domingo, 17 de outubro de 2021

Goteira



    Eu estive decidida a arrumar a nuvem acima da minha cabeça. Não queria ser pássaro, queria ser uma aranha com um pouco de conforto, para quando tudo estiver desmoronando fora da minha nuvem, da minha bolha, para quando tudo estiver um pouco mais difícil que o normal, eu consiga entrar novamente na minha situação particular e dormir seca, sem nenhuma inconveniência caindo sobre meu corpo frágil. Não preciso de muito para conseguir sobreviver e viver sobre algo simples é tudo que eu mais gostaria. E minha decisão estava tomada...”

 

(Vi Noronha)


Domingo é morto. Um dia café com leite gelado, pão duro que virou torrada, dor de cabeça e tristeza por ter que acordar cedo novamente. Quando chove é ainda pior. A aranha no canto da parede é muito difícil de tirar, por isso, eu a deixo ficar lá. Acordo cedo todos os dias para limpar casas que não sejam a minha. Gasto meu corpo e minhas mãos, gasto meu tempo e felicidade, para ficar todos os dias limpando e apenas um dia na semana para pensar nas aranhas da minha parede. A aranha está no teto e o quadro está no mesmo lugar. Passo a vassoura, caem as traças. A teia da aranha é quase invisível e o que quase ninguém vê, a ninguém incomoda e coração nenhum vai sentir.  Então não me importo em deixar lá naquele ângulo apertado que não cabe nenhum móvel. Eu prefiro se for escuro, porque assim existe a desculpa de não precisar olhar com riqueza de detalhes. Além disso, minha visão já não funciona mais, já não consigo subir as escadas daqui, igual subia com a rapidez de quem quer ir para o céu. A casa é a mesma de muito tempo, não houve mudanças para mim, mas existem as mudanças em mim e para eles. Assim eu limpo a casa. Tiro tudo das paredes, junto os bichos no meio do pó e dos fios de cabelo caídos, paro para pensar na minha vida e nas pessoas próximas a mim que estão conseguindo sair do canto da parede e assim eu volto ao normal com o bolo de sujeira. Ninguém lava a louça. Eu fico aqui todos os dias, mas ninguém lava a louça. Já estou acostumada com o canto da parede no qual eu me alimento, não sento a mesa. Trabalho para poder enfrentar minha vida, porque ela sempre será a mesma. Varri, pego tudo para passar o pano, a casa é enorme. Demoro cerca de doze horas para limpar e a sujeira continua aparecendo. Os banheiros são mais difíceis. O cheiro de comida diferente machuca meu nariz, mas eu não me importo porque minha comida é muito boa. Dizem que confiam no meu trabalho, sim, há muito tempo. Não confiam na minha existência. Não pensam o que eu penso, não fazem ideia de onde eu vim e do que eu sei. Esse é realmente um trabalho muito interessante.

Acordo com a cama molhada e com uma goteira caindo no meu braço. Minha casa, que é antiga e eu não faço ideia de quando vou sair dela, está cheia de goteiras espalhadas pelo seu teto. É preciso andar como se eu estivesse em um campo minado, em um labirinto. É horrível quando chove, aperto a mim própria e fico triste com a situação. Eu queria ser, literalmente, a aranha na parede, porque se eu tiver sorte ninguém vai me ver e ninguém vai destruir a minha casa. Não seria preciso eu sair da minha casa, me dedicaria somente a ela. Não precisaria chegar e limpar o chão molhado de goteiras que as telhas já não aguentam mais e acabam espirrando no meu chão. Minha casa é muito pequena, é apenas para mim. Não tenho mais ninguém, sou velha. Trabalho para minha existência se esgotar logo. E deixo as goteiras caírem na minha testa, não como uma tortura, mas como uma forma de mostrar que já não é tão importante ter que me importar com algumas coisas. Não fico na casa. Só entro para descansar e comer minha comida que mata a fome.  Trabalho, limpo aquela casa que não tem nenhum defeito, nenhum problema em seu concreto e altura, nenhum erro em seu décimo andar, está tudo perfeito. O chão consegue refletir meu rosto sujo e meu corpo cansado. E o teto quase é invisível com os lustres e seus sóis iluminando os quatro cantos de tudo aquilo. Qual é o tipo de preocupação dessas pessoas? O que aflige seus corações? Será que eles possuem uma goteira na testa, como eu, que não os deixa dormir? Acho que quando se tem um teto como esse, é impossível ter goteiras caindo pela sua cabeça, ainda que sejam goteiras com água limpa. Não consigo imaginar goteiras aqui, em suas cabeças. Eu vou ter um teto como esse.

