessoas de fora da unidade) não faziam nada a respeito».”[38]

Em 19 de junho de 2024, o site do G1 repercutiu as informações veiculadas por uma TV israelense no dia anteior pelas quais o Exército de Tel Aviv havia ignorado um relatório com detalhes das ações de Hamas na Faixa de Gaza que começou a circular no dia 19 de setembro de 2023 entre altos funcionários dos serviços de inteligência. A matéria dizia textualmente: O documento, a que a emissora teve acesso, descrevia detalhadamente os exercícios realizados por unidades de elite do Hamas. Incluía ataques simulados a um posto do Exército na fronteira e instruções específicas para o tratamento de soldados e reféns. (...) As soldadas Yael Rotenberg e Maya Desiatnik, que sobreviveram ao massacre, relataram, três semanas depois [do 7 de outubro], terem informado a seus comandantes sobre os exercícios que observavam perto da fronteira e se intensificavam na frequência. Ouviram deles que o relato não era importante e que não havia nada que pudesse ser feito a respeito”. [39]

No dia 6 de outubro de 2024, uma nova reportagem da BBC levantou que, no ataque ocorrido um ano antes, alguns equipamentos de vigilância não estavam funcionando ou podiam ser facilmente destruídos por Hamas. O texto também questionava o fato de tão poucos soldados israelenses estarem armados em uma base tão próxima da fronteira, a demora na chegada dos reforços, até que ponto a infraestrutura do local deixou as pessoas desprotegidas, as falhas numa cerca considerada impenetrável e, novamente, as razões pelas quais a inteligência nada preparou, apesar dos avisos recebidos.[40]

A nosso ver, estes fragmentos apontam para uma única explicação plausível: Israel conhecia os planos da resistência na Faixa de Gaza, deixou que se realizassem e se preparou para suscitar um nível de indignação e de raiva capaz de justificar o golpe com o qual pretendia aniquilar os grupos armados e forçar os palestinos a deixarem o território. Alguns elementos pouco divulgados na mídia internacional descrevem como isso foi feito.

O primeiro deles é a aplicação irrestrita da “Diretiva Hannibal” conduzida pelas forças armadas israelenses. Vejamos do que se trata.

A orientação que faz referência ao general cartaginês que, no ano 181 antes de Cristo, optou por se envenenar a fim de não ser feito prisioneiro pelos romanos foi elaborada em 2006, depois que soldados da infantaria israelense foram capturados pelo Hezbollah sem que seus colegas abrissem fogo por medo de alevejá-los. A libertação dos reféns foi paga com a soltura de um grande número de presos da resistência libanesa, razão pela qual o exército israelense considerou que o risco de matar os reféns era aceitável diante do elevado preço para trazê-los de volta. Desta forma, adotar a Diretiva Hannibal sempre teve um único significado: abrir fogo, ainda que isso implique em matar alguém do próprio povo.[41]

Os testemunhos dos civis israelenses que assistiram à resposta do seu exército ao 7 de outubro confirma a aplicação indiscriminada desta orientação. Dois casos ilustram o que isso significou em termos de fogo amigo. O primeiro deles é relatado por Yasmin Porat, sobrevivente de um ataque com tanques israelenses no Kibutz Be’eri, ao Canal 12 de Israel. De acordo com a reportagem: Na casa de Pessi Cohen, de acordo com Porat, os combatentes palestinos trataram mais de uma dúzia de civis israelenses "humanamente" e garantiram que não sofreriam mais danos. Os palestinos forneceram água e permitiram que saíssem para o gramado para escapar do calor.

De acordo com Porat, os combatentes queriam que as autoridades israelenses, que eles pensavam que já estariam se concentrando na área, lhes garantissem passagem segura de volta a Gaza, onde libertariam os civis na fronteira. As demandas dos combatentes foram transmitidas a Porat por meio de Suhayb al-Razim, um motorista de microônibus palestino de Jerusalém Oriental ocupada, que eles também capturaram e forçaram a servir como tradutor de hebraico. Al-Razim havia sido capturado no início do dia enquanto transportava foliões israelenses de e para a rave Supernova.

