Esperar
que Trump deixe de fanfarronices e arroubos de retórica é uma perda de tempo. Adepto
da política-espetáculo e pronto a mentir descaradamente, o novo Presidente dos
EUA construiu seu capital político projetando as miragens de uma idade do ouro
que só os grupos de poder conhecem em suas reais possibilidades e
consequências. Violar o direito internacional,
romper as relações com instituições incômodas, negar princípios consagrados,
retaliar manifestações de rebeldia e sufocar as resistências são parte do
cardápio com o qual procurará “recalibrar” as
políticas externa e interna dos EUA tendo a chantagem e o medo como abre-alas
da sua atuação.
Vimos o primeiro ensaio desta realidade na duríssima resposta ao
governo colombiano que se recusou a aceitar que aviões militares trouxessem os migrantes
ilegais deportados. Aliada de Washington, Bogotá foi imediatamente ameaçada com
a imposição de uma tarifa de 25% sobre as exportações para os EUA, com sanções
ao Tesouro e ao sistema financeiro, com o cancelamento dos vistos de
autoridades do governo e do próprio Presidente da República, Gustavo Petro. Ao
assumir os custos da repatriação, a Colômbia neutralizou os problemas que
atingiriam a sua economia, mas não há como negar que o caso foi uma severa advertência
a quem pretende contrariar as ações do “império”.[1]
Dias depois, uma situação parecida atingiu o México e o Canadá
que, numa clara violação do acordo comercial assinado pelo próprio Trump em seu
primeiro mandato, viram suas exportações oneradas em 25% e por motivos que não
guardam nenhuma relação com o comércio internacional. A trégua de 30 dias
conseguida pelos dois governos foi “comprada” com o envio de milhares de
soldados às fronteiras com os EUA para inibir o tráfico de drogas e a entrada
ilegal de imigrantes. Mais uma vez, os súditos aceitaram pagar a conta do
imperador que arrancará deles novas concessões.[2]
Internamente, a ulterior redução do tamanho do Estado na qual Elon
Musk trabalha febrilmente se destina a poupar os recursos necessários à
implantação dos projetos de uma oligarquia cujos interesses estão atrelados ao
aumento da dissuasão militar, ao uso da Inteligência Artificial como arma de
disputa geopolítica e à construção de uma ordem interna autoritária. Resgatar a
realidade que permite entender os primeiros passos das mudanças em curso é o
objetivo das reflexões que seguem.
1. De olho no
Canal do Panamá.
Diante das declarações pelas quais
Trump afirmava não dispensar qualquer meio para assegurar o controle do Canal
do Panamá, não faltaram vozes seriamente preocupadas com uma possível intervenção
militar. Baixada a poeira, já dá para perceber que a estratégia do mandatário
estadunidense procurava ganhar a luta sem desembainhar a espada. Este resultado
só pode ser conseguido quando o guerreiro faz com que o seu adversário,
conhecendo a sua força e os motivos de suas ameaças, cede o que lhe é pedido para
evitar uma derrota tida como certa.
A ideia de retomar o controle do Canal
do Panamá, que os EUA entregaram ao governo local em dezembro de 1999,[3]
foi apresentada como uma ação essencial para “proteger o mundo livre” das
garras da China. De acordo com as afirmações do próprio Trump, o gigante
asiático estaria supervisionando as operações deste corredor interoceânico e
encarecendo o pedágio que onera 72% da carga que passa por ele tendo como
origem ou destino um porto dos EUA.[4]
O governo panamenho mostrou que as afirmações de Trump não fazem sentido, mas
as suas explicações não diminuíram a desconfiança de Washington. Sendo assim,
vamos verificar o que, de fato, está acontecendo.
A possibilidade de uma intervenção
militar estadunidense que retire a soberania sobre o Canal consta do acordo de
1999. Pelos termos do mesmo, o Panamá tem o controle exclusivo das operações da
via interoceânica, mas deve assegurar que elas não sejam influenciadas por
nenhuma outra nação. Caso esta neutralidade seja ameaçada, os EUA tem o direito
de utilizar a força militar para restabelecê-la.
