sexta-feira, 26 de março de 2021

Pilatos e a Covid-19

 


 

“Guardou, então no seu caderno de    terra

A gramática revelada

E uma semente em seu olho

Que chamou dignidade

 

O deus-patrão nos alerta:

‘Não olhem nestes olhos

De serpente peçonhenta

É praga que se alastra

E destrói tua colheita.’”

Mauro Iasi

(Os Olhos do Continente)

 

 

Apresentação


Quando lançamos nosso primeiro manifesto no primeiro bimestre de 2020 estávamos inquietos com os cerca de 1000 mortos e os dezenas de milhares de contaminados pelo Brasil afora. Porém, o que mais nos impressionava era o descaso das autoridades federais e o absurdo negacionismo que chamava o Vírus de estratégia comunista para desestabilizar o mundo e pregava abertamente o desprezo pelas conquistas das ciências e autoridades sanitaristas.

Infelizmente os defensores da treva e inimigos da vida do povo simples venceram as primeiras batalhas. Em nosso segundo manifesto demonstramos que cuidados simples, como o isolamento social, uso de máscaras e álcool 70, evitariam dezenas de milhares de mortes. Dizíamos que a morte nesta situação não era acidente, era assassinato.

Hoje o horror toma conta de nossos corações ao vermos cerca de 300 mil mortos nas estatísticas, mortes que poderiam ter sido evitadas. Medidas muito tímidas foram tomadas, como se dizia no sítio antigamente: “depois que o boi escapa se coloca a tranca na porteira”.

Não bastasse esta tragédia que se abate sobre nós, autoridades governamentais, empresários e alguns populares continuam defendendo a volta ao trabalho de todo mundo “ - de formar responsável", dizem. Bastou duas semanas pra parar tudo de novo. Foi tudo isto que motivou este nosso artigo que é praticamente um manifesto. Pilatos e a Covid. Nos perguntamos:

Neste casso você está mais pra Pilatos ou para o Mestre?

Leia e confira.

 

 

 

 

Um vírus que vem deixando rastros por onde passa

 

Um vírus que vem deixando rastros por onde passa, que ameaça nossas vidas, traçado inicialmente de invenção e ameaça comunista pelos mal intencionados, pouco a pouco nos tirou o sono e revelou as entranhas mais obscuras do Capitalismo que não importa a quantas custas, o sistema precisa continuar funcionando, não importa ultrapassar os 3000 óbitos em 24hs no Brasil (não surpreenderia caso atingíssemos novos recordes nos próximos dias), não importa quantos trabalhadores serão colocados em risco, não importa quais ou quantas sequelas os “tantos recuperados” terão a curto ou longo prazo, pois preferem pagar para ver, mais triste ainda é saber que “os custos” estão sendo vidas. Vale destacar que as possíveis sequelas já são uma realidade em investigação, porém incertas quanto as suas manifestações e gravidade. Então é para essa “roleta russa” que somos empurrados diariamente.

Na educação como não poderia deixar de ser diferente, usam se as palavras como se nada fossem, mudando significados ao sabor de interesses sombrios, nega-se assim das formas mais disparatadas o dito, convertendo–o no seu inverso, no não dito. Que palavra define então o nosso contexto, expressando de fato o dito pelo dito?

Arrisquemos uma resposta: genocídio...

Genocídio segundo o dicionário se define como a “destruição total ou parcial de um grupo étnico, de uma raça ou religião através de métodos cruéis.” [Grifo nosso]

Já passamos de mais de 280 mil mortes, e não há dúvidas de que a maioria eram evitáveis, basta lembrar do papel do Estado com sua quarentena para inglês ver, da patifaria em relação ao auxílio emergencial, da morosidade e descaso com a vacinação, da transferência da culpa para a esfera individual (lembrando que esse indivíduo agora execrado é criado e essencial para a sociabilidade brasileira, e não é fruto do agora, mas criação da miséria cotidiana). Sobre a individualização da culpa, por exemplo, é só lembrar como muitas vezes trabalha a mídia: primeiro apontam a situação de calamidade criada pelo Estado, mas sempre como uma figura, um ministro, um presidente (não tiramos a culpa destes obviamente), depois vem as festas, os fins de semana nas praias lotadas e por fim os trabalhadores em aglomerações forçadas para chegar ao trabalho, aqui como sempre se faz necessário olhar o todo, esse sistema, essa sociedade, o “normal” que logo voltará (mas que não se foi na verdade) , tudo isso está conectado e faz parte do problema. O que vivemos não é algo alienígena, que nos invadiu e destruiu, interrompeu o mundo de Alice em que vivíamos, não, é fruto, é o que estava aí e que hoje se mostra como brutal descarnado, como irreconhecível. Temos, então, o acirramento de nosso próprio mundo...

 

Uma prova do real que é carne nossa, são as questões que persistem, porém com qualidades distintas através da nossa história, o combate diário para sobrevivermos como relatado na música:

 

Não existem civis só soldados em prontidão, aplicando no novo Laos regras de autopreservação[...]

Não é preciso se alistar pra tá em combate,

é só ter contra você um exército covarde.

Que vê na sua feição outra nação,

outra língua, um motivo pra perfurar seu coração.” [Grifo nosso]

Eduardo

(Não existem civis)

 

Vamos abordar agora um dos fronts dessa luta, que se acirra de forma vergonhosa, com professores e alunos sendo enviados para a frente de batalha injusta e cruel, obrigados a colocar não só suas vidas em risco, mas também de pessoas próximas, pelo Estado de São Paulo encarnado na figura de seu Secretário da Educação Rossieli Soares, que por meio de suas falas já vinha deixando implícita a ideia de que os professores seriam culpados por eventuais contaminações no ambiente escolar (nada de original diga-se de passagem com a intenção de se isentar da culpa).

Os professores são novamente considerados culpados, e até ameaçados com a perda de seu emprego caso ocorram casos de contaminação; diretores de escola, dirigentes regionais, secretário da educação e governador, todos juntos destruindo a educação, e nós que em nada somos consultados ou ouvidos, ganhamos novamente como prêmio a responsabilidade pelos delitos alheios.

 

Aqui vivemos na terra dos bodes expiatórios, toda mazela tem o seu!

 

Do desemprego é o desempregado, da miséria o miserável, da corrupção política o eleitor, das mortes por covid-19 os indivíduos, da educação em frangalhos o professor, para todo problema um culpado pronto para se depositar a culpa. Na verdade, estes não são mais que os efeitos, as consequências, os que tem de lidar com a realidade dura. É o segredo da geração espontânea, teoria desacreditada nas ciências naturais e transfigurada para o meio social, é a naturalização de tudo, como se automaticamente gerássemos os problemas.

Se temos alguma culpa é a de darmos ouvidos a quem vive a apontar o seu dedo podre para nós. Agora perguntemos de quem é este dedo imundo pronto a nos condenar?

É de quem nos trata como meros objetos; de quem concentra tanto dinheiro que nem em 10 vidas o gastaria; de quem tudo tem e se apropria de cada vez mais, até a última gota, de um pequeno grupo de indivíduos ou melhor de uma certa classe, que sendo minoria expropria mais da metade de toda riqueza produzida pelos trabalhadores, por fim é também dos vassalos que se submetem por uma posição de comando nos mandando para a morte a serviço daquela minoria de corpo mente e alma pútridos.

 

A isso tudo também devemos dar o seu verdadeiro nome, para tanto, devemos responder três questionamentos:

·        Por que somos obrigados a colocar nossas vidas em risco?

·        Quem se beneficiará com tantas mortes?

·        Quem são os verdadeiros culpados?

 

São questionamentos que sempre nos vem à tona, com algumas mudanças contextuais poderíamos fazê-los como já foi feito anteriormente em música:


“Paramos pensamos profundamente
Por que pobre pesa plástico, papel, papelão pelo pingado Pela passagem, pelo pão
Por que proliferam pragas pelo país?
Por que presidente por quê? Predominou o predador Por que?”