A pedido dos combatentes palestinos, Porat chamou a polícia israelense para que os atiradores pudessem negociar sua saída. Depois de vários telefonemas com a polícia, os reféns e seus captores esperaram a chegada das forças israelenses. Quando essas forças finalmente chegaram à casa de Pessi Cohen, começaram a atirar sem aviso prévio, disse Porat.

"Estávamos do lado de fora e de repente houve uma saraivada de balas contra nós da [unidade israelense] YAMAM. Todos nós começamos a correr para encontrar cobertura", disse Porat ao Canal 12. Em meio ao tiroteio que se seguiu, um comandante palestino, mais tarde identificado como Hasan Hamduna, negociou sua própria rendição com as forças israelenses. Eles o instruíram a se despir e sair com Porat.

Quando eles saíram, Porat pediu aos israelenses que parassem de atirar, o que eles fizeram. Então ela viu vários moradores do kibutz deitados no chão - pessoas que, com uma exceção, acabariam mortas. Questionada se as forças israelenses podem tê-los matado, Porat respondeu: "sem dúvida". "Eles eliminaram todos, incluindo os reféns. Porque houve fogo cruzado muito, muito pesado", disse Porat. "Fui libertada aproximadamente às 17h30. A luta aparentemente terminou às 20h30. Após fogo cruzado insano, dois projéteis de tanque foram disparados contra a casa. Entre os mortos pelos projéteis do tanque estavam Adi Dagan e o parceiro de Porat, Tal Katz.

Hadas Dagan ficou ferido, mas sobreviveu - o único israelense além de Porat a sair vivo da batalha. Em outra entrevista no mês passado, Porat revelou que, de acordo com Hadas Dagan, o bombardeio do tanque também matou Liel Hatsroni, uma menina de 12 anos que os propagandistas israelenses alegavam ter sido assassinada por palestinos.

(...) Nof Erez, um coronel da força aérea israelense, chegou a chamar a resposta israelense a 7 de outubro de «Hannibal em massa».”[42]

As imagens de carros destruídos e de casas incendidadas ou reduzidas aos escombros percorreram o mundo. O que poucos se perguntaram é quem produziu tamanha devastação. A resposta que atribuía a responsabilidade aos palestinos parecia óbvia demais para ser questionada, ainda que ninguém conseguisse explicar como e porque cerca de 250 deles haviam morrido carbonizados. Inicialmente ensaiada pelos depoimentos de civis que viram perplexos os tanques, soldados e helicópteros de combate do seu próprio exército dispararem contra tudo o que se movia foi confirmada em fevereiro de 2025 pelo então Ministro da Defesa, Yoav Gallant.

Durante a entrevista, Gallant confirmou que o fogo de helicópteros, drones, tanques e soldados havia sido liberado. Suas palavras confirmavam o relatório oficial pelo qual, durante a ação das forças de Tel Aviv em 7 de outubro, foram disparados cerca de 11.000 projeteis, mais de 500 bombas de uma tonelada e 180 mísseis. Tudo isso sem que fosse possível distinguir quem era quem.[43] Então, quantos dos 1.139 israelenses que constam do registro oficial de mortos faleceram pela ação do seu próprio exército? Infelizmente, esta é uma pergunta para a qual nunca teremos uma resposta.[44]

A segunda medida para elevar a indignação se baseou em narrativas amplamente divulgadas por Israel após o ataque. Relatos de bebês decapitados, crianças queimadas vivas e mulheres estupradas pela resistência palestina percorreram o mundo como um rastilho de pólvora. Baseadas em afirmações de altos graduados do exército israelense, as acusações caíram por terra nas investigações da própria mídia israelense.[45] Sem registros em vídeo, sem provas forenses e, no caso das mulheres supostamente violentadas, sem que nenhuma delas se apresentasse aos órgãos competentes apesar dos seguidos apelos das autoridades, a insustentabilidade das acusões se tornou cada vez mais clara com os relatos dos sobreviventes e a recusa do governo de criar uma comissão de investigação independente.[46]

