Emilio Gennari
As guerras
sertanejas
de Canudos e Contestado.
Ao reproduzir este trabalho, cite a fonte.
Índice
Apresentação 03
Introdução 04
1.
O sertão nordestino entre a seca e o latifúndio 05
2.
Antonio Conselheiro 09
3.
De Canudos a Belo Monte: a luta pela vida 14
4.
As primeiras expedições contra Belo Monte 20
5.
O massacre de Canudos 25
6.
A vida e as relações nas terras do Contestado 32
7.
A construção da estrada de ferro e a atuação de José Maria 38
8.
O reduto de Taquaruçu 43
9.
Da vitória de Caraguatá às primeiras rendições 49
10.
Os últimos suspiros da guerra sertaneja do Contestado 55
Bibliografia 59
Apresentação.
Quando
o peso da exploração aumenta a carga imposta à classe trabalhadora, muitos
pensam em desistir da luta. Pouco a pouco, o desânimo eleva o número de seus
adeptos e alimenta em setores cada vez mais amplos da população o desejo de
deixar as coisas acontecerem.
Por
não se oporem à correnteza criada pelos fatos, as pessoas se iludem com a
possibilidade de serem poupadas de sua força destruidora, sem perceber que a
resignação fortalece o hábito de deixar passar em silêncio as injustiças que
preparam novos e mais pesados sofrimentos.
Preso
neste vórtice que arrasta as frágeis esperanças de futuro, o senso comum
procura refúgio na indiferença, na repetição incansável de que as coisas são
assim porque é natural que assim sejam, ou nas lamúrias típicas de quem espera
por uma mudança da qual quer aproveitar os benefícios, mas em cuja construção
não está disposto a se envolver.
Ao
se desvincular de tudo o que extrapola a rotina diária entre casa, trabalho,
escola, religião e lazer, o mundo do cidadão comum se fecha diante de quem
procura alertá-lo dos perigos iminentes. O seu campo de visão se encurta e,
dobrado sobre si mesmo, prefere não ver, não saber, ficar alheio a tudo o que
pode questionar as poucas e débeis seguranças que lhe servem de proteção.
Mas
os problemas persistem. Tornam-se cada vez maiores. Avolumam-se a tal ponto que
não há solução sem mais dores e sofrimentos. Aflito, o senso comum busca
ignorar o que cresce à sua volta, pois, em sua visão mágica, o simples lembrar
dos perigos ganha as feições de uma ameaça direta à sua existência.
Felizmente,
até mesmo quando o sonho de lutar por uma sociedade da qual seja banida toda
exploração do homem pelo homem parece algo totalmente fora de moda, ou quando
as elites se desdobram para desfigurar o compromisso de quem se nega a ser
vítima silenciosa de sua dominação, há sempre um pequeno barco que, apesar de
sua fragilidade, teima em desafiar a correnteza. Nele remam sem descanso homens
e mulheres que procuram despertar os sentimentos de dignidade e rebeldia que,
aos poucos, plantam na garganta dos de baixo a vontade e a força de dizer
“Não!” às investidas que negam a possibilidade de um futuro melhor para todos.
Alimentada
pela memória e tradição de luta do passado, esta obstinada tripulação usa a
história como mapa. Ao resgatar os desafios já enfrentados por sua classe,
nossos navegantes buscam aprimorar a percepção dos limites e das possibilidades
do presente, certos de que os oprimidos abrirão os olhos para enfrentar as
corredeiras aparentemente instransponíveis que hoje abastecem a opulência e a
dominação de seus opressores.
Cientes
do desafio imposto por esta tarefa e diante dos parcos meios de que dispõem,
nossos navegantes encarregam uma coruja de trazer até nós o resultado de seus
estudos sobre as guerras sertanejas de Canudos e Contestado. Através do relato
desta sábia representante do mundo das aves, nos adentraremos na realidade da
época, tocaremos as formas peculiares através das quais as populações envolvidas
construíram sua resistência diante dos projetos da elite e acompanharemos as
preocupações do poder em destruir e desqualificar qualquer sinal de suas lutas.
Por
isso, cedemos logo a palavra à Nádia, a coruja, para que nos conduza pelos
caminhos da história e ajude a reconstruir a ponte que une os anseios de
mudança dos oprimidos de ontem, de hoje e de sempre.
Introdução.
Manhã
de quinta-feira. As nuvens que cobrem a cidade dão à periferia o tom cinzento
que reflete nas paredes sem cor a sensação de tristeza de seus moradores.
Resignados diante de sua própria sorte, homens e mulheres de todas as idades se
dirigem ao trabalho cotidiano torcendo para que São Pedro segure a chuva por
mais um tempo.
Entre
os ruídos que acompanham esta desordenada movimentação de pessoas e
sentimentos, os ouvidos distinguem claramente o vociferar típico de uma
discussão. Levadas pela curiosidade, as pernas caminham em direção da janela
aberta de uma casa através da qual os olhos assistem atônitos a uma cena
inesperada.
Sentado a
mesa, um homem alto e corpulento gesticula animadamente enquanto as palavras
que saem de sua boca traduzem em alto e bom som a negação anunciada pelo menear
da cabeça. Em pé diante dele, com ar decidido e a asa direita apontada para o
peito de quem chama de secretário, uma pequena coruja arregala os olhos e, sem
se deixar intimidar pelo tamanho do seu oponente, ordena:
-
“Escreva: Canudos e Contestado!”
-
“Não! Não! E não!”, repete o homem com insistência ao mesmo tempo em que faz a
caneta tocar as penas da ave como quem, desembainhada a espada, se prepara para
um duelo.
-
“Você vai fazer isso sim! - retruca o pequeno ser sem recuar um único
centímetro. Resgatar os enfrentamentos que o povo sustentou para defender as
comunidades por ele criadas vai ajudar as pessoas a perceberem que, a partir de
sua dignidade e rebeldia, é possível começar a enfrentar a situação de morte e
exploração em que vivem e dar sérias dores de cabeça aos poderosos que se
fartam às suas custas!”
