quarta-feira, 20 de abril de 2022

O progresso é o lixo (Conto)




Provocativo. Emocionante. Eis um conto que nos causa sensações e emoções que, às vezes incomodam, mas que fazem refletir. O ConselhodaClasse Recomenda sem contraindicações.



Boa leitura.






"É reconfortante saber que na terça-feira, na quinta-feira e no sábado eu tenho como juntar toda a sujeira que eu mesmo criei, colocar no portão da minha casa e esperar pelo fulano-andré ou cicrano-antônio pegar aqueles sacos enormes e pesados e levar para longe de mim. Muito bom produzir meu lixo e quebrar meus vidros, sabendo que no próximo final do dia alguém que eu nunca ouvi falar vai se responsabilizar por ele e levar para algum lugar que eu não faço ideia de onde seja". (Conto: O progresso é o lixo)

 

 



O progresso é o lixo

By Vitória Noronha




Decorei o dia de o lixeiro passar. Juntei toda aquela sujeira, toda a comida estragada, todo o nojento papel higiênico, aquelas enormes embalagens vazias e cheias de ar e, além de toda a merda do gato. Fico aliviado quando não quebro nada, porque tenho a certeza de que não vou machucar os homens que não tem culpa do meu desastre. É estranho, mas a primeira pessoa que eu penso quando quebro algo dentro de casa, é naquele que recolhe meu lixo. Sinto-me porco demais. E quantos porcos não existem aqui, como eu? Quantos homens estão nesse momento fazendo uma pequena montanha de lixo em alguma rua de alguma cidade do meu Estado? Do Estado em que estou, não o Estado em que nasci. Do Estado em que me encontro. Fazendo essa montanha que cresce a cada minuto como se fosse uma criança, para se preparar quando o caminhão passar. Pegar aquelas crianças nos braços e jogá-las na outra montanha misturada com vômito, vidro, papel, madeira, resto de comida que alguém não aguentou comer e resto de sujeira dos corpos. Deve ser horrível acordar em casa, bem cedo, saber que tem que ir trabalhar. Na verdade, não “deve ser”, eu tenho certeza que é. Assim, ter que trabalhar nesse lugar específico cheio dessas montanhas, respirar esse ar e deixar as narinas arderem, ignorar a dor que entra quando se respira. Usar luvas, roupas florescentes, andar colado nas costas de um caminhão e recolher todo esse lixo do mundo, ou todo o mundo do lixo.

É reconfortante saber que na terça-feira, na quinta-feira e no sábado eu tenho como juntar toda a sujeira que eu mesmo criei, colocar no portão da minha casa e esperar pelo fulano-andré ou cicrano-antônio pegar aqueles sacos enormes e pesados e levar para longe de mim. Muito bom produzir meu lixo e quebrar meus vidros, sabendo que no próximo final do dia alguém que eu nunca ouvi falar vai se responsabilizar por ele e levar para algum lugar que eu não faço ideia de onde seja. E vai jogar em outras montanhas de sujeira de todas as outras pessoas que moram perto ou longe de mim. Pessoas que fazem a mesma sujeira e algumas mais pesadas que as outras. Existem também, aquelas pessoas que se misturam nela. Não porque querem, não porque precisam do lixo, mas porque acabam se tornando parte dele. E fazem seus barracos montados com o resto do lixo que eu acreditei que não teria utilidade para mim, mas para outra pessoa que nem casa possui para produzir lixo, o resto de mim que eu descartei serviu para alguma coisa. E recolhem alumínio, papelão, andam com seu carrinho de compras que na verdade foi descartado também, em algum momento. A utilidade do carrinho de compras para quem vive num barraco à beira dos asfaltos e viadutos e avenidas, é maior que a utilidade dele pra mim, quando eu vou ao supermercado comprar alguma comida e algum produto de limpeza e sacos de lixos para usar na hora de descartar a comida que eu comprei e a embalagem do produto que eu usei para limpar minha casa.

Os fulanos, cicranos e beltranos que respiram meu lixo não devem se aguentar o dia todo com tanta merda que entra pelos seus narizes. Devem ter cortado a mão hoje e, ainda é terça-feira. Algum filho de Deus descartou seu lixo com o vidro exposto. Com comida estragada há cinco dias na geladeira, comida que não comeu porque não precisou e não descartou porque teve preguiça. E é por isso que aqueles homens do barraco precisam tanto da montanha de lixo. Para comer a comida que eu descartei. O lixo que eu produzo possui suas várias utilidades. Isso, além de reduzir o ser humano em uma coisa, que acumula e descarta o resto do seu vômito para, a partir disso, ser repassado às outras pessoas. E essas outras pessoas, que abrem a boca com muita fome e alegria, com aquele vômito fétido, que trás sensações de desgraça e podridão, caindo sobre eles com muita força, criando um ar abafado e escuro e matando toda a sua fome, deixando seus músculos, ossos, língua e dentes cheios de trabalho, para triturar, saborear e engolir. Abrindo, rasgando e assustando seus estômagos de tanta felicidade. E são tantas informações, tanto descarte, que a montanha se torna pequena para tanto homem que precisa matar a fome e dividir todo o lixo com seus outros animais que dividem, também, o cômodo tão grande chamado rua. E depois descansar na sombra do papelão quente que cobre suas cabeças cansadas de tanto correr atrás da morte de suas fomes, que gritam todos os dias dentro dos seus corpos secos e ficam rosnando para seus órgãos. Todo dia precisa matar algo para não morrer.

