terça-feira, 26 de novembro de 2024

A Inteligência Artificial é o Fim do Emprego ou Mais Tempo Livre para os Empregados: Notas para uma reflexão coletiva.

 

Inteligência Artificial - promessas e realidades


By Emílio Gennari

Ao longo de 2024, as informações sobre a Inteligência Artificial Generativa (IAG)  chamaram à atenção ora pela aplicação às atividades cotidianas, ora pelas projeções de um corte dos empregos existentes. Entre o ufanismo das visões otimistas e o clima de “salve-se quem puder” do futuro mercado de trabalho, as reações populares a estes balões de ensaio ajudam o capital a fazer um balanço entre as vantagens potenciais da IAG e o que pode inviabilizar os resultados esperados. De fato, tão importante quanto os cálculos de aumento da produtividade, a necessidade de neutralizar a resistência dos atingidos pelas mudanças é um dos fatores que influencia a velocidade da sua introdução nos processos de trabalho. Dois exemplos ajudam a visualizar esta relação.

O primeiro é o da Ekaterra, multinacional que fabrica os chás Lipton e Tazo, que, apostando na frágil tradição sindical local, realizou uma rápida mecanização das plantações do Quênia. Em alguns meses, 30.000 mulheres perderam seus empregos e o salário das que continuavam empregadas caiu, em média, de 150 para 80 dólares mensais. Em maio deste ano, os sofrimentos criados pela mecanização fizeram a revolta explodir entre os moradores de Keriko, a região que abriga as plantações da empresa. O rechaço ao aprofundamento da miséria fez com que nove colheitadeiras fossem incendiadas num curto espaço de tempo.[1]

Em sentido oposto, lembramos que, entre 1920 e 1930, a mecanização das centrais telefônicas dos EUA criou as condições para que as manifestações da luta de classe fossem reduzidas a um patamar administrável. O corte de 80% das 300.000 vagas nos setores que efetuavam a conexão manual nas ligações interurbanas foi diluído ao longo de mais de uma década. O fim desta que era a quinta ocupação mais importante para as mulheres que ingressavam no mercado de trabalho ocorreu enquanto as novas funções de baixa qualificação na cadeia produtiva dos equipamentos introduzidos nas centrais telefônicas ofereciam às jovens empregos com níveis de remuneração semelhantes.[2]

As perspectivas de desenvolvimento e as atuais aplicações da Inteligência Artificial Generativa se deparam com o mesmo dilema: como fazer os lucros triunfarem sem enfrentamentos que estraguem a festa do capital?

Do lado da classe trabalhadora, as perspectivas de um novo aumento da precarização e da informalidade apontam para um futuro tenebroso. Sendo assim, conhecer o que é, o estágio em que se encontra, como atingirá o emprego e os desafios que a implantação da IAG semeará mundo afora são parte de uma discussão que os movimentos precisam fazer o mais rapidamente possível. Entender o que está por vir é o primeiro passo para elaborar estratégias que resistam às novas investidas da acumulação.

1. O que existe e o que a Inteligência Artificial Generativa promete fazer.

Começaremos as nossas reflexões partindo de um exemplo do qual todos ouvimos falar: o ChatGPT. Este recurso utiliza um amplo banco de dados para criar algo novo. De um texto sobre um tema específico a um discurso na inauguração de uma obra pública, de um poema produzido a partir do acervo disponível a uma mensagem de texto para acalmar um cliente enfurecido, da elaboração de uma pesquisa aos dados que permitem projetar tendências de desenvolvimento de um acontecimento, esta ferramenta de IAG realiza rapidamente tarefas que demandavam talentos e amplos períodos de tempo. [3]

Aparentemente simples, a otimização da relação entre o ser humano e os algoritmos da IAG é um processo que requer do operador a capacidade de formular perguntas na linguagem correta. Quanto mais preciso e certeiro for este diálogo, melhores serão as respostas fornecidas pelos equipamentos e maior será o aprendizado da IAG.

Para entendermos esta relação, podemos dizer que, no momento da sua introdução, a Inteligência Artificial Generativa começa a sua carreira como um estagiário que possui a teoria necessária para desempenhar a função, mas a falta de experiência faz com que seja apenas um assistente. Como todo estagiário, a possibilidade de avançar na profissão depende tanto do seu esforço, como de encontrar alguém que, ao supervisionar a execução das tarefas solicitadas, ensine os “macetes” do trabalho.

Aos poucos, o saber prático adquirido pela IAG faz com que ela aprenda a dar conta das tarefas tão bem quanto as pessoas que orientaram o seu estágio, a ponto de não ser possível reconhecer quem, de fato, realizou o serviço solicitado. Em seguida, à medida que em seu banco de dados estão reunidas as informações colhidas ao longo do tempo, que a sua memória não esquece de nenhuma delas e pode projetar com precisão riscos e padrões de comportamento, a Inteligência Artificial Generativa mostra um desempenho superior ao da média dos profissionais com os quais aprendeu.

Quando levamos em consideração outras ferramentas (como o BingChat, o Google Bard, o Jasper, o DALL-E, o Deep Art e o Hub Spot, só para citar alguns dos recursos mais usados na criação de textos, vídeos e imagens), percebemos a quantidade de tarefas que já podem ser executadas com precisão e com um grau elevado de confiabilidade por um equipamento eletrônico. Ao aplicar estes recursos numa empresa de vendas online, por exemplo, é possível encurtar a distância entre a percepção das mudanças no comportamento dos consumidores e as decisões gerenciais que orientam a produção e a distribuição. Com base nos dados armazenados, a IAG detecta tendências e estima a demanda, facilitando a preparação dos estoques, a elaboração do marketing e do atendimento ao cliente.

Viabilizada a campanha publicitária com a produção de vídeos, imagens e mensagens que unem a criatividade do especialista em marketing aos recursos da IAG, a avaliação do processo em andamento será feita em tempo real pela própria IAG que, ao identificar padrões, segmentar audiências com maior precisão, prever resultados, ajustar estratégias e produzir novas imagens ou variações automáticas dos anúncios veiculados, permitirá otimizar as possibilidades de retorno da peça publicitária que foi criada. De um lado, isso permite dar vida a um número maior de produtos e serviços capazes de despertar no público alvo tanto o desejo de atender novas necessidade, como a satisfação que procuravam. De outro, o aumento da produtividade de designers, profissionais de marketing e criadores de conteúdos, oferece às empresas a chance de reduzir o quadro de funcionários aos “talentos” que considera essenciais.[4]

Nesta altura, você já deve ter percebido que não estamos diante da repetição do saber operacional, típica da automação pura simples, e sim de uma inovação capaz de fazer com que as máquinas aprendam constantemente com os dados das ações desenvolvidas. Sendo assim, o ser humano que, até hoje, era indispensável para resolver o que escapava ao controle dos programadores, começará a ter o seu papel reduzido na exata medida em que a IAG pode assumir a supervisão de equipamentos e processos, graças a este aprendizado.[5] 

È assim que, por exemplo, no sistema financeiro, o reconhecimento de padrões de comportamento pela Inteligência Artificial permite identificar fraudes, administrar o acesso ao crédito, aconselhar investimentos e produtos de acordo com o perfil de cada correntista, melhorar a segurança institucional e das operações com um número cada vez mais reduzido de funcionários.

Na saúde, a IAG já é utilizada nos exames de imagem por oferecer uma precisão de diagnóstico superior à dos profissionais que elaboram os laudos, o que permite detectar doenças em estágio inicial. Do mesmo modo, sempre que é registrada a presença de um novo vírus letal, a análise da eficácia dos medicamentos existentes e o registro das reações obtidas é realizado automaticamente por equipamentos dotados de Inteligência Artificial. Num futuro próximo, os recursos que estão sendo aprimorados prometem auxiliar na produção de novos medicamentos graças à possibilidade de simular interações moleculares.[6]

Na seara da educação, a Inteligência Artificial Generativa traz a possibilidade de personalizar o aprendizado de cada aluno. A IAG analisa o seu desempenho, identifica lacunas de conhecimento e recomenda aos docentes os materiais educacionais que melhoram a aprendizagem e que, graças às suas ferramentas, podem ser elaborados em curtos espaços de tempo, sejam eles textos, vídeos ou áudios.[7]

Assim como favorece o desempenho de certas profissões, a Inteligência Artificial Generativa ameaça a existência de outras. É o caso, por exemplo, dos tradutores cujo trabalho vem sendo rapidamente substituído pelos modelos de compreensão da linguagem. Em tempo real, os algoritmos fornecem traduções de idiomas a partir das especificidades da língua e do contexto em que uma mensagem é escrita ou falada. Quanto maior a base de dados disponível e o aprendizado do sistema, maior é a capacidade de a IAG construir uma frase com o mesmo sentido em outro idioma, reduzindo os erros de interpretação e a necessidade de supervisão por um tradutor experiente.[8]

