Inteligência Artificial - promessas e realidades
Ao longo de 2024, as informações sobre a Inteligência Artificial Generativa (IAG) chamaram à atenção ora pela aplicação às atividades cotidianas, ora pelas projeções de um corte dos empregos existentes. Entre o ufanismo das visões otimistas e o clima de “salve-se quem puder” do futuro mercado de trabalho, as reações populares a estes balões de ensaio ajudam o capital a fazer um balanço entre as vantagens potenciais da IAG e o que pode inviabilizar os resultados esperados. De fato, tão importante quanto os cálculos de aumento da produtividade, a necessidade de neutralizar a resistência dos atingidos pelas mudanças é um dos fatores que influencia a velocidade da sua introdução nos processos de trabalho. Dois exemplos ajudam a visualizar esta relação.
O
primeiro é o da Ekaterra, multinacional que fabrica os chás Lipton e Tazo, que,
apostando na frágil tradição sindical local, realizou uma rápida mecanização
das plantações do Quênia. Em alguns meses, 30.000 mulheres perderam seus
empregos e o salário das que continuavam empregadas caiu, em média, de 150 para
80 dólares mensais. Em maio deste ano, os sofrimentos criados pela mecanização
fizeram a revolta explodir entre os moradores de Keriko, a região que abriga as
plantações da empresa. O rechaço ao aprofundamento da miséria fez com que nove
colheitadeiras fossem incendiadas num curto espaço de tempo.[1]
Em
sentido oposto, lembramos que, entre 1920 e 1930, a mecanização das centrais
telefônicas dos EUA criou as condições para que as manifestações da luta de
classe fossem reduzidas a um patamar administrável. O corte de 80% das 300.000
vagas nos setores que efetuavam a conexão manual nas ligações interurbanas foi
diluído ao longo de mais de uma década. O fim desta que era a quinta ocupação
mais importante para as mulheres que ingressavam no mercado de trabalho ocorreu
enquanto as novas funções de baixa qualificação na cadeia produtiva dos
equipamentos introduzidos nas centrais telefônicas ofereciam às jovens empregos
com níveis de remuneração semelhantes.[2]
As
perspectivas de desenvolvimento e as atuais aplicações da Inteligência
Artificial Generativa se deparam com o mesmo dilema: como fazer os lucros
triunfarem sem enfrentamentos que estraguem a festa do capital?
Do lado
da classe trabalhadora, as perspectivas de um novo aumento da precarização e da
informalidade apontam para um futuro tenebroso. Sendo assim, conhecer o que é,
o estágio em que se encontra, como atingirá o emprego e os desafios que a
implantação da IAG semeará mundo afora são parte de uma discussão que os
movimentos precisam fazer o mais rapidamente possível. Entender o que está por
vir é o primeiro passo para elaborar estratégias que resistam às novas
investidas da acumulação.
1. O
que existe e o que a Inteligência Artificial Generativa promete fazer.
Começaremos
as nossas reflexões partindo de um exemplo do qual todos ouvimos falar: o ChatGPT. Este recurso utiliza um amplo banco de dados para criar algo
novo. De um texto sobre um tema específico a um discurso na inauguração de uma
obra pública, de um poema produzido a partir do acervo disponível a uma
mensagem de texto para acalmar um cliente enfurecido, da elaboração de uma
pesquisa aos dados que permitem projetar tendências de desenvolvimento de um
acontecimento, esta ferramenta de IAG realiza rapidamente tarefas que
demandavam talentos e amplos períodos de tempo. [3]
Aparentemente simples, a otimização da relação entre o ser humano e os
algoritmos da IAG é um processo que requer do operador a capacidade de formular
perguntas na linguagem correta. Quanto mais preciso e certeiro for este
diálogo, melhores serão as respostas fornecidas pelos equipamentos e maior será
o aprendizado da IAG.
Para entendermos esta relação, podemos dizer que, no momento da sua
introdução, a Inteligência Artificial Generativa começa a sua carreira como um
estagiário que possui a teoria necessária para desempenhar a função, mas a
falta de experiência faz com que seja apenas um assistente. Como todo
estagiário, a possibilidade de avançar na profissão depende tanto do seu
esforço, como de encontrar alguém que, ao supervisionar a execução das tarefas
solicitadas, ensine os “macetes” do trabalho.