Sem
se dar por vencido, o rosto do secretário assume um ar de reprovação enquanto a
boca prepara palavras duras:
-
“Nádia, você ficou louca?!? Quem é que vai se interessar pelos feitos de um
bando de jagunços fanáticos, atrasados e maltrapilhos, alucinados por líderes
loucos, desequilibrados e lunáticos que pregam idéias estranhas, contrárias aos
progressos da sociedade de seu tempo e cujo único lugar seguro seria o
manicômio?!?”.
Certo
de ter conseguido infligir uma estocada mortal na teimosa insistência da
coruja, o homem deita a caneta na resma de papel e aguarda com expressão
irônica a resposta da ave.
Apoiando
o queixo numa das asas, Nádia olha disfarçadamente para o alto com um sorriso
capaz de fazer balançar os adversários mais impertinentes. Alguns instantes de
silêncio... Um longo suspiro... E...
-
“Parabéns! Você conseguiu!”, diz calmamente a ave.
-
“Parabéns... Por quê?”, indaga o ajudante entre a desconfiança e a
possibilidade de ter se livrado de um trabalho.
-
“Ora, querido bípede da espécie humana, porque você conseguiu reunir numa única
frase os principais adjetivos que a elite e seus meios de comunicação não
cansavam de atribuir aos sertanejos para semear entre a população as razões que
justificariam a dura repressão a ser desencadeada contra os dois movimentos.
Não é uma novidade o fato que os de cima pintam como demônios os que ameaçam
seus interesses antes de desatar os golpes com os quais pretendem silenciar
qualquer ato de rebeldia. Desta forma, toda a responsabilidade pelos horrores
cometidos em nome da lei e da ordem vai recair nas próprias vítimas.
Conseguida
esta façanha, ninguém se dá ao trabalho de perguntar as razões pelas quais
simples sertanejos empunharam as armas para defender suas comunidades das
tropas oficiais. Menos ainda vai aparecer alguém que queira saber por que
resolveram construí-las, como conseguiram atrair tantos adeptos e por qual
razão era tão necessário destruí-las.
Por este
caminho, a exploração que condena os de baixo a condições de vida
insustentáveis é ocultada pelas acusações de banditismo, fanatismo e loucura em
nome das quais, as perseguições, os massacres, as execuções sumárias e os
demais meios empregados para silenciar a revolta dos oprimidos ganham uma áurea
de justo castigo para quem ousou desafiar os donos do poder”, conclui Nádia com
a seriedade de quem procura substituir confortáveis aparências pela compreensão
mais profunda da história.
Desarmado
e envergonhado, o secretário abaixa a cabeça em sinal de derrota.
Em
silenciosa comemoração, a coruja começa a andar de um lado pra outro. Ave e
homem trocam olhares típicos de quem tem consciência de sua posição, até que,
limpada a garganta, Nádia assume definitivamente o papel de vencedora ao
afirmar:
-
“Escreva: Capítulo Primeiro...”
1. O
sertão nordestino entre a seca e o latifúndio.
- “No século
XIX – diz a coruja com a asa apontada para as folhas que aguardam as palavras
do seu relato – os viajantes que atravessam as regiões interioranas do nordeste
brasileiro ficam chocados diante da vida miserável dos seus habitantes. Em
todos os municípios, o olhar se depara com crianças raquíticas, mendigos com
membros deformados, homens e mulheres vítimas de doenças repugnantes.
Apesar das
longas jornadas de trabalho sob um sol escaldante, a fome nunca deixa de sentar
à mesa de mais de 80% das famílias sertanejas. Um prato diário de angu de
farinha de mandioca misturado com gordura de cabra é o cardápio que os pobres
só podem se permitir em anos de maior prosperidade. Some isso às dificuldades
de acesso à água potável, à precariedade das condições higiênicas e às disputas
sangrentas pela propriedade da terra e não terá problemas em explicar os altos índices
de mortalidade que afligem a região.
É sobre esta
base que, tanto o Império, como a República, tecem suas redes de lealdade política
com os senhores locais. Recursos fiscais, concessões de verbas, empréstimos, decisões
favoráveis para a construção de obras públicas e, quando necessário, até o uso
de tropas oficias são a moeda de troca com a qual se fortalece a dependência
dos governos central e provincial em relação aos proprietários locais aos quais
cabe a efetiva administração das regiões de cada província.
Além de
estimular a corrupção, a busca desenfreada de vantagens financeiras e as
constantes rivalidades políticas, esta situação faz com que, no sertão, a própria
justiça seja aplicada por jagunços contratados por fazendeiros e latifundiários.
Em outras
palavras, mesmo sob o governo da República, a máquina administrativa do Estado
fecha os olhos diante das formas pelas quais os coronéis constroem e mantêm uma
ordem social dirigida a favorecer os seus interesses. Em contrapartida, os
chefes locais costuram alianças com os políticos que integram esta máquina
conseguindo, à custa de fraudes e intimidações brutais, os votos de que precisam
para se eleger, e, quando isso lhes é requisitado, fazendo contribuições
respeitáveis para garantir a presença de seus representantes no governo do
Estado.
O controle
quase absoluto dos latifundiários sobre suas áreas de influência leva a
população a dançar conforme a música e a buscar relações amistosas com a elite
local. Trata-se, enfim, de conviver com a exploração com um sentimento que, via
de regra, varia entre a submissão resignada e a dívida de gratidão diante das
ações que conferem um semblante caridoso aos proprietários que procuram a
fidelidade dos subordinados ora através do compadrio, ora de favores
distribuídos de forma seletiva”.
- “Até agora,
não ouvi você falar da seca. Será que a falta de chuva não é o elemento central
para explicar a pobreza da população?” – irrompe o secretário sem fazer
cerimônias.
A coruja
sorri, pisca os olhos e sem titubear responde:
- “Os seres
da sua espécie têm a estranha capacidade de trocar vaga-lumes por faróis de
milha e acabam atribuindo aos caprichos da natureza a responsabilidade pelas
desgraças que deveria ser procurada nas relações que estabelecem entre eles
mesmos. Pois, uma coisa é dizer que o problema é a seca e outra, bem diferente,
é afirmar que a escassez de água apenas vem agravar e evidenciar a realidade de
miséria na qual vive o povo simples.