Mas o que estaria violando esta
neutralidade? A resposta da Casa Branca é curta e grossa: os investimentos
chineses.
De acordo com uma matéria da BBC, “Dois dos cinco portos adjacentes ao Canal,
Balboa e Cristobal, localizados, respectivamente, nos lados Pacífico e
Atlântico, são operados por uma subsidiária da Hutchison Port Holdings, desde
1997. Por sua vez, esta empresa é subsidiária da CK Hutchison Holdings, um
conglomerado com sede em Hong Kong.(...)
A exploração desses portos oferece à CK Hutchison Holdings uma
grande quantidade de informações estratégicas potencialmente úteis sobre os
navios que transitam pelo Canal, afirmou Ryan Berg, diretor do Programa das
Américas do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, um centro de
pesquisas com sede em Washington.
«Existe uma crescente tensão geopolítica de caráter econômico
entre Estados Unidos e China», disse Berg. «Esse tipo de informação sobre carga
seria extremamente útil no caso de uma guerra, por envolver o controle das
cadeias de suprimentos». Embora a CK Hutchison Holdings não seja uma estatal
chinesa, Berg mencionou que, em Washington, há preocupações sobre o grau de
controle que Pequim poderia exercer sobre a empresa.
Segundo Andrew Thomas, professor da Universidade de Akron, nos
EUA, e autor de um livro sobre o Canal, as licitações para operar esses portos
enfrentaram pouca concorrência. «Naquela época, os EUA não davam importância a
esses portos, e a Hutchison não encontrou objeções», explicou Thomas.
Empresas chinesas, tanto privadas quanto estatais, também
ampliaram sua presença no Panamá com investimentos de bilhões de dólares,
incluindo a construção de um terminal de cruzeiros e de uma ponte sobre o
Canal. Esse «pacote de atividades chinesas», como descreveu Thomas, pode ter
motivado a declaração de Trump de que o Canal seria «propriedade» da China,
embora a operação desses portos não equivalha à propriedade, enfatizou.
A posição estratégica do Panamá faz com que a China esteja há anos
trabalhando para aumentar sua influência no país e expandir sua presença em um
continente que, tradicionalmente, tem sido considerado o «quintal» dos Estados
Unidos”.[5]
Basta isso para os EUA declararem
que a neutralidade do Canal está comprometida e se faz necessária uma
intervenção armada para restabelecê-la?
Tudo indica que não. Contudo, as
ameaças de Trump mandam um recado ao governo panamenho: está na hora de não aceitar
investimentos chineses na infraestrutura e de fazer com que este espaço seja
ocupado por empresas estadunidenses. O avanço da China em função do que podemos
chamar de “um cochilo” de Washington pode ser recuperado com um ambiente que
crie uma situação de insegurança em relação aos lucros esperados. Concretamente,
trata-se de fazer com que algumas empresas chinesas se desfaçam do que
construíram e outras engavetem os novos projetos enquanto o império negocia
condições favoráveis à sua presença nas atividades consideradas estratégicas.
Os primeiros passos deste processo mostram que as ameaças
atingiram o alvo desejado. Durante a visita do Secretário de Estado dos EUA,
Marco Rubio, o governo do Panamá decidiu sair da Nova Rota da Seda (o projeto
de expansão dos investimentos internacionais de Pequim ao qual havia aderido em
2017) e deportou 43 colombianos que atravessavam o país rumo à fronteira do
México com os EUA. Trump aprovou as medidas, mas já avisou o governo de José
Raul Mulino de que espera bem mais.[6]
Da América Central, subimos em direção ao Polo Norte.
2.
A Groenlândia ao centro das atenções mundiais.