Aos poucos, o saber prático adquirido pela IAG faz com que ela aprenda a
dar conta das tarefas tão bem quanto as pessoas que orientaram o seu estágio, a
ponto de não ser possível reconhecer quem, de fato, realizou o serviço
solicitado. Em seguida, à medida que em seu banco de dados estão reunidas as
informações colhidas ao longo do tempo, que a sua memória não esquece de
nenhuma delas e pode projetar com precisão riscos e padrões de comportamento, a
Inteligência Artificial Generativa mostra um desempenho superior ao da média
dos profissionais com os quais aprendeu.
Quando levamos em consideração outras ferramentas (como o BingChat, o
Google Bard, o Jasper, o DALL-E, o Deep Art e o Hub Spot, só para citar alguns
dos recursos mais usados na criação de textos, vídeos e imagens), percebemos a
quantidade de tarefas que já podem ser executadas com precisão e com um grau
elevado de confiabilidade por um equipamento eletrônico. Ao aplicar estes
recursos numa empresa de vendas online, por exemplo, é possível encurtar a
distância entre a percepção das mudanças no comportamento dos consumidores e as
decisões gerenciais que orientam a produção e a distribuição. Com base nos
dados armazenados, a IAG detecta tendências e estima a demanda, facilitando a
preparação dos estoques, a elaboração do marketing e do atendimento ao cliente.
Viabilizada a campanha publicitária com a produção de vídeos, imagens e
mensagens que unem a criatividade do especialista em marketing aos recursos da
IAG, a avaliação do processo em andamento será feita em tempo real pela própria
IAG que, ao identificar padrões, segmentar audiências com maior precisão,
prever resultados, ajustar estratégias e produzir novas imagens ou variações
automáticas dos anúncios veiculados, permitirá otimizar as possibilidades de
retorno da peça publicitária que foi criada. De um lado, isso permite dar vida
a um número maior de produtos e serviços capazes de despertar no público alvo
tanto o desejo de atender novas necessidade, como a satisfação que procuravam.
De outro, o aumento da produtividade de designers, profissionais de marketing e
criadores de conteúdos, oferece às empresas a chance de reduzir o quadro de
funcionários aos “talentos” que considera essenciais.[4]
Nesta altura, você já deve ter percebido que não estamos diante da
repetição do saber operacional, típica da automação pura simples, e sim de uma
inovação capaz de fazer com que as máquinas aprendam constantemente com os
dados das ações desenvolvidas. Sendo assim, o ser humano que, até hoje, era
indispensável para resolver o que escapava ao controle dos programadores,
começará a ter o seu papel reduzido na exata medida em que a IAG pode assumir a
supervisão de equipamentos e processos, graças a este aprendizado.[5]
È assim que, por exemplo, no sistema financeiro, o reconhecimento de
padrões de comportamento pela Inteligência Artificial permite identificar
fraudes, administrar o acesso ao crédito, aconselhar investimentos e produtos
de acordo com o perfil de cada correntista, melhorar a segurança institucional
e das operações com um número cada vez mais reduzido de funcionários.
Na saúde, a IAG já é utilizada nos exames de imagem por oferecer uma
precisão de diagnóstico superior à dos profissionais que elaboram os laudos, o
que permite detectar doenças em estágio inicial. Do mesmo modo, sempre que é
registrada a presença de um novo vírus letal, a análise da eficácia dos
medicamentos existentes e o registro das reações obtidas é realizado
automaticamente por equipamentos dotados de Inteligência Artificial. Num futuro
próximo, os recursos que estão sendo aprimorados prometem auxiliar na produção
de novos medicamentos graças à possibilidade de simular interações moleculares.[6]
Na seara da educação, a Inteligência Artificial Generativa traz a
possibilidade de personalizar o aprendizado de cada aluno. A IAG analisa o seu
desempenho, identifica lacunas de conhecimento e recomenda aos docentes os
materiais educacionais que melhoram a aprendizagem e que, graças às suas
ferramentas, podem ser elaborados em curtos espaços de tempo, sejam eles
textos, vídeos ou áudios.[7]
Assim como favorece o desempenho de certas profissões, a Inteligência
Artificial Generativa ameaça a existência de outras. É o caso, por exemplo, dos
tradutores cujo trabalho vem sendo rapidamente substituído pelos modelos de
compreensão da linguagem. Em tempo real, os algoritmos fornecem traduções de
idiomas a partir das especificidades da língua e do contexto em que uma