No dia 11 de outubro de 2023, o porta-voz do exército, major Nir Dinair, disse durante uma entrevista ao Business Insider que suas declarações se baseavam apenas em relatos de militares israelenses e acrescentava: "Isso é uma evidência suficiente, na minha perspectiva". "Eu, como militar, não vou investigar ou contar o número de bebês cujas gargantas foram cortadas ou decapitadas".[47] Israel não estava interessado em apurar a verdade, e sim em fazer com que as histórias chocantes que ricocheteavam na mídia mundial pintassem os palestinos como animais selvagens e desumanos, um passo fundamental para justificar a resposta genocida que começava a ser executada.

O esforço de Tel Aviv para eliminar a resistência na Faixa de Gaza pode se visualizado pelos números do genocídio. Divulgados em 5 de outubro de 2025, os dados mostram que, em quase dois anos de bombardeios e incursões terrestres: 2 milhões e 400 mil palestinos foram submetidos à fome; mais de 200.000 toneladas de explosivo mataram 67.139 pessoas e deixaram outras 9.500 desaparecidas; entre os mortos, encontramos mais de 20.000 crianças, 1.670 profissionais de saúde, 254 jornalistas, 140 integrantes da defesa civil e 540 trabalhadores humanitários; mais de 12.000 abortos espontâneos foram registrados devido à fome e à falta de assistência médica; os feridos chegaram a 169.583, o que inclui 4.800 amputados, 1.200 casos de cegueira e cerca de 19.000 pessoas que precisam de reabilitação de longo prazo; cerca de 6.700 civis foram detidos, sendo que este número inclui 362 profissionais de saúde, 48 jornalistas e 26 trabalhadores da defesa civil; 38 hospitais e 96 centros de saúde foram bombardeados ou ficaram inoperantes; 165 instituições educacionais foram completamente destruídas e 392 parcialmente danificadas; 785.000 estudantes continuam privados do acesso à educação; quase 2 milhões de civis foram deslocados e 293 abrigos e centros de deslocados foram alvos de bombardeios e ações do exército; 650.000 crianças correm o risco de morte por desnutrição e 40.000 bebês menores de um ano têm suas vidas ameaçadas pela escassez de fórmula infantil; a destruição atingiu também 94% das terras agrícolas, 725 poços de água, 5.080 km de rede de eletricidade, 700 Km de redes de água e esgoto e a maior parte do sistema viário da Faixa de Gaza; a estimativa inicial das perdas materiais é de 70 bilhões de dólares.[48] Interpretar esses números como expressão do direito de Israel se defender do terrorismo é assumir a cumplicidade por um genocídio premeditado.

Após dois anos de massacres, Tel Aviv não conseguiu nenhum dos objetivos que se propunha. O exército fracassou tanto em libertar os reféns com o uso da força, como em provocar um êxodo em massa da população (objetivo que possibilitaria a incorporação imediata da Faixa de Gaza ao território israelense) e em forçar a rendição dos integrantes da resistência. Quanto mais bombardeava e matava, mais as notícias que percorriam o mundo provocavam o colapso da imagem de Israel, levando até um número considerável de judeus a condenar as ações de Tel Aviv e a marcar a fronteira entre o que é ser judeu e o que significa estar envolvido no projeto do Grande Israel cultivado pelo sionismo.

Apesar dos ataques sofridos, a resistência popular e armada souberam se adequar às necessidades do momento. Entre os escombros de suas casas, nos campos de refugiados, enfrentando 222 dias de interrupção do fornecimento de alimentos e suprimentos hospitalares, sem poder contar com nenhum lugar que merecesse o apelido de “seguro”, a população mostrou a firmeza e a resiliência típicas de quem, apesar dos lutos e dos sofrimentos, não baixa a cabeça diante de quem lhe nega o direito à terra e à liberdade.