Entender as ameaças de Trump de ocupar militarmente a Groenlândia
caso a Dinamarca não venda este território aos EUA demanda um pouco mais de
paciência. Em primeiro lugar, precisamos dizer que o Republicano não é o
primeiro Presidente a negociar a compra desta ilha. A primeira vez que isso
ocorreu foi no mandato Andrew Johson, em 1860, e, por incrível que pareça, pelos
mesmos motivos: os recursos naturais e a localização estratégica do território.
A Groenlândia tornou-se um posto
militar importante após o final da Segunda Guerra Mundial, quando os temores de
um ataque nuclear soviético começavam a marcar as relações entre Oriente e
Ocidente. Em 1946, Harry Truman ofereceu 100 milhões de dólares em ouro para
comprar a ilha, mas o governo da Dinamarca rejeitou a oferta. As negociações
caminharam paralelamente à criação da Organização do Atlântico Norte (OTAN) e
levaram a um acordo pelo qual Copenhague permitia que os EUA construíssem uma
base militar em Thule (a atual Pituffik), no noroeste da Ilha. No momento em
que escrevemos, esta posição avançada abriga o 12º Esquadrão de Alerta Espacial
dos EUA que, graças a um imponente sistema de radares, rastreia os lançamentos
de mísseis russos e as trajetórias de satélites espiões nas órbitas mais baixas
da atmosfera terrestre.[7]
Por isso, quando Trump fala em “comprar
a Groenlândia” não está dizendo nada novo e nem tão destrambelhado quanto
muitos imaginam. Os problemas de sua retórica começam quando cita a
possibilidade de uma invasão armada para tomar a ilha, caso a Dinamarca não
ceda o seu controle. Caso esta invasão viesse a se efetivar, o mandatário
estadunidense estaria colocando em apuros a própria OTAN, da qual a Dinamarca é
uma integrante de primeira hora. De fato, segundo as regras da Organização,
todos os aliados deveriam socorrer Copenhague e combater o agressor que, por
sinal, é quem sustenta financeiramente a própria OTAN e fornece a grande
maioria dos equipamentos bélicos dos quais os países membros dispõem.
Mas, afinal, por que a Groenlândia
é tão importante? A resposta guarda uma relação direita com três elementos: as rotas
marítimas internacionais, os recursos naturais da ilha e os investimentos
bélicos na região do Ártico.
Como todos sabem, o degelo acelerado
do Polo Norte permite que o tráfego marítimo nas águas circunstantes seja
possível por períodos cada vez mais longos. Durante mais de cinco meses, os
navios chineses já usam a rota que, do gigante asiático, sobe em direção à
Sibéria e chega aos principais portos da Europa pelos mares da região ártica da
Rússia, reduzindo em mais de dez dias o tempo de navegação empregado no trajeto
alternativo que percorre o Oceano Índico e atravessa o canal de Suez.
O aquecimento global abre à China
a possibilidade de explorar também a rota que atravessa o Oceano Pacífico e
alcança os portos da costa leste do Canadá e dos EUA passando pelo estreito
entre o Alaska e a Sibéria, evitando assim o Canal do Panamá, já bastante
congestionado pelos mais de 14.000 navios que o atravessam todos os anos. Mas,
para isso, Pequim precisa de portos onde seus cargueiros podem embarcar o
necessário para seguir viagem. Concretamente, o desejo da China é de ter dois
portos na Groenlândia. Mas, sabendo que este seria um dos passos para estender
o controle de Pequim sobre a ilha, os EUA têm agido no sentido de inviabilizar
esta possibilidade junto ao governo dinamarquês.