Ninguém
duvida que as secas de 1844-1846, 1869-1870, 1877-1879 e 1888-1889, ampliam a
miséria e expulsam multidões de sertanejos para o litoral e as regiões norte e
sudeste. O problema é que a carestia não dá trégua nem mesmo quando as chuvas
obedecem ao ritmo normal da natureza da região. Ou seja, a razão fundamental de
tanta pobreza não deve ser atribuída a São Pedro, mas sim aos proprietários de
terras cuja sede de riqueza e de poder retira da maior parte da população as
condições básicas para plantar, colher e viver.
Não podemos
esquecer que o monopólio da terra no Brasil vem de longe, deste antes da
colonização portuguesa. Em 1494, ao assinar o Tratado de Tordesilhas, os reinos
de Espanha e Portugal dividem entre si a propriedade do continente. Com isto, é
a coroa a ter o poder de doar extensões enormes do território nacional às
pessoas julgadas merecedoras desta dádiva. É assim que nobres e homens diretamente
ligados à corte concentram em suas mãos parcelas significativas de terra mesmo
que não tenham a menor condição de controlá-las e fazê-las frutificar.
Após quase
três séculos, o país conta com uma grande quantidade de regiões oficialmente
desocupadas e desabitadas. Diante da necessidade de aumentar os recursos de seu
cofre, o império se preocupa em fazer com que estes territórios não estejam
demasiado disponíveis a qualquer pessoa que tenha interesse em ocupá-los, mas
sim que sejam vendidos a caro preço.
A expansão da
cafeicultura proporciona ao governo o momento ideal para realizar este desejo.
A elevação das quantias pagas pelos que querem comprar um pedaço de chão evita
que trabalhadores livres se transformem em proprietários fugindo da condição de
vendedores de sua força de trabalho. Ao aumentar o valor das terras e ao
dificultar sua aquisição, a elite busca garantir um amplo contingente de
trabalhadores obrigados a se fixar em suas plantações para poder sobreviver.
É assim que,
em 18 de setembro de 1850, é promulgada a lei N.º 601, mais conhecida como Lei
de Terras, que visa assegurar três objetivos básicos: 1. Proibir a aquisição de
áreas por outro meio que não seja a compra, extinguindo, de conseqüência, o
regime de posse; 2. Impossibilitar que simples colonos adquiram os lotes disponíveis
ao vendê-los a caro preço, em leilão e mediante pagamento à vista; 3. Usar os
recursos assim obtidos para o financiamento da imigração destinada a substituir
os escravos nas lavouras após o fim do tráfico com a África.
Graças a esta
medida, a propriedade fundiária se concentra cada vez mais nas mãos dos
fazendeiros, um grande número de pequenos proprietários e de posseiros é
forçado a deixar suas antigas lavouras para alimentar a quantidade de
trabalhadores disponíveis e reduzir os salários a serem pagos.
Neste contexto,
em 1895, o governo da Bahia promulga a lei N.º 286 que estabelece como
devolutas, ou seja como desocupadas ou desabitadas, todas as terras que não são
de uso público, aquelas dos proprietários que não possuem um título legítimo,
as posses que não estão fundamentadas em documentos de valor legal e as áreas
indígenas cujas aldeias foram extintas por lei ou acabaram sendo abandonadas
por seus habitantes. A esta norma, em 21 de agosto de 1897, a administração
baiana acrescenta a lei N.º 198 pela qual são consideradas devolutas todas as
terras em relação às quais não há qualquer título legal de propriedade e as que
não vierem a ser legalizadas nos prazos determinados.
Não é
necessário ser especialista em questões agrárias para entender que a nova legislação
torna ainda mais precária a situação dos ocupantes pobres de terras familiares (que
não dispõem de documento que comprove a propriedade) e coloca seu futuro à mercê
das pressões dos latifundiários e das personagens politicamente influentes da
região onde vivem.
É sobre esta
base que vai se montando um cenário no qual a grande maioria dos trabalhadores
agrícolas vai passar a vida inteira como posseiros que devem favores em troca
da frágil possibilidade de manterem o seu acesso a terra, como meeiros obrigados
a pagarem o aluguel do terreno tanto em produtos como em trabalhos para os
fazendeiros, como marginalizados constantemente a procura de emprego e sujeitos
a sofrer as penas previstas pelas leis contra a vadiagem, ou flutuando de um
setor para outro em condições que pouco se distanciam da indigência.
Se a isso
somamos o fato de que quase todas as terras com acesso à água estão nas mãos
dos latifundiários, não é difícil entender que os períodos de seca só agravam o
que já estava ruim precipitando o povo simples numa situação de penúria
insustentável.
- “O fim da
escravidão, em maio de 1888, e a proclamação da República, em novembro de
1889... não ajudam a aliviar esta situação?!?” – questiona o secretário com
ares de quem aposta nas possibilidades de mudança trazidas pelos altos
representantes da política do país.
- “É
exatamente o contrário!” – retruca a coruja ao espetar o ar com a ponta da asa
esquerda.
- “Como
assim?!?”.
- “Em
primeiro lugar - diz Nádia com expressão compenetrada -, nem a extinção do
trabalho escravo, nem o fim do império alteram a estrutura agrária e nada
ameaça a existência do latifúndio. Não há terra a ser destinada aos escravos
recém-libertados e aos camponeses livres que continuam não vendo saídas para a
situação deplorável em que se encontram. Apesar de representarem um progresso
social, econômico e político para o país, as possibilidades de melhora para as
camadas mais baixas da sociedade são muito reduzidas.
De um lado, o
novo regime costura uma aliança entre os empresários da indústria e os
latifundiários (muitos deles ex-escravistas) para garantir a coesão das elites
e, de outro, a situação econômica do nordeste se deteriora em função das
dívidas do país e da participação da região na pauta de exportações”.
- “Daria para
ser um pouco mais clara...”
- “Vamos por
partes - diz a ave ao apoiar o corpo numa pilha de livros. Contrariando o que
aconteceu em outros países quando da queda do regime monárquico, no Brasil o
advento da República não conta com o apoio popular e sequer desperta qualquer
tipo de participação efetiva do povo simples. Fruto da ofensiva das elites
militares e civis, a mudança de regime não traz em seu bojo nenhuma medida
destinada a minorar os sofrimentos das camadas mais baixas da população.