mensagem é escrita ou falada. Quanto maior a base de dados disponível e o
aprendizado do sistema, maior é a capacidade de a IAG construir uma frase com o
mesmo sentido em outro idioma, reduzindo os erros de interpretação e a
necessidade de supervisão por um tradutor experiente.[8]
Nem mesmo o trabalho criativo de músicos, roteiristas, atores e
dubladores escapa das garras da Inteligência Artificial. Inúmeros os casos em
que as imagens e as vozes destes profissionais foram usadas para produzir novas
personagens sem que as empresas do setor pagassem os direitos autorais. E, à
medida que os recursos existentes permitem criar o novo a partir do velho,
transformar textos em vídeos, corrigir representações, ressuscitar virtualmente
personagens falecidas do mundo do espetáculo, produzir filmes e vídeos, criar
influencers virtuais, etc., é possível criar produções artísticas a baixo custo
a partir da gravação de vozes e imagens reunidas num banco de dados.[9]
Numa estimativa inicial dos ganhos de produtividade proporcionados pela
utilização do que já existe, um
relatório da McKinsey & Company, estima que o novo patamar de automação das
tarefas proporcionado pela IAG deve adicionar até 4
trilhões e 400 bilhões de
dólares (mais de duas vezes o Produto Interno Bruto do Brasil) à riqueza anualmente produzida pelo trabalho
mundo afora. É muito mais valor e lucro graças à potencialização do trabalho
humano, ao corte de vagas e às vantagens competitivas que os novos algoritmos
oferecem nesta que é apenas a primeira fase do desenvolvimento da Inteligência
Artificial.[10]
À medida que as ferramentas de IAG se tornam mais acessíveis, devemos
esperar que os seus recursos venham a ser cada vez mais utilizados pela
“indústria do crime”. Além de ajudar a otimizar as rotas do tráfico de armas,
drogas e pessoas através de informações que permitem identificar os trajetos
menos monitorados pelos policiais e a ausência de engarrafamento ou de
ocorrências de qualquer tipo, as ferramentas de IAG permitem aproveitar dados,
imagens, vozes, situações, ambientes, listas de seguidores e relações pessoais
extraídas das redes sociais a fim de aplicar golpes cada vez mais sofisticados.
Das ligações alertando em relação a movimentações suspeitas nas contas
bancárias fazendo aparecer no celular da vítima o número de telefone da agência
em que tem seus investimentos, a e-mails de concursos falsos com códigos
maliciosos, passando pela produção de fake news e de programas que exploram as
vulnerabilidades dos softwares recém-lançados, a IAG está se tornando uma
importante aliada dos criminosos.
Dois exemplos ajudam a termos uma ideia do que acabamos de afirmar. Em fevereiro deste ano, aproveitando a
possibilidade de mudar os rostos e clonar as vozes das pessoas usando falas e imagens divulgadas nas redes
sociais, os golpistas organizaram uma videoconferência na qual pediram ao
funcionário de uma multinacional o depósito de 25 milhões de dólares. Segundo a
polícia de Hong Kong, o fato de quem aparecia ao vivo e a cores na tela se parecer e soar exatamente como seus
colegas de trabalho fez com que os criminosos anulassem as desconfianças que o
próprio funcionário tinha em relação ao pedido recebido.[11] No Brasil, o Vice-Presidente da República, Geraldo Alckmin, teve um dos
vídeos publicados nas redes sociais utilizado por criminosos. Usando a sua
própria voz, o áudio manipulado orientava as pessoas a colocarem dados pessoais
numa página eletrônica através da qual seria possível verificar se o
interessado tinha dinheiro a receber dos valores esquecidos em instituições financeiras e guardados pelo
Banco Central.[12]
À medida que, com o tempo, uma maior quantidade de recursos da IAG
ficará mais barata, acessível e simples de ser utilizada, devemos esperar que
novos e mais sofisticados golpes marquem os noticiários policiais, o que
forçará empresas e particulares a aumentar os cuidados e os investimentos em
segurança. Desta forma, os golpes e a elevação dos custos para se proteger de
criminosos irão reduzir parte dos ganhos obtidos pelo avanço da produtividade.
2. Preocupações e desafios nos horizontes do trabalho.
Entre a classe trabalhadora, a percepção pela qual a Inteligência
Artificial vai levar à extinção de muitos empregos, faz com que as pessoas se
perguntem quais são as habilidades que permitem disputar as vagas nascidas da
sua implantação. A primeira delas aponta a necessidade de saber lidar com o
“aprendizado das máquinas”, o que demanda o conhecimento da matemática e o
domínio de noções básicas das ciências da computação.
Além deste campo do saber, o futuro trabalhador deve possuir um elevado
grau de atenção e concentração para perceber padrões, conectar informações e
tirar conclusões sem se deixar influenciar pelas suas emoções ou preferências
pessoais. O encaixe perfeito do candidato na vaga oferecida demanda também uma
dose generosa de curiosidade, abertura ao aprendizado, criatividade, sólidos
conhecimentos das áreas em que vai atuar, um nível avançado de inglês e uma boa
capacidade de comunicação para formular corretamente as perguntas que levam os
equipamentos a fornecerem as melhores respostas.[13]
A ampliação e a especificidade de algumas destas habilidades dependerá
das tarefas que a IAG pode desempenhar no âmbito em que está sendo utilizada e
da função para a qual a pessoa será contratada. De fato, uma coisa é um
operador aprender a fazer perguntas ao ChatGPT e seus similares e outra, bem
diferente, é lidar com um sistema que integra funcionários e ambientes de
negócios em países diferentes, funções gerenciais e processos de trabalho
complexos, além de atender os mais diversos tipos de clientes.
A possibilidade de as empresas introduzirem as inovações guarda uma
relação direta com três elementos: a disponibilidade de dinheiro, sua
estratégia de negócios e o aumento da margem de lucro possibilitada pelas novas
tecnologias. De fato, a depender da complexidade das tarefas a serem
desempenhadas pela IAG, o empregador vai precisar de uma estrutura
computacional robusta e cara e, obviamente, de pessoas gabaritadas para extrair
dela tudo o que pode oferecer. Do contrário, é como comprar um carro de Fórmula
1 e esperar que um motorista recém-habilitado vença o campeonato mundial de
pilotos...
A princípio, por exemplo, todas as escolas podem introduzir sistemas de
IAG voltados à educação. Mas, concretamente, qual delas têm recursos para
fazê-lo de forma ampla e consistente? Uma rede de colégios onde estudam os
filhos da elite? Uma escola privada destinada a alunos de famílias cuja renda
mensal não supera os cinco salários mínimos? Uma instituição pública de ensino
que vive sempre à caça de recursos para manter o que oferece com muito
sacrifício? Ou seja, a tecnologia existe e está disponível, mas ela ainda é
muito cara para que a sua introdução ocorra como seus desenvolvedores desejam.[14]
Através deste exemplo, conseguimos vislumbrar também que, quanto mais
amplo for o uso dos sistemas baseados em IAG mais a desigualdade tende a se
ampliar. À medida que quem dispõe de mais recursos (pessoa, empresa ou país,
pouco importa) pode acelerar o seu desenvolvimento tecnológico e os mais
carentes precisam esperar o barateamento dos novos equipamentos para ter acesso
a eles, o abismo entre os dois polos tende a aumentar na exata medida do ritmo
de incorporação da Inteligência Artificial Generativa.
Longe de ser nova, esta realidade já pode ser verificada nos atuais
níveis de investimento. A maior parte dos 300 bilhões de dólares anual e
globalmente gastos para aumentar a capacidade de computação é desembolsada em
um punhado de nações ricas que, ao fazer isso, aumentam a distância em relação
ao nível de desenvolvimento dos países pobres forçando-os a uma eterna situação
de dependência e submissão.[15]
Este processo pode ser
visualizado também através do impacto que a IAG pode ter nos empregos
existentes. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 4,9%
dos postos de trabalho nos EUA e no Canadá, podem desaparecer em função de um
elevada possibilidade de automação total das tarefas hoje desempenhadas por
seres humanos. Esta porcentagem cai para 2,5% na América Latina e Caribenha e
para 2,4% no Brasil. O que se apresenta como uma boa notícia em termos de
redução das pressões sobre o emprego, na verdade, faz com que o avanço da
produtividade e a redução dos custos na América do Norte eleve a
competitividade das empresas aí instaladas. Somada às patentes das novidades
produzidas, a redução dos preços de mercadorias e serviços, via aumento da
produtividade, ampliará as fatias de mercado atendidas e colocará em maus
lençóis os processos de trabalho que, em qualquer outro lugar do mundo, ainda
dependem de um uso mais intensivo da força de trabalho.[16]
A realidade mostra que, para a grande maioria de quem assume as tarefas
exigidas pela introdução da IAG, receber bons salários não passa de um sonho
distante. Os ordenados pagos aos que alimentam bancos de dados ou monitoram as
postagens e as interações dos usuários nas redes sociais provam o que acabamos
de afirmar. No momento em que escrevemos, as notícias disponíveis mostram que a
grande maioria destes “operários de dados” é contratada informalmente e paga
por tarefa executada.