Isso fez com que, de norte a sul, de leste a oeste, a causa palestina se tornasse um símbolo de resistência, despertasse o apoio de milhões de pessoas em vários países, visse governos serem acuados pelos protestos dos seus cidadãos, levasse as Nações Unidas, o Tribunal Penal Internacional, a Corte Internacional de Justiça e inúmeras ONGs a condenarem o governo de Tel Aviv por crimes de guerra e contra a humanidade.

As negociações que seguem em meio ao cessar-fogo imposto a Netanyahu pelos Estados Unidos, instável e já violado pelas forças armadas israelenses,[49] mostram os impasses que a paz encontra para atravessar a ponte que separa o desejo da realidade.

Nas incertezas que cercam o momento em que escrevemos, uma coisa é certa: Israel não pagará pelos crimes que cometeu e esta impunidade o torna apto a retomar a guerra.[50] Cortar a ajuda humanitária pactuada no acordo de cessar-fogo é parte deste plano. Para termos uma ideia do que isso significa, basta pensar que, de acordo com o Programa Mundial de Alimentos da ONU, entre o dia 10 e o dia 21 de outubro, a quantidade média diária de comida distribuída na Faixa de Gaza foi de 750 toneladas, bem abaixo das 2.000 toneladas previstas.[51] Desta forma, a desnutrição se alia às infecções causadas pelas condições catastróficas em que os palestinos enfrentam a estação fria para ampliar o número de vítimas fatais e impedir que o povo se recupere do esgotamento em que se encontra.

Ninguém sabe quem governará a Faixa de Gaza e nem se Israel aceitará entregar à futura administração os mesmos territórios com os quais o enclave costeiro contava antes do 7 de outubro. Ao que tudo indica, mantido o fim das hostilidades, Tel Aviv tentará encurralar a população palestina num espaço menor em relação ao que tinha. Conseguir esse feito mostrará aos israelenses que valeu a pena morrer para expandir o território e fortalecerá o Exército para as próximas “missões”.

Em relação ao desarmamento da resistência palestina, Hamas, Jihad e os demais grupos deixaram a entender que isso só ocorrerá na medida em que seus contingentes forem integrados a forças armadas destinadas a defender a soberania dos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, ou seja, no interior de um futuro Estado palestino. Esta posição faz entrar pela janela o que Israel, EUA, União Europeia, Reino Unido e a quase totalidade dos países árabes trataram de expulsar pela porta: a incômoda presença de grupos armados que existem porque a ocupação israelense existe.

Focar a solução do conflito no desarmamento dos grupos que atuam na Faixa de Gaza não constrói a paz, mas apenas consolida a apartheid que, ao sufocar os palestinos, amplia as condições de expansão econômica, política, militar e territorial de Israel. Ou seja, para as potências envolvidas, não se trata de fazer justiça para que a resistência perca a sua razão de ser, mas de silenciar as suas expressões mais contundentes para que os palestinos aceitem abrir mão dos direitos já reconhecidos pela ONU, de tudo o que os faz ser um povo e de qualquer resposta às investidas de Israel.[52] No lugar de fazer justiça para que haja paz, a aposta dominante é que a mesma será obtida pelo desarmamento dos que reagem à opressão. Se isso não acontecer, Washington e Tel Aviv já deixaram claro que irão mata-los.

Há muito sangue escorrendo da bandeira palestina que teima em tremular ao vento deste outubro de dores e esperanças. Mantê-la hasteada é parte do esforço para que os palestinos e o setor da humanidade que acolhe seus sofrimentos transformem destruição e genocídio no passo de uma resistência que luta pela terra e pela liberdade.

 

Emilio Gennari, Brasil, 27 de outubro de 2025.

 



[2] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/cn8gy7vd3lwo  Acesso realizado em 08/12/2024.

A recompensa pela captura do líder do HTS foi retirada no dia 20 de dezembro, quando a perplexidade manifestada em algumas reportagens da mídia mundial colocou o governo estadunidense diante da contradição que ele próprio havia criado com a que, na época, se apresentava como uma inexplicada mudança de postura. Maiores informações podem ser obtidas em: https://www.bbc.co.uk/news/articles/c07gv3j818ko  Acesso realizado em 22/12/2024.