Em sua
disputa pelo poder, empresários e latifundiários passam longe de qualquer
proposta que guarde relação com uma possível reforma agrária ou seja destinada
a elevar a renda da classe operária. Ao contrário, a importância crescente do
café no conjunto das exportações brasileiras leva a uma ulterior concentração
das terras mais férteis e o lento processo de industrialização busca criar um
grande número de desocupados e desempregados como forma de reduzir os salários
e elevar a exploração.
Do ponto de
vista dos direitos políticos, a Constituição de 1891 define como eleitor o
cidadão do sexo masculino, alfabetizado e maior de 21 anos. Além de negar às
mulheres o direito ao voto, a norma legal exclui a esmagadora maioria da
população à qual o Estado continua não proporcionando o acesso à educação
básica. Em breves palavras, a Republica cria regras que continuam inviabilizando
na prática o aparente conteúdo democrático de suas formulações políticas.
O afastamento
popular em relação ao novo regime ocorre também em função da separação entre o
Estado e a igreja. A liberalização da prática religiosa, a administração dos
cemitérios pelas autoridades municipais, a obrigatoriedade do registro de
nascimento e do casamento civil são medidas que, além de execradas pelo clero
católico, ferem o sentimento religioso. Ao promover a dessacralização do mundo,
o caráter leigo da República encontra a resistência de quem, por séculos, havia
aprendido a respeitar e reverenciar o imperador como representante de Deus na
terra e defensor da religião entre os homens. Este choque cultural aglutina
setores da população que, diante da perspectiva de seu ulterior empobrecimento,
encontram na religião o elemento que dá identidade e sentido à sua revolta
contra as transformações políticas recém-introduzidas.
Se isso não bastasse,
a fragilidade do equilíbrio de poder no interior do novo regime é agravada
pelos sérios problemas que afetam a economia do Brasil. Apesar da grande
quantidade de produtos agrícolas vendidos no mercado mundial, o país continua
importando mais do que consegue vender. Além de elevar as dívidas com a
Inglaterra, o governo não tem recursos suficientes para investir no
desenvolvimento de todas as regiões e passa a privilegiar as áreas que mais
participam da pauta de exportações. Estamos falando, por exemplo, de obras de
infra-estrutura como estradas de ferro, redes de telégrafos, melhorias dos
portos e ações destinadas ao aproveitamento das vias fluviais. Com o café
representando 61,5% do total comercializado com o exterior, o centro-sul do país
acaba concentrando as verbas destinadas a fortalecer a balança comercial.
Na última
década do século XIX, a economia nordestina, baseada na produção de açúcar e
cacau, encontra-se em franca decadência. A participação da Bahia nas
exportações nacionais não passa de 5% e a sua elite não conta com grandes
recursos do governo federal. A saída encontrada pelas administrações locais vai
no sentido de elevar a carga de tributos a serem cobrados da população mais
desprotegida já que ninguém ousa impô-los a coronéis e fazendeiros. É assim
que, nas feiras realizadas neste Estado, quem quiser expor e vender produtos
deve pagar as taxas impostas pelos arrecadadores.
Esta situação
é agravada pela política financeira adotada pelo regime republicano. Rui
Barbosa, o primeiro a ocupar o cargo de Ministro da Fazenda, autoriza uma
emissão desenfreada de papel moeda como forma de arcar com os compromissos e as
dívidas do Estado. Esta medida dá origem a um progressivo aumento dos preços
que faz disparar o custo de vida. De 1888 a 1890, os gêneros de primeira
necessidade são 62% mais caros e, de 1891 a 1894, a inflação atinge 118%, um
verdadeiro golpe baixo na luta pela sobrevivência dos setores mais
empobrecidos. [1]
Para o mundo
sertanejo, estas transformações significam uma mudança para pior. Diante do
agravar-se da situação de miséria, os ideais republicanos retratados nos
discursos indecifráveis e arrogantes das elites não fazem nenhum sentido para a
população pobre da Bahia e do nordeste. Na base da pirâmide social, as
expressões que apelam à volta da monarquia não têm como motivo inspirador a
identidade política do povo com o imperador, mas tão somente a percepção de
que, por mal que estivessem, as coisas não eram tão ruins como sob o novo
regime”.
Um breve
instante de silêncio se estabelece entre a coruja e seu secretário. As mãos
ainda escrevem as últimas palavras quando a língua deixa escapar uma pergunta:
- “Nádia, se
é verdade que a miséria do sertão nordestino deita raízes profundas já na época
do Império, como é que o povo não reagiu antes aos desmandos das elites?”.
- “Bom, pra
início de conversa, vale a pena esclarecer que, durante a escravidão,
assistimos sim a inúmeras lutas levadas adiante por escravos insurretos. O que
precisa explicar, portanto, é porque homens e mulheres livres, que vivem na
pobreza, têm reações que se colocam bem aquém do esperado em termos de revolta.
Neste
sentido, além dos vínculos de compadrio com coronéis e fazendeiros da região (que
criam relações de dependência e fidelidade) e das necessidades impostas pela
sobrevivência, a religião desempenha um papel fundamental na manutenção da paz
social. A grande maioria da população sertaneja vivencia um catolicismo por ela
mesma produzido diante das dificuldades e das crescentes amarguras do dia-a-dia.
Neste se misturam uma resistência estóica aos sofrimentos com a resignação
trazida por esperanças que Deus, a Virgem Maria e os santos protetores irão
intervir para o sertanejo não sucumbir diante dos desafios da vida, vista como
um vale de lágrimas.
Nas áreas
mais afastadas do litoral e dos grandes centros do interior, os moradores
acreditam que os infortúnios são o resultado da não aceitação do destino
pré-determinado de cada um. A seca, a fome e as doenças são vistas como uma
resposta divina a esta atitude e, neste sentido, a própria subjugação política
passa a ser aceita sem maiores protestos. Este conjunto de crenças leva à
percepção de que o ser humano não tem controle sobre os acontecimentos que
mudam o rumo da sua existência e à convicção de que se Deus está mandando o
sofrimento é necessário que o povo ore e se sacrifique ainda mais para merecer
as suas bênçãos. As romarias, as procissões e a própria autoflagelação
expressam os desejos intensos que nascem do sofrimento cotidiano e são os meios
pelos quais os sertanejos buscam a purificação do corpo e do espírito, anseiam
a obtenção do céu dos favores que não conseguem na terra e reúnem forças para
superar as dificuldades confiando na proteção divina.