Em relação aos recursos naturais,
o descongelamento mais prolongado da região sudoeste da Groenlândia, onde se
concentram os seus povoados e a própria capital, Nuuk, permite a exploração do
subsolo local. De acordo com as estimativas do Serviço Geológico dos Estados
Unidos, o Ártico pode abrigar até 90 bilhões de barris de petróleo tecnicamente
recuperável e um trilhão e 670 bilhões de pés cúbicos de gás natural. Contudo, até
o momento, todas as tentativas de encontrar hidrocarbonetos na Groenlândia frustraram
as expectativas do setor.[8]
Notícias mais promissoras estão
aparecendo em relação às Terras Raras, um conjunto de 17 elementos químicos
essenciais para fabricar equipamentos eletrônicos e bélicos (basta pensar que
um caça furtivo F-35 estadunidense demanda cerca de 400 kg de terras raras,
enquanto a construção de um submarino nuclear classe Virgínia requer 4
toneladas). De acordo com os dados disponíveis, a Groenlândia tem reservas de
Terras Raras estimadas em um milhão e 500 mil toneladas, 100 mil toneladas a
mais em relação à quantidade que se supõe possa ser encontrada nos Estados
Unidos. Sendo assim, controlar a extração e o beneficiamento destes elementos é
algo vital para Washington diante de uma Rússia que dispõe de 12 milhões de
toneladas e de uma China cujas jazidas estão estimadas em 44 milhões de
toneladas (respectivamente, 10% e 38% da disponibilidade mundial). [9]
No momento em que escrevemos, as
duas mineradoras que prospectam Terras Raras na Groenlândia têm capital
majoritariamente australiano, mas a que opera o “projeto Kvanefjeld” tem uma estatal chinesa como sócia (a Shenghe Resources).
Ainda que os volumes extraídos não sejam significativos quando comparados aos
das minas do gigante asiático, é impossível não perceber que Pequim está colocando
seu “pezinho” neste empreendimento a fim de ampliar o controle sobre a disponibilidade
mundial destes minerais. Acrescente que, já em seu primeiro mandato, Trump
havia incluído as Terras Raras entre os fatores críticos para a segurança dos
EUA e que a China é responsável por 60% da extração e 85% do processamento
mundial destes minérios e entenderá as preocupações de um império que precisa destas
matérias-primas para as suas armas mais letais.[10]
Mas quando Trump diz que os EUA precisam da Groenlândia para fins
de segurança nacional,[11]
está se referindo a uma realidade mais urgente: a militarização do Ártico. Antes
de seguir na leitura, observe o mapa ao lado.[12]
Nele,
as bases militares russas (sinalizadas pelos quadradinhos vermelhos) cercam o
espaço ártico de ponta a ponta. Modernizadas e ampliadas ao longo dos últimos
15 anos, estas posições contam com tropas equipadas para sustentar combates a
uma temperatura de 50 graus negativos e com o que há de mais moderno em termos
de sistemas de radares, defesa aérea e possibilidades de ataque com mísseis ao
território estadunidense. A depender do local de lançamento, o tempo entre a
partida de um foguete militar russo e a sua entrada no espaço aéreo dos EUA
pela rota que atravessa o Polo Norte é estimado entre 15 e 18 minutos, mas este
intervalo pode cair substancialmente no caso dos mísseis hipersônicos.
As
bases de defesa e ataque estadunidenses mais próximas estão no Alaska, o único
território dos EUA na região do Ártico. Concretamente, isso significa que, após
a sinalização do lançamento de foguetes russos, o tempo útil de interceptação pelos
equipamentos posicionados em seu território e nas bases da OTAN ao norte do
Canadá é curto demais para impedir a entrada no espaço aéreo estadunidense com
certo grau de confiabilidade.[13]
Estas
brevíssimas reflexões permitem entender dois aspectos das falas de Trump. O
primeiro guarda uma relação direta com a vontade de transformar a Groenlândia
na base avançada do sistema de interceptação e ataque de Washington. Isso
elevaria as chances de neutralizar os mísseis russos, mas transformaria a ilha
num alvo imediato de Moscou que precisaria se livrar destas posições para
atingir os EUA. Ou seja, o território dinamarquês seria o primeiro a ser sacrificado
para que o estadunidense permaneça intacto.
O
segundo aspecto guarda uma relação direta com a afirmação de Trump pela qual o
Canadá deveria se tornar o 51º estado da federação.[14] No
momento em que escrevemos, os dois países divergem em relação ao papel e à
presença da OTAN no Ártico. O governo de Ottawa afirma que a Organização
Atlântica não deveria interferir na região, pois, ao ampliar seu poder de fogo,
elevaria a exposição do seu território a eventuais ataques russos. Bom, não
precisamos ser especialistas em relações internacionais para entender que, como
membro dos EUA, a decisão de onde e que tipo de base militar instalar seria do
Pentágono em colaboração com o governo federal e não do que viria a ser um mero
governador do Canadá. Além das possíveis consequências em caso de conflito,
abrigar bases militares da OTAN forçaria o Canadá a aceitar restrições e controles
militares que influiriam negativamente em seus interesses econômicos.
Contudo,
a resistência de Ottawa às investidas de Donald Trump pode ser fragilizada na
exata medida em que o imposto de 25% sobre suas vendas aos EUA seja reafirmado
e produza estragos econômicos superiores aos que teria se cedesse às pressões do
mandatário estadunidense. Fazer com que esta barreira tarifária seja
definitivamente esquecida depende de o país se integrar corpo e alma às
necessidades do império, uma posição que as palavras de próprio Trump traduzem de
forma convidativa ao sublinhar que o Canadá teria muito menos impostos, proteção
militar muito melhor para o seu povo e não pagaria tarifas para comercializar
suas mercadorias.[15] Após o fim da atual trégua
de 30 dias devemos começar a vislumbrar mais elementos da evolução desta queda
de braço.
Como vimos, a pressa de Trump em
redefinir a política militar para o Ártico tem várias justificativas. Mas a
principal dela é de caráter militar, pois, diante do vazio criado pelo
esgotamento dos acordos internacionais de limitação de armas nucleares e de
controle dos seus meios de lançamento, o desenvolvimento estadunidense dos
mísseis hipersônicos e dos sistemas para interceptá-los está bastante atrasado
em relação à Rússia. Entre os problemas para recuperar o terreno perdido
encontramos o preço deste esforço de guerra que o Presidente dos EUA procurará
repassar a todos os governos que cederem às suas chantagens.
3.
Os primeiros passos da nova ordem
interna
Por
muito que os discursos oficiais marquem os debates da mídia, qualquer
governante sabe que não é possível viabilizar as mudanças que deseja só com as
palavras. Recalibrar a política do Estado demanda ações que esvaziem o que não
soma com as metas propostas, criem políticas alinhadas aos novos rumos do poder
e afirmem sentidos que consolidam o consenso social quanto à necessidade das
mesmas.
Para
que o orçamento a ser discutido em março deste ano tenha espaço suficiente para
as novas prioridades do governo, Trump está decidido a eliminar sem cerimônias
os projetos que não somam com o seu mandato. É assim que, em pouco mais de 15
dias depois da posse, a tesoura governamental estadunidense já cortou os
valores que supriam 42% da ajuda humanitária mundial rastreada pela ONU, as
verbas para a Organização das Nações Unidas e para a Organização Mundial da
Saúde, os recursos de vários programas sociais locais e abriu um processo de demissão
voluntária que não poupou os próprios funcionários da Agência Central de
Inteligência (CIA).[16]
Nenhuma
reação popular repudiou os cortes que ameaçam vitimar milhões de pessoas cuja
sobrevivência dependia dos recursos eliminados.[17]
Só a justiça federal interveio para anular a ordem executiva com a qual Trump
bloqueou os gastos sociais aprovados pelo Congresso à medida que o seu conteúdo
violava os limites legais que regulamentam a sua emissão.
Mas,
se Trump sabia que esta ordem poderia ser rechaçada, porque não entregou a
tarefa de remanejar estas verbas à maioria com a qual conta nas duas Casas do
Congresso? [18]
A
resposta é simples. De um lado, o governo precisa testar as reações às suas
medidas e, sobretudo, à vontade de ampliar a autoridade do Presidente da
República. Muitos eleitores escolheram Trump em função de questões pontuais,
como o aumento do custo de vida e a deportação dos migrantes ilegais, mas não
apoiam os aspectos mais radicais da sua agenda. Trata-se de um grupo
significativo cuja fidelidade pode evaporar em caso de frustração das
expectativas iniciais, o que encolheria os índices de aprovação do governo. Do
mesmo modo, se o Poder Judiciário não tivesse imposto um revés, Trump não
demoraria em dar mais um passo para tentar forçar outros limites que a lei
impõe à sua autoridade. Concretamente, o mandatário estadunidense está testando
as reações populares e institucionais para dosar a forma e o ritmo das mudanças
a fim de mante um índice de aprovação bem próximo daquele com o qual foi
eleito.
De
outro, Trump tem uma maioria muito frágil na Câmara dos Deputados e apesar de,
no Senado, o Partido Republicano ter seis cadeiras a mais em relação ao
Democrata, a maioria qualificada para a aprovação das medidas mais importantes
demanda o apoio de 7 senadores da oposição. Do mesmo modo, não podemos esquecer
que 23 dos 50 Estados da Federação são governados por Democratas cujas pressões
e políticas locais podem obstaculizar parte das iniciativas do novo governo.[19]
Neste sentido, quanto maior a certeza do apoio popular e o silêncio do
judiciário, maior é a velocidade com a qual Trump pode vencer as resistências
aos seus planos.
Ainda
é cedo para estimar qual será o tamanho final dos cortes que o Presidente dos
EUA conseguirá viabilizar no primeiro ano de mandato e em que medida eles atingirão
negativamente as condições de vida do povo simples. Trata-se de um processo delicado
no qual é necessário fazer com que, através do sentido atribuído aos acontecimentos,
as pessoas assimilem os prejuízos que enfrentam como uma condição sem a qual
não realizariam os seus sonhos de prosperidade na idade do ouro prometida pelo
seu mandato...enquanto as resistências são derrotadas por motivos semelhantes.
Um
exemplo vai nos ajudar a visualizar quanto acabamos de descrever. No dia 29 de
janeiro, Trump assinou ordens executivas que acabaram com os fundos para as
disciplinas escolares que abordam o racismo como elemento estrutural da
sociedade estadunidense e para a discussão da teoria de gênero. Em nome da
necessidade de brecar o processo de “doutrinação
e divulgação de valores antiamericanos” no ensino público, as reflexões de
quem vai às raízes das questões sociais são violentadas pela imposição de
ideias que, alimentadas por conservadores e supremacistas brancos, mostrarão às
pessoas em idade escolar que a marginalização social é um elemento natural das
relações humanas.[20]
Em
nome de um conceito deturpado de liberdade, quem incomoda o topo da pirâmide
social com seus estudos e reflexões é amordaçado e calado com o corte das
verbas federais e com a proibição de suas ideias serem parte do debate que
ocorre nos processos educacionais voltados às novas gerações. Enquanto isso, a minoria,
cuja riqueza e posição de poder são questionadas por reflexões incômodas, apela
ao tradicional “sonho americano” para que a única cartilha ideológica a vingar
nas escolas seja aquela que cimenta os passos rumo a estágios mais profundos de
marginalização social.
A
coerção imposta por esta dinâmica pode levar os opositores do governo a se
retraírem pelo temor das consequências, a jogarem a toalha ou a julgarem como
uma vitória o que, no fundo, é uma perda que abre alas à ordem que está sendo
construída. Quanto maior o número de joelhos que se dobrarão às exigências do
império, mais os grupos de poder parecerão se agigantar e ganhar feições de
invencibilidade diante de indivíduos e governos.
A
nossa única esperança? Simples: que, entre os de baixo, ninguém esqueça que o
rei só tem os poderes que ostenta não só pela força do seu exército, mas,
sobretudo, porque a população se reconhece como seu súdito. Pode parecer pouco,
mas sem a consciência desta servidão, não haverá motivos para sair dela e nem
para esboçar formas de resistência aos grupos de poder.
Emilio
Gennari, Brasil, 06 de fevereiro de 2025.