quinta-feira, 7 de maio de 2020

A Existência Precedendo A Essência Na Quarentena: Os Sentidos Da Vida Em Tempos De Pandemia!!!!!






                 Por Ricardo


Este é meu terceiro texto para o blog; e certamente, o mais difícil de escrever até o momento. Comecei a tomar remédio para controlar minha pressão alta, logo, tive de parar, mesmo que momentaneamente, com as cervejas. E como é ruim ter de articular ideias para produzir algo decente, estando sóbrio. O isolamento social, sempre fora almejado, desejado e rotineiramente posto em prática por mim. Apesar de ser graduado em Psicologia, não gosto muito de pessoas; me limito a manter relações sólidas com umas poucas, porém preciosas; estimo a qualidade – o que julgo ser qualidade. Contudo, tal isolamento atrelado à necessidade de estar sempre em alerta, mais que o comumente feito, com higienização e desinfestação, a novidade do uso de mascaras, a castidade forçada, e, sobretudo, o medo do contágio – de contagiar-se e contagiar as pessoas queridas – acaba por lhe estafar. Os elevados e necessários cuidados sugam-lhes as energias.
Você acompanha as notícias e percebe que os jovens que estão morrendo por conta do novo vírus, em geral, estão acima do peso, são hipertensos, diabéticos, sedentários... Você se arrepende de algumas coisas. Isso bloqueia o pouco de criatividade que possui; arrefece o ânimo para refletir e se expressar com as palavras. Necessitei reler o livro que me inspirara a escrever o meu: Cartas na Rua... Do velho Bukowski... Bom programa para este momento de resguardo – fica a dica.
De início, optei por meter o bedelho na discussão estartada por meio do canal “Decifra-me Enquanto te Devoro”. Tumolo proferiu seu conhecimento a partir da temática “A Categoria Trabalho Perdeu a Centralidade no Nosso Século?”. Concepção do trabalho em Marx, o biocapitalismo de Negri, o ócio criativo de Damasi – e por tabela, a sociedade de predominância dos serviços, descrita por um sociólogo americano chamado Daniel Bell –, a sociedade do cansaço de Byung-Chul Han, a falta de sentido em um futuro sem trabalho profetizado por Harari... Juntei algum material para criar uma narrativa com a qual pudesse levar a polêmica sobre a centralidade – ou não – da categoria trabalho na atual conjuntura neoliberal, adiante. Mas isso tudo era muito técnico, apesar de relevante. Posso morrer até o fim do ano; não quero ser muito técnico.
E por que não replicar um texto do próprio blog, escrito por uma companheira da classe, contrapondo-a, partindo da ideia de que as lutas “identitárias”, como o feminismo, por exemplo, pelo menos por agora, não obrigatoriamente têm de se vincularem às lutas de classes por algumas questões emergenciais que podem significar a sobrevivência das mulheres em meio às relações abusivas nas quais estão imersas, independentemente de posição social ou “ideologia”? Não; melhor não. Não haveria tempo hábil para coleta de material fidedigno para a montagem de um argumento sensato.
Minha noiva, nesse interim, havia sugerido que eu respondesse a uma indagação que por ela vinha sendo feita há algum tempo: por que tantos, apesar de todas as informações de órgãos e profissionais da saúde, de mídia técnica – mesmo que burguesa – e de secretarias e até do ministério da saúde, insistem em dizer que tudo isso – o vírus, a pandemia, e principalmente, a quarentena – não passam de besteira? Em pesquisas de opinião, as pessoas relatam serem a favor do isolamento, de multas, de fiscalização, de denúncias... Mas na prática, o que podemos observar, tendo como fonte, entre outras, o procedimento de monitoramento feito pelo governo do Estado em parceria com operadoras de serviços de telefonia e internet, é que em sua grande maioria, a população tem furado a quarentena... Por quê?
Disse a ela que “sem chance”. Tanto quanto na questão do feminismo, não existiria para mim tempo o suficiente para teorizar meu argumento. Mas matutei, mesmo sem querer, muito sobre o assunto. Fui relembrando de uma ou outra coisa que possuo e que pudesse me auxiliar na montagem de uma narrativa nesse período em que, gostemos ou não, temos sempre um pouco mais de chances de adoecer e falecer. E assim, elaborei este raciocínio. Que merda... Talvez eu seja um Sofista...

***

De repente, a coisa ficou séria. Não era como o H1N1; não era como a gripe aviária; não era como o antigo Corona. Era algo realmente desconhecido; mais letal. A vida não poderia ser conduzida do modo como vínhamos fazendo até então. As rotinas mudariam; as relações interpessoais mudariam; o circuito de consumo mudaria; a economia mudará. Teria o vírus antecipado um já previsto colapso da economia do livre-mercado? E essa antecipação poderia significar nada mais que o inicio de um novo ciclo de retomada de um mesmo sistema de produção que vai se esgotando e se renovando independentemente de qualquer consequência que esse movimento de “prosperidade” e miséria possa ter para as pessoas que a ele estão submissas?
Bem... Isso não importa... Não para a maioria de nós. Como teria dito um governante chinês, não importa a cor do gato, o importante é que ele casse e mate o rato... Vou explicar...
Um isolamento forçado e preocupado – e não voluntário e desprendido como fazia há pouco – e a real possibilidade de ser acometido por uma síndrome de insuficiência respiratória aguda que possa me levar à morte me fizeram perceber o quão desperdiço muito da minha vida com muita coisa que não vale nada. Absolutamente nada.
 Um amigo recitou – e gravou – um poema de Gabriel Garcia Marquez e entre tantos outros, enviou para mim... Que alimentação de bosta eu tenho; como eu cometo o pecado da gula; como eu como sem ter vontade e necessidade de comer... Aprendi com o capitão – personagem do poema – e com a falta de ar oriunda de uma pressão 17x10 – que posso aproveitar esse momento de isolamento para reeducar meu estômago e minha ânsia por saciar um desejo imaginário de comer sempre mais e mais, do bom e do melhor. Se quero tentar, ao menos tentar, prolongar minha existência, por que não me aproveitar dessas situações inusitadas e desagradáveis para tal?
Como desperdiço meu ócio com futebol, com vídeos frívolos na internet, ouvindo músicas banais, lendo noticias bizarras... Como jogo conversa fora com gente que não vale a pena ter nem uma conversa necessária, como me disponho a ouvir besteiras ou testemunhar atitudes toscas sem demonstrar insatisfação apenas para cumprir os bons modos socialmente exigidos para a pacificação das relações interpessoais... Como eu disponho-me a agir de modo infantil, brigando ou enervando-me em situações ou por questões que não merecem o mínimo de atenção ou dispêndio de energia de alguma pessoa que realmente saiba aproveitar o mínimo da vida.
Como deixo de escrever, de ler O Capital, de assistir O Parasita, de ouvir música clássica, de comprar brigas relevantes, de ser duro com quem merece, de dar uma caminhada, de não consumir muito lixo industrializado, de assistir a uma boa aula on-line, de ouvir meus pais falando sobre suas boas lembranças da juventude, de jogar partidas de truco, de arejar e renovar minha mente, de abraçar minha noiva, de cagar sem pressa... Como deixo de fazer tudo isso e muito mais para seguir a cartilha de vida que por vezes nos é cobrada, vendo lixo, lendo lixo, ouvindo lixo, comendo lixo, respirando lixo, trabalhando com lixo.
O vírus, a pandemia, a quarentena, a lembrança de que um dia eu vou morrer, fizeram me atentar para o fato de que, via de regra, a rotina urbana e pequena burguesa, copiada por nós, proletários, nos enfraquece, nos emburrece, nos impede de procurar e de criar o novo, nos tolhe a possibilidade de viver uma vida um pouco mais intensa.
Em um trecho do filme “Clube da Luta”, de 1999, o personagem Tyler Durden, vivido por Brad Pitt, ao discursar para a plateia composta por homens sedentos por extravasar suas frustrações diárias nos combates do clube, diz que “os anúncios nos fazem comprar carros e roupas; empregos que odiamos para comprarmos porcarias que não precisamos. Somos os filhos do meio da história, gente; sem propósito, sem lugar. Nós não temos grandes guerras, nem grandes depressões. Nossa grande guerra é a guerra espiritual; nossa grande depressão é nossas vidas”. O dia-a-dia no capitalismo, seja para as gerações da sociedade de consumo na era industrial, pautado pelo acúmulo de bens materiais seja na atual sociedade de consumo dos tempos de financeirização do capital, do empreendedorismo – precarização do trabalho – e de acumulo de vivências/experiências – setor de serviços –, nos impele a fazer de nossa essência, uma consequência barata, superficial de uma existência pobre, covarde, que objetiva a fuga de grandes lutas, dos grandes embates, a vida do não incômodo, a vida da experimentação de uma felicidade entorpecente. Sartre deve ter lamentado isso; provavelmente, ainda lamentaria.