Aqui são dois adultos e uma criança. A criança com certeza não tem goteiras, deve ter apenas nuvens, as nuvens de seus pais sobre ela. Colocando isso e aquilo em seus horários que eu quase não consigo bater com os dela. O homem trabalha não sei com o que e nem a mulher, mas também não ficam na casa. Eu fico lá sozinha, limpando. Trabalho em outras casa também, mas é recente. Algumas pessoas já são acostumadas com meu serviço. Eu vi a menininha nascer, vi seu rostinho e ouvi seu choro por bastante tempo. Continuo lá. Vi seu quartinho ser formado, vi sua mãe cansada de cuidar dela, vejo isso até hoje. São todos distantes. Cada um tem um espaço específico na parede, para cada aranha. Eu faço questão de deixar algumas, não porque eu seja uma funcionária ruim, eu sei que não sou. Mas faço isso para poder deixar alguma vida na casa, já que não encontro nenhuma ou raramente encontro. Não ouço conversas, nem discussões. Não discutem comigo e nem me atropelam palavras. Não nos cruzamos pelo caminho. E eu prefiro assim, porque não gosto que me atrapalhem no serviço. E assim meus dias estão indo, com sol e chuva, muita chuva. Estamos em um mês difícil, mas quente. É mais fácil usar guarda chuvas em casa do que na rua. Quando você chega de uma tempestade e só quer descansar na sua casa aconchegante, deitar o guarda-chuva com sua cabeça encostada no chão, para que ele pare de chorar e você guarde ele no outro dia, mas no meu caso não é possível porque preciso me preocupar com a chuva de dentro da minha casa. Meu aluguel não é difícil de pagar, minha casa não é ruim. Seu teto me incomoda, apenas. Eu não tenho mais baldes nem panelas para aguentar a chuva que cai sobre meu chão. Eu mereço mais que isso, sim. Eu sei. Mas não sei se é necessário. Sou velha e acho que consigo conviver com alguns problemas, logo eu vou me embora daqui e não precisarei mais de nada disso. Mas mesmo assim, eu preciso dar um jeito nas goteiras porque elas estão se tornando um instrumento de tortura para minha vida. Já não basta ela própria, que tem que aguentar meu peso sujo limpando o espaço por onde ando, pegando toda a sujeira do lugar para mim e colocando em algum canto, para no final do dia ganhar um dinheiro suado que vai me ajudar a tirar a água e a umidade que estão dentro da minha casa.

Eu penso muito, mas muito nas aranhas dos cantos. E nas traças. Tenho tanta inveja, na minha casa não tem nenhuma teia de aranha, nenhuma aranha. Porque cria um ar de miséria no espaço, no meu espaço miserável. Eu sou miserável e as aranhas daqui são diferentes. É preciso ter cuidado, caso contrário elas me expulsam da minha própria casa. E eu as vejo em outras casas, falo com elas e mantenho suas engenharias e sua arte, para ninguém destruí-las, eu mudo os móveis de lugar. Faço isso na minha casa também, mas não é pelo mesmo motivo, você sabe quais são meus motivos. O que não posso ter na minha casa, eu deixo nos outros espaços e cuido daquilo. E o que o espaço deles não pode ter é bom pra eles, porque por aqui não tem nada de bom. Eu sempre penso que viro parte da traça, aos poucos, aos poucos as goteiras não vão mais me incomodar. Mas se você parar para pensar em algum canto da sua casa, vai perceber que o mundo tem um espaço muito grande, mas não cabe todo o mundo, assim a gente tira suas engenharias e tira suas vidas, com muita facilidade, para que o espaço permaneça ali, caso eu precise, mas também não tento resolver de outra forma. Entende o que quero dizer? Passo minhas horas pensando no sol. Mas também penso nas outras pessoas no sol. Penso no José que está construindo e sentindo a água do seu corpo sair de tanto calor e almoçando sua comida gelada que, mesmo que o dia esteja muito quente, não vai deixar sua fome passar. Eu ainda consigo esquentar minha marmita. Mas eu penso também que o tempo não tem culpa, porque da mesma forma com a chuva, seu trabalho acaba sendo difícil. Enfim, acredito que esteja me entendendo. Um dia eu tenho certeza de que não vamos conseguir ir ao trabalho, porque estaremos metamorfoseando dentro de nossas casas com goteiras, nos transformando em algum bicho pior do que já somos. E assim vão ficar nos ligando, ligando para os nossos, nos procurando para saber porque diabos não fomos construir e não fomos limpar. E não vamos conseguir responder porque não teremos mais nossas bocas bem feitas que cospem palavras ruins e palavras erradas o tempo todo, nem sequer conseguiremos atender os telefonemas porque nossas mãos rasgadas vão estar se desfazendo junto com nossos braços e pernas. Queria muito que esse dia chegasse de fato. Um dia que eu acordasse afogada numa goteira, acordasse de súbito, assustada e pensando em como o espaço ficou maior, mas na verdade eu que diminuí, a cada dia que passava e eu só não estava percebendo minha insignificância no mundo. E vou diminuir feliz, me sentir maravilhosa com meu tamanho e o espaço pequeno de que eu necessito. E vai ficar mais fácil de fugir da água, porque agora ficou muito difícil de me encontrar, só vou precisar de um canto. Me deixe num canto e nada farei. Pode limpar porque eu não sou suja e não estou aqui para atrapalhar sua convivência com as outras pessoas. Não quero atrapalhar a chuva caindo nem o sol queimando. Só quero ficar num canto específico de algum lugar qualquer, um canto que dê para ver tudo, para saber se morrerei hoje ou amanhã, ou talvez eu demore mais um mês ou mais um ano, mas você só precisa me deixar no canto.

Não foi hoje que eu diminuí, mas eu ainda tenho as esperanças. Parou de chover, mas a goteira ainda não parou. É normal em casa assim, velha. Ela vai cair em cima de mim. A umidade está atrapalhando tudo por aqui. Vou sair para trabalhar e quando voltar vou ver do que se trata o rio dentro dessas paredes. Então eu chego na casa com aranhas e teias. Começo a limpar a louça e lustrá-las. E são lindos copos e pratos. Talheres muito diferentes que nunca vi, são muito estranhos e perigosos. Eu não sei porque fazem tudo isso. Então, vou para a parte que mais gosto, que é encontrar as criaturas no meio de algum lugar ou dentro de algum móvel. Pego o lustra móveis e como uma boa atriz, eu finjo que estou limpando e matando todas as aranhas e as traças que estavam escondidas lá. Mas elas me olham e dizem “oi, minha querida. Como foi seu dia? Você está radiante hoje, passe por aqui mais tarde para uma visita. ” E apenas deixo um perfume amadeirado perto de suas construções. Dou risada sozinha, olho para cima para ver o sol que o lustre está criando sobre minha cabeça, olho o espaço e suspiro para sentir o cheiro maravilhoso que deixei para os bichinhos. Saio feliz, pensando que elas não têm nenhuma goteira para atrapalhar suas vidas e isso é muito bom. Tento imaginar seus diálogos comigo e realmente rio sozinha. Tudo seria mais fácil. Mas eu não sei quem precisa mais do que. Se eu preciso disso e das traças e aranhas, ou se essas pessoas precisam de mim, precisam que eu saia do meu espaço e do meu mundo pequeno, corra até aqui, suba seus andares até chegar nos seus espaços e resolva seus pequenos problemas, suas sujeiras discretas e suas louças fáceis que na maioria das vezes não dão tanto trabalho. É muito silêncio e muito trabalho, embora tudo isso seja fácil para mim, embora eu não precise de nenhuma interação, apenas um pouco de troca, de trocados para poder continuar a vir até aqui e cuidar dos pobres bichos.