No Brasil, cada um deles recebe, em média, R$ 583,71 mensais por dedicar
15 horas e meia de trabalho semanal às demandas da empresa que solicitou seus
serviços, o que força o indivíduo a ter mais de um vínculo contratual para
comprar uma mera cesta básica de alimentos que, em setembro deste ano,
demandava, em média, 102 horas e 14 minutos de trabalho.[17] Em termos mundiais, as coisas não são diferentes. Segundo um estudo da
OIT realizado em 2018, a média de ganhos era de U$ 4,43 por hora trabalhada,
sendo que, no continente africano, este valor caía para U$ 1,33 e nos Estados
Unidos atingia um dos patamares mais elevados com U$ 4,70. Apesar de ser bem
maior, o ordenado de um estadunidense correspondia a menos de 65% do valor
mínimo nacional da hora trabalhada que é de U$ 7,25.[18]
As baixas remunerações se explicam, fundamentalmente, pela grande
disponibilidade de força de trabalho e, de consequência, pela concorrência que
se estabelece em seu meio. Ainda que a demanda cresça em função de alguma
situação específica, o volume adicional de contratações não eleva
significativamente a média da remuneração paga. Por outro lado, o fato de a
maioria destes funcionários trabalharem em suas casas e sem contatos com os
demais; da sobrevivência de sete em cada dez deles depender fortemente desta
ocupação; da relativa simplicidade das tarefas executadas; e da necessidade de
conseguir mais de um contrato para pagar as contas do mês erguem barreiras
significativas às possibilidades de revolta deste contingente sem o qual a IAG
não teria condições de funcionar.[19]
Os riscos da baixa qualidade das tarefas desempenhadas pelos “operários
de dados” são minimizados através do controle exercido por profissionais de
tecnologia. É aqui que encontramos salários bem maiores. Basta pensar que, no
Brasil, um iniciante no cargo de especialista em Inteligência Artificial e
Aprendizado de Máquina pode ganhar, em média, R$ 16.000 por mês. Este valor
cresce a depender da experiência adquirida, do conhecimento técnico e das
responsabilidades do cargo a ser exercido, até atingir o salário inicial de R$
31.110 mensais, no caso da alta chefia.[20]
Nesta altura, podemos ter a impressão de que as preocupações
empresariais se concentram na adoção de sistemas computacionais de última
geração e dos seus operadores. Mas, para que tudo funcione como esperado, a
gestão de recursos humanos tem um papel de primeira ordem, daí a ênfase que os
empregadores dão às habilidades de quem será contratado para este cargo.
Vejamos quais são as mais comumente solicitadas nas ofertas de emprego:
1.
Espírito de liderança,
disposição e conhecimento para melhorar o desempenho dos funcionários, criando
um espírito de equipe que anima esforços e talentos individuais rumo ao
cumprimento das metas estabelecidas;
2.
Inteligência emocional e
empatia para melhorar os relacionamentos, desenvolver uma comunicação capaz de
transmitir ideias e saberes de forma clara e simples e para criar um diálogo
aberto e franco com os subordinados;
3.
Capacidade de resolver
problemas e conflitos a fim de reduzir os atritos nas relações interpessoais e
as fontes de descontentamento com a empresa e com o trabalho;
4.
Pensamento crítico e
estratégico acompanhado de uma atitude proativa para antever problemas e
viabilizar as iniciativas necessárias para resolvê-los;
5.
Criatividade e inovação para
fomentar processos de melhoria contínua em todas as áreas da empresa;
6.
Ética profissional,
integridade de princípios e sentimento de responsabilidade para cumprir as
obrigações de forma transparente, sincera, honesta e sem erros;
7.
Adaptabilidade, entendida
como ser flexível e receptivo para se ajustar constante e efetivamente às novas
circunstâncias;
8.
Capacidade de gerenciar o
tempo para maximizar a produtividade;
9.
Uma atenção constante às
necessidades e expectativas do cliente como meio de agregar valor aos produtos
oferecidos pela empresa.[21]
Isoladamente, nenhuma destas habilidades pode ser considerada como
“nova”. O fato de ganharem um peso maior na implantação da IAG mostra que, sem
a ação humana, as novas tecnologias, por si só, não conseguiriam transformar
bons funcionários num time entrosado que joga para a empresa vencer. Além
disso, todos sabem que o trabalho real sempre oferece situações inesperadas,
testa as interações entre os colegas e impõe desafios que forçam a construir
soluções “no escuro”, a se arriscar em respostas de resultados incertos e, não
raramente, a colocar em segundo plano padrões e normas de segurança, o que
revela uma necessidade ainda maior de sintonia e compromisso coletivo em volta
dos objetivos comuns.
