Por Emílio Gennari
As
pesquisas de intenção de voto que mostram Jair Messias Bolsonaro bem
posicionado na corrida presidencial deste ano vêm despertando diferentes
reações entre os movimentos progressistas. Ninguém estranha que grupos da elite
apoiem o capitão da reserva do Exército, uma vez que suas propostas visam
sufocar quem questiona a ordem econômica e social. Também não é surpreendente
que setores das classes médias vejam em suas posições sobre segurança pública o
rigor capaz de barrar as ameaças ao que conquistaram.
Do
mesmo modo, é compreensível que o candidato do Partido Social Liberal (PSL) seja
aplaudido pelo empresariado ao confirmar Paulo Guedes, como o ministro que
definirá os rumos econômicos do país.[1]
Afinal, privatizar aceleradamente as estatais, reduzir o tamanho do estado e os
impostos, fazer com que instituições financeiras privadas operacionalizem a
Previdência Social, acabar com a demarcação das terras indígenas e flexibilizar
a política ambiental são projetos que soam como música para o capital que anseia
por investimentos de baixo risco e livres de compromissos sociais.[2]
As
coisas se complicam quando percebemos que parte das intenções de voto vem das
periferias e de pessoas que foram beneficiadas pelos programas sociais dos governos
petistas ou que, por sua condição social, se supõe que deveriam defender
posições opostas às do ex-militar.
Então...Como
explicar isso? Obra do acaso? Fruto da ignorância do “Zé povinho”? Ou resultado
de uma somatória de fatores que o afastamento da realidade e dos sentimentos
populares nos impede de ver?
As
reflexões que seguem trazem à tona algumas das respostas possíveis a partir da compreensão
do senso comum, delineada nos escritos de Antônio Gramsci, das percepções que
estas possibilitam[3].
Outro alicerce deste escrito são os resultados de duas pesquisas qualitativas,
cuja leitura recomendamos desde já.[4]
1.
Povo burro? Ingrato? Sem consciência?
Diante
de derrotas ou de respostas inesperadas, é comum que dirigentes e ativistas de
organizações políticas, sindicais e sociais apontem o dedo contra a falta de
consciência do povo. Longe de entender o que se vê pelos olhos dele, esta
postura impede uma análise das ações desenvolvidas em seu meio, dos efeitos
colaterais indesejados que elas produziram e, sobretudo, das compreensões que
vinham ganhando corpo entre as pessoas. Por isso, nosso primeiro passo será no
sentido de resgatar o comportamento típico do senso comum e de avaliar as
chances reais de uma reflexão crítica a partir de suas características.
De
início, é importante destacar que as posturas e as reações do homem-massa e da
mulher-massa deitam raízes em valores, ideias, percepções e vivências das mais
diversas origens, frequentemente incorporadas de forma bizarra e incoerente, e cujo
critério de verdade está no pensamento e no comportamento da maioria. Em outras palavras, o que a maioria acredita
ser verdadeiro é aceito como verdade. Ainda que haja sempre certa dose de
experimentação em relação ao novo, quando muitos fazem ou dizem a mesma coisa, não
há como acreditar que possa estar errada. Pouco importa a composição desta maioria
e como ela foi convencida, o que vale para o senso comum é se sentir parte do
grupo.
O
silêncio e o aparente concordar diante de quem apresenta posições contrastantes
raramente são sinônimos de adesão e, assim que o interlocutor se afasta, as
pessoas costumam revelar que se tratava de uma postura para não criar caso,
para não se indispor com alguém do qual se pode vir a precisar, ou,
simplesmente, para encurtar a conversa. O que muitos confundem como aprovação ao
que está sendo feito e comunicado, não passa de um comportamento que evita debater
ideias com quem fere o pensamento da maioria. Por isso, ainda que, aparentemente,
as novas ideias pareçam ter sido aceitas de bom grado, pode levar décadas para
que elas se consolidem em práticas e percepções comuns.
Em
outras situações, a distância entre o pensar e o agir das pessoas simples,
observada na convivência diária, revela a coexistência de visões de mundo
contrastantes: uma afirmada em palavras, de acordo com as conveniências e as
necessidades do momento; outra revelada no cotidiano da ação. Uma coisa é o que
se diz, por exemplo, diante do padre, do pastor, do professor, do policial ou
de qualquer autoridade cuja posição define o que é certo e errado e, com base
nela, pode emitir um julgamento que fere o indivíduo. Outra, bem diferente, o
que se faz e se pensa ao praticar o “proceder” da maioria no ambiente
circunstante.
Longe
de ser uma orientação coerente baseada em princípios éticos definidos, o
“proceder” reúne comportamentos ambíguos e contraditórios, fruto de anseios,
frustrações, e limites que, nas periferias das grandes cidades, guardam uma
relação direta com um ambiente onde a convivência é sempre difícil. Nele os
traços confusos de quem busca a afirmação individual se mesclam com a
necessidade de sobreviver na adversidade, de manter a integridade possível num
cenário cuja imprevisibilidade é atribuída à perda de valores morais e ao
turbilhão de paixões, violências, ódios, amores, rancores ou desforras que
levam a esquecer do que é considerado justo e correto.[5]
Raramente
acompanhadas de reflexões críticas, as posições de senso comum têm as
aparências como referencial convincente e a separação maniqueísta entre o bem e
o mal como guia nos momentos críticos. Quanto maior a “desordem” causada por
acontecimentos, ideias e vivências, mais o senso comum tende a se reportar a
elementos simples, tidos como naturais e, portanto, justos, para posicionar as
reflexões do indivíduo e do grupo.
Sendo
assim, percebemos, por exemplo, que é impossível dizer quanto tempo será necessário
para as pessoas comuns incorporarem sem resistências as novas formas de família.
Mas, convencidas de que os problemas da sociedade têm como base uma crise da
família, elas não demorarão a apontar o núcleo formado por pai, mãe e os filhos
nascidos desta união como imagem da família ideal, como o lugar no qual
autoridade e respeito convivem com o amor de um homem e uma mulher, segundo
aquela que, para o senso comum, é a ordem natural das coisas.
Sem
perceber o papel das relações de poder na formação dos modelos históricos de
família, na produção da marginalização social e das próprias dificuldades econômicas
que atormentam o núcleo familiar, o povo simples vê na desestruturação da
família tradicional a causa da crise da sociedade. Uma crise que, nesta
perspectiva de análise, guarda relação apenas com problemas individuais e
morais e cuja superação aponta a educação como o âmbito onde se formam pessoas
honestas, religiosas, respeitadoras, capazes de zelar para o bem-estar coletivo.
Sabendo
disso, culpar o senso comum pela sua incapacidade de compreender as tramas
sobre as quais se desenrola a vida em sociedade é acusá-lo de não dar conta de
uma tarefa que, estruturalmente, não tem condições de realizar.
2.
Bolsonaro versão senso comum
Diante
do que dissemos, é fácil perceber porque, longe de oferecer planos elaborados, Bolsonaro
se mostra como quem acredita na família, na religião, na autoridade, na
disciplina. O capitão da reserva se apresenta como pessoa de princípios, pronta
a botar ordem na casa, a defender valores desmoralizados e excluídos do debate
público pelos governos anteriores, a zelar por eles com a dedicação de quem
ensina a ser gente, a ter respeito, impondo regras e limites cujos benefícios
serão vistos por todos.
De
acordo com a pesquisa da Professora Esther Solano, para o senso comum, o que
prova a sua determinação e honestidade é o jeito de ele se colocar contra o
sistema vigente, fugindo do politicamente correto com frases fortes,
irreverentes, que não medem palavras. Estas atitudes que o diferenciam dos
demais políticos são vistas como sinais de que ele está realmente disposto a
varrer a sujeira da política institucional e botar ordem na casa. Para o
homem-massa e a mulher-massa, o fato de ele dizer o que pensa, sem papas na
língua e sem se importar com os comentários que virão é bem mais importante do
que o conteúdo de suas falas. Declarações racistas contra indígenas e
quilombolas, frases machistas e preconceituosas são perdoadas como exageros atribuídos
ao passado militar, valorizadas pela coragem de fazer afirmações fortes e apreciadas
como expressões de rebeldia.
O
centro das polêmicas de Bolsonaro nunca se dá em torno de questões econômicas,
mas sempre de temas como a redução da maioridade penal, o combate ao
homossexualismo, a militarização do ensino, o ataque aos direitos humanos (vistos
como direitos de bandido), o endurecimento das penas e assim por diante. As soluções
que apresenta são traduzidas em frases simples e compreensíveis, em mêmes
engraçados, que não distribuem culpas nem debatem projetos, mas, ao colocá-lo
em sintonia com o sentimento popular, ganham a sua adesão.
Assuntos
delicados como a política econômica, a reforma tributária e da previdência
social, que podem ter consequências devastadoras para as maiorias, são evitados
ou esvaziados de conteúdo ao serem reduzidos a falas soltas ou frases de
impacto. Desta forma, o debate se torna passional, sem qualquer reflexão
crítica e sem elementos que permitem vislumbrar os desdobramentos reais do que
é anunciado.
Para
o senso comum, o “guerreiro” Bolsonaro é confiável à medida que apresenta três
características fundamentais: a honestidade, a proximidade com o povo e o
carisma que o diferencia dos demais políticos. A mesma pesquisa da professora
Esther Solano indica que estas são as atitudes que levaram um número
considerável de votantes a escolher o Lula em 2002 e 2006, e que, ao verem-nas negadas
pelos acontecimentos subsequentes, fazem com que parte dos antigos eleitores opte
agora por Bolsonaro.
As
diferenças biográficas das duas personagens e os chamados “verdadeiros
propósitos” pouco importam, pois, para o povo simples, o que vale é a sintonia
que as palavras do candidato conseguem criar e a vontade que ele demonstra de
realizar o que pretende. Convencido de que querer é poder, o senso comum não se
preocupa com os elementos da realidade que negam o otimismo da vontade e nem
com a possibilidade desta projetar oportunidades irreais, mas torce para que
cada um tenha o que merece e mereça o que tem numa sociedade que valoriza o
mérito individual.
O
discurso de Bolsonaro dialoga com esta percepção popular e soma elementos
preocupantes. O primeiro deles é a forma pela qual a sua postura alimenta
disfarçadamente a desigualdade ao estabelecer o mérito como critério único de
admissão em concursos e premiação. O segundo fortalece o preconceito ao
desqualificar e condenar o que ajuda a entender e aceitar as relações humanas
que, para o candidato do PSL, não são parte da lei natural. Ao mesmo tempo em
que não nega a existência de quem passa necessidade e dos preconceitos, o
ex-capitão do exército acusa os pobres, os movimentos negros e os grupos de
LGBTQIA de se fazerem de vítima para obterem regalias do Estado, colocando os
demais cidadãos em posição de desvantagem.[6]
Para ele, o Bolsa Família e os demais programas assistenciais são fábricas de
vagabundos que vivem à custa dos impostos pagos por todos e se transformam em
força eleitoral que elege os políticos de sempre. Do mesmo modo, as cotas
raciais estariam colocando os estudantes brancos em posição de inferioridade e
menosprezando a capacidade de os negros entrarem nas universidades sem a ajuda
do Estado, aumentando assim o racismo, colocando os negros no papel de vítima e
legitimando uma injustiça em relação aos brancos cujos resultados em concursos
públicos revelam um desempenho superior aos que têm acesso pelas cotas.
O
pressuposto pelo qual as oportunidades são iguais para todos e que o esforço
individual define o mérito de cada um, Bolsonaro simplesmente apaga o fato de
que não há nenhuma igualdade de condições entre quem nasce em famílias de
classe média-alta para cima e quem viu a luz nas favelas e grotões do país. O
plano de devolver aos setores mais favorecidos da sociedade o pouco que foi
tirado deles nos últimos 16 anos precisa apagar com um suposto restabelecimento
da igualdade o fato pelo qual, ao tratar de forma igual pessoas em situações sociais
diferentes, a desigualdade terá no seu governo um aliado de primeira ordem.
Um
segundo elemento, guarda uma relação direta com os estudos da realidade
realizados através de pesquisas científicas e levantamentos que, além de
dimensionar os problemas, permitem visualizar suas causas profundas. As
propostas de Bolsonaro não estão alicerçadas em dados estatísticos ou análises
que superem o nível das aparências. A percepção superficial das causas
imediatas dos acontecimentos sociais constitui a base real tanto das suas propostas
como do debate das ideias que estabelece com o senso comum. Permanecer neste
patamar não serve apenas para que as pessoas vejam a confluência entre suas
propostas e a leitura da realidade proporcionada pelo senso comum, mas,
sobretudo, para fazer com que os aspectos imediatamente visíveis impeçam de
procurar os elementos da realidade que só aparecem numa reflexão crítica
aprofundada.
Usar
o visível para cegar as pessoas costuma funcionar bem quando os destinatários
das mensagens costumam agir com base na fé, não dispõem de critérios de análise
da realidade e atuam confiando nas palavras e na pessoa que as pronuncia. Nas
periferias, esta postura guarda forte relação com o fato de as igrejas serem o
espaço em que homens e mulheres se sentem acolhidos e nas quais a fé é o âmbito
em que buscam respostas para os problemas cotidianos. Partidos, sindicatos e
movimentos não aparecem nas pesquisas como fóruns nos quais as pessoas conhecem
e interpretam o mundo e nem como ambientes com os quais elas criam vínculos
afetivos, de participação e convivência. Esta somatória de elementos facilita a
ação da direita conservadora que dialoga com o sentimento popular pedindo um
ato de fé no futuro, sem oferecer nada além de palavras e esperanças vagas.
Preocupado
em manter esse tipo de diálogo, o candidato do PSL não hesita em desqualificar estatísticas,
análises e pesquisas sérias cujos resultados contrastam frontalmente com as
suas afirmações. Sem trazer um único dado que prove a manipulação da realidade,
Bolsonaro acusa universidades e instituições de pesquisa de serem de esquerda e
usarem seus recursos para doutrinarem os jovens. O que parece absurdo a quem
conhece minimamente estes ambientes se transforma é recebido como um sinal de
alerta pelo senso comum.
Este
comportamento intrigante do povo simples tem como base a sua compreensão do que
é ser de direita e de esquerda. A pesquisa da Fundação Perseu Abramo que, entre
outras coisas, buscou compreender esta questão, se deparou com uma concepção
intrigante. De fato, nas periferias paulistas, predomina a visão pela qual “Direita é alguém direito, correto”. Enquanto “Esquerda é quem vive reclamando”. Para
o senso comum, portanto, ser de direita guarda relação com o estar do lado de
quem faz tudo certinho, e não com o tipo de soluções com as quais os
governantes respondem aos problemas sociais.
Se
isso não bastasse, a pesquisa da professora Esther Solano sinaliza que outro
apoio importante às propostas de Bolsonaro vem de setores da população que se
beneficiaram dos programas sociais criados nos governos do Partido dos
Trabalhadores (PT), melhoraram de vida graças às possibilidades que lhes foram proporcionadas
e hoje assumem expressões próprias do antipetismo militante. A distância que
estes grupos populares mantêm em relação às propostas do PT está relacionada à
percepção da sua nova identidade social. Independentemente da renda e da
ocupação, parte das entrevistas nas pesquisas citadas revela que as pessoas se
autoclassificam como sendo de classe média pelo simples fato de terem acesso a
moradia e alimento ou, numa variante parecida, se assumem como classe
consumidora.[7]
As
centelhas de afirmação social conseguidas em épocas de forte redução do desemprego
e políticas públicas voltadas às pessoas de baixa renda fazem com que este
grupo veja a sua “nova condição social” como um sinal de diferenciação em
relação aos mais pobres e a ampliação da distância que os separa deles como uma
necessidade para realizar as novas aspirações. Por isso, programas sociais que
eram vistos como estímulos e possibilidades de melhorar de vida, são agora obstáculos
para novos voos à medida que seu funcionamento não se baseia exclusivamente nos
méritos pessoais. Para quem saboreou as migalhas da cidadania do consumo, o
voto no PT passou a ser um voto típico de pobres, ao passo que os interesses atuais
demandam uma opção partidária que vai de encontro aos novos anseios.
Apesar
disso, parece impossível que quem vive na base da pirâmide social esteja preste
a votar em quem, pelos planos de governo, vai favorecer os que estão no topo e
piorar as suas condições de vida. A pesquisa da Fundação Perseu Abramo traz
elementos interessantes para compreender este fenômeno. No discurso dos
entrevistados, não aparece nenhuma referência à exploração e nem à oposição de
interesses entre trabalhadores e patrões. Para eles, o principal embate não é
entre ricos e pobres e nem entre capital e trabalho. O confronto é entre Estado
e cidadãos, sociedade e governantes.
Nesta
forma de entender a confrontação social, os trabalhadores precisam dos patrões e
vice-versa, ao passo que ambos são vítimas de um Estado que cobra impostos
excessivos, sufoca as atividades das empresas com entraves burocráticos e
gerencia mal o crescimento econômico, trazendo problemas e prejuízos para todos.
Por isso, qualquer proposta de redução do tamanho do Estado, como as que constam
do plano de governo do Bolsonaro, é saudada como uma possibilidade de
crescimento e de progresso por um senso comum cuja ideia de cidadania não tem
nenhuma relação com as medidas necessárias para combater a exploração do
trabalho e a apropriação privada da riqueza produzida por todos.
Não
precisamos ser sociólogos ou cientistas políticos para identificar nestas
posições a sedimentação das ideias centrais sobre o Estado e os problemas
sociais com as quais as elites foram permeando a visão de mundo do senso comum
desde os anos 90. Um trabalho paciente que, em vários momentos, contou com o
apoio de setores do sindicalismo, do próprio PT, de inúmeros movimentos sociais
cuja ideia de cidadania carecia de uma reflexão sobre legitimidade de direitos
e de referências à exploração que seguia marcando o passo das novas demandas do
capital.
3. As arapucas do medo
Ao contrário do que os militantes costumam pensar,
raramente as causas que motivam a ação dos partidos e dos movimentos
sensibilizam o senso comum mais do que as questões que estão sob os olhos de
todos e do sentido que a visão da maioria lhe atribui. Os problemas diários enfrentados
para um atendimento no posto de saúde ou nos hospitais, na busca do emprego, no
acesso ao transporte, com a violência que ronda o bairro, etc., fazem esses
temas subirem ou descerem na lista de prioridades a depender da gravidade e da constância
com a qual atingem o cotidiano do povo.
No que diz respeito à violência, o povo simples tem a
impressão de que as coisas fugiram do controle. E não é para menos. Em 2017, o
Brasil somou 59.103 homicídios, um a cada 9 minutos. No mesmo ano, só na cidade
de São Paulo, entre furtos e roubos, foram registradas 347.533 ocorrências, uma
a cada minuto e meio.[8] E
isso sem contar os estupros, o tráfico e os problemas criados pela atuação das
forças policiais. Diante deste cenário, a pergunta que surge naturalmente não
pode ser outra: o que fazer para pôr fim à violência? Que medidas de efeito
imediato vão reduzir o medo diariamente experimentado e melhorar
substancialmente a segurança pública?
Quanto maior o medo, maiores e mais numerosos os
fantasmas que ele cria. Quanto mais assustadoras as crônicas policiais, mais a
insegurança aumenta e leva a ver ameaças e inimigos a qualquer hora e em
qualquer lugar. Quem tem medo não quer explicações e sim ações fortes e
imediatas que permitam viver a rotina sem correr riscos e sem qualquer ameaça ao
que foi conquistado pelo trabalho. As perguntas sobre as causas da violência
desaparecem diante da urgência de ações imediatas. E, à medida que o medo
supera a indignação, a visão do todo é ofuscada pela crença de que o mal está
no DNA dos criminosos e que é inútil esperar deles uma mudança de vida.
Aos poucos, o medo se torna mestre do desaprender, espalha
uma sensação de impotência bem superior ao que seria razoável esperar, sufoca as
pessoas, supervaloriza as respostas imediatas, faz com que a lógica da
segurança capture a liberdade e restrinja cada vez mais os espaços em que esta
pode se manifestar.
Vista pelos olhos do medo, a realidade pede medidas
enérgicas como leis mais restritivas, punições exemplares, redução da
maioridade penal, efetivos policiais em cada esquina, mais presídios, esquemas
de vigilância ostensivos, etc. Ao atingir este patamar, os sofrimentos imediatos
são vistos como necessários na construção de um futuro sem medo e as pessoas
depositam suas esperanças nas mãos de grupos e indivíduos que se apresentam
como destemidos e cuja ação precisa do medo para disfarçar os interesses que
contrariam as próprias expectativas do senso comum.
Em 2015, uma pesquisa realizada pela Universidade Federal
de São Paulo (UNIFESP) em regiões com altos índices de criminalidade (como
Heliópolis, Perus, Guaianazes e Osasco) fornece elementos que ajudam a entender
como, ao movimentar o senso comum, o medo produzido pela violência propõe
saídas que contradizem a própria percepção da realidade de quem se movimenta
nela.
Baseada
em 600 entrevistas realizadas com homens e mulheres
acima dos 16 anos e renda inferior a dois salários mínimos, a enquete revela que: para 93% dos
entrevistados, eram necessárias ações mais duras para combater o crime nesses
bairros; 90% eram a favor de aumentar a presença da polícia nas ruas; 74,7%
apoiava a redução da maioridade penal; 74% votariam num político “linha dura”.
Ao mesmo tempo em que 66,7% reconheciam que a polícia era violenta; 62,6% afirmavam
que a atuação dela era racista; e 60% eram contrários à ideia de que devia
matar bandidos.[9]
A aparente
contradição entre o desejo de ações mais duras e a percepção das
características da violência policial se deve ao mecanismo pelo qual o medo se
transforma em esperança de que é possível ter uma polícia que cuida do cidadão,
treinada para distinguir os bons dos maus, capaz de atuar com rigor contra os
criminosos, impedir suas ações e dissuadir quem pretende se voltar para o
crime. Paralelamente a este processo e sem nenhuma reflexão crítica imediata, a
sensação de crescente insegurança constrói o consenso pelo qual a punição é o
remédio mais eficaz para combater o crime, sem se preocupar em conhecer as suas
causas profundas e até esquecendo-se das vivências cotidianas. O discurso de
Bolsonaro vai de encontro a esta demanda popular apresentando medidas estritamente
punitivas como a de endurecer a vida nos presídios, reduzir a maioridade penal,
aumentar as penas, criar a prisão perpétua, expandir o porte de armas, acabar
com a vitimização do bandido, dar poder e proteção à polícia.
Esta
convergência de propósitos é parcialmente questionada apenas por pessoas cuja
experiência diária entra em choque com as afirmações do ex-militar. Quem tem
parentes presos e vive o cotidiano das periferias tende a repensar sua adesão
às posições que invocam, por exemplo, a necessidade de transformar presídios em
masmorras onde os presos não têm sequer um colchão para dormir, devem sofrer
maus tratos e apodrecer ou uma polícia cuja “mão de ferro” se traduz em violência
sem controle.
O convite à reflexão é dificultado pela
ausência de propostas de políticas públicas,
cujos rumos e consequências permitiriam vislumbrar o futuro que
preparam. Em seu lugar, mais uma vez, encontramos apenas frases soltas,
afirmações que dão voz às expressões que já estão presentes no senso comum ou
critérios cujo sentido muda a depender da conveniência.
Para
explorar o medo, nada melhor do que criar um inimigo cujo rosto muda de acordo
com as circunstâncias. No binômio bandido-cidadão de bem, o primeiro pode
assumir as feições de um assaltante, de um traficante, de um estuprador, de um
corrupto, mas também de um sem terra ou sem casa, de alguém considerado
comunista ou de quem duvida da lógica simplista pela qual, na luta contra o mal,
basta questionar as posições do candidato para ser qualificado como de
esquerda, vagabundo ou conivente com a realidade atual. E, nas expressões corriqueiras
do grupo de Bolsonaro, enquanto inimigo, o “bandido”, seja ele quem for,
precisa ser aniquilado.
Nesta
visão fundamentalmente moralista, o criminoso prospera graças à proteção legal que
o Estado lhe oferece, à impunidade e à punição do policial que mata os bandidos.
Por outro lado, o cidadão de bem (sem nunca definir o seu rosto) está no papel
de vítima abandonada à própria sorte. Um processo que apure o que de fato
ocorreu, segundo as diretrizes da carta dos Direitos Humanos da ONU, é sinônimo
de defender vagabundos e deixar desprotegido quem é honesto.[10]
Pouco a pouco,
a culpabilidade do sujeito sai do âmbito do direito e começa a percorrer os caminhos
de um estado de exceção onde qualquer abuso policial é perdoado. Ao mesmo tempo,
o processo judicial garantido pela legislação aparece como um fator que
prejudica a sociedade à medida que é apresentado como uma forma de soltar
criminosos.
Neste
contexto, o Estado que garante o cumprimento das leis é colocado no banco dos
réus por arrecadar impostos que acabam servindo para proteger bandidos ao invés
de cuidar dos cidadãos de bem. Enquanto os primeiros andam armados e soltos
pelas ruas ou vivem sem trabalhar nas cadeias, sustentados por gente honesta e
trabalhadora que paga seus impostos, os segundos precisam ficar presos e
desarmados em suas casas com medo de perder seus bens e a própria vida. Uma
situação que faz o povo simples clamar por alguém que tenha coragem de
controlar o Estado, pôr ordem na casa, priorizar os gastos com os cidadãos de
bem e não com os criminosos.
Ao senso
comum incapaz de vislumbrar outras saídas, Bolsonaro se apresenta como alguém
que, ao se candidatar à Presidência da República, está “cumprindo uma missão de Deus”.[11]
Mas esta missão sagrada encobre outras realidades preocupantes. Vejamos alguns
exemplos:
- Ao falar da violência na convenção do PSL que
confirmou a sua candidatura, Bolsonaro afirma que, se
eleito, vai manter a intervenção do Exército no Rio de Janeiro, mas
pretende excluir a punição dos soldados que matarem civis em operações de
segurança. E acrescenta: “Se estamos em guerra, os dois lados podem atirar.
Quero dar meios para o policial não morrer. Se ele não pode atirar, vamos
tirar a arma do PM e dar um buquê de rosas pra ele carregar".[12]
A impressão que as mensagens querem passar é simples: na guerra contra o
mal tudo é permitido; nela, o policial morre porque não pode disparar a
sua arma enquanto os bandidos agem como um inimigo impiedoso; se deixarmos
o policial atirar sem reservas, vai morrer muita gente, mas tudo se
resolve.
Sendo
assim, perguntamos: as mortes de civis em ações policiais aumentaram ou diminuíram
nos últimos anos? Quantas mortes decorrentes da ação policial são investigadas
e levam à punição dos agentes envolvidos? Quantas punições guardam relação com
a participação de policiais nas milícias, nas situações de conluio com o
tráfico, em chacinas documentadas? Como explicar que o maior número de mortes
de policiais civis e militares não se dá em serviço e sim fora dele?
Quando se analisam os números divulgados nos anuários do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a realidade da violência policial e dos
policiais assassinados no Brasil, entre 2011 e 2016, se revela diferente da que
é subentendida por Bolsonaro. Vejamos os dados no quadro a seguir.
Ano
|
Mortes
de civis
por
policiais
|
Policiais
assassinados
|
Policias
assassinados em serviço
|
Policiais
assassinados fora do serviço
|
2011
|
1124
|
173
|
82
|
91
|
2012
|
1399
|
307
|
72
|
235
|
2013
|
2002
|
408
|
98
|
309
|
2014
|
3009
|
398
|
78
|
320
|
2015
|
3330
|
368
|
80
|
288
|
2016
|
4223
|
453
|
118
|
335
|
Quadro
I: Número de civis mortos por policiais e número de policiais mortos Brasil
(2011-2016) [13]
Ainda que seja inegável o crescimento das mortes de civis e
de policiais no período considerado, há uma grande diferença, tanto em números
absolutos quanto em percentuais, que não deixa dúvidas sobre quem são a maioria
das vítimas. A letalidade policial, provocada por membros das corporações no
horário de serviço e fora dele, aumentou 275,7% e o número de policiais mortos 161,8%,
um crescimento significativo, mas bem inferior ao das vítimas civis. Agora, se,
depois de tantas mortes, a violência continua crescendo, significa que matar
mais não é a solução.
Comparando os números de 2016 com os de 2011, percebemos
que, do total de policiais civis e militares assassinados, os que morreram em
serviço cresceram 43,1% e os que foram vitimados nos horários de folga
aumentaram 268,1%. Infelizmente, não temos elementos para fazer uma
diferenciação entre as mortes ocorridas durante o “bico” (prática que no Brasil
é um recurso corriqueiro para aumentar a renda do policial), por envolvimento
com o crime ou pelo fato de o policial ter sido reconhecido por criminosos e
assassinado numa situação em que se encontrava sem chances de defesa. Mas, ao
que tudo indica, o aumento das mortes de policiais tem uma conexão muito forte
com as condições em que atuam dentro e fora do horário de trabalho e não com o
direito de apertar o gatilho como as frases de Bolsonaro levam a crer. Os
anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública trazem vários elementos de
reflexão sobre o tema e não faltam estudos tanto sobre as mortes violentas
sofridas por policiais, como em relação ao suicídio de agentes em função das
condições de trabalho. Todos eles apresentam uma realidade bem mais complexa do
que aquela traçada pelo candidato do PSL.[14]
2. Numa passagem do romance “Ensaio
sobre a cegueira”, o escritor português José Saramago diz que “o medo cega e nos fará continuar cegos”.
Esta parece ser a aposta subjacente à releitura da ditadura civil-militar no
Brasil proposta por Bolsonaro. Diante da violência que assusta e da corrupção trazida
à tona pela mídia como algo que caracteriza os governos petistas, quando na
verdade marca toda a história do país, os governos militares emergem como promotores
de um período em que havia a ordem, em que a vida era mais segura e no qual o
cidadão de bem era protegido pelo Estado. Por sua vez, a democracia é apontada
como um ambiente aberto a qualquer excesso, que permitiu a instalação do caos e
no qual os corruptos governam em benefício próprio. Esta forma de relacionar
ditadura e democracia faz com que os militares apareçam entre os atores sociais
com legitimidade suficiente para combater a corrupção e trazer de volta os
valores esquecidos pelos governos que conduziram o país depois de 1985.
Bastaria uma simples procura na internet para
encontrar materiais que comprovam a existência de uma relação no mínimo promíscua
entre interesses privados e órgãos públicos na época da ditadura. Com a
repressão e a censura impedindo qualquer investigação digna deste nome, não são
poucos os casos em que a relação entre os generais e as empreiteiras que hoje
estão sendo investigadas passava longe da lisura e do zelo com o interesse
público alardeados por Bolsonaro.[15]
O mesmo ocorre quando o crescimento nos anos do
Milagre Econômico é desvinculado dos dados relativos ao salário dos
trabalhadores. Ninguém nega que entre, 1968 a 1973, o PIB crescia, em média,
10% ao ano, com um pico de 14%, em 1973. Os números que fazem brilhar os olhos do
senso comum escondem que isso só era possível em função do arrocho salarial
mantido a ferro e fogo pelos governos militares. De fato, em 1974, contrariando
o que qualquer economista poderia imaginar diante de tamanho crescimento da
economia, o salário mínimo nacional tinha apenas metade do poder de compra de
1960.[16]
Graças a uma população que conhece pouco e nada deste período, à medida que a
anistia de 1979 foi entendida como um pacto de silêncio sobre o que de fato
significou a ditadura civil-militar em todos os campos da vida econômica e
social do país, e ao medo que torna as pessoas cegas, Bolsonaro tem diante de
si um terreno fértil para que seus discursos sejam recebidos de ouvidos abertos
pelo senso comum.
- Nas páginas anteriores, citamos alguns elementos que
permitem a Bolsonaro se apresentar como alguém que se opõe ao sistema,
repudia a corrupção e deseja construir um novo país. No vale tudo das
aparências, a ideologia oculta uma história incômoda no que diz respeito à
sua própria filiação partidária. Com 29 anos de atuação parlamentar, o
candidato do PSL não é um novato da política e, ao longo da sua carreira
neste campo se filiou a partidos frequentemente
acusados de fisiologismo e práticas clientelistas. Vejamos.
O primeiro mandato de
Bolsonaro foi como vereador do Rio de Janeiro em 1989, pelo Partido Democrata Cristão.
De 1/02/1991 até a atualidade vem exercendo o mandato de Deputado Federal pelo Estado
do Rio de Janeiro filiando-se aos partidos que seguem: Partido Democrata Cristão
(1989-1993), Partido Progressista (1993), Partido Progressista Reformador
(1993-1995), Partido Progressista Brasileiro (1995-2003), Partido Trabalhista Brasileiro
(2003-2005), Partido da Frente Liberal (2005), Partido Progressista
(2005-2016), Partido Social Cristão (2016-2018) e, atualmente, está no Partido Social
Liberal.
Em relação ao PSL, que o
lançou candidato à Presidência, poucos sabem que este partido foi mais fiel às
demandas do Presidente Michel Temer do que o próprio MDB. Ao analisar a posição
dos partidos com candidatos à presidência em 107 votações de interesse do
Planalto, a consultoria Arko Advice concluiu que o PSL de Bolsonaro acompanhou
o governo em 67,73% dos casos, seguido pelo Movimento Democrático Brasileiro
com 64,34%, pelo Partido da Social Democracia Brasileira com 30%, pelo Partido Democrático
Trabalhista com 23%, pelo Rede Sustentabilidade com 18,4% e pelo Partido dos
Trabalhadores com 5,7%.[17] Então,
como conciliar a posição do PSL com o discurso de Bolsonaro que aparenta se opor
ao sistema vigente sendo que sua atuação parlamentar ocorreu inteiramente no
interior dele? É possível construir um país tão diferente do atual num partido que
apoia um presidente cujo índice de aprovação caiu de 5% em abril para 4% em
junho e tem um governo avaliado como ruim e péssimo por 79% dos entrevistados?[18] Ou
será que a ampliação do uso da força policial se destina justamente a sufocar
os protestos pelos cortes de direitos que o seu governo se dispõe a fazer para
satisfazer os interesses empresariais?
Tudo
indica que, para uma elite cujos projetos de futuro se sustentam num trabalhador
barato e superexplorado, a ideia de um governo que atua com mão de ferro contra
qualquer perturbador da ordem é uma proposta sedutora. As dúvidas em relação a
ela dizem respeito à capacidade de manter um clima político e social que não
crie empecilhos ao processo de acumulação em função das reações dos movimentos e
das condenações nacionais e internacionais que esta postura pode despertar.
Os
eleitores que ocupam as camadas mais baixas da pirâmide social temem apenas que
a esperança de ordem e progresso se transforme em medo de que nada seja
resolvido. Para os trabalhadores organizados, a certeza de que além da
exploração, o governo não titubeará um usar a força para mergulhar no silêncio os
sofrimentos da progressiva extinção dos seus direitos.
Bolsonaro pode não dispor de
uma máquina partidária capaz de sustentar a sua candidatura, cair nas pesquisas,
não se eleger e, com isso, fazer com que tudo não passe de um susto. Mas é fato
que suas ideias foram somando adesões e consensos onde menos esperávamos e os
votos que ele recebeu nos pleitos em que se candidatou a deputado federal
mostram que o seu crescimento não pode ser considerado casual e inesperado.[19]
Com
a sua candidatura à Presidência da República, o Brasil vê emergir uma realidade
que há anos tem se tornado comum em muitos países onde o avanço da direita
ganha cores preocupantes. Diante da piora das condições de vida, da ausência de
uma alternativa programática de esquerda construída no cotidiano da luta, de
movimentos sociais que não relacionam suas pautas com a exploração que grassa
nas relações de trabalho e da confiança das pessoas na capacidade de o sistema
proporcionar chances futuras de bem-estar e ascensão social, uma parte
significativa da classe trabalhadora tem encontrado na direita o discurso que
se sintoniza com sua preocupação de não perder o que conseguiu acumular e de
ter a chance de melhorar de vida. Quem tem medo não se pergunta até a que ponto
a sua boa fé está sendo usada para construir um ambiente que pouco ou nada
reflete seus interesses, apenas confia em quem revela firmeza em suas
proposições e dialoga com sua insegurança incorporando suas ideias e percepções
da realidade.
Culpar
o povo por esta realidade é não perceber que a cegueira do senso comum impede
que ele tome consciência das causas profundas dos acontecimentos que o cercam.
A possibilidade de romper o jugo do medo e a lógica perversa que alimenta
depende de uma inserção no cotidiano das pessoas que seja capaz de transformar
a indignação individual em envolvimento na luta coletiva.
Para
cumprir esta tarefa, Gramsci diz que entre o agente educador da massa (que ele
chama de intelectual orgânico) e o povo simples é preciso que haja “a mesma
unidade que deve existir entre teoria e prática”,[20]
ou seja, uma relação íntima e orgânica que permite elaborar e tornar coerentes
os elementos que as massas revelam com sua prática. O contato que vem do
partilhar a mesma realidade e do trabalho incessante para dar vida a processos
de luta que tenham as pessoas comuns como sujeitos da ação, e não apenas como
eleitores de quem vai agir em seu nome, permite a passagem do “sentir” do povo
ao “saber” do intelectual e vice-versa. É através dela que podemos evitar o
erro pelo qual ativistas, militantes e dirigentes acreditam que é possível
saber como agir e o que dizer sem compreender o que de fato as pessoas sentem e
vivem.
Se
é verdade que o povo simples se movimenta na cegueira típica do senso comum, as
lideranças sindicais, sociais e partidárias não conseguem ver que a atuação e
os discursos descolados do cotidiano da classe são insuficiente para formar uma
consciência crítica. Longe de ser um raio no céu azul, o voto que o povo
promete dar ao Bolsonaro guarda uma relação direta com esta falha que a aposta
majoritária dos movimentos no cenário institucional passa longe de corrigir.
Podemos
seguir indagando o que tornou possível a ascensão de Bolsonaro, que espaços a
esquerda e os setores progressistas deixaram de ocupar e o que os distanciou da
realidade popular a ponto de perderem de vista os caminhos que ela vinha trilhando.
Ou, passadas as eleições, vamos esperar os próximos desdobramentos da realidade
prontos a culpar novamente o povo caso os fatos se afastem do que havíamos
previsto. Neste caso, o indicador que acusa o homem-massa e a mulher-massa de não
saber votar, não ter consciência, etc., terá sempre três dedos que, dobrados em
nossa direção, seguem questionando silenciosamente nossas atuações em seu meio.
Brasil, 05 de setembro de 2018.
[1] Paulo Guedes é Ph.D em
economia pela Universidade de Chicago, considerada uma referência mundial do
pensamento econômico liberal. O economista é um dos fundadores do Banco
Pactual, é sócio majoritário do grupo BR Investimentos (que hoje integra a
Bozano Investimentos) e consta da lista de fundadores do Instituto Millenium, cujos
intelectuais e pesquisadores se dedicam a sustentar teoricamente as políticas neoliberais.
Entre os mantenedores e parceiros do Instituto encontramos, por exemplo, o
Grupo Gerdau, a Localiza (a maior locadora de veículos do país), o grupo petrolífero
norueguês Statoil, e a Suzano Papel de Celulose. No grupo de apoio estão
empresas como a RBS (afiliada da Rede Globo), o grupo Meio & Mensagem e o OESP
(O Estado de São Paulo). A lista dos doadores permanentes do instituto inclui o
vice-presidente das Organizações Globo, João Roberto Marinho, o ex-presidente
do Banco Central, Armírio Fraga, e o presidente da Coteminas, Josué Gomes da
Silva. Estas, e outras informações, podem ser obtidas em:
https://fernandonogueiracosta.files.wordpress.com/2014/09/duas-reportagens-sobre-o-instituto-millenium.pdf Acesso em 04/09/2018.
[2] O resumo das principais
propostas de Bolsonaro pode ser encontrado em https://mobile.valor.com.br/eleicoes-2018/propostas/candidato/5 Nesta fase em que as ideias precisam mostrar
que estão em sintonia com a vontade popular, é bastante comum que as
formulações mudem com o passar das semanas. Nossas afirmações se baseiam no
conteúdo ao qual tivemos acesso em 28/08/2018.
[3] Em “Senso comum e bom senso: o que fazer para lidar com eles?”, resumimos
as principais posições do pensador italiano a partir do seu trabalho
jornalístico em Turim e das anotações contidas nos Cadernos do Cárcere. Acesso
ao texto em: https://drive.google.com/file/d/0B-LG-oiNBV_MdHFmaHIyS0x0aUN5Rl9YckFpMDlIVUZZYlBn/view?usp=drivesdk
[4] A primeira pesquisa à
qual nos referimos foi coordenada por Esther Solano Gallego - Professora da
Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP), publicada com o título Crise
da Democracia e extremismo de direita. Em Análise Nº 42/2018, Inst.
Friedrich Ebert Stiftung Brasil, maio de 2018. Acesso ao texto completo em: https://drive.google.com/file/d/1c7-81r4H_G9rA6laDHprRgzauFclKqL5/view?usp=drivesdk
A segunda foi realizada em 2017 pelo
Instituto Perseu Abramo e as principais conclusões foram divulgadas em Percepção e valores políticos nas
periferias de São Paulo, em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/publicacao/percepcoes-e-valores-politicos-nas-periferias-de-sao-paulo/ Acesso em 20/08/2018.
[5] Para uma visão mais
ampla sobre esta questão sugerimos a leitura de Gabriel de Sanctis Feltran. Fronteiras
de tensão - política e violência nas periferias de São Paulo. Ed UNESP/Centro de
Estudos da Metrópole, São Paulo, 2011 e de Jessé Souza,. A ralé brasileira –
quem é e como vive. Ed UFMG, Belo Horizonte, 2009.
[6] A sigla LGBTQIA reúne:
Lésbicas, Gays, Bissexuais (pessoas que sentem atração por dois ou mais
gêneros), Transgêneros (pessoas cujo gênero designado ao nascimento é diferente
do gênero que possuem), Queer (pessoas que não querem ou não sabem definir sua
orientação sexual ou desafiam as normas do ser homem e ser mulher), Intersexos
(pessoas que, por questões genitais, hormonais, cromossômicas ou outras
características biológicas não se encaixam nos gêneros masculino e feminino),
Assexuais (pessoas que nunca, ou muito raramente, sentem atração sexual). Em: https://orientando.org/o-que-significa-lgbtqiap/
Acesso em 04/09/2017.
[7] Vale lembrar que a
propaganda do governo Dilma Rousseff teve um papel importante no fortalecimento
desta percepção. Em 29 de maio de 2012, a Secretaria de Assuntos Estratégicos
da Presidência da República divulgava os critérios que definiam a classe média
brasileira. Com base num padrão de despesas familiares com bens essenciais e
supérfluos e na probabilidade de retorno à condição de pobreza num futuro
próximo, eram consideradas famílias de classe média aquelas com renda per
capita entre R$ 291 e R$ 1019, patamar acima do qual começava a classe alta.
Para entender como pessoas cuja renda
passa longe das definições clássicas de classe média podiam se sentir acima da
sua real condição social, precisamos lembrar que, em maio de 2012, o salário
mínimo era de R$ 622. Usando como base os dados apurados pelo Censo de 2010,
realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, as definições
do governo consideravam como sendo de classe média pelo menos metade das
famílias que moravam em favelas e ocupações no Brasil, sendo que 5% delas estariam
na classe alta. O que para o governo Dilma era uma forma de mostrar o acerto
das políticas públicas das administrações petistas, para muitos veículos da
mídia, pesquisadores e intelectuais não passava de uma maneira de maquiar a
pobreza de milhões de pessoas. Algo que, por sinal, era confirmado pelo
Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas cujos critérios definiam a linha da
pobreza com uma renda per capita correspondente ao valor do salário mínimo
nacional.
As definições do governo foram publicadas
em: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/agenciabrasil/noticia/2012-05-29/nova-classe-media-brasileira-tem-renda-entre-r-291-e-r-1019-familiar-capita-define-governo Acesso em 30/08/2018.
As contas relativas aos dados do Censo
2010 se encontram em: http://g1.globo.com/economia/noticia/2012/10/nova-classe-media-inclui-ao-menos-50-das-familias-em-favelas-do-pais.html Acesso em 30/08/2018.
[8] O número de homicídios foi
levantado pelo Monitor da Violência. Os dados relativos aos estados de
Tocantins e Minas Gerais são incompleto, o que deve elevar o total de
ocorrências a ser divulgado nas próximas publicações. Em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/brasil-registra-quase-60-mil-pessoas-assassinadas-em-2017.ghtml
Acesso em 01/08/2018. Os números de furtos e roubos são da Secretaria de Segurança Pública do
Estado de São Paulo e foram divulgados em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/cidade-de-sao-paulo-teve-530-furtos-por-dia-em-2017.ghtml
Acesso em 01/08/2018.
[9] O resumo das principais conclusões da pesquisa
sobre Punitivismo
na Periferia foi publicado em:
https://cdn.rawgit.com/pesquisaR/resultados/v2.0/pesquisa3.html Acesso em 04/09/2018
[10] O texto integral dos
direitos humanos em português encontra-se em: http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf Acesso em 20/08/2018.
[11] Em: https://mobile.valor.com.br/politica/5711671/bolsonaro-admite-possibilidade-de-privatizar-petrobras Acesso em 04/08/2018.
[13] O quadro foi elaborado
a partir dos dados divulgados nos relatórios do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública dos anos de 2013, 2015 e 2017. Para
o ano de 2013, a fim de não nos afastarmos da tabela publicada, mantivemos a
discrepância entre o total de policiais assassinados e a soma dos que foram
assassinados em serviço e fora dele. O acesso aos relatórios está disponível
através do link:
Todos os acessos foram efetuados em
04/08/2018.
Seguindo a prática dos anos anteriores,
os dados relativos a 2017 devem ser divulgados em outubro de 2018.
[14] Para quem tiver interesse,
assinalamos dois estudos aos quais tivemos acesso em 05/08/2018: Vitimização policial: análise das mortes
violentas sofridas por integrantes da polícia militar do Estado de São Paulo,
em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/16335/Vitimiza%C3%A7%C3%A3o_Policial_An%C3%A1lise_das_Mortes_Violentas_Sofridas_por_Integrantes_da_Pol%C3%ADcia_Militar_do_Estado_de_S%C3%A3o_Paulo.pdf
Por que
policiais se matam? – Diagnóstico e prevenção do comportamento suicida na
polícia militar do Estado do Rio de janeiro. Em: http://gepesp.org/wp-content/uploads/2016/03/POR-QUE-POLICIAIS-SE-MATAM.pdf
[15] Um estudo interessante
para jogar alguma luz sobre este tema encontra-se no livro de Paulo Henrique
Pedreira Campo, Estranhas catedrais: as
empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. Ed.
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2017.
Para quem deseja um resgate rápido de
alguns casos de corrupção da época da ditadura, basta acessar: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2015/04/01/conheca-dez-historias-de-corrupcao-durante-a-ditadura-militar.htm A
página estava disponível em 05/08/2018.
[16] Em:
https://noticias.uol.com.br/politica/2009/03/31/ult5773u924.jhtm Acesso em 05/08/2018.
[18] Dados publicados
em: https://mobile.valor.com.br/politica/5624853/temer-bate-recorde-e-seu-governo-e-o-pior-avaliado-na-historia Acesso em 05/08/2018.
[19] De acordo com o site do
TRE do Rio de Janeiro, o capitão da reserva recebeu o número de votos que
segue: nas eleições de 1990, foram 64.041; nas de 1994, 111.927; em 1998,
102.893; em 2002, 88.945; em 2006, 99.700; em 2010, 120.646; e, em 2014,
Bolsonaro foi eleito deputado federal com 464.572 votos. Além de se eleger
sempre com votações expressivas, vale ressaltar que, após alguns altos e
baixos, o número de votos em Bolsonaro nas eleições de 2010 era quase o dobro
em relação àqueles obtidos em 1990 e 21% maior que o de 2006. Em 2014, o último
ano de crescimento do Produto Interno Bruto e antes de o movimento pelo
impeachment da presidente Dilma ganhar as ruas do país, ele se elegeu deputado
federal com quase quatro vezes mais votos em relação a 2010.
[20] Em Antonio Gramsci, Quaderni del Cárcere, edição crítica do Instituto
Gramsci, Ed. Einaudi, Turim 1977, pg 1382.
Nenhum comentário:
Postar um comentário