Quando as
orações e os demais rituais falham, os devotos sertanejos culpam a si mesmos,
prometem mais abnegação e sofrimento, e apesar das duras provações, homens e
mulheres sentem que suas preces são atendidas toda vez que a chuva cai e faz a
terra florescer. As famílias se reúnem, retornam às terras abandonadas nos
períodos de seca, plantam graças aos créditos conseguidos juntos aos
proprietários rurais (que alimentam assim o círculo vicioso de dívidas e
obrigações) e vêem o momento de relativa prosperidade como uma dádiva de Deus
que eles não merecem.
Apesar das
aparências, o conjunto destas crenças não leva os devotos a enfrentarem a vida
com um sentimento de completa resignação. Se, de um lado, a fé na intervenção
das forças sobrenaturais reduz a necessidade de formas mais aprimoradas de
controle político, de outro, a luta e o trabalho árduo para vencer os
obstáculos, o sacrifício pessoal, a partilha dos poucos recursos disponíveis
com parentes distantes ou com vizinhos mais necessitados, revelam aspectos nem
sempre evidentes da religiosidade sertaneja. Quando o dilema central é saber o
que Deus deseja do homem para libertá-lo da insegurança cotidiana que ameaça a
sua sobrevivência, em determinadas condições, a religião pode vir a ser a fonte
inspiradora de um mundo novo.
Neste
contexto, a expressão se Deus quiser, que encerra a maioria das frases
pronunciadas pelo povo simples, pode deixar de significar mera submissão à
realidade como fruto dos desígnios divinos ou apoio destes aos projetos das
elites no poder. Deus pode não querer determinadas coisas e apontar outras. Na
medida em que isso passa a ser vivenciado coletivamente, tende a ganhar cores e
formas que escapam do controle da ordem dominante e se transformam numa ameaça
à manutenção da mesma”.
- “A
hierarquia da igreja católica participa deste processo?”
- “Nada disso
– afirma a coruja ao reforçar suas palavras com o menear da cabeça. Ainda que,
neste momento, bispos e padres estejam em rota de colisão com as reformas
introduzidas pela República, eles não têm interesse e inserção suficientes para
sequer sugerir esta possibilidade. Todos os estudos evidenciam uma igreja
distante das regiões interioranas. Na Bahia, Estado onde se dará a guerra
sertaneja de Canudos, das 190 paróquias existentes em 1887, 124 não dispõem de
um padre que viva nelas e 80 destas últimas só conhecem a presença de um
sacerdote a cada 3 ou 4 anos quando o vigário ou seus assistentes resolvem
passar nas fazendas mais afastadas com o intuito de promover batizados,
casamentos, confissões e celebrar missas. [2]
Além das
inúmeras vezes em que estas visitas são canceladas, o fato dos rituais
acontecerem sob o olhar atento dos coronéis impede qualquer crítica à atuação
destes. Se isso não bastasse, o próprio esforço iniciado pela igreja católica
do Brasil, em 1883, para melhorar a qualidade do clero local visa combater o
avanço de protestantes, espíritas e maçons nas áreas interioranas, abafar a
ação de grupos que estejam dispostos a apoiar a secularização do Estado, combater
os desvio do catolicismo local, mas passa longe de colocar o dedo nas feridas
que condenam à miséria centenas de milhares de pessoas.
De tempos em
tempos, as lacunas deixadas pela ausência de um vigário são supridas por
missionários errantes que andam pelas regiões mais remotas e empobrecidas. O
problema é que a maioria deles, oriundos da Itália e da Alemanha, não fala a
língua local o tanto que basta para serem entendidos pelo povo, razão pela qual
este esforço acaba sendo totalmente perdido.
O vácuo
deixado pela igreja oficial é ocupado pelos beatos, ou seja, por religiosos
seculares, andarilhos e leigos que adotam uma vida de penitências e cujas
pregações, terços, celebrações imitam o comportamento dos padres e fazem
avançar a religiosidade popular. O sacrifício e a dedicação em patamares
superiores aos que são vivenciados pela população, atribuem a estas pessoas uma
áurea de superioridade moral e de nobreza que, além de destacá-las entre seus
pares, ganha o apoio e a confiança dos sertanejos.
É neste
contexto que, após percorrer uma ampla região do sertão nordestino, um
peregrino que ganha fama e respeito pelos seus conselhos e pela vida ascética
que conduz funda no interior da Bahia uma comunidade que passará a ser
conhecida no país inteiro. Vamos tratar disso no próximo capítulo ao falar
justamente desta personagem controversa que responde pelo nome de...”
2. Antonio
Conselheiro.
Enquanto o
secretário se entrega a uma longa e deliciosa espreguiçada, a coruja, com o
queixo apoiado na ponta da asa esquerda, permanece pensativa por alguns
instantes. O ritmado piscar dos olhos e o franzir das plumas que cobrem o rosto
revelam o esforço de rememorar os acontecimentos que permitem compreender a
figura de Antonio Conselheiro. Aos poucos, gestos silenciosos e movimentos
quase imperceptíveis do bico parecem abrir caminhos às palavras destinadas a
delinear a liderança e as escolhas por ele operadas no sertão nordestino.
Finalmente,
Nádia pára, emite um longo suspiro e, apontando para a caneta deitada entre as
folhas, diz:
- “O melhor
caminho para entender o fundador de Canudos não passa pelo detalhamento de sua
biografia, mas sim pela reconstrução dos aspectos que o aproximam e o fazem
dialogar profundamente com o mundo sertanejo. Por isso, após recuperar
brevemente alguns dados que marcam passagens importantes da sua vida, vamos nos
dedicar à tarefa de compreender a prática e a postura deste peregrino que, por
onde passa, ganha a admiração e o apoio do povo sofrido da região”.
- “Ainda bem...”,
deixa escapar o ajudante que torce para ter seu trabalho reduzido ao mínimo
indispensável.
- “Pelos
dados disponíveis – diz Nádia ao se movimentar sobre a mesa -, sabemos que
Antonio Vicente Mendes Maciel, que viria a ser conhecido como Antonio
Conselheiro, nasce em Quixeramobim (província do Ceará), no começo de 1828. Filho
de comerciante, aprende a ler e a escrever com um dos amigos do pai sendo
reconhecido como aluno sagaz e estudioso.
A sua
infância e adolescência são influenciadas pelas lutas sangrentas entre as
famílias Araújo e Maciel. Tendo como fator determinante as disputas por terras
e poder político, os Macieis levam a pior. Através da longa série de
enfrentamentos e vinganças que produzem este desfecho, Antonio se depara com a
parcialidade da justiça, a impunidade dos poderosos e as relações de poder que
prevalecem no sertão e nas quais o Estado está sempre do lado dos mais fortes.
É nesta fase
difícil que ele conhece a figura que vai influenciar sua formação e com a qual
se encontrará após 1865. Trata-se de José Antonio Pereira Ibiapina, juiz da
comarca de Quixeramobim, que, em vários momentos, se coloca ao lado de sua
família e, em 1853, abraça a carreira sacerdotal. Após ensinar eloqüência
sagrada no seminário de Olinda e exercer o cargo de vigário geral do bispado, o
Padre Ibiapina se torna missionário itinerante. Em 28 anos de atividades,
percorre os sertões do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte recolhendo esmolas
e materiais de construção para fundar casas de caridade, levantar igrejas,
cemitérios e hospitais. Durante a seca de 1877, dedica seus esforços a cuidar
dos retirantes e chega a ser considerado um homem santo. A morte o encontra em
19 de fevereiro de 1885, na Paraíba, numa das instituições por ele fundadas.
Voltando
agora a Antonio Maciel, os historiadores registram que, em 1º de janeiro de
1857, se casa com Brasilina Laurentina de Lima e se muda para a Fazenda do
Tigre, perto de Quixeramobim, onde abre uma escola primária. Algum tempo após o
nascimento do primeiro filho, deixa a fazenda em direção a Tamboril e, daí,
para Campo Grande onde encontra emprego numa casa comercial. Com a mudança de
profissão do dono do estabelecimento, o desemprego bate à sua porta justo na
hora em que nasce o segundo filho. Pressionado pelas dificuldades, tenta ganhar
a vida como advogado provisionado, ou seja, como indivíduo que, apesar de não
ser formado em direito, tem permissão para advogar.
Em 1861, se
muda para Ipu onde continua a exercer a mesma profissão. Ao tomar conhecimento
da infidelidade da esposa, ou ter sido abandonado por ela, deixa a cidade para
se instalar na Fazenda Santo Amaro, no termo do Tamboril onde volta a se
dedicar ao magistério. Amargurado com a traição da mulher e indisposto com as
autoridades locais por defender no fórum as vítimas da prepotência dos poderosos,
Antonio Maciel deixa o povoado e, por dois anos, passa a viver em Santa
Quitéria.
No arraial,
conhece Joana Imaginária, uma mulher que ganha a vida esculpindo imagens de
santos em barro e madeira. Desta relação, nasce um filho, mas, apesar dos laços
que se estabelecem entre os dois, Joana se recusa a seguir o homem que ama
quando este, em 1865, inicia, já como pregador, uma longa peregrinação pelo
sertão do Ceará. Ao que tudo indica, neste período, Antonio teria reencontrado
o Padre Ibiapina seguindo-o durante algum tempo e tomando-o como exemplo para a
vida que adotaria anos depois.
As mudanças
de residências e o passar por vários municípios do sertão levam o futuro líder
de Canudos a entrar em contato com a realidade e os sofrimentos dos camponeses,
com as injustiças dos latifundiários e com uma forma peculiar de lidar com as
necessidades e a religiosidade do povo. Por estas razões, mais do que um
lunático e alucinado, Antonio Maciel é um profundo conhecedor do sertão e um
homem capaz de dialogar com os mais simples”.
- “Sabe,
Nádia, o que ainda não está claro é o que ele faz durante as andanças pelo
interior do nordeste...”, aponta o secretário empurrado pela curiosidade.
- “Calma! Uma
coisa de cada vez – responde a coruja com um gesto que parece frear a pressa do
seu ajudante. Ao contrário do que contam muitas lendas a respeito de Antonio
Conselheiro, ele não faz milagres, não usurpa funções sacramentais próprias dos
sacerdotes, não age como curandeiro, em nenhum momento assume posturas típicas
de um messias e nem se apresenta como um profeta. A sua pregação religiosa se
mantém no interior dos usos e costumes do catolicismo da época, acompanhado por
conselhos morais e legais. A confiança que inspira as pessoas a procurarem sua
orientação não tem como base o discurso, mas sim a vida ascética alicerçada em
rígidas regras de comportamento.
Usando como
única vestimenta um hábito de brim americano azul, Antonio não come carne, se
alimenta de cereais, não dorme em camas ou redes, mas prefere uma mesa, um
banco ou o próprio chão duro, nos quais deita sem travesseiro ou coberta. O
regime sóbrio e mortificante que assume se manifesta até mesmo nos momentos de
aceitar as esmolas que lhe são oferecidas. Ao contrário do que costuma ocorrer
com os demais beatos e peregrinos, ele só fica com quanto é estritamente necessário
ao seu sustento entregando a maior parte dos recursos para a ajuda dos
necessitados e a construção de igrejas e cemitérios.
- “Socorrer
quem precisa e construir igrejas... até dá pra entender, mas... cemitérios?!?
Pra que gastar dinheiro com isso?”
- “O que para a sua
cabecinha parece um verdadeiro absurdo – diz a ave sem se impacientar – é
justamente uma das atividades de maior impacto entre os moradores da região.
Para a sociedade sertaneja, o enterro é um rito extremamente importante a tal
ponto que, em alguns casos, as famílias chegam a vender grande parte dos seus
pertences para garantir um lugar melhor ou uma cerimônia mais digna a um ente
querido que venha a falecer.
O problema
está no fato de que, com o crescimento da população, o elevado índice de
mortalidade e a falta de recursos para ampliar os cemitérios existentes, os
mortos neles enterrados são exumados após um par de anos e, caso suas famílias
não disponham de recursos para cobrir as taxas cobradas, os restos mortais são
levados para ossuários comuns. Ao proporcionar mais espaço para as sepulturas
permanentes, o Conselheiro não só utiliza os recursos disponíveis para atender
uma necessidade coletiva, como faz desta atitude um meio que aprofunda o seu
contato com o mundo e a religiosidade dos sertanejos.
Some todos estes elementos e entenderá porque
as pessoas paralisam as ocupações normais para se dirigir às vilas nas quais o
peregrino vai passar. E você sabe que quando muita gente se vincula a um culto
ou a um líder religioso é porque, via de regra, há razões que superam o âmbito
da religião propriamente dita”.
- “O que você
quer dizer com isso?”
- “Simples,
querido bípede da espécie humana. Basta percorrer a trajetória pela qual
Antonio Mendes Maciel se transforma em Antonio Conselheiro para perceber que
sua intervenção não se dá no campo estritamente religioso, mas toca em aspectos
que incomodam as elites locais.
Sabemos, por
exemplo, que em suas pregações anteriores a maio de 1888, Antonio se posiciona
contra a escravidão que ainda marca presença em vários engenhos da região e,
além de condená-la, dá abrigo a negros fugitivos, transformando-se assim em problema
para os proprietários da região.
Apesar de não
termos relatos sobre uma prática política propriamente dita, há vários indícios
de que o povo se aproxima do Conselheiro ao ver que suas pregações não se
limitam a questões espirituais descoladas da realidade social e que ele não
pode ser confundido com um líder político tradicional, fiel aos interesses e às
práticas dos coronéis. Por isso, quanto maiores a resistência do clero e a
intervenção das autoridades policiais, mais aumenta o número de seguidores do
peregrino.
Esta
capacidade de aglutinar pessoas e desafiar alguns aspectos da ordem social
transforma Antonio numa ameaça. Não por acaso, suas atividades no sertão baiano
são bruscamente interrompidas em Itapicuru quando a polícia efetua a sua detenção
sob a falsa acusação dele ter matado a própria mãe e a mulher que o havia deixado.
Imediatamente levado a Salvador, e daí para o Ceará, o peregrino é acompanhada
por um ofício enviado pelo secretário de segurança da Bahia, Vicente Paulo
Descals Teles, em 5 de junho de 1876, que reconhece implicitamente a
impossibilidade de sustentar as razões que levaram à sua prisão. Após descrever
o caso, o documento traz a recomendação de que, mesmo depois de comprovar sua
inocência, o Conselheiro seja impedido de voltar à Bahia, pois seu retorno
traria certamente resultados desagradáveis.
Constatada a
improcedência da acusação, já que a mãe havia morrido quando Antonio tinha 6
anos e a ex-esposa permanecia viva, a justiça do Ceará o absolve. Libertado, o
peregrino volta ao sertão da Bahia onde sua chegada é festejada pelos antigos
seguidores. Longe de desqualificá-lo perante a população, as falsas acusações e
a prisão o projetam como vítima inocente dos poderosos e acabam fortalecendo o
seu prestígio.
Na medida em
que as pessoas voltam a se avolumar em volta dele, as autoridades eclesiásticas
começam a ficar apreensivas. Em 1882, o arcebispo da Bahia proíbe aos católicos
de se reunirem para ouvir as pregações do Conselheiro, mas suas determinações
ficam sem efeito. A desobediência às ordens superiores não tem sua origem na
identificação dos padres com a pregação do peregrino, mas tão somente na aceitação
pura e simples de que é ele que as multidões querem ouvir e seguir. De um lado,
alguns sacerdotes procuram a convivência pacífica com ele ora para tentar obter
dividendos políticos, ora para garantir a reforma de cemitérios, capelas e a
realização de obras de caridade; e, de outro, como o Conselheiro nada pede para
si e, em seus sermões, promove batizados, casamentos, novenas, festas,
desobrigas e demais celebrações que aumentam os magros recursos das paróquias
do interior, não são poucos os padres que julgam contraproducente obedecer às
ordens do bispo.
Cinco anos
depois, a diocese da Bahia investe novamente contra o peregrino. Em 11 de junho
de 1887, uma carta enviada ao presidente da província, João Capistrano Bandeira
de Melo, traz um pedido de providências diante da necessidade de conter o
indivíduo Antonio Vicente Mendes Maciel que, pregando doutrinas subversivas,
faz grande mal à religião e ao Estado, distraindo o povo de suas obrigações e
arrastando-o após si. [3]
Se é verdade
que pouco sabemos sobre as pregações do Conselheiro, sobretudo, quanto ao seu
conteúdo e alcance no que diz respeito à projeção de uma sociedade igualitária,
é também verdade que as reações das autoridades locais, dos fazendeiros e dos
altos representantes da igreja oficial revelam não se tratar de um beato
qualquer ou de um pregador fanático. A elite demonstra saber que está diante de
alguém que, ao dialogar através da fé e da religião com as camadas mais pobres
do sertão, transforma o sonho de viver sem humilhações e sem sofrimentos num
movimento que faz a ordem de exploração vigente se sentir ameaçada pelos que
sempre haviam baixado a cabeça em sinal de resignada submissão”.
- “Mas, será
que isso basta para justificar uma intervenção armada contra o Conselheiro e
seus seguidores? – pergunta o secretário na tentativa de adiantar o expediente.
- “A gota que
faz o vaso transbordar – adverte Nádia sem alterar o tom e o ritmo do relato –
cai diante da reação do Conselheiro à elevada carga de impostos cobrada pelo
governo da República.
O primeiro
incidente ocorre em Chorrochó em cuja feira, de acordo com as normas legais, os
mercadores são obrigados a pagar dois impostos: um para expor os seus produtos
e outro para pesá-los e vendê-los. Valendo-se de sua autoridade, os oficiais
cobram a quantia de 100 Reis de uma sertaneja pelo uso de uma porção de terreno
onde vai colocar uma esteira que, na avaliação da própria vendedora, não vale
mais do que 80 Reis. Ao comentar o acontecido numa de suas pregações, o
peregrino assim descreve o sentido daquela ocorrência que, horas antes, havia
causado profunda revolta entre os feirantes: Eis aí a República, o
cativeiro, trabalhar somente para o governo. É a escravidão anunciada pelos
mapas [do recenseamento] que começa. Não viram a tia Benta [a vendedora
da esteira], é religiosa e branca, portanto a escravidão não respeita
ninguém. [4]
A condenação
pública da política fiscal republicana é apenas o prelúdio do que vai acontecer
em 1893, na Vila de Bom Conselho. Como em todo o interior da Bahia, na falta de
jornais, os editais que anunciam a cobrança dos impostos municipais são
afixados em painéis de madeira e expostos ao conhecimento público nas praças ou
em lugares onde costuma haver grande concentraçã
o de
pessoas.
Ao tomar
conhecimento dos mesmos, os conselheiristas arrancam as tábuas com os editais e
queimam tudo numa fogueira sob os olhares atentos das autoridades locais que
não têm policiais suficientes para reprimir o protesto. A insatisfação popular
contra o que a nova ordem política traz em termos de piora das condições de
vida ganha neste gesto de rebeldia a sua primeira expressão pública. Os
pronunciamentos do Conselheiro a este respeito levam a população de vários
municípios das redondezas a agir de forma parecida. Mesmo não sabendo quantos
povoados aderem a este movimento de desobediência civil e quanto tempo este
consegue resistir às pressões políticas e policiais, a queima dos editais constitui
uma transgressão da ordem que interpreta e materializa a demanda popular de
acabar com os impostos. Mas, para o poder constituído, destruir um bem público
e incentivar a população a desobedecer às autoridades é um delito que deve ser
punido com rigor.
Cientes da gravidade do
gesto, Antonio e seus seguidores abandonam a cidade. O governador da Bahia,
Rodrigues Lima, é prontamente avisado do acontecido pelo juiz de direito da
comarca, Arlindo Leone, que solicita o envio de tropas a fim de reprimir o
grupo. Atendendo ao pedido, 35 praças, bem armadas e treinadas, saem de
Salvador sob o comando do tenente Virgilio de Almeida ao qual é dada a ordem de
prender o Conselheiro e desbaratar sua gente que não passaria de umas 200
pessoas.
Confiando
numa vitória rápida, as forças oficiais atacam os rebeldes em Masseté, um
pequeno povoado entre Cumbe e Tucano. As informações relativas a este confronto
são poucas e imprecisas. O que se sabe com certeza é que, na noite de 26 de
maio de 1893, a tropa é desbaratada pelos conselheiristas com tiros de
bacamartes, porretes, facões e outras armas improvisadas.
A
corajosa resistência dos sertanejos é suficiente para garantir a vitória, mas
não para encerrar o episódio. Ao receber a notícia da derrota, o governador
solicita ao presidente da República, o Marechal Floriano Peixoto, ajuda federal
para combater os rebelados. Uma nova expedição com 80 soldados é montada às
pressas e enviada ao sertão baiano, mas, temendo que a repressão ao movimento
alastre ainda mais a inconformidade do povo do sertão, as autoridades decidem
interromper a marcha dos soldados.
Assustada
pelo potencial de desobediência civil dos fiéis sertanejos, a cúpula da igreja
católica da Bahia começa a se aproximar das autoridades do Estado republicano, duramente
criticado quando de suas primeiras medidas secularizantes, e dos coronéis, tão
incomodados quanto ela pelo movimento conselheirista.
Profundo
conhecedor do sertão, Antonio Conselheiro procura um lugar para viver com sua
gente. Após longa e penosa caminhada, o peregrino chega com seus seguidores na
Fazenda Velha, uma área praticamente abandonada nas proximidades do povoado de
Canudos".
- "Uma
espécie de terra de ninguém...".
- "Na
verdade - rebate a coruja ao parar diante do seu ajudante -, o lugar onde o
Conselheiro estabelece a sua comunidade pertence à baronesa de São Francisco do
Conde, cujas melhores terras estão na região do Recôncavo. Desconhecemos as
razões pelas quais ela não se dispõe a investir nesta área, mas não é difícil
supor que guardam estreita relação com a estagnação da economia baiana,
agravada pela ocorrência das secas e pela distância o litoral.
Situado a
cerca de 270 quilômetros de Salvador, o lugar é cercado por irregularidades do
relevo, por uma vegetação típica das regiões semi-áridas que, somada ao solo
seco e, às vezes, pedregoso, apresenta uma paisagem triste e monótona.
O estado em
que se encontra o povoado não contribui para melhorar a impressão de desolação
e abandono. De acordo com os estudiosos, o nome do arraial vem de uma planta
facilmente encontrada nas imediações e conhecida pelo nome de canudos-de-pito
por ser usada na fabricação de uma espécie de cachimbo fumado pelos moradores.
Em 1893, o local conta com cerca de 50 casebres, erigidos nas imediações de uma
velha igreja, que abrigam cerca de 250 pessoas envolvidas em atividades de
subsistência.
É neste
cenário nada animador que o líder religioso funda o arraial de Belo Monte, nome
que traduz e registra a esperança daqueles sertanejos cuja vida, até então, só
havia conhecido sofrimentos e tristezas”, conclui a ave deixando pairar no ar
um silêncio de reflexão e expectativa.
Cutucado pela
vontade de se ver livre do trabalho, o secretário não consegue frear a língua
que, sem fazer cerimônias, solta uma nova pergunta:
- “E...será
que vai dar pra saber logo o que vai ser deste povoado?”.
Impermeável a
qualquer tentativa de apressar o relato, Nádia pisca os olhos e se dirige a
passos lentos para a base da pilha de livros que se ergue num canto da mesa.
Senta. Recosta o corpo com o cuidado de quem procura a melhor posição e, ao
emitir um longo suspiro, diz:
- “A
impaciência não costuma ser boa conselheira quando dedicamos nossos esforços
para entender os movimentos sociais que marcam a história. Por isso, no lugar de
tentar se esquivar das tarefas que o aguardam, seria melhor se conseguisse
manter atentos os bilhões de neurônios de sua massa cinzenta. Digo isso porque,
em mais alguns instantes, vamos delinear as relações que se desenvolvem nesta
nova comunidade no próximo capítulo, cujo título é...”
3. De
Canudos a Belo Monte: a luta pela vida.
Sem dar o braço a torcer, o ajudante se ajeita na
cadeