O trabalhador já sabe que há “algo de pobre no reino
da Dinamarca”, ele sabe como funciona o sistema, só precisa descobrir a força
que tem para mudar o rumo dos acontecimentos: “ o pobre faz o rico mais rico e o rico faz
o pobre mais pobre” (Ronaldo Nascimento Para a BBC). Confira a
realidade mostrada neste artigo de Emílio Gennari, que confirma a percepção de
Ronaldo, desempregado no momento. Boa leitura (NORTE)
“O pobre faz o rico mais rico.
E o rico faz o pobre mais pobre”.
Emílio Gennari
O
título da nossa análise de conjuntura é a frase que Ronaldo Nascimento,
trabalhador desempregado do Rio de Janeiro, usou ao encerrar uma entrevista à
BBC. Sem rodeios, suas palavras desmascaram o sentido das medidas com as quais
a elite constrói a imagem enganadora de um Brasil melhor graças à precarização
e à perda de direitos.
Para que a intuição que nasce da exploração não seja
desqualificada por sua simplicidade, vamos sustentar as palavras de Ronaldo com
os números da realidade. Começaremos nossa empreitada com uma pérola de Rodrigo
Maia, presidente da Câmara dos Deputados. No dia 14 de março, ao falar do
projeto de reforma da previdência, Maia afirmou que a mesma idade mínima para a
aposentadoria de homens e mulheres era um pleito dos movimentos que defendem a
igualdade de direitos. Sem dizer quem são estes misteriosos lutadores sociais,
o presidente da Câmara ignorou que tratar de forma igual situações desiguais
aumenta a desigualdade.
À medida que muitas mulheres precisam abrir mão do
trabalho profissional para cuidar da família, impor as mesmas condições de
acesso à aposentadoria penaliza quem se viu obrigado pela maternidade, pela
falta de creches ou pelas próprias exigências do trabalho a deixar o emprego
durante anos. Ou seja, a dedicação exclusiva aos filhos e o esforço realizado
para suprir as carências de serviços públicos do Estado não só deixariam de
ganhar o reconhecimento das políticas oficiais, como seriam punidos com a
exigência de um número de contribuições à previdência igual ao dos homens.
Se isso não bastasse, de acordo com o Instituto de
Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), o tempo de trabalho médio semanal da
mulher brasileira é maior que o dos homens. Com base nos dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio, colhidos pelo IBGE em 2014, o IPEA mostrou
que, pelo acúmulo de horas a mais que a mulher despende em trabalhos domésticos
e nos cuidados com os familiares, ao se aposentar com 30 anos de contribuição,
ela tem, em média, 35 anos e 5 meses de trabalho realizado.
Quando projetamos a mesma base de dados para os 49
anos de contribuição para todos e a idade mínima de 65, previstos na proposta
em discussão, percebemos que, nas mesmas condições de idade e manutenção do
vínculo empregatício, as mulheres iriam se aposentar tendo trabalhado, em
média, 8 anos e 11 meses a mais do que os homens. Onde está a igualdade nesta
situação absurdamente desigual é algo que só o Rodrigo Maia pode esclarecer.
Mas isso não é tudo. Felizmente, está cada vez mais
difícil para o governo sustentar as explicações em relação ao déficit da
previdência e a realidade, mais uma vez, dá razão ao Ronaldo. Sem retomar o que
apresentamos em análises anteriores, apontamos três reflexões:
No apagar das luzes de 2016, a dívida dos
empresários de todos os setores da economia com o INSS, somava nada menos do
que R$ 426 bilhões, o que corresponde a quase três vezes o déficit de R$ 149,7
bilhões registrados no mesmo ano, pelas contas do governo.[1]
Até o momento, não há nenhum projeto de lei que vise impedir tanto este
descalabro como as manobras que o tornam possível. Por envolver quantias cuja
sonegação engorda os lucros e prejudicam os trabalhadores, não há ministro que
se atreva a propor medidas capazes de levar os empresários a pagarem o que
devem.
1. O forte aumento do déficit em
2016 não se deve apenas aos benefícios concedidos, mas, sobretudo, à recessão.