Heidegger nos alertou: a consciência da morte gera-nos angústia, pois entramos em contato direto com nossa finitude. Devemos aceitar essa finitude; resignarmo-nos diante dessa angústia, pois só assim, criticamente, poderemos assumir as rédeas da condução de nossos projetos de vida e guiar nossa existência de modo mais autêntico e potente, mesmo que seja, no fim de tudo, para a morte. Tyler Durden, mais uma vez, nos auxilia no complemento desta etapa do raciocínio: “primeiro você tem que se entregar; primeiro tem que saber, não temer, saber que um dia você vai morrer. Só depois de perdermos tudo, é que estamos livres pra fazer qualquer coisa”.
É dessa forma, que o Corona me acometeu. Me fez lembrar de coisas que já havia esquecido. Afinal, nos últimos tempos, apesar de todas as dificuldades, eu estava sendo bem alimentado; eu estava bebendo bastante; eu via vídeos no YouTube; eu tinha o Campeonato Paulista. Eu estava acomodado em meu ninho. Como todos fazem. Em boas doses, eu estava desperdiçando minha vida.
Mas há outra advertência de Heidegger: a inautenticidade. O inautêntico não suporta a angústia; esguia-se do assunto morte; apega-se ao cotidiano. Isso o acalenta. A morte nunca é para si; é sempre para o outro. Bolsonaro é inautêntico; Bolsominions são inautênticos. Por isso tagarelam que o vírus é lorota; que a pandemia é uma farsa; que a quarentena é uma estupidez. São covardes demais para admitir a própria finitude; fracos demais para assumir as rédeas dos projetos de vida rumo ao inexorável fim que a todos chegará.
Mas o bolsonarismo, por si só, dentro do capitalismo, não é suficiente para explicar o porquê de tanto esbravejarem contra e até boicotarem, em alguns casos, o isolamento social. Não... Bolsonaro e o bolsonarismo são fortes; mas nem tanto.
Estamos falando, de no mínimo, duas gerações que estão acostumadas, mais do que qualquer outra coisa, a consumir. Fizeram do consumo sua essência; o SENTIDO de suas vidas. Conduziram suas existências em direção ao trabalhar para ter, para vivenciar, para experimentar, e se possível, para publicar. O vírus suprimiu esse ato; cessou com o costume.
Muitos esbravejam e inventam “estórias” acerca do Covid-19, em performance desesperada para readquirirem a essência de suas vidas, pautada pela compra, pelo prazer oriundo do entretenimento, pela demonstração da felicidade invencível, pela não aceitação de percalços, de fracassos, de fragilidade, de falta de sentido prévio, por não estarem dispostos a tornarem-se protagonistas de uma existência singular.
Dizem estarem preocupados com a economia; com o desemprego; com a situação ainda mais calamitosa que muitos de nós estaremos em breve. Mas não debatem sobre a necessidade de superação de um sistema produtivo que movimenta-se única e exclusivamente rumo a sua produção e reprodução, pouco importando a condição de vida de todas as pessoas que o alimentam; não falam sobre Estado de bem-estar social; não ponderam sobre solidariedade e colaboração... Não... Apenas use álcool-gel, higienize-se o quanto puder, use mascara e isso bastará; faça sua parte; cada um por si.
Ao final da equação, querem apenas a volta da Champions League, do passeio no shopping, a realização da virada cultural na capital estadual da cultura, dos churras com a família e com os amigos nos finais de semana. Querem se embebedar nas baladas, curtir o domingo a noite de pagode na Praça XV, xavecar, flertar, amassar, palpar, beijar, transar, circular, gritar... Tudo sem empecilhos; tudo com liberdade absoluta; tudo sem desgaste. Querem apenas comprar e viver.
Como os fornecerão isso após a pandemia? Não estão nem aí; não estão se lixando para a cor do gato; o que importa, é que ele casse e mate os ratos. Mesmo que os que venham sobrar para a maioria de nós, sejam uns ratos doentes, dos mais sujos, encontrados nos mais nojentos e vis esgotos do mundo. Desejam encomendar o açaí no sábado a tarde e irem a uma loja pessoalmente retirar a churrasqueira elétrica, andando e trombando com a multidão, sem que ninguém os encha o saco. Só querem a vida antiga de volta. Nem que para isso, tenham de aceitar medidas provisórias que se encaixem a eles como vibradores na vagina de uma solteira carente e que para tal, tenham de dizer que só nos reergueremos disso, se andarmos em consonância com os interesses patronais. Dependemos deles, certo?
Não nos iludamos, companheiros (as). A aceitação da angústia da morte, o protagonismo da própria existência, o afastamento do conforto e a aproximação da rispidez de um prélio de cunho político/econômico, em suma, a ressignificação da vida como um todo no possível pós-pandemia, para os que dela saírem vivos, nem de perto, são aspectos ansiados pela maioria de nós e, para nossa decepção, isso inclui, a classe trabalhadora. Sejamos diferentes, apesar de sermos também proletários, pelo menos por ora, dessa maioria. Não apelemos para mentiras. Continuemos, enquanto grupo minoritário, a crescer.
Sejamos reais; autênticos. Valorizemos a vida!!!!!