domingo, 16 de janeiro de 2022

Contos do Janeiro Branco

  

Em 2014, psicólogos brasileiros, criaram a campanha “Janeiro Branco”. Uma forma de fazer com que a sociedade pense, repense, fale, enfim, reflita sobre a saúde mental. Segue abaixo, nossa colaboração nessa reflexão...

 Max Diógenes

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O relógio desperta quatro da manhã. Você titubeia; apesar de saber sobre sua necessidade de acordar todos os dias no mesmo horário, nem sempre se faz possível dormir cedo. O clima está agradável, você estava dormindo profundamente, a cama está muito aconchegante; mas você tem de se levantar; precisa abrir mão do conforto do leito. Escova os dentes, toma um copo de café, come um pão duro com margarina, se despede de alguma outra pessoa que também já estiver acordada e se dirige para o ponto no qual o ônibus da empresa vai lhe apanhar. Seu turno começa as seis, você é o primeiro a embarcar, ainda terá de percorrer boa parte da cidade para que o motorista possa baldear outros funcionários de outros bairros. Você só retornará para sua casa, depois de dia estafante de trabalho braçal, por volta das três e dez da tarde. Você é o último a desembarcar...

 

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Um aplicado aluno, filho de metalúrgico e de uma costureira; matriculado na escola estadual do bairro em que sempre morou. Sempre tirou boas notas, quase nunca precisou responder por algum ato de indisciplina, sempre teve facilidade em construir e em manter relações de amizade e amistosidade com todos da sala e até com colegas de outras turmas. É aprovado, na adolescência, em vestibular do SENAI e se forma mecânico de usinagem; aos 16 anos de idade, já tem uma profissão. Insere-se no mercado por meio de estágio, é efetivado, exerce sua profissão por quase dez anos, mas aí há uma restruturação na empresa; há a necessidade de se cortar gastos, inclusive, com mão de obra e como sua mão de obra é cara por ser qualificada, na sociedade do mérito, você é dispensado. Aí você e sua esposa percebem que a sociedade mudou; o mundo é outro e se faz ímpar uma adaptação. Necessitam de criatividade para empreenderem; você passa a prestar serviço para o UBER e sua companheira vende bolos de pote. Você não se transformou no jogador de futebol, no ator ou no astro da música que a escola fazia com que todos entendessem que seria possível de se tornarem. Mas dão conta da comida e do aluguel com o novo empreendimento...

 

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Seu filho era um amor; um doce de pessoa. Você sempre foi mãe esmerada. E sua cria sempre lhe demonstrou gratidão; e reproduzia para com o filhinho, seu neto, os mesmos cuidados que você despendera com ele; talvez até com maior exagero. A vida lhe impeliu para o mercado dos motoboys. No exercício do trabalho, aos 28 anos de idade... Seu filho era um amor; um doce de pessoa...

 

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Como são doces as lembranças da infância; videogames, Jaspion, os dias de jogos com estádio lotado... Meu pai era palmeirense fanático; não perdíamos quase nenhum jogo; bons tempos. Sempre me foi ofertado do bom e do melhor. Frequentei escolas privadas, a comunidade evangélica da qual fazíamos parte era formada por gente educada, pude fazer cursinho intensivo antes do vestibular. Não consegui entrar em uma universidade pública; mas minha família pôde bancar meus estudos em um centro universitário, tranquilamente. Sou formado bacharel em recursos humanos. Atuo na área desde que concluí o curso. Vou de carro ao trabalho, participo de happy hour nas sextas depois do expediente, a empresa financia minha formação continuada investindo em palestras, meus amigos do departamento, eu e minha namorada, que conheci na época daquela comunidade evangélica costumamos frequentar hamburguerias ou nos reunimos para festejar em algumas das varandas gourmet, sempre na casa de um de nós, em sistema de revezamento... Viajo uma vez por ano com minha parceira para algum paraíso do Nordeste... Tomo três litros de água por dia, não como fritura, não exagero no açúcar, faço academia... Vou confessar... A pressão por resultados na empresa acaba comigo; às vezes tenho a sensação de que a amizade com o pessoal é só de aparência; no fundo, todos apenas querem se conhecer para, no dia-a-dia organizacional, estrategicamente, poderem acabar uns com os outros; o chefe é um porre; é o mais burro de todos, contudo, o único reconhecido. Não quero mais ser o amigo, o colaborador, o filho, o religioso ou o namorado perfeito. Estou cansado... Cuido do corpo, mas não devo tê-lo... Um filósofo, certa vez, me ensinou que quem não tem corpo, não têm alma; eu não sinto minha alma...

 

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Sempre fora mimada; sempre. O xodozinho da família. Pele branquinha, cabelos escuros e lisos, olhos verdes. A família, com certa capacidade monetária e certa influência em alguns círculos, conseguia fazer com que essa princesa participasse de pequenas peças publicitárias, fossem televisivas, em outdoors, fotos em revistas infantis... A garota adolesceu, se desenvolveu, cresceu e se converteu... Bela mulher... Seguiu a carreira no mundo da moda... Formou-se em Psicologia recentemente. Beira os trinta, e nem todo mundo é Gisele, apesar de tudo. Tenta se consolidar como Coach. Agência própria, canal no Youtube, página no Insta. É uma linda mulher; mas não se conforma com o fato de o mercado não pensar a mesma coisa...

 

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Meu pai construiu esse restaurante... Hum... Na verdade, de início, era um boteco. Garrafas 600 ml de cerveja para os bebuns que vinham pra cá, de tubaína para seus filhos, sobrinhos ou netos... Aquele globo giratório com balas de fruta ou de menta; a estufa com coxinha... Em certo momento se fez possível investir no estabelecimento; minha mãe sempre cozinhara bem e fez cursos para aperfeiçoar sua culinária; minha irmã e eu crescíamos e poderíamos ajudar no caixa e no atendimento. Sacrificamos um pouco da adolescência e o comecinho da vida adulta, mas valeu a pena. Hoje, somos tradição, nessa cidade tradicional. Não esperávamos passar por isso, sabe. Uma crise sanitária dessas. Empregamos garçons, balconistas, cozinheiras, faxineiras... Nossa única renda não é daqui, claro; temos outra fonte. Mas nossa outra fonte é mais instável; nunca fomos verdadeiramente ricos, financeiramente falando, e nossos investimentos na bolsa, por si só, ainda não são fonte segura. O grosso vem daqui. Sabemos como a coisa funciona; mas precisamos fingir que não sabemos; temos de mentir. Triste realidade na qual, entre a economia e a vida, temos de lutar pela "liberdade" de escolher a economia... Uma pergunta... Você consegue me responder, o que é liberdade?... Hehehehe... Ainda bem que há a campanha do Janeiro Branco... Falar sobre saúde mental é sempre importante, né?