De acordo com o IBGE, o número médio de desempregados passou de 8,6 milhões de
pessoas em 2015 para 11,8 milhões no ano passado e o rendimento médio de todos os
trabalhos caiu 2,23%, já descontada a inflação. Encolher a base sobre a qual
são calculados os valores devidos à previdência ante um número crescente de
aposentados, fez com que, em 2016 e pela primeira vez em oito anos, o setor
urbano apresentasse uma diferença negativa de R$ 48,6 bilhões entre o que é
arrecadado e o montante de benefícios pagos aos seus beneficiários. Ou seja, a
política econômica que mergulhou o país numa profunda recessão ao longo dos
dois últimos anos jogou um papel fundamental na produção do chamado déficit
previdenciário.
2. Se isso não bastasse, mantido o
projeto inicial, a redução dos valores pagos a partir da sua aprovação criará
uma situação complexa no próprio mercado de trabalho. De acordo com as
estimativas do economista Márcio Pochmann, haverá um volume significativo de
pessoas que, depois de se aposentar, permanecerá no mercado de trabalho ou
buscará uma ocupação para repor a renda negada pelos novos benefícios. A soma
deste contingente com o dos ocupados que deverá trabalhar um número de anos bem
maior para ter acesso ao benefício integral levará ao aumento do desemprego e à
consequente queda dos salários pagos. Este fenômeno faria a arrecadação
previdenciária cair, em média, 9% ao ano e tornaria necessária uma nova reforma
da previdência.
Basta isso para entender que o Brasil real é
diferente do que aparece nos discursos oficiais e que a economia dá razão a
Ronaldo. Mas vamos adiante.
Na virada do ano, não faltaram pronunciamentos pelos
quais 2017 marcaria o início de uma longa fase de crescimento. Passados três
meses, a percepção clara é a de que, graças aos mecanismos colocados em
movimento pela crise, os lucros empresariais cresceram, o número de bilionários
aumentou e de famílias abaixo do nível da pobreza também.
De acordo com os dados de janeiro e fevereiro, a
soma do que é arrecadado como Imposto de Renda de Pessoa Jurídica e
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido aumentou nada menos do que 17,1% em
relação aos dois primeiros meses de 2016, e isso apesar da economia não ensaiar
nenhuma recuperação consistente. É o trabalhador fazendo o rico mais rico.
No mesmo período, o relatório da revista Forbes
anunciava que, mundialmente, em 2016, o número de empresários com fortunas
acima de um bilhão de dólares havia chegado a 2.043, um aumento de 13% em
relação a 2015. No Brasil, que, no ano passado, seguia enfrentando uma dura
recessão, os ricaços passavam de 31 para 42, ou seja, 33,3% a mais ante 2015.
Do outro lado da moeda, o Banco Mundial estima que,
até o final de 2017, o número de pessoas vivendo na pobreza no Brasil terá
aumentado entre 2,5 milhões e 3,6 milhões em relação ao ano anterior,
confirmando a tendência de 2015 pela qual as famílias com renda per capita de
25% de um salário mínimo haviam aumentado de 8% para 9,2% do total.[2]
As engrenagens que alimentam as fortunas dos ricos são as mesmas que tiram do
pobre parte do pouco que tem.
Sob o peso de uma economia em sérias dificuldades, a
perspectiva de, em 2017, ter um crescimento do Produto Interno Bruto acima de
2%, anunciada outubro passado, encolheu para 1,6%...1%...e agora o próprio
ministro da fazenda reconhece que, este ano, deve ficar por volta de 0,5%. Para
entender este recuo nas projeções que alardeavam o acerto da política econômica
governamental, precisamos ter um pouco de paciência a fim de levantar os dados
necessários.
De acordo com o IBGE, em 2016, a produção da riqueza
nacional (PIB) sofreu um recuo de 3,6%. À exceção do superávit da balança
comercial, todos os setores que integram este cálculo caíram em relação a 2015:
Agropecuária: - 6,6%; Indústria: - 3,8%; Serviços: - 2,1%; Investimentos em
capital fixo: - 10,2%; Consumo das famílias: - 4,2%; gastos do governo: - 0,6%.
Levando em consideração 2015 e 2016, o PIB encolheu
7,2% e precisa crescer 7,75% para voltar aos níveis de 2014. Este resultado, na
melhor das hipóteses, só poderia ser alcançado se a economia crescesse cerca de
2,5% ao ano entre 2017 e 2019, mas não há nada no futuro de curto e médio prazo
que justifique uma aposta tão arrojada.
Em 2017, pelas projeções do IPEA, o consumo das
famílias deve crescer 0,4% e os gastos do governo, excluídos os juros da
dívida, remam em sentido oposto ao ficar 0,65 ponto percentual do PIB abaixo
das despesas de 2016.
Entre os fatores que mais influenciam o resultado
final encontramos:
ü O nível de desemprego e
endividamento das famílias desencoraja o consumo. De acordo com a maioria das
análises, a taxa oficial de desemprego deve crescer até junho e começar a cair
a partir do 2º semestre;
ü A queda da inflação melhora o
poder de compra dos salários; a supersafra que está sendo esperada vai ajudar a
reduzir o preço dos alimentos; o salário mínimo a R$ 937 injeta R$ 38,6 bi na economia
e as contas inativas do FGTS outros R$ 43 bi. A soma desses fatores vai reduzir
o endividamento das famílias e abrir um pequeno espaço para elevar seus gastos,
mas nada que atue como motor de um crescimento sustentado.
O peso da renúncia fiscal e da recessão na
arrecadação e o efeito negativo da renegociação da dívida dos estados no
balanço da União, apesar das restrições aos gastos públicos depois da aprovação
da PEC 55, levaram a reduzir as dotações orçamentárias de 2017 em R$ 42 bi. No
primeiro bimestre deste ano, o governo investiu apenas R$ 2,97 bi. As verbas do
Programa de Aceleração do Crescimento foram reduzidas em 73,5% em relação ao
mesmo período de 2015 e os gastos com o “Minha Casa, Minha Vida” sofreram uma
tesourada de 87,8%, sempre na mesma base de comparação. Mas o que prejudica a
criação de empregos e as condições de vida da maioria é parte do que permite a
investidores e especuladores dormirem sonos tranquilos. O esforço do governo
para conter o déficit busca tranquilizar os investidores do mercado financeiro
quanto ao compromisso oficial de que, para eles, não faltará um único centavo
dos R$ 407 bi em juros e encargos da dívida interna, estimados para 2017. Mais
um caminho pelo qual o rico faz o pobre mais pobre.
A agropecuária projeta um crescimento de 6%, mas o
seu peso no PIB é pequeno quando comparado à indústria e aos serviços que devem
ter um comportamento instável e fechar o ano em níveis bem próximos aos de
2016.
Em relação ao comércio exterior, 2016 registrou um superávit
de U$ 47,59 bi obtido graças a uma queda de 3,5% das exportações e um recuo de
20,1% nas importações. Nos dois primeiros meses de 2017, as exportações
cresceram 23,6% e as importações aumentaram 12%, totalizando um superávit de U$
7,28 bi.[3]
Mas o que se apresenta como um excelente resultado para este período do ano
esconde elementos que reduzem seu impacto efetivo na capacidade de movimentar a
produção nacional.
Vejamos. Apesar de a receita com a venda de produtos
básicos ter aumentado 41,6% em relação ao 1º bimestre de 2016, o volume
embarcado caiu 2%.[4]
Esta mágica se deve ao forte aumento dos preços de vários produtos de um ano
pra outro, como no caso da soja em grãos (99,9%) e do minério de ferro
(124,5%). O volume dos semimanufaturados cresceu 7,3% enquanto os preços se
elevaram em 13,2%, ao passo que os manufaturados viram seu volume aumentar 5,6%
(sobretudo graças a veículos de carga e óleos combustíveis) e os preços subirem
8%. Ainda que o elevado superávit dos primeiros meses do ano, seja uma boa
notícia para os exportadores, o estímulo à produção ficou aquém do que os
números deixam supor.
Até o momento, o quadro que apresentamos permite
dizer que:
1. Não há nenhum setor que se
destaque como motor do crescimento em 2017;
2. No primeiro bimestre, os
investimentos em maquinários e novas empresas, bem como outros setores da
economia, continuam em queda em relação ao mesmo período de 2016, apesar do
pequeno crescimento ante os meses imediatamente anteriores.
A
inflação de 2016 foi de 6,29% (abaixo do teto da meta, fixado em 6,5%) e a
perspectiva de que, em 2017, a alta dos preços fique em torno dos 4% têm levado
o governo a mostrar este resultado como prova do acerto da sua política
econômica. O problema é que isso só é verdadeiro quando nos limitamos às
aparências.
De fato, a redução da inflação não se deve a nenhum
ganho de eficiência no campo da produção de bens e serviços, mas tão somente a
uma oferta maior do que a procura, apesar da quantidade de empresas fechadas ou
que operam com capacidade reduzida. Além dos cortes dos gastos públicos e da
queda dos investimentos, esta situação devastadora contou com a ajuda do Banco
Central que manteve a taxa de juros em patamares que favoreciam os lucros das
operações financeiras à custa da produção e do emprego.
Se a inflação pode ser comparada com a febre da
economia e a taxa de juros com a dipirona usada para baixá-la, o Banco Central
fez o doente tomar o frasco inteiro no lugar de administrar a dose correta. A
febre caiu além do esperado fazendo a economia mergulhar num torpor que
dificulta sua reação aos estímulos. Por isso, nas três últimas reuniões do
Comitê de Política Monetária, a taxa básica de juros sofreu um corte de dois
pontos percentuais e meio na tentativa de provocar alguma reação consistente.
Quanto às contas públicas, a arrecadação de 2016
caiu 2,97% ante 2015, já descontada a inflação do período. O estrago só não foi
maior devido às multas e impostos sobre repatriação de capitais que
proporcionaram uma entrada extra de R$ 46,8 bi.
Nos dois primeiros meses de 2017, as receitas
aumentaram 0,62% acima da inflação do período. O problema é que, descontados os
royalties do petróleo e as receitas extraordinárias[5],
todos os itens que tem como base a atividade econômica sofreram uma queda real
em relação ao mesmo bimestre de 2016:
ü Imposto sobre Produtos
Industrializados: - 3,73%
ü Contribuição para o Financiamento
da Seguridade Social (ligada ao faturamento): - 4,85%
ü Arrecadação da Previdência
Social: - 1,87%
Provando
que o navio da economia anda fazendo água, a equipe econômica aumentou o
déficit esperado para 2018 de R$ 79 bi para R$ 129 bi. Que os pobres preparem o
lombo, pois o peso desta realidade será descarregado sobre eles.
No campo da política, a pesquisa da CNT/MDA sobre as
próximas eleições presidenciais, realizada em fevereiro deste ano, alertou as
elites de que Lula venceria qualquer um dos competidores. Não é de estranhar,
portanto, que a mídia, o judiciário e as manobras políticas em curso atuem no
sentido de enterrar esta possibilidade e garantir que candidatos de confiança
da elite cheguem à disputa de 2018 em condições de vencer o pleito.
O problema para os setores progressistas que não
compactuam com esta realidade é um só: unificar discursos e estratégias em
torno de propostas concretas que se configurem como alternativa real ao projeto
de país que está sendo construído. E aqui não faltam contradições à medida que
as prioridades eleitorais consomem a maior parte das energias e a possibilidade
de um novo mandato do Lula coloca o próprio PT numa situação intrigante: como
montar um governo estável sem uma aliança com partidos considerados golpistas
desde o impeachment da Dilma? Sob o peso desta acusação, como costurar com eles
um projeto de país diferente?
Da resposta a estas questões depende tanto a
governabilidade de um eventual mandato de Lula, como a união dos que rejeitam
os projetos da elite, mas não compactuam com a ideia de que a eleição de Lula,
por si só, seja um fator de agregação e superação da realidade atual.
No varejo da política, estamos assistindo a uma
novela cujos capítulos, além de criar as condições para um pobre mais pobre,
perdoam os crimes dos ricos.
O programa de repatriação de capitais de 2016 e sua
reedição neste semestre são uma forma desavergonhada de anistiar um crime
fiscal que permitiu levar grandes quantias de dinheiro ao exterior sem pagar
nenhum imposto. De fato, os recursos são repatriados desembolsando bem menos do
que deveriam ter pagado caso tivessem sido submetidos às normas existentes
antes de serem levados ao exterior. Para acertar o balanço da sua
administração, o governo perdoa as falcatruas de especuladores, empresários,
investidores e grandes sonegadores provando que o crime compensa.
Se isso não bastasse, o novo programa de repatriação
teve sua estreia cercada por uma ameaça intrigante: por não incluir o dinheiro
levado ao exterior pelos familiares dos políticos, estima-se que as
possibilidades reais de arrecadação caiam pela metade. A pergunta que não quer
calar é simples: qual é o montante expatriado de forma ilegal por laranjas ou
parentes dos que administram o país? E...de onde vem este dinheiro?
Por sua vez, as delações dos empresários, divulgadas
até o momento, estão colocando a nu tanto os critérios seletivos com os quais
são vazadas as denúncias, como o lodaçal do qual todos suspeitavam apesar de
não ter provas concretas. As delações sujam figuras influentes da política e
jogam a favor da direita mais conservadora e militarista que vem tentando se
aproveitar do alvoroço criado fingindo-se alheia aos esquemas de corrupção dos
quais sempre participou.[6]
Mas o problema maior está no fato pelo qual as
declarações dos réus revelam que, além do Caixa 2 das campanhas eleitorais,
parte considerável dos recursos incluídos na prestação de contas entregue ao
TSE viria de propinas e subornos. Antiético e criminoso, por representar uma
forma de abuso de poder econômico, o “ato ilícito” de Caixa 2 não está previsto
no Código Penal e as tentativas de formular uma norma para coibi-lo e puni-lo
passam por uma questão central: como permitir que tudo mude para que tudo
continue como está?
Se uma nova lei valeria apenas da hora da sua
aprovação em diante, deixando passar em branco o que ocorreu no passado, a
possibilidade de fraudar a democracia ao fazer com que partidos e candidatos
com mais dinheiro tenham condições materiais de ampliar sua representatividade
é uma possibilidade em relação à qual a classe política não quer abrir mão.
Sabendo disso, a dificuldade principal está em encontrar formas de
financiamento que legalizem esta realidade e não sejam objeto de rejeição
popular. Por outro lado, todos sabem que as normas legais, por si só, não
inviabilizam o fluxo de propinas e cobranças que proporciona a influência do
empresariado nas ações do Estado. E não é por acaso à medida que este é
justamente um dos caminhos privilegiados para fazer com que a iniciativa
privada coloque as mãos no dinheiro público distribuído através dos investimentos
e das políticas do governo. Por isso, longe de expressar vergonha e
arrependimento pelos subornos e financiamentos de campanha de todos os tipos,
os delatores falam destas manobras com a normalidade rotineira de quem não vê
nada estranho nisso tudo.
No cenário atual, corrupto e corruptor mudam de lado
a cada nova investida e alimentam um processo sem fim no qual é impossível
definir, por exemplo, o verdadeiro custo de uma obra paga com dinheiro público,
e cujo superfaturamento traz prejuízos aos cofres do Estado e à população. Ao
contrário do que se imagina, a corrupção não é um crime sem vítimas. Seus
mortos e feridos estão entre os integrantes de uma maioria cujo sofrimento é
sufocado pela alegação de que não há dinheiro para investir no social e, portanto,
devem se virar com o que têm.
Quando falamos de Estado, não incluímos apenas os
atos do governo e do legislativo, mas também os do judiciário. As cordas que
sustentam os bonecos da política amarram também os magistrados. A proximidade
em nome da qual os membros do judiciário são convidados por empresários a
passarem feriados em fazendas da família, viajar em aviões particulares,
passear em iates ou descansar em lugares paradisíacos com tudo pago não é de
graça e faz com que o juiz chamado a analisar determinado processo seja próximo
demais de quem está julgando. Sem entrar em discussões de ética e senso de
responsabilidade de cada envolvido, chama a atenção que situações semelhantes
se multiplicam dentro e fora do país. Vejamos.
No dia 6 de abril deste ano, por exemplo, o Diário
do Comércio e da Indústria divulgou que um seminário promovido em Lisboa,
Portugal, pelo instituo de ensino do qual Gilmar Mendes, ministro do Supremo
Tribunal Federal, é um dos sócios, teve entre os patrocinadores a Fecomércio RJ
e a Itaipu Binacional, ambas com vários processos aguardando julgamento nas
instâncias mais altas da justiça brasileira. Diante da repercussão da notícia,
Gilmar Mendes se declarou impedido de continuar sendo relator de um dos
processos que envolvem os acusados. Mas a lista de participantes do evento
incluía também o ministro do Supremo Dias Tóffoli, um ministro do Tribunal de
Contas da União (órgão junto ao qual a Fecomércio do RJ responde a dois
processos e a Itaipu terá uma avaliação de sua prestação de contas do período
de 1994 a 2005), o ministro Mauro Campbell do Supremo Tribunal de Justiça
(palestrante em Lisboa e relator de um dos processos que envolve a Fecomércio),
os palestrantes Luís Felipe Salomão e Paulo de Tarso Sanseverino (relatores de
ações nas quais a Itaipu possui interesse, além de responder a um total de 36
processos no próprio STJ). Deixamos a você decidir se esse tipo de envolvimento
não produz efeito algum nos pareceres dos magistrados diante de quem patrocinou
algo que estava em seu próprio interesse. Apesar da legislação não prever
nenhum tipo de impedimento em casos como este, é difícil acreditar que os
“amigos da corte” não consigam um tratamento diferenciado.
No terreno da luta de classes, a aprovação da
terceirização nas atividades meio e fim marca a primeira vitória da reforma
trabalhista desejada pelos patrões. Considerado “tímido”, o projeto de Temer
traz poucos ganhos imediatos a elites que querem usar a crise para legalizar a
precarização, enquanto a classe trabalhadora é amedrontada pelo desemprego,
domesticada pelos devaneios de afirmação social e incapaz de somar forças nos
setores-chave da produção da riqueza.
Sem repetir o que comentamos em análises anteriores,
queremos sublinhar que a nova fórmula da terceirização piora o que já era ruim.
De fato, a ampliação para qualquer atividade de empresas públicas e privadas
levará a uma ulterior redução dos salários pagos, a uma maior degradação das
condições de trabalho, ao aumento da rotatividade e ao enfraquecimento dos
sindicatos. O avanço da terceirização faz minguar a base da representação
sindical, diminui a possibilidade de sustentação financeira das entidades e
encolhe o poder de barganha dos trabalhadores. Esta realidade permite ao
empresariado apelar a esta forma de contratação para chantagear os sindicatos e
levar os funcionários do quadro próprio a abrirem mão de conquistas obtidas no
passado como condição para evitar sua substituição por empregados de
empreiteiras...pelo menos até que se esgotem os benefícios que podem ser
cortados ou se preparem substitutos minimamente preparados para as tarefas que
irão desenvolver.
Se isso não bastasse, o texto aprovado não prevê
nenhum dispositivo que impeça a chamada “pejotização”, ou seja, a demissão de
trabalhadores do quadro próprio para posterior contratação como micro e
pequenos empresários, e nem para coibir os calotes no pagamento de salários e
direitos trabalhistas, tão frequentes em empresas prestadoras de serviços.
A completar o quadro pelo qual o rico vem fazendo o
pobre mais pobre, a responsabilidade da empresa que contrata uma prestadora de
serviços só pode ser acionada depois de esgotadas todas as tentativas de
processar judicialmente a terceirizada seja qual for o motivo que leva a isso.
Em breves palavras, até a possibilidade de restabelecer um mínimo de
compensação pelas injustiças sofridas passa a ser algo bem mais remoto em
relação ao que vinha ocorrendo.
Mas as investidas empresariais não param aqui. Para
engrossar o caldo da reforma trabalhista de Temer, os patrões querem mais
ganhos imediatos e pressionam para que o texto final permita:
ü Contratar para trabalho intermitente. Trata-se da possibilidade de admitir trabalhadores com
jornadas flexíveis e pagamento limitado às horas trabalhadas. O funcionário
seria escalado em horários e dias da semana diferentes conforme a necessidade
do empregador numa espécie de “bico legalizado”. Assim, uma rede de comida
rápida, por exemplo, poderia contratar pessoas apenas para os horários em que
há o maior fluxo de clientes ou para cobrir a folga de um funcionário. Esta
modalidade que, informalmente, já vem sendo usada em vários setores, além de
remunerar apenas o uso efetivo da força de trabalho e viabilizar abusos de
todos os tipos, impede qualquer decisão do sujeito sobre a própria vida devido
à imprevisibilidade das demandas do empregador. Nesta forma de contrato, o
trabalhador que faz o rico mais rico não iria receber nenhuma hora de descanso
remunerado para recompor as energias gastas.
ü O fim do acidente de trajeto como acidente de
trabalho. Neste quesito, o
Ministério Público do Trabalho parte do princípio pelo qual, se o funcionário
saiu de casa para colocar sua força de trabalho a serviço de uma empresa que
lucra com isso, em troca de um salário para sustentar a família, ele precisa
voltar para casa como saiu, ou seja, saudável. Mas à medida que o registro
destas ocorrências como acidentes de trabalho faz com que as empresas gastem
mais com as contribuições para a previdência social, a pressão dos patrões é
para que o entendimento do MPT seja varrido do mapa.
ü Flexibilizar a NR12 que regulamenta as medidas de
proteção do maquinário para evitar acidentes. Não
é de hoje que a Confederação Nacional das Indústrias pressiona para que se
eliminem as obrigações empresariais que vão além do treinamento puro e simples.
De fato, por não proporcionar aumentos da produtividade, os gastos na segurança
dos maquinários que proporcionariam a incolumidade dos funcionários encolhem os
lucros e, na visão patronal, gera perdas de competitividade. Vale ressaltar que
as indústrias tiveram prazo suficiente para se adequar à norma e houve
financiamentos do BNDES para compra de novos equipamentos. Uma pequena parte
das empresas modernizou o seu parque industrial. A maioria, porém, não gastou
um centavo e agora pressiona para continuar usando máquinas inadequadas que
matam, amputam e adoecem seus operadores.
Enfim,
em 2017, as perspectivas para os trabalhadores são bastante sombrias.
É tempo
de somar forças.
Tempo
de avaliar cuidadosamente cada acontecimento.
Tempo de alimentar entre trabalhadores e
trabalhadoras a convicção de que não estamos fadados ao fracasso.
Tempo de dar novos passos para impedir que a elite
se dedique a fazer com que o pobre torne o rico ainda mais rico enquanto ela
engorda seus ganhos ao fazer o pobre mais pobre.
Brasil. 13 de abril de 2017.
[1] Dados
publicados no Diário do Comércio e da Indústria, em 22/02/2017.
[2] Para os principais
dados do relatório do Banco Mundial acesse: http://g1.globo.com/economia/noticia/brasil-tera-ate-36-milhoes-de-novos-pobres-em-2017-diz-bird.ghtml Quanto aos números do IBGE, relativos a 2015:
http://g1.globo.com/economia/noticia/numero-de-familias-na-miseria-volta-a-crescer-em-2015-diz-ibge.ghtml
[3] No momento em que
escrevemos, já foram divulgados os números gerais do comércio exterior de
março, mas não os dados relativos às quantidades exportadas, razão pela qual,
apesar do superávit acima de qualquer expectativa, não foram incluídos na
apresentação deste ponto.
[4] O volume dos itens
exportados é medido em bilhões de kg.
[5] Lembramos que, em
função do aumento dos preços do barril de petróleo, o pagamento dos royalties
aumentou 71,61%. As receitas extraordinárias vieram da compra do controle
acionário da CPFL pela chinesa State Grid e da privatização da Companhia
Elétrica de Goiás que, somadas, renderam aos cofres públicos R$ 16,37 bi.
[6] Aconselhamos a leitura
da entrevista realizada pela BBC Brasil ao historiador Paulo Henrique Campo e
divulgada em 16 de dezembro de 2016 sob o título “Pagamento de propinas por
empreiteiras se consolidou durante a ditadura, diz historiador”. Você pode ter
acesso à reportagem através do link: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38337544
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