Estava se tornando um mês bem quente e isso me deixava muito feliz. Tudo ficava mais fácil para mim, embora o mundo não girasse em torno de minha vida e minha casa chuvosa e nublada, mas tudo estava indo bem. Eu tive, finalmente, a coragem e a ideia de arrumar meu telhado, agora com o sol, fica mais fácil de tomar vitamina e sobreviver, acordar cedo e cuidar de tudo que eu sou paga para cuidar, para depois enfim voltar a minha casa e não precisar tomar banho de goteira para tirar minha sujeira, mas tomar banho, de fato, daqueles que tomamos no banheiro, debaixo do chuveiro e quando saímos não precisamos ficar pisando em círculos para fugir da água que acabamos de deixar cair pelo nosso corpo. Eu estive decidida a arrumar a nuvem acima da minha cabeça. Não queria ser pássaro, queria ser uma aranha com um pouco de conforto, para quando tudo estiver desmoronando fora da minha nuvem, da minha bolha, para quando tudo estiver um pouco mais difícil que o normal, eu consiga entrar novamente na minha situação particular e dormir seca, sem nenhuma inconveniência caindo sobre meu corpo frágil. Não preciso de muito para conseguir sobreviver e viver sobre algo simples é tudo que eu mais gostaria. E minha decisão estava tomada, pode parecer que foi difícil chegar a essa conclusão, mas todos esperávamos por isso em algum momento, talvez. Pode não parecer, mas eu também achei uma decisão muito complicada, sim. Porque, pensando bem, eu posso morrer amanhã. Eu sempre penso que somos como aqueles bichos escondidos, que a morte escolhe aleatoriamente e acaba acontecendo assim. Mas então eu pensei, se eu morrer vai estar tudo melhor para mim, então talvez eu mereça algo de simples e bom enquanto eu infelizmente estou aqui. Falei com José sobre o serviço, morávamos no mesmo morro e éramos grandes amigos. Decidiu fazer o trabalho para mim, só precisava correr atrás dos materiais para ser criada a nova nuvem sobre minha cabeça. E o sol amanhecia cada vez mais quente e mais delicioso, me motivava a cada minuto, a cada segundo eu pensava em mudar alguma coisa na minha vida, começando por aquela nuvem velha, mas eu conseguiria fazer uma coisa de cada vez, como quem faz uma teia muito bem trabalhada e paciente – as aranhas me fascinam – e com essa inspiração, eu ia de encontro a casa alta dos milhões de andares que eu tinha que subir para limpar, eventualmente via nos vidros os homens passando aqueles rodos e não se preocupando com seus próprios vidros e casas, pendurados sobre uma corda forte que confiavam bastante, como uma aranha criando sua teia e confiando no seu próprio trabalho. Nós, todos os homens, somos grandes animais insignificantes mesmo. A qualquer momento poderia ser pisado por deus ou perder a importância para aquela corda, que facilmente somos substituídos, raramente reutilizáveis, nunca deixados dentro de zoológicos e também nunca guardados dentro de caixas de vidros e alimentados todos os dias – seria realmente bom – mas estamos aqui servindo e recebendo os trocos, voltando para os cantos das paredes e fazendo tudo de novo e de novo.