Nem mesmo o trabalho criativo de músicos, roteiristas, atores e dubladores escapa das garras da Inteligência Artificial. Inúmeros os casos em que as imagens e as vozes destes profissionais foram usadas para produzir novas personagens sem que as empresas do setor pagassem os direitos autorais. E, à medida que os recursos existentes permitem criar o novo a partir do velho, transformar textos em vídeos, corrigir representações, ressuscitar virtualmente personagens falecidas do mundo do espetáculo, produzir filmes e vídeos, criar influencers virtuais, etc., é possível criar produções artísticas a baixo custo a partir da gravação de vozes e imagens reunidas num banco de dados.[9]

Numa estimativa inicial dos ganhos de produtividade proporcionados pela utilização do que já existe, um relatório da McKinsey & Company, estima que o novo patamar de automação das tarefas proporcionado pela IAG deve adicionar até 4 trilhões e 400 bilhões de dólares (mais de duas vezes o Produto Interno Bruto do Brasil) à riqueza anualmente produzida pelo trabalho mundo afora. É muito mais valor e lucro graças à potencialização do trabalho humano, ao corte de vagas e às vantagens competitivas que os novos algoritmos oferecem nesta que é apenas a primeira fase do desenvolvimento da Inteligência Artificial.[10]

À medida que as ferramentas de IAG se tornam mais acessíveis, devemos esperar que os seus recursos venham a ser cada vez mais utilizados pela “indústria do crime”. Além de ajudar a otimizar as rotas do tráfico de armas, drogas e pessoas através de informações que permitem identificar os trajetos menos monitorados pelos policiais e a ausência de engarrafamento ou de ocorrências de qualquer tipo, as ferramentas de IAG permitem aproveitar dados, imagens, vozes, situações, ambientes, listas de seguidores e relações pessoais extraídas das redes sociais a fim de aplicar golpes cada vez mais sofisticados. Das ligações alertando em relação a movimentações suspeitas nas contas bancárias fazendo aparecer no celular da vítima o número de telefone da agência em que tem seus investimentos, a e-mails de concursos falsos com códigos maliciosos, passando pela produção de fake news e de programas que exploram as vulnerabilidades dos softwares recém-lançados, a IAG está se tornando uma importante aliada dos criminosos.

Dois exemplos ajudam a termos uma ideia do que acabamos de afirmar.  Em fevereiro deste ano, aproveitando a possibilidade de mudar os rostos e clonar as vozes das pessoas  usando falas e imagens divulgadas nas redes sociais, os golpistas organizaram uma videoconferência na qual pediram ao funcionário de uma multinacional o depósito de 25 milhões de dólares. Segundo a polícia de Hong Kong, o fato de quem aparecia ao vivo e a cores na tela  se parecer e soar exatamente como seus colegas de trabalho fez com que os criminosos anulassem as desconfianças que o próprio funcionário tinha em relação ao pedido recebido.[11] No Brasil, o Vice-Presidente da República, Geraldo Alckmin, teve um dos vídeos publicados nas redes sociais utilizado por criminosos. Usando a sua própria voz, o áudio manipulado orientava as pessoas a colocarem dados pessoais numa página eletrônica através da qual seria possível verificar se o interessado tinha dinheiro a receber dos valores esquecidos  em instituições financeiras e guardados pelo Banco Central.[12]

À medida que, com o tempo, uma maior quantidade de recursos da IAG ficará mais barata, acessível e simples de ser utilizada, devemos esperar que novos e mais sofisticados golpes marquem os noticiários policiais, o que forçará empresas e particulares a aumentar os cuidados e os investimentos em segurança. Desta forma, os golpes e a elevação dos custos para se proteger de criminosos irão reduzir parte dos ganhos obtidos pelo avanço da produtividade.

 

2. Preocupações e desafios nos horizontes do trabalho.

Entre a classe trabalhadora, a percepção pela qual a Inteligência Artificial vai levar à extinção de muitos empregos, faz com que as pessoas se perguntem quais são as habilidades que permitem disputar as vagas nascidas da sua implantação. A primeira delas aponta a necessidade de saber lidar com o “aprendizado das máquinas”, o que demanda o conhecimento da matemática e o domínio de noções básicas das ciências da computação.

Além deste campo do saber, o futuro trabalhador deve possuir um elevado grau de atenção e concentração para perceber padrões, conectar informações e tirar conclusões sem se deixar influenciar pelas suas emoções ou preferências pessoais. O encaixe perfeito do candidato na vaga oferecida demanda também uma dose generosa de curiosidade, abertura ao aprendizado, criatividade, sólidos conhecimentos das áreas em que vai atuar, um nível avançado de inglês e uma boa capacidade de comunicação para formular corretamente as perguntas que levam os equipamentos a fornecerem as melhores respostas.[13]

A ampliação e a especificidade de algumas destas habilidades dependerá das tarefas que a IAG pode desempenhar no âmbito em que está sendo utilizada e da função para a qual a pessoa será contratada. De fato, uma coisa é um operador aprender a fazer perguntas ao ChatGPT e seus similares e outra, bem diferente, é lidar com um sistema que integra funcionários e ambientes de negócios em países diferentes, funções gerenciais e processos de trabalho complexos, além de atender os mais diversos tipos de clientes.

A possibilidade de as empresas introduzirem as inovações guarda uma relação direta com três elementos: a disponibilidade de dinheiro, sua estratégia de negócios e o aumento da margem de lucro possibilitada pelas novas tecnologias. De fato, a depender da complexidade das tarefas a serem desempenhadas pela IAG, o empregador vai precisar de uma estrutura computacional robusta e cara e, obviamente, de pessoas gabaritadas para extrair dela tudo o que pode oferecer. Do contrário, é como comprar um carro de Fórmula 1 e esperar que um motorista recém-habilitado vença o campeonato mundial de pilotos...

A princípio, por exemplo, todas as escolas podem introduzir sistemas de IAG voltados à educação. Mas, concretamente, qual delas têm recursos para fazê-lo de forma ampla e consistente? Uma rede de colégios onde estudam os filhos da elite? Uma escola privada destinada a alunos de famílias cuja renda mensal não supera os cinco salários mínimos? Uma instituição pública de ensino que vive sempre à caça de recursos para manter o que oferece com muito sacrifício? Ou seja, a tecnologia existe e está disponível, mas ela ainda é muito cara para que a sua introdução ocorra como seus desenvolvedores desejam.[14]

Através deste exemplo, conseguimos vislumbrar também que, quanto mais amplo for o uso dos sistemas baseados em IAG mais a desigualdade tende a se ampliar. À medida que quem dispõe de mais recursos (pessoa, empresa ou país, pouco importa) pode acelerar o seu desenvolvimento tecnológico e os mais carentes precisam esperar o barateamento dos novos equipamentos para ter acesso a eles, o abismo entre os dois polos tende a aumentar na exata medida do ritmo de incorporação da Inteligência Artificial Generativa.

Longe de ser nova, esta realidade já pode ser verificada nos atuais níveis de investimento. A maior parte dos 300 bilhões de dólares anual e globalmente gastos para aumentar a capacidade de computação é desembolsada em um punhado de nações ricas que, ao fazer isso, aumentam a distância em relação ao nível de desenvolvimento dos países pobres forçando-os a uma eterna situação de dependência e submissão.[15]

Este processo pode ser visualizado também através do impacto que a IAG pode ter nos empregos existentes. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 4,9% dos postos de trabalho nos EUA e no Canadá, podem desaparecer em função de um elevada possibilidade de automação total das tarefas hoje desempenhadas por seres humanos. Esta porcentagem cai para 2,5% na América Latina e Caribenha e para 2,4% no Brasil. O que se apresenta como uma boa notícia em termos de redução das pressões sobre o emprego, na verdade, faz com que o avanço da produtividade e a redução dos custos na América do Norte eleve a competitividade das empresas aí instaladas. Somada às patentes das novidades produzidas, a redução dos preços de mercadorias e serviços, via aumento da produtividade, ampliará as fatias de mercado atendidas e colocará em maus lençóis os processos de trabalho que, em qualquer outro lugar do mundo, ainda dependem de um uso mais intensivo da força de trabalho.[16]

A realidade mostra que, para a grande maioria de quem assume as tarefas exigidas pela introdução da IAG, receber bons salários não passa de um sonho distante. Os ordenados pagos aos que alimentam bancos de dados ou monitoram as postagens e as interações dos usuários nas redes sociais provam o que acabamos de afirmar. No momento em que escrevemos, as notícias disponíveis mostram que a grande maioria destes “operários de dados” é contratada informalmente e paga por tarefa executada.

No Brasil, cada um deles recebe, em média, R$ 583,71 mensais por dedicar 15 horas e meia de trabalho semanal às demandas da empresa que solicitou seus serviços, o que força o indivíduo a ter mais de um vínculo contratual para comprar uma mera cesta básica de alimentos que, em setembro deste ano, demandava, em média, 102 horas e 14 minutos de trabalho.[17] Em termos mundiais, as coisas não são diferentes. Segundo um estudo da OIT realizado em 2018, a média de ganhos era de U$ 4,43 por hora trabalhada, sendo que, no continente africano, este valor caía para U$ 1,33 e nos Estados Unidos atingia um dos patamares mais elevados com U$ 4,70. Apesar de ser bem maior, o ordenado de um estadunidense correspondia a menos de 65% do valor mínimo nacional da hora trabalhada que é de U$ 7,25.[18]

As baixas remunerações se explicam, fundamentalmente, pela grande disponibilidade de força de trabalho e, de consequência, pela concorrência que se estabelece em seu meio. Ainda que a demanda cresça em função de alguma situação específica, o volume adicional de contratações não eleva significativamente a média da remuneração paga. Por outro lado, o fato de a maioria destes funcionários trabalharem em suas casas e sem contatos com os demais; da sobrevivência de sete em cada dez deles depender fortemente desta ocupação; da relativa simplicidade das tarefas executadas; e da necessidade de conseguir mais de um contrato para pagar as contas do mês erguem barreiras significativas às possibilidades de revolta deste contingente sem o qual a IAG não teria condições de funcionar.[19]

Os riscos da baixa qualidade das tarefas desempenhadas pelos “operários de dados” são minimizados através do controle exercido por profissionais de tecnologia. É aqui que encontramos salários bem maiores. Basta pensar que, no Brasil, um iniciante no cargo de especialista em Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina pode ganhar, em média, R$ 16.000 por mês. Este valor cresce a depender da experiência adquirida, do conhecimento técnico e das responsabilidades do cargo a ser exercido, até atingir o salário inicial de R$ 31.110 mensais, no caso da alta chefia.[20]

Nesta altura, podemos ter a impressão de que as preocupações empresariais se concentram na adoção de sistemas computacionais de última geração e dos seus operadores. Mas, para que tudo funcione como esperado, a gestão de recursos humanos tem um papel de primeira ordem, daí a ênfase que os empregadores dão às habilidades de quem será contratado para este cargo. Vejamos quais são as mais comumente solicitadas nas ofertas de emprego:

1.    Espírito de liderança, disposição e conhecimento para melhorar o desempenho dos funcionários, criando um espírito de equipe que anima esforços e talentos individuais rumo ao cumprimento das metas estabelecidas;

2.    Inteligência emocional e empatia para melhorar os relacionamentos, desenvolver uma comunicação capaz de transmitir ideias e saberes de forma clara e simples e para criar um diálogo aberto e franco com os subordinados;

3.    Capacidade de resolver problemas e conflitos a fim de reduzir os atritos nas relações interpessoais e as fontes de descontentamento com a empresa e com o trabalho;

4.    Pensamento crítico e estratégico acompanhado de uma atitude proativa para antever problemas e viabilizar as iniciativas necessárias para resolvê-los;

5.    Criatividade e inovação para fomentar processos de melhoria contínua em todas as áreas da empresa;

6.    Ética profissional, integridade de princípios e sentimento de responsabilidade para cumprir as obrigações de forma transparente, sincera, honesta e sem erros;

7.    Adaptabilidade, entendida como ser flexível e receptivo para se ajustar constante e efetivamente às novas circunstâncias;

8.    Capacidade de gerenciar o tempo para maximizar a produtividade;

9.    Uma atenção constante às necessidades e expectativas do cliente como meio de agregar valor aos produtos oferecidos pela empresa.[21]

Isoladamente, nenhuma destas habilidades pode ser considerada como “nova”. O fato de ganharem um peso maior na implantação da IAG mostra que, sem a ação humana, as novas tecnologias, por si só, não conseguiriam transformar bons funcionários num time entrosado que joga para a empresa vencer. Além disso, todos sabem que o trabalho real sempre oferece situações inesperadas, testa as interações entre os colegas e impõe desafios que forçam a construir soluções “no escuro”, a se arriscar em respostas de resultados incertos e, não raramente, a colocar em segundo plano padrões e normas de segurança, o que revela uma necessidade ainda maior de sintonia e compromisso coletivo em volta dos objetivos comuns.

O incidente com a avião da TAM que, em dezembro de 2018, seguia de São Paulo para Londres e teve que fazer um pouso de emergência na aeroporto de Confins, na região metropolitana de Belo Horizonte, ajuda a visualizar o que acabamos de dizer. Diante dos problemas elétricos sinalizados pelos computadores, passados 20 minutos da decolagem, a  tripulação na cabine de comando realizou os procedimentos apontados pelos manuais da Boeing, mas não obteve nenhum resultado positivo. 