O incidente com a avião da TAM que, em dezembro de 2018, seguia de São
Paulo para Londres e teve que fazer um pouso de emergência na aeroporto de
Confins, na região metropolitana de Belo Horizonte, ajuda a visualizar o que
acabamos de dizer. Diante dos problemas elétricos sinalizados pelos
computadores, passados 20 minutos da decolagem, a tripulação na cabine de comando realizou os
procedimentos apontados pelos manuais da Boeing, mas não obteve nenhum
resultado positivo.
Onze minutos depois do primeiro aviso de erro, todas as telas do cockpit
apagaram e o piloto automático se desconectou, entregando o voo aos humanos de
plantão que não faziam a menor ideia do que estava causando uma pane tão
extensa. Na hora em que as informações voltaram a aparecer, as mensagens de
erro se sucediam com tamanha rapidez que os pilotos não conseguiam lê-las. Sem
poder alijar combustível, os dois comandantes e os dois copilotos realizaram um
trabalho de equipe primoroso e pousaram em segurança o Boeing 777 com 80
toneladas acima do peso máximo para o pouso, a 380 km por hora (cerca de 60
km/hora acima da velocidade normal) e usando apenas os freios das rodas, pois a
situação da aeronave não permitia que o reverso das turbinas fosse acionado.
A verificação em terra encontrou um curto-circuito no conector de uma
linha de fiação, mas não conseguiu determinar a sua origem e nem encontrou o
que desencadeou a sequência de falhas simultâneas que colocou em risco a
segurança do voo. De fato, o curto-circuito só explica parcialmente o
comportamento da avião que, pelos sistemas de segurança instalados, não deveria
ter sofrido uma pane tão extensa. Nem a manutenção da empresa, nem os
engenheiros da fabricante, nem os especialistas do CENIPA conseguiram explicar
as causas do incidente que submeteu as habilidades dos pilotos a uma prova de
fogo.
Sendo assim, perguntamos: qual seria a chance da IAG conseguir a mesma
façanha, contrariando parte das instruções essenciais com base nas quais foi
treinada? A resposta a que chegamos é simples: nenhuma.[22] Exemplos como esse, permitem afirmar que, dificilmente, o trabalho
humano deixará de desempenhar um papel determinante, ainda mais quando se trata
de, literalmente, criar algo novo em situações críticas de causas
desconhecidas. O número de trabalhadores e trabalhadoras na supervisão dos
equipamentos pode encolher ou ter sua jornada alongada (como as companhias
aéreas estão reivindicando à medida que a computação reduz o trabalho na cabine
de pilotagem), mas, no estágio em que se encontra a Inteligência Artificial, é
impossível apostar na sua eliminação total.
3. Tópicos de um futuro tenebroso.
Assim como toda inovação, a implantação da Inteligência Artificial
Generativa vai desafiar os movimentos sociais, forçando-os a repensarem suas
estratégias. O corte de vagas se apresenta aos sindicatos brasileiros como um
dos problemas que deve agravar a crise em que se encontram. Além de encolher o
quadro de associados e os recursos para viabilizar os enfrentamentos, há uma
elevada probabilidade de as demissões não despertarem a indignação nem do
trabalhadores, nem da população.
A hipótese pela qual a indignação diante da eliminação dos postos de
trabalho pode ser bem inferior ao esperado deita raízes numa postura que foi se
tornando comum nas periferias dos grandes centros. Há tempo, a ampla maioria
dos moradores se convenceu da quase impossibilidade de encontrar empregos com
carteira assinada, razão pela qual seus passos no mercado de trabalho seguem as
trilhas da informalidade. Sendo assim, o contingente de demitidos pela
introdução da IAG tende a ser recebido com a mera percepção de que há “mais
alguém” que apostará no “ganhar hoje o que vai gastar amanhã”. Este aumento da
“concorrência” não é novo. Ao contrário, cresceu lenta e consistentemente desde
1984, fazendo com que, para evitar atritos ou enfrentamentos, basta que os recém-chegados
ao trabalho por conta própria, informal ou com CNPJ pouco importa, respeitem os
espaços conquistados pelos mais antigos. Afinal, numa cidade que cresce a
perder de vista, sempre há lugar para mais um camelô ou para alguém que ofereça
o que sabe fazer.
Além disso, as investidas empresariais na formatação do trabalhador
coletivo que perderá o emprego e daquele que operará os sistemas não partem do
zero. Para justificar a demissão e na hora de receber os recém-contratados, o
capital conta com uma ideia que há tempo, integra a visão de mundo do senso
comum: seja qual for o trabalho, garantir a própria empregabilidade é uma
tarefa que cada um deve assumir. Logo, é muito provável que os demitidos acabem
atribuindo a si próprios a responsabilidade pela falta da qualificação
necessária, enquanto os admitidos comemoram os méritos pessoais que
transformaram uma vaga no seu novo emprego. Acrescente a isso a chance de os
cortes ocorrerem espaçadamente, através de planos de demissão voluntária ou com
algumas bonificações adicionais e verá que, pouco a pouco, as possibilidades de
os desligamentos nas médias e grandes empresas darem vida a protestos mais
contundentes tendem a se esvair na exata medida em que cada demitido terá
várias razões para se culpar pelo ocorrido e para cuidar logo de ganhar a vida.
Quanto maior a individualização do trabalho e a sua realização fora dos
recintos da empresa, mais dificuldades os sindicatos encontrarão para enfrentar
a disputa de corações e mentes dos novos quadros de funcionários. A adesão à
filosofia da empregador, o seu fortalecimento por parte das gerências, os
sonhos de ascensão social possibilitados pela sensação de estar pilotando uma
inovação que segue os passos do futuro e a coerção, sempre presente, de uma
possível demissão devem afastar a chance de as direções sindicais construírem
ações que façam os patrões se sentirem reféns de quem garante os seus lucros.
Diante das dificuldades para colocar a classe trabalhadora em movimento,
o futuro imediato promete um amanhã ainda mais nebuloso e incerto. Nele, as
derrotas mostrarão a impossibilidade de seguir as atuais linhas de ação dos
sindicatos, mas, somente após muitos sacrifícios, criarão o caldo de cultura
necessário para dar vida a uma resistência que fará das tripas coração para
colocar em dúvida os valores e os paradigmas da ordem às quais os trabalhadores
aderiram para pensar o seu futuro.
E não é para menos. A nosso ver, além do bombardeio da mídia, a
universalização da visão de mundo dominante será reforçada através de uma
manipulação sutil, invisível e cotidiana dos conhecimentos, das ideias, dos
valores e dos critérios de análise da realidade que circularão
imperceptivelmente de uma pesquisa a outra, de um texto a outro, de uma
mensagem recebida à resposta enviada, e assim por diante. A utilização dos
recursos da IAG, como o ChatGPT e as ferramentas semelhantes, será um dos novos
caminhos graças aos quais o capital vai realizar esta façanha. De fato, como
vimos acima, estas ferramentas estão alicerçada em algoritmos avançados que
transformam informações armazenadas em novas produções. E é justamente aqui que
mora o perigo.
De fato, quem garante que o banco de dados utilizado inclui elementos
que criticam o saber cuja divulgação é desejada e apoiada pelos grupos de
poder? As respostas da IAG aos usuários vão incluir teorias, acontecimentos
históricos e leituras de sentido que entram em choque frontal com o consenso
social formatado por quem produziu os próprios mecanismos aos quais qualquer
estudante, político, líder social, etc., está recorrendo? Quem garante que os
mecanismos de busca não tenham sido preparados para evidenciar apenas os
aspectos que contribuem com a consolidação da lógica dominante?
E mais. Até que ponto as respostas da IAG vão eliminar a reprodução de
estereótipos e vieses preconceituosos, marginalizantes, racistas, homofóbicos e
xenofóbicos? Se a base de dados contiver materiais que reproduzem preconceitos
e formas de discriminação, como evitar que seu conteúdo não seja repassado ao
que será produzido? Em que medida, o fato de encontrar tudo pronto, coerente,
com “cheirinho de novo” e refletindo apenas sentimentos e percepções dominantes
não desativará de vez a já fragilizada capacidade de reflexão crítica de quem
recorre à IAG para encontrar as “respostas corretas”?
Sendo assim, como superar o nível das aparências na análise das
contradições sociais quando o que é produzido pela Inteligência Artificial
entrelaça uma grande quantidade de elementos visíveis que convencem na exata
medida que estão sob os olhos de todos? Qual a chance real de as pessoas que
utilizam regularmente os recursos da IAG perceberem que estão sendo
manipuladas? Concretamente, que tipo de informação poderemos realmente obter?
As questões que apresentamos visam apenas convidar a abrir os olhos e a
aprimorar nossa capacidade de ver os fios que, através dos algoritmos, buscam
nos movimentar como marionetes que, ignaras da manipulação a que estão sendo
submetidas, defendem o que as mantêm escravas do sistema capitalista. Esperamos
que este seja o primeiro passo de uma conscientização pela qual mais pessoas
começam a perguntar quem controla o controlador das novas tecnologias e a que
interesses servem as suas escolhas.