O dia para a troca da minha nuvem e céu nublado estava marcado. Eu estava realmente muito satisfeita, nada estava me abalando. Falei com José e, como minha casa era pequena, eu lhe perguntei se conseguiria resolver em um dia, eu fazia questão de pagar pelo seu tempo, por tudo que fosse fazer. Ele conseguia tranquilamente. Assim, falei com os meus próximos, disse sobre a felicidade que caia sobre minha cabeça, eu realmente estava me preocupando com a minha existência, estava me sentindo importante para mim mesma. E viva, como nunca antes. Como era boba, devia ter pensado isso muito mais cedo, se soubesse que essa sensação poderia chegar a mim, já teria feito isso. E tudo perdia o sentido em outros lugares. Eu chegava para limpar, achava o lustre enorme e estranho, achava os tetos exagerados e pensava se aquilo era realmente necessário para aquelas pessoas, se apenas não tomar a chuva já não era suficiente. Pois eles gostavam muito de chuva, mas nunca encontrei os guarda-chuvas em suas casas, porque eles não precisavam. Não precisavam de chuva também. Mas sempre os ouvia falar sobre como era tão bom o tempo mudar, como era confortável e via as vezes suas roupas elegantes e quentes como cobertores e achava tudo realmente muito bonito. Afinal, não é culpa do tempo, não é culpa da água da chuva, não é culpa do sol, tudo que eu sinto e tudo que reclamo. Não tem problema nenhum em gostar de um clima assim ou daquele jeito, mesmo que as pessoas estejam morrendo nas ruas de frio, ou não consigam matar sua sede no calor. É tudo muito mais profundo, o céu nublado dessa questão é muito mais pesado, sua nuvem logo cairá sobre a cabeça de todo mundo, ainda bem que meu teto vai estar novo.

Acordei no próximo dia sabendo da mudança, sabendo que o mundo podia acabar, que meu teto seria consertado e nunca mais choveria na minha cabeça e nem no meu sono. José chegou cedo para arrumar, estávamos muito felizes, até mesmo ele. Amigos e a felicidade sempre compartilhada, era muito bom. Fui trabalhar como quem acha que o dia vai ser perfeito e realmente foi. Aquele dia eu tinha certeza que não morreria, não seria como outros dias, seria um dia no qual a morte me daria folga, se eu estivesse em sua lista de mortes do dia, ela riscaria meu nome e diria para quem quer que fosse, quem quer que auxiliasse em seu serviço “hoje não é possível inserir dona fulana na sua miséria de morte, porque ela tem um compromisso muito importante que em nosso protocolo ela pode cumprir. Então, adiaremos o luto de seus poucos amigos e vamos deixa-la viver mais uns meses ou anos ou depende de como ela vai se comportar daqui em diante. ” Aí você insere na fala da morte como acha que eu deveria morrer. A ansiedade tomou meu corpo, parei para pensar se as aranhas se sentem assim e com certeza a resposta é não. Eu nunca tive tanta certeza em querer algo na minha vida. Fui em outra casa fazer o serviço que faço – a mesma casa, o mesmo serviço – olhava tudo de uma forma estranha, achando tudo estranho e limpando tudo, tirando as casas das aranhas que eu não estava mais me importando, não sei o porquê disso, mas acho que agora que estava finalmente feliz com algo relacionado a mim, não estava me importando em deixar tudo realmente limpo, de fato. Não estava me importando com os bichos menores que eu, porque eu achava que era o menor e mais insignificante bicho que já passou por aqui, o mais frágil. Eu não sei o que tinha na água da última chuva que tomei dentro da nuvem da minha casa, mas eu estava me sentindo diferente, uma outra pessoa, parecia que tinha subido na vida, mas com um céu limpo que agora não fazia diferença se ia chover ou fazer muito sol. Já chegaria em minha casa como uma nova pessoa, como se estivesse me mudado, como se realmente tivesse feito algo de significante para mim. Falei com José e ele realmente não quis nada além de ver minha felicidade. Eu resolvi comprar uma bebida para comemorar a minha nova vida de pessoa em situação de novo teto. Mesmo ambiente, mesmo clima e agora não via a hora do tempo fechar, o céu ficar escuro e poder sentir as lágrimas caindo e fazendo um barulho enorme sobre minha cabeça, mas sem me tocar. Eu poderia morrer naquele momento, porque pelo menos, até aquela hora eu tinha experimentado duas horas de conforto no teto novo. E pensava em tanta coisa que podia fazer a partir de agora, que eu tinha o mínimo de conforto. Além de sentir felicidade, satisfação e de não deixar qualquer coisa me abalar como antes. Como era fácil ser feliz, ou viver com pouco. Será mesmo? Será que nunca tive nada de realmente importante? Por enquanto, eu experimentei uma verdadeira felicidade com tudo aquilo.