Onze minutos depois do primeiro aviso de erro, todas as telas do cockpit apagaram e o piloto automático se desconectou, entregando o voo aos humanos de plantão que não faziam a menor ideia do que estava causando uma pane tão extensa. Na hora em que as informações voltaram a aparecer, as mensagens de erro se sucediam com tamanha rapidez que os pilotos não conseguiam lê-las. Sem poder alijar combustível, os dois comandantes e os dois copilotos realizaram um trabalho de equipe primoroso e pousaram em segurança o Boeing 777 com 80 toneladas acima do peso máximo para o pouso, a 380 km por hora (cerca de 60 km/hora acima da velocidade normal) e usando apenas os freios das rodas, pois a situação da aeronave não permitia que o reverso das turbinas fosse acionado.

A verificação em terra encontrou um curto-circuito no conector de uma linha de fiação, mas não conseguiu determinar a sua origem e nem encontrou o que desencadeou a sequência de falhas simultâneas que colocou em risco a segurança do voo. De fato, o curto-circuito só explica parcialmente o comportamento da avião que, pelos sistemas de segurança instalados, não deveria ter sofrido uma pane tão extensa. Nem a manutenção da empresa, nem os engenheiros da fabricante, nem os especialistas do CENIPA conseguiram explicar as causas do incidente que submeteu as habilidades dos pilotos a uma prova de fogo.

Sendo assim, perguntamos: qual seria a chance da IAG conseguir a mesma façanha, contrariando parte das instruções essenciais com base nas quais foi treinada? A resposta a que chegamos é simples: nenhuma.[22] Exemplos como esse, permitem afirmar que, dificilmente, o trabalho humano deixará de desempenhar um papel determinante, ainda mais quando se trata de, literalmente, criar algo novo em situações críticas de causas desconhecidas. O número de trabalhadores e trabalhadoras na supervisão dos equipamentos pode encolher ou ter sua jornada alongada (como as companhias aéreas estão reivindicando à medida que a computação reduz o trabalho na cabine de pilotagem), mas, no estágio em que se encontra a Inteligência Artificial, é impossível apostar na sua eliminação total.

 

3. Tópicos de um futuro tenebroso.

Assim como toda inovação, a implantação da Inteligência Artificial Generativa vai desafiar os movimentos sociais, forçando-os a repensarem suas estratégias. O corte de vagas se apresenta aos sindicatos brasileiros como um dos problemas que deve agravar a crise em que se encontram. Além de encolher o quadro de associados e os recursos para viabilizar os enfrentamentos, há uma elevada probabilidade de as demissões não despertarem a indignação nem do trabalhadores, nem da população.

A hipótese pela qual a indignação diante da eliminação dos postos de trabalho pode ser bem inferior ao esperado deita raízes numa postura que foi se tornando comum nas periferias dos grandes centros. Há tempo, a ampla maioria dos moradores se convenceu da quase impossibilidade de encontrar empregos com carteira assinada, razão pela qual seus passos no mercado de trabalho seguem as trilhas da informalidade. Sendo assim, o contingente de demitidos pela introdução da IAG tende a ser recebido com a mera percepção de que há “mais alguém” que apostará no “ganhar hoje o que vai gastar amanhã”. Este aumento da “concorrência” não é novo. Ao contrário, cresceu lenta e consistentemente desde 1984, fazendo com que, para evitar atritos ou enfrentamentos, basta que os recém-chegados ao trabalho por conta própria, informal ou com CNPJ pouco importa, respeitem os espaços conquistados pelos mais antigos. Afinal, numa cidade que cresce a perder de vista, sempre há lugar para mais um camelô ou para alguém que ofereça o que sabe fazer.

Além disso, as investidas empresariais na formatação do trabalhador coletivo que perderá o emprego e daquele que operará os sistemas não partem do zero. Para justificar a demissão e na hora de receber os recém-contratados, o capital conta com uma ideia que há tempo, integra a visão de mundo do senso comum: seja qual for o trabalho, garantir a própria empregabilidade é uma tarefa que cada um deve assumir. Logo, é muito provável que os demitidos acabem atribuindo a si próprios a responsabilidade pela falta da qualificação necessária, enquanto os admitidos comemoram os méritos pessoais que transformaram uma vaga no seu novo emprego. Acrescente a isso a chance de os cortes ocorrerem espaçadamente, através de planos de demissão voluntária ou com algumas bonificações adicionais e verá que, pouco a pouco, as possibilidades de os desligamentos nas médias e grandes empresas darem vida a protestos mais contundentes tendem a se esvair na exata medida em que cada demitido terá várias razões para se culpar pelo ocorrido e para cuidar logo de ganhar a vida.

Quanto maior a individualização do trabalho e a sua realização fora dos recintos da empresa, mais dificuldades os sindicatos encontrarão para enfrentar a disputa de corações e mentes dos novos quadros de funcionários. A adesão à filosofia da empregador, o seu fortalecimento por parte das gerências, os sonhos de ascensão social possibilitados pela sensação de estar pilotando uma inovação que segue os passos do futuro e a coerção, sempre presente, de uma possível demissão devem afastar a chance de as direções sindicais construírem ações que façam os patrões se sentirem reféns de quem garante os seus lucros.

Diante das dificuldades para colocar a classe trabalhadora em movimento, o futuro imediato promete um amanhã ainda mais nebuloso e incerto. Nele, as derrotas mostrarão a impossibilidade de seguir as atuais linhas de ação dos sindicatos, mas, somente após muitos sacrifícios, criarão o caldo de cultura necessário para dar vida a uma resistência que fará das tripas coração para colocar em dúvida os valores e os paradigmas da ordem às quais os trabalhadores aderiram para pensar o seu futuro.

E não é para menos. A nosso ver, além do bombardeio da mídia, a universalização da visão de mundo dominante será reforçada através de uma manipulação sutil, invisível e cotidiana dos conhecimentos, das ideias, dos valores e dos critérios de análise da realidade que circularão imperceptivelmente de uma pesquisa a outra, de um texto a outro, de uma mensagem recebida à resposta enviada, e assim por diante. A utilização dos recursos da IAG, como o ChatGPT e as ferramentas semelhantes, será um dos novos caminhos graças aos quais o capital vai realizar esta façanha. De fato, como vimos acima, estas ferramentas estão alicerçada em algoritmos avançados que transformam informações armazenadas em novas produções. E é justamente aqui que mora o perigo.

De fato, quem garante que o banco de dados utilizado inclui elementos que criticam o saber cuja divulgação é desejada e apoiada pelos grupos de poder? As respostas da IAG aos usuários vão incluir teorias, acontecimentos históricos e leituras de sentido que entram em choque frontal com o consenso social formatado por quem produziu os próprios mecanismos aos quais qualquer estudante, político, líder social, etc., está recorrendo? Quem garante que os mecanismos de busca não tenham sido preparados para evidenciar apenas os aspectos que contribuem com a consolidação da lógica dominante?

E mais. Até que ponto as respostas da IAG vão eliminar a reprodução de estereótipos e vieses preconceituosos, marginalizantes, racistas, homofóbicos e xenofóbicos? Se a base de dados contiver materiais que reproduzem preconceitos e formas de discriminação, como evitar que seu conteúdo não seja repassado ao que será produzido? Em que medida, o fato de encontrar tudo pronto, coerente, com “cheirinho de novo” e refletindo apenas sentimentos e percepções dominantes não desativará de vez a já fragilizada capacidade de reflexão crítica de quem recorre à IAG para encontrar as “respostas corretas”?

Sendo assim, como superar o nível das aparências na análise das contradições sociais quando o que é produzido pela Inteligência Artificial entrelaça uma grande quantidade de elementos visíveis que convencem na exata medida que estão sob os olhos de todos? Qual a chance real de as pessoas que utilizam regularmente os recursos da IAG perceberem que estão sendo manipuladas? Concretamente, que tipo de informação poderemos realmente obter?

As questões que apresentamos visam apenas convidar a abrir os olhos e a aprimorar nossa capacidade de ver os fios que, através dos algoritmos, buscam nos movimentar como marionetes que, ignaras da manipulação a que estão sendo submetidas, defendem o que as mantêm escravas do sistema capitalista. Esperamos que este seja o primeiro passo de uma conscientização pela qual mais pessoas começam a perguntar quem controla o controlador das novas tecnologias e a que interesses servem as suas escolhas.

Das respostas obtidas, saberemos onde estamos pisando, que processos de luta as pessoas se dispõem a construir e que situações precisam começar a vivenciar para dissipar a cortina de fumaça que impede de enxergar as causas que estão na origem das contradições sociais com as quais se deparam. Só assim a resistência se afastará do sofrido conformismo que neutralizou a indignação das telefonistas nos Estados Unidos para se aproximar da revolta nas plantações de chá do Quênia.

 

Emilio Gennari, Brasil, 13 de novembro de 2024.


[1] Em: https://elpais.com/planeta-futuro/2023-11-15/si-eres-mujer-y-pobre-corres-mayor-riesgo-de-perder-tu-empleo-por-la-automatizacion-y-la-inteligencia-artificial.html  Acesso realizado em 22/10/2024.