                                                                             GOG

(Brasil com P)

 

Respondamos então; a todo instante veicula o discurso e a prática de que somos meros objetos sem humanidade, se temos algum uso ótimo, caso contrário o destino é o descarte. Os que nos coisificam, se beneficiam com nossas mazelas, para eles o que importa é que sejam abertas as portas do lucro, do mercado, da economia, afinal, é ela que sempre vem em primeiro lugar, até mesmo antes da vida como vemos na voz e ação do patrão, do telejornal, da escola mercadoria, dos donos das escolas privadas, de um Jorge Paulo Lemann (Fundação Lemann) e da Cogna Educacional (uma das maiores empresas do mundo no ramo da educação). Em meio a tudo isso nos é imputado o pecado, sendo assim nada mais comum do que a repartição da miséria para os pobres pecadores e da riqueza para os ricos benevolentes, o cristianismo às avessas! Como agiria Cristo diante de tal paradoxo? A quem ele trataria como fez com os vendilhões do templo? Os pobres ou os ricos? Os explorados ou os exploradores? De que lado ele estaria?

Qual o nome para o que expomos até aqui, que palavra sintetizaria tal situação? Como sabemos a resposta é óbvia, o nome não pode ser outro que não Capitalismo! Ele não é algo distante, está aí e o sentimos na pele, aquele fato de que poucos se alimentam realmente bem e muitos mal se alimentam, como seres humanos não nos alimentamos apenas fisicamente, mas humanamente como seres afetivos e dotados de intelecto – daí decorre o problema de apostar as fichas no indivíduo para a resolução dos problemas-,  do tão pouco que nos resta querem ainda mais, não só nosso tempo de vida, agora devoram nossa carne, os poucos que muito comem não estão satisfeitos, agora comem a nossa carne - nem mesmo isso nos restou -, não tenham dúvidas de que amanhã exigirão nossos ossos.

Essa sensação, esse fato que se oculta, e se reapresenta; a insegurança constante, o sentimento de que por mais que acertemos sempre nos apontarão como errados, para eles nossos olhos sempre devem se abaixar, querem que de tanto obedecer só saibamos nos curvar, nos submeter.

Estamos diante de uma grande tragédia sanitária e iminente colapso do nosso sistema de saúde. Não é uma questão apenas de quantos mais leitos teremos que abrir em UTIs, mas sim de quantos mais profissionais da saúde serão necessários para suprir tal demanda ou, pior ainda, quantas mais vidas serão perdidas? Diferente do Capitalismo ao qual sabemos muito bem a quem ele visa servir, o vírus microscópico é menos exigente, não respeita tantas regras e ainda nos enfiam “goela abaixo” a falsa ilusão que o uso de máscara e outras medidas de biossegurança pouco ou nada seguidas lhe conferem 100% de segurança ou funcionariam como uma armadura (trágica ironia). Uma falsa sensação de segurança para convencer o trabalhador a arriscar sua vida e manter firme e forte o mesmo sistema que o condena e que desrespeita a vida. Não existe por parte do vírus qualquer racionalidade no processo de contágio, não existe exigência, é apenas sobrevivência e oportunidade ideal para infectar.

O SARS-Cov-2 (popularmente conhecido como Covid-19) que agora apresenta suas variantes é sim uma ameaça às nossas vidas e à saúde coletiva. É preciso entender que para gerar novas variantes, o vírus precisa apenas de tempo e oportunidade, as novas cepas de vírus surgem conforme há mutações aleatórias em seu material genético e, vez ou outra, essas mutações podem apresentar alguma vantagem para o vírus e então ser selecionada. Assim, quanto maior a circulação de pessoas, maiores serão as chances de contágio, maiores serão as chances do vírus sofrer mutações vantajosas para perpetuar sua espécie e assim tornar-se prevalente na população. Essas variantes surgem ao acaso biológico, mas não se estabelecem por mero obra do acaso, mas sim devido o descontrole da Pandemia e devido a incapacidade de conter a disseminação do vírus.