Chegou novamente um tempo em que o céu fica nervoso e se fecha. Não quer conversa e fica escuro, franze a cara nublada e chora. Um dia de trabalho cheio que eu tomaria muita chuva, que eu queria tomar muita chuva, se não estivesse tão cansada de tudo e de todas aquelas horas cheias de bolo de sujeira e teia e traças, todos escondidos e esperando para serem encontrados. E agora as aranhas me olhavam, cheiravam o lustra móveis pensando “o que houve? Por que está fazendo isso conosco? Você não era assim! ” E se elas tivessem um deus, deus das aranhas ou das traças, elas pediriam a ele para guardar suas casas e lhes dar muita proteção, porque eram frágeis e tinham construções frágeis, se perguntariam o que fizeram de errado para passar por aquilo e enquanto rezavam – seria isso que fariam para seu deus que talvez não exista? – enquanto estivessem naquele momento, eu passaria minhas mãos sobre elas, com o produto da limpeza deslizando sobre o local ocupado por elas por tanto tempo e assim elas iriam embora para o céu ou inferno das aranhas e céu ou inferno das traças embora elas se encontrem em lugares totalmente diferentes espalhados pela casa. E com a felicidade de quem vai ao parque ou de quem acorda num dia de folga, eu fui embora aquele dia. E o céu gritava demais, estava realmente nervoso e chorava com muita vontade, quanto mais ele chorava, mais eu sentia felicidade.  Não sei se isso se torna um certo egoísmo da minha parte, uma certa insensibilidade, mas eu acredito que não, tenho quase certeza de que não tinha nenhum problema nisso, porque na verdade eu estava fazendo as pazes, levantando meu guarda-chuva branco para o céu e mostrando minha felicidade ao vê-lo daquela forma, então estava tudo quitado entre nós dois. E além disso, eu precisaria de muito mais para deixar os céus, de fato, tristes. Estou pensando muito em deixar de querer me tornar uma aranha ou uma traça. Acho que a chuva realmente afetou minha cabeça.

A forma como a cidade é posicionada – seria essa a palavra? – não dá vasão para o choro, para a sujeira do céu, que na verdade não cai dele, só cai água e acaba se misturando com a cidade, mas não existe espaço, é tão grande e não existe espaço, tudo fica apertado, o trânsito fica mais barulhento que o normal, eu tinha até me esquecido disso porque não fazia diferença pra mim, quando eu já tinha a infelicidade de ter a chuva dentro de casa, o trânsito não me incomodava muito, incomodava pouco. Eu conseguia deixar passar aquilo que me irritava, conseguia deixar porque eu sabia que tinha algo maior me esperando, algo pior. Quanto mais eu ficasse no transporte, mais eu demoraria para resolver a situação do meu labirinto ou campo minado que eu teria que passar. Então, quando isso acontece, eu e todos que precisam passar pelas rodovias e por debaixo da terra naquela minhoca tecnológica, todas essas pessoas com o famoso pico no horário, precisam ter o mínimo de paciência para não chorar junto com o céu, para aguardar o momento em que ele consiga respirar e deixar o trânsito correr, deixar a gente chegar em nossas casas, depois de, no mínimo, duas horas no meio da rua, no meio do inferno da rua com a chuva e a sujeira. Ainda andar um pouco para poder chegar, de fato em casa, porque o transporte não nos deixa na porta – na maioria das vezes – e então, nós subimos um pequeno morro, depois de passar por um trânsito demorado, chorão e barulhento. E subo, sozinha e com o pouco de felicidade que ainda me resta, percebo a movimentação que só a chuva consegue causar na cidade e nas pessoas, as pessoas que estão todos os dias apressadas e sérias. E quando não conseguem se apressar, ficam nervosas porque já se acostumaram com seus ritmos e seus climas, se esbarram e não dizem nada, resmungam. Correm para procurar espaço no ônibus e o ônibus se enfia no meio do asfalto e o resto você já sabe.

Quase chegando em casa e a movimentação que é normal, subindo e sentindo a movimentação aumentar, pensando no pior, sempre. A felicidade vai saindo do meu corpo como quem sempre espera pelo ruim que vai acontecer, como quem já está acostumada. Quase chegando ao meu destino, meu destino que agora é tão aconchegante, quase chegando como se eu não quisesse de fato chegar, com medo de que algo estivesse fora do lugar, com medo de achar tudo errado novamente. Eu sinto que a chuva realmente está bem forte e o céu chora com muita força. Sabe a chuva passageira? Aquela chuva que cai com muita força e depois de alguns minutos de gritaria desnecessária, ela para. Aconteceu mais ou menos assim aquele dia. Só que, durou mais de duas horas. A semelhança que eu estou tentando colocar entre essa chuva e a chuva passageira é que, ela desce como quem vai causar destruição e subitamente para de cair, pensa que exagerou e só para. Quando eu quase estou virando a rua do morro da minha casa, a chuva parou e eu comecei a reparar no chão marrom, com a cor de terra, a cor de terra, do barranco que dorme e acorda assustado com esse tipo de situação. Acontece o que a gente menos espera e a vida – ou a morte – prega peças que nem deus, nem aquele deus da aranha ou da traça, conseguem explicar. Depois de pouco tempo com meu novo teto protetor de cabeça, mais especificamente, depois de um mês colocado sobre mim, essa chuva resolveu aparecer e eu tive o entusiasmo de uma criança com o doce que o pai ou a mãe guardou para ela. E achei que, conseguiria aproveitar essa minha casa nova que na verdade tem o mesmo corpo mas uma outra cabeça, só que era uma cabeça muito oca e foi destruída pelo barro cheiroso atrás da minha casa. Eu ri, como quem segura o choro e não acredita em nada do que vê. E do que acabou de passar. Começo a pensar e me perguntar se fiz algo de errado, pensando ser inocente, puxando na memória se fiz algo ruim para que aquilo fosse acontecer comigo, justamente comigo. Podia acontecer em um outro momento, mas talvez eu esteja sempre reclamando e reclamando demais. A ficha não caiu de que tudo o que eu tinha estava destruído e não parei para pensar que seria melhor a morte ter colocado a minha vida em risco naquele dia, deixado meu nome na lista de vida que podiam ser perdidas. Acredito que acabei de me tornar uma aranha sem sua engenhosa teia, uma aranha ou uma traça que, com um vento fraco, acabam perdendo a razão e sentidos e morrem sem nem sentir ou simplesmente perdem tudo, como foi meu caso em que tive que pensar rápido na minha situação. José estava na mesma situação que eu. Quanta coisa pode acontecer em um dia, em um mês, em um minuto. Quanta felicidade acaba sendo reduzida a raiva e tristeza em apenas uma hora. Eu só ri, porque parecia uma verdadeira brincadeira dos céus contra mim, eu pensava em olhar para ele e dizer que eu sentia muito por ter tirado e destruído as casas das aranhas, parecia que tudo aconteceu justamente porque cometi esse crime.

Agora eu estava ali, com José, vendo o sereno cair sobre a rua, estávamos embaixo de algo na rua, nos protegendo da água, mas não do frio. E assim eu acabei realmente percebendo que era uma aranha e que agora eu precisava reconstruir tudo novamente, precisava achar outro canto na parede desse mundo. Dormimos na rua como quem está nessa situação, como quem vê luzes nas casas e não pode desfrutar delas, nem precisa ter lustre, porque eles são feios, mas apenas uma luz sobre a cabeça para lembrar-nos que há um teto segurando a lâmpada. Eu dormi, depois de um mês com meu novo teto – que agora não existe mais – dormi só pensando em descansar e não querendo mais nada, agora havia uma goteira do meu lado, não na minha cabeça, mas estava do meu lado, no teto escuro de algum estabelecimento que achei um bom refúgio, parei para pensar no sono que eu teria essa noite e chorei mais que o céu naquele dia. Voltei para a mesma situação que eu estava, mas agora a goteira estava localizada em outro espaço, um pouco mais longe de mim, mas não deixando de me incomodar. Dormi pensando no próximo dia, pensando que o céu podia cair naquele momento, porque não faria diferença nenhuma, devia ter mesmo caído sobre tudo. A goteira deve ser meu castigo até o fim de meus dias.

 

                                                   Vi Noronha 

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Virando a chave da verdade: esclarecimento sobre a degradação do noturno no Paula Santos

 

Ultimamente temos visto diretores e até um professor afirmando que o nosso movimento está atrapalhando a vida dos alunos, que por nossa causa surgiram uma série de problemas e que os alunos estariam sem recursos para o bom andamento das aulas devido a nossa persistência em garantir o direito ao ensino noturno. 

Em um dos vídeos que circularam nas redes, foi demonstrada a estrutura da escola Tancredo e em um post no Facebook tivemos um professor dizendo que não há o que fazer e que ir contra só atrapalharia os alunos, etc. 

 Obviamente tanto as direções das duas escolas quanto o professor estão equivocados, o nosso movimento existe pra resolver os problemas gerados pelas gestões das duas escolas. Em nenhum momento questionamos a qualidade da Escola Tancredo, ao contrário, nós é que perguntamos qual foi o motivo para que uma escola com tamanha qualidade em sua estrutura e recursos viesse a ter encerrado o seu noturno para reabri- lo somente agora? Maior oferta de educação de qualidade para nós não é problema, quanto mais escolas com noturno melhor para os pais, alunos e toda comunidade escolar. 

Que o Tancredo reabra seu noturno sem o fechar na Escola Paula Santos, tem nosso total apoio. Assim teremos duas comunidades escolares com maior acesso a educação. 

Com relação ao acesso a estrutura da Escola Paula Santos pelos alunos e professores do noturno, basta apenas dar acesso a estes, qual o problema dos alunos e professores utilizarem o que é deles por direito? A escola pertence a comunidade escolar, e deve atender as suas demandas não ao que deseja determinada direção. Todos sabemos que a escola Paula Santos trabalha agora com o período integral, e que para tanto deve contar com uma estrutura de qualidade para atender as demandas de tal modelo de ensino, ou seja, se no Tancredo há uma estrutura exemplar como diz a diretora de lá, na EE Paula Santos não pode ser diferente, caso contrário deve se averiguar por quais motivos a escola não possui os recursos de uma escola integral.  

Ora, todos sabemos da qualidade da nossa escola, o problema aí  é a má vontade da direção, pois basta apenas liberar o acesso aos recursos, a toda qualidade da estrutura da escola Paula Santos.  

Concluindo, o movimento pelo ensino noturno não é o problema, o problema é que ele nos seja negado, e se a outra escola também passar a contar com o ensino noturno isso não nos incomodaria, muito pelo contrário seria motivo de comemoração.