[2] Em: https://mundotentacular.blogspot.com/2011/11/fazendo-ligacoes-telefones-nos-anos-20.html   e em: https://www.ilo.org/resource/article/minimizing-negative-effects-ai-induced-technological-unemployment

Acessos realizados em 23/10/2024.

[3] Em: https://www.salesforce.com/br/blog/ia-generativa/?gclid=EAIaIQobChMI2v-lsa6RiQMVYlVIAB2VPQQ_EAAYAyAAEgJeM_D_BwE&d=7013y0000022kfkAAA&nc=7013y0000022kvsAAA&utm_source=google&utm_medium=paid_search&utm_campaign=latam_br_alllobaw&utm_content=pg-pt-mash_ia-generativa_7013y0000022kfkAAA&utm_term=iagenerativa&ef_id=EAIaIQobChMI2v-lsa6RiQMVYlVIAB2VPQQ_EAAYAyAAEgJeM_D_BwE:G:s&gclsrc=aw.ds&&pcrid=696076319703&pdv=c&gad_source=1   

Acesso realizado em 24/10/2024

[4] Estas e outras informações estão disponíveis em: https://br.hubspot.com/blog/marketing/ia-crm  e em: https://weni.ai/blog/ia-generativa/  Acessos realizados em 30/10/2024.

[5] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn5rk2wykg4o  Acesso realizado em 25/10/2024.

[6] Em: https://br.hubspot.com/blog/marketing/ia-generativa e em: https://g1.globo.com/bemestar/blog/longevidade-modo-de-usar/post/2024/09/15/a-inteligencia-artificial-esta-por-tras-de-uma-droga-para-recuperar-a-imunidade.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias  Acessos realizados em 20/10/2024.

[7] Em: https://br.hubspot.com/blog/marketing/ia-generativa  Acesso realizado em 20/10/2024.

[8] Em: https://blog.dsacademy.com.br/guia-completo-sobre-inteligencia-artificial-generativa/  Acesso realizado em 21/10/2024.

[9] Um exemplo deste processo foi descrito em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c75nywr054do 

Acesso realizado em 25/10/2024.

[10] Em: https://br.hubspot.com/blog/marketing/ia-generativa  Acesso realizado em 20/10/2024.

[11] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/crej5gwllvlo  Acesso realizado em 24/10/2024.

[12] Em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/11/05/planalto-aciona-pf-sobre-golpe-utilizando-video-falso-do-vice-presidente-geraldo-alckmin.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias 

Acesso realizado em 06/11/2024.

[13] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn5rk2wykg4o  Acesso realizado em 25/10/2024.

[14] Uma apresentação mais ampla das questões citadas pode ser encontrada em: Paweł Gmyrek, Janine Berg, David Bescond, Generative AI and jobs: A global analysis of potential effects on job quantity and quality, ILO Working Paper Nº 96, agosto de 2023. Disponível em: https://www.ilo.org/artificial-intelligence-and-work-digital-economy

Acesso realizado em 24/10/2024.

[15] Em: https://www.infomoney.com.br/business/ia-vai-ampliar-lacuna-tecnologica-entre-paises-ricos-e-pobres-diz-estudo/  Acesso realizado em 02/11/2024.

[16] Em: Paweł Gmyrek, Hernan Winkler, Santiago Garganta, Buffer or Bottleneck? Employment Exposure to Generative AI and the Digital Divide in Latin America, ILO Working Paper Nº 121, julho de 2024. Disponível em: https://www.ilo.org/artificIAGl-intelligence-and-work-digital-economy  Acesso realizado em 24/10/2024.

[17] Em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2024/202409cestabasica.pdf  Acesso realizado em 11/11/2024.

[18] Dados publicados em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c511zzgypwdo  e em: https://www.confidencecambio.com.br/blog/salario-minimo-nos-eua-quanto-custa-viver-no-pais/#:~:text=Nos%20Estados%20Unidos%2C%20o%20sal%C3%A1rio,%24%2016%2C28%20por%20hora.   

Acessos realizados em 30/10/2024.

[19] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c511zzgypwdo Acesso realizado em 30/10/2024

[20] Em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2024/11/06/inteligencia-artificial-sera-uma-das-areas-de-ti-mais-demandadas-no-brasil-em-2025-veja-salarios.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias 

Acesso realizado em 06/11/2024.

[21] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckg7r784zl2o  Acesso realizado em 04/11/2024.

[21] Uma explicação mais detalhada do relatório do incidente pode ser encontrada em:  https://youtu.be/YmXKSvgH0VU?feature=shared Acesso realizado em 10/11/2024.