[3] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0kvjmejdxzo  Acesso realizado em 02/01/2025.

[4] As Colinas de Golã são uma região de 1.800 Km2 que, segundo a ONU, pertence à Síria. No entanto, em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias, Israel ocupou dois terços desse território. Após a Guerra do Yom Kippur em 1973, um armistício foi assinado entre Tel Aviv e Damasco. O pacto previa, justamente, a existência desta zona desmilitarizada de 70 km. Em 1981, Israel anexou unilateralmente o território das Colinas de Golã. Em 2019, o presidente dos EUA, Donald Trump, reconheceu a soberania israelense sobre as Colinas de Golã, sendo os EUA o único país a fazê-lo.

[5] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/c62zek34mnjo  Acesso realizado em 09/12/2024.

[11] Para entendermos a relação de Israel com os drusos, precisamos lembrar que, além de retribuir o apoio dado pelo grupo étnico quando da ocupação das Colinas de Golã, a própria população drusa israelense, integra as forças armadas de Tel Aviv e alguns de seus membros ocupam cargos importantes no interior delas. Por isso, sempre que os drusos da Síria sofrem algum tipo de perseguição, este setor pressiona o governo de Israel a agir. Em: https://www.palestinechronicle.com/syrian-bloodshed-in-sweida-and-israels-insidious-agenda/  Acesso realizado em 30/09/2025.

Informações mais recentes a respeito desta relação podem ser encontradas em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2025/10/24/siria-aumenta-alistamiento-de-drusos-del-golan-sirio-en-ejercito-israeli/  Acesso realizado em 25/10/2025.

[17] Vale lembrar que, na tentativa de equilibrar as divisões internas entre sunitas, xiitas, drusos e cristãos, o Pacto Nacional de 1943 distribuiu o poder público entre as diferentes comunidades religiosas da forma que segue: a Presidência do país fica a cargo dos cristãos maronitas, o primeiro-ministro seria um muçulmano sunita e o Presidente da Câmara dos Deputados seria um muçulmano xiita. No clima do país anterior à guerra civil, não faltavam questionamentos a esta divisão dos cargos e nem disputas de privilégios entre os principais grupos religiosos do país. Contudo, como dissemos no texto, serão os atritos em volta do apoio à resistência palestina a desequilibrar as relações entre os grupos étnico-religiosos.

Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy805je6pzlo Acesso realizado em 08/10/2025.

[18] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy805je6pzlo  Acesso realizado em 08/10/2025.

[19] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy89j201rz5o    Acesso realizado em 08/10/2025.

[21] No domingo, dia 19 de outubro de 2025, Netanyahu confirmou oficialmente a autoria destas ações. Em: https://www.palestinechronicle.com/for-first-time-netanyahu-speaks-on-israels-pager-bombings-nasrallahs-killing/  

Acesso em 19/10/2025.

[35] Em: www.ynet.co.il/news/article/yokra14148990  Acesso realizado em 11/10/2025.

[37] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyx4z9nj92ro  Acesso realizado em 11/10/2025.

[38] Idem.

[40] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz6w8wj12v0o  Acesso realizado em 11/10/2025.

[45] Você pode ter acesso a alguns dos materiais israelenses que desmascararam os relatos das crueldades contra os bebês em:

- https://www.uncaptured.media/p/from-the-40-beheaded-babies-deception 

- https://www.uncaptured.media/p/debunked-israel-claims-that-hamas 

- https://www.uncaptured.media/p/update-israeli-military-spokesperson 

Acessos realizados em 11/10/2025.

[49] Entre o início do cessar-fogo, em 10 de outubro, e a meia-noite do dia 19 de outubro, as tropas israelenses já haviam somado 80 violações documentadas do cessar-fogo que resultaram na morte de 97 palestinos e no ferimento de outros 230. Em: https://www.palestinechronicle.com/talks-underway-to-reinforce-gaza-ceasefire-mechanism-after-israeli-violations/ 

Acesso realizado em 20/10/2025.

[51] Em: https://news.un.org/pt/story/2025/10/1851300 Acesso realizado em 21/10/2025.