Uma vez que uma mutante mais contagiosa se torna prevalente, maior será o estrago, em outras palavras, o que é ruim, fica ainda pior! No momento, são 3 as variantes de destaque e preocupação sanitária, isso porque pesquisas recentes indicam que esses vírus “repaginados” entram com mais facilidade na célula humana e derrubaram a ideia que somente idosos estariam em risco, cabe destacar aqui que dentre elas está a P1 que é a variante brasileira e, como todas as outras, também é decorrente do negacionismo científico e do descaso com a vida das pessoas.

O novo coronavírus é predominantemente transmitido por meio de gotículas de saliva e muco ao falar, tossir, espirar ou apenas respirar. É fato que essas gotículas ficam um tempo suspensas no ar e entram em nosso organismo via mucosas tais como boca, nariz e olhos, SIM olhos! Além disso, a pessoa contaminada pode ou não apresentar sintomas e mesmo assim estará disseminando o vírus. Diante disso, medidas comprovadamente eficazes envolvem apenas vacinação rápida (e em massa) e o distanciamento social, do contrário, corremos o risco de sermos um celeiro de novas variantes e continuaremos a perder vidas e a perder histórias! Esse descaso não é ao acaso!

 

Apontamos corretamente o Capitalismo e por extensão a burguesia como problemas centrais, mas não podemos esquecer que para cada burguês há alguém (muitos na verdade) aplicando suas exigências diretamente sobre nós, temos o secretário da educação, os prefeitos, os dirigentes regionais de ensino, os diretores etc.

Usemos como exemplo os diretores. Quando éramos alunos, sempre se dizia que a educação ia mal, agora como professores e/ou pais e responsáveis o discurso não muda. Esses diretores estão aí há tanto tempo, vai um, vem outro e nada muda no essencial, numa inversão do que disse Brecht, a carne também é velha. Ora, se a educação é de péssima qualidade e eles a dirigem, como podem ser inocentes? Não são eles que aplicam as políticas educacionais mais estapafúrdias? Pode existir inocência sendo responsável direto pela escola?

Sem a menor cerimônia cumprem com rigor o que impõe o Estado, na verdade, são semelhantes a Pilatos que aplicou as leis segundo Roma, em plena pandemia mais uma vez se isentam, mandam alunos e professores para as escolas, enviam ameaças transferindo qualquer culpa aos docentes. Vejamos nas palavras e gestos de Pôncio Pilatos:

 

“Fez com que lhe trouxessem água, lavou as mãos diante do povo e disse: ‘Sou inocente do sangue deste homem. Isto é lá convosco! [..] Libertou então Barrabás, mandou açoitar Jesus e lho entregou para ser crucificado.” [Grifo nosso]

 

Que distância daquele que disse “quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra.”

 

Numa sociedade onde a lei culpava brutalmente a mulher pelo adultério, Cristo se opôs, não aceitou aplicar diretamente uma lei injusta, assumiu sua responsabilidade. Responsabilidade é a palavra-chave aqui, não adianta gritar aos quatro cantos - e para sermos justos devemos lembrar que muitos até demonstram certa indignação nas redes, nas palavras, porém, no momento seguinte estão lá fazendo o oposto por meio de suas ações - condenando os demais. Ao fugir de seu ônus, permitindo as mortes de professores, alunos e seus familiares, acabam por carregar outro, a conivência com o genocídio realizado pelo Estado, de fato são como Pilatos que condenou à morte um inocente.

Culpai a César pelo o que é de César!

Cobraremos cada vida tirada pelas suas ações e omissões!

O deus-patrão e seus carrascos ameaçam não apenas nossa vida e dignidade, mas também a de nossos familiares e amigos, retomando as palavras do poema de Mauro Iasi, tudo que aqui verificamos já estava lá no nosso caderno fecundo com uma poderosa escrita, podemos novamente erguer nossos olhos e nutri-los com a luz do Sol.

Já temos por demais lágrimas, suor, poeira e sementes; do nosso passado herdamos as lutas e conquistas da nossa classe que nunca deixou o terreno da luta, então perguntamos: o que mais falta a nossa gente?

Arrisco uma resposta, cultivar a emancipação humana...

 

Coletivo IDE