Das respostas obtidas, saberemos onde estamos pisando, que processos de
luta as pessoas se dispõem a construir e que situações precisam começar a
vivenciar para dissipar a cortina de fumaça que impede de enxergar as causas
que estão na origem das contradições sociais com as quais se deparam. Só assim
a resistência se afastará do sofrido conformismo que neutralizou a indignação
das telefonistas nos Estados Unidos para se aproximar da revolta nas plantações
de chá do Quênia.
Emilio Gennari, Brasil, 13 de novembro de 2024.
[1] Em: https://elpais.com/planeta-futuro/2023-11-15/si-eres-mujer-y-pobre-corres-mayor-riesgo-de-perder-tu-empleo-por-la-automatizacion-y-la-inteligencia-artificial.html Acesso
realizado em 22/10/2024.
[2] Em: https://mundotentacular.blogspot.com/2011/11/fazendo-ligacoes-telefones-nos-anos-20.html e em: https://www.ilo.org/resource/article/minimizing-negative-effects-ai-induced-technological-unemployment
Acessos
realizados em 23/10/2024.
Acesso realizado em 24/10/2024
[4] Estas e outras informações estão disponíveis em: https://br.hubspot.com/blog/marketing/ia-crm e em: https://weni.ai/blog/ia-generativa/ Acessos
realizados em 30/10/2024.
[5] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn5rk2wykg4o Acesso realizado em 25/10/2024.
[6] Em: https://br.hubspot.com/blog/marketing/ia-generativa e em: https://g1.globo.com/bemestar/blog/longevidade-modo-de-usar/post/2024/09/15/a-inteligencia-artificial-esta-por-tras-de-uma-droga-para-recuperar-a-imunidade.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias Acessos
realizados em 20/10/2024.
[7] Em: https://br.hubspot.com/blog/marketing/ia-generativa Acesso realizado em 20/10/2024.
[8] Em: https://blog.dsacademy.com.br/guia-completo-sobre-inteligencia-artificial-generativa/ Acesso
realizado em 21/10/2024.
[9] Um exemplo deste processo foi descrito em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c75nywr054do
Acesso
realizado em 25/10/2024.
[10] Em: https://br.hubspot.com/blog/marketing/ia-generativa Acesso
realizado em 20/10/2024.
[11] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/crej5gwllvlo Acesso
realizado em 24/10/2024.
Acesso
realizado em 06/11/2024.
[13] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn5rk2wykg4o Acesso
realizado em 25/10/2024.
[14] Uma apresentação mais
ampla das questões citadas pode ser encontrada em: Paweł Gmyrek, Janine Berg, David Bescond, Generative
AI and jobs: A global analysis of potential effects on job quantity and quality,
ILO Working Paper Nº 96, agosto de 2023. Disponível em: https://www.ilo.org/artificial-intelligence-and-work-digital-economy
Acesso
realizado em 24/10/2024.
[15] Em: https://www.infomoney.com.br/business/ia-vai-ampliar-lacuna-tecnologica-entre-paises-ricos-e-pobres-diz-estudo/ Acesso
realizado em 02/11/2024.
[16] Em: Paweł Gmyrek, Hernan
Winkler, Santiago Garganta, Buffer or Bottleneck? Employment Exposure to
Generative AI and the Digital Divide in Latin America, ILO Working Paper Nº
121, julho de 2024. Disponível em: https://www.ilo.org/artificIAGl-intelligence-and-work-digital-economy Acesso
realizado em 24/10/2024.
[17] Em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2024/202409cestabasica.pdf Acesso
realizado em 11/11/2024.
[18] Dados publicados em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c511zzgypwdo e em: https://www.confidencecambio.com.br/blog/salario-minimo-nos-eua-quanto-custa-viver-no-pais/#:~:text=Nos%20Estados%20Unidos%2C%20o%20sal%C3%A1rio,%24%2016%2C28%20por%20hora.
Acessos
realizados em 30/10/2024.
[19] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c511zzgypwdo Acesso realizado em 30/10/2024
Acesso
realizado em 06/11/2024.
[21] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckg7r784zl2o Acesso realizado em 04/11/2024.
[21] Uma explicação mais detalhada do relatório do incidente pode ser encontrada em: https://youtu.be/YmXKSvgH0VU?feature=shared Acesso realizado em 10/11/2024.