E chega um dia em que param todos os coletores da imundice jogada no mundo. Eles param, estacionam o caminhão à procura de um ar limpo que não machuque seus corpos. Que não rasgue suas mãos. Eles abandonam meu lixo. Isso durou um mês. São trinta dias de lixo acumulado na rua, na praça, no bairro, na cidade. Ninguém nunca parou para pensar na importância dos milhares de seres humanos que passam a ter uma vida de lixo para limpar o chão em que outras pessoas pisam e isso acontece todos os dias, não é apenas um dia sim e um dia não. Talvez apenas nas nossas ruas, mas o mundo não gira em torno delas, gira em torno dos coletores de lixo. E talvez o planeta não girasse tão bem e bonito como ele normalmente gira, caso os homens decidissem não tirar ou não diminuir o peso da desgraça criada sobre eles e sobre mim. O mundo é tão pesado e eles devem se perguntar o tempo todo sobre, como é fácil produzir tantas coisas em grandes números, estragar tudo isso ou se deixar estragar, depois descartar, simplesmente, porque o homem do lixo está aqui. Ou porque o homem que já nasceu nele, está consumindo todo esse resto de pessoas que é descartado desde o dia em que, infelizmente, saiu da barriga de sua mãe.

Vamos analisar com mais precisão o quanto o lixo de gente pode impactar no mundo e na forma como o planeta gira ao redor da estrela. Conheço uma mulher – muito próxima de mim – que trabalha com muita felicidade nos chamados supermercados dos quais são tirados aqueles carrinhos de compras que os homens do lixo – aqueles que vivem em barracos – se apropriam para ter mais praticidade na sua vida de misérias. Essa mulher cuida de plantas e de coisas que não são tão essenciais para a vida do ser humano, mas de qualquer forma, cuida de um setor específico. E o que acontece é algo muito engraçado que faria os pobres homens chorar de tanto desgosto e raiva por ter que ver esse tipo de situação. Houve um pequeno equívoco aqui. Eu quis dizer que é engraçado, pois de tão cômico, ou seja, de tão ridículo, porco e sem sentido, essa situação se torna algo digno de ser estudado – e na verdade, é algo que é estudado – mas acontece o tempo todo. Não só no supermercado, mas na minha casa, nas casas vazias e nas casas cheias de pessoas também. Então, a partir disso, vou falar das maçãs que compro todo mês – fica calmo, porque isso tem a ver com o que quero dizer e onde a mulher entra na história, embora ela não cuide do setor das frutas, mas ela come as frutas, assim como eu tenho certeza que você também come – porque as maçãs são frutas excepcionais. Eu consigo comer maçã com tudo. Leite, leite condensado, arroz e qualquer outra comida salgada. Tem pessoas que odeiam a maionese com maçã, mas eu acho uma ideia muito boa. Como sabemos, tudo isso é vendido em supermercados e aqueles que não são super, mas ainda sim não deixam de ser mercados. Enfim, minha história não pode sair do foco, porque o foco é que, minha casa está cheia de lixo e isso ainda não me incomoda, na verdade estou aqui para te explicar o porquê isso acontece – o porquê não me incomoda – embora você não esteja nem um pouco interessado, porque deve achar que não vai te afetar diretamente, mas eu preciso te dizer que vai, sim. Bom, eu trabalho com algo que não faz diferença para a história, mas eu trabalho com algo. Compro coisas e compro frutas, dessas frutas eu compro maçã. A maçã é uma fruta muito versátil, deliciosa, encaixa em tudo, mas não mata minha fome. Embora eu compre muitas maçãs, às vezes elas acabam estragando na minha geladeira, o que é engraçado, porque já que não mata minha fome eu deveria ter mais disposição para comê-las. Mas a mulher das flores anda todos os dias observando aquelas plantas e dialogando sobre o desperdício nos supercorredores. Meu trabalho não tem nada a ver com supermercado e seus supercorredores, mas tem a ver com a superprodução de tudo – lixo, principalmente. Eu nunca vivi um momento histórico no qual os homens que limpam o mundo simplesmente param de limpar. Isso acontece? E já aconteceu? Eu queria ver as ruas sujas, congestionando o trânsito, ardendo o nariz de todas as pessoas que produzem muitas coisas. Não para suprir a necessidade dos homens, mas para fazer com que alguns homens tenham essas coisas produzidas por outros e que essas coisas durem pouco para ser possível comprar mais no próximo ano.

A mulher, que evita ter que jogar suas flores mortas no lixo – porque ela tenta cuidar delas para que se recuperem – observa todos os dias os alimentos morrendo aos poucos, assim como a maçã. E ela fica murcha – a mulher e a maçã – por saber que não vai para nenhum outro lugar além do lixo. E acontece uma corrida contra o tempo para poder disponibilizar essa maçã de uma forma estratégica nos supermercados para que as pessoas passem por ela e ouçam seu grito dizendo “seu imbecil, me leve porque se isso não acontecer eu vou bater na porta da sua casa, esfarelar na sua cama, e te dar o maior trabalho e desgosto da sua vida!” Ela diz isso já chorando, com uma água suja escorrendo pelo seu corpo vermelho, mas todos passam e andam ao redor dela, trançando seu caminho, olhando o setor dos vinhos, dos alimentos não perecíveis, das promoções de cerveja e o setor dos vinagres de álcool e de maçã. E ela – a maçã – se sente traída e rejeitada, sabendo que está ficando velha e não teve uma boa vida, uma vida digna, que nem se quer serviu para participar do processo do vinagre, sofreu para chegar até ali e se misturou com tantas outras. Com isso, ela ficou muito feia e acabada. Só não teve problemas com ansiedade e depressão por se tratar de uma fruta. E assim, ela, outras maçãs e outras frutas serão descartadas para algum lugar. Elas que já não se mostram tão úteis como quando chegaram naquele caminhão de alguma cidade muito distante, então não podem ser doadas para a mulher das flores e para nenhuma outra pessoa do supermercado. Ela precisa ser descartada porque o nascimento dela foi comprado, mas agora ela só gerou prejuízos e só ocupou espaço. Eu acabei descobrindo que, dentro dos supermercados, chamam isso de “quebra”. Essa palavra é muito conhecida por causar prejuízo. Só depende para quem ela causa esse problema. Se você parar pra pensar, a quebra existe em muitos outros espaços da cidade. Quando entro no supermercado e vejo uma dúzia de pessoas pedindo alimentos – mesmo que tenham outro fim para esse alimento – eu consigo perceber que a maçã poderia ter tido outro fim. Porque aquelas pessoas no sol do estacionamento não fazem ideia da quebra que acontece todos os dias e que o prejuízo do supermercado poderia ser a solução para o lixo de suas vidas. E para o lixo em geral.

Quando me encontro com a mulher das flores – aliás, suas flores são lindas e muito bem posicionadas – sempre pergunto a ela, sobre essa questão importante:

- Então quer dizer que, a “quebra” sempre existiu e ela se trata de um bom posicionamento das coisas nos corredores do supermercado e, se tudo acaba estragando, esse estrago vai todo para o lixo?

Foi uma pergunta bem grande, digna de uma questão de prova, porque ela já estava quase respondida. Sabendo disso, ela só confirmou o que eu havia dito.

- Sim, pois é. Nós temos que tentar evitar isso a todo custo, porque é dinheiro que se perde.

Mas às vezes, a solução é ridícula de tão simples, só que não é possível dizer em voz alta, porque de qualquer forma essa solução só traria mais prejuízos para o supermercado e não é isso que nós queremos.

- Essas coisas que são perdidas e que, acabam sendo violadas dentro dos supermercados, ou que simplesmente passam da validade, não podem ser doadas para os funcionários?

E como alguém que, já ouvir essa mesma pergunta várias vezes, ela me respondeu com uma frase que já foi decorada.

- Antes, o “quebra” era doado aos funcionários, sim. Mas alguns acabavam violando os produtos para que eles lhes fossem dados. Então, a empresa parou com isso.

Questionei também, sobre a criação de algum projeto para ser feito com o fim de doar para quem precisa e não pode pagar pela maçã velha. Mas nem isso é possível. O produto não está nos supermercados para suprir necessidades, está para vendê-las – vender as necessidades. Nenhum dos dois casos está errado, porque é fácil se perguntar sobre o que leva alguém a violar os produtos do seu local de trabalho para, no fim, pegar para ele mesmo. O que é um produto violado, uma maçã estragada, diante de todo o quebra existente no caminhão de lixo e de todo quebra existente nos barracos da cidade que estão rezando e pedindo ao deus, por favor, me arrume uma maçã estragada.

O supermercado e a superprodução só afeta e machuca quem mal não come e bem come pouco. Com isso, espero o descanso de quem limpa o mundo e espero a morte da fome daqueles homens que não tiveram a oportunidade de comer a maçã que foi mal posicionada nos supermercados. Agora estou fazendo minha montanha de sujeira, como todo o mundo, neste dia de caminhão de lixo, no qual passam nos portões recolhendo a sujeira e o cheiro, que eu tenho a oportunidade de tirar da minha vida pra sempre, mas que sempre vai acabar voltando pra mim como uma maçã podre ou uma embalagem violada, mas de qualquer forma vai sempre estar aqui, embora nunca me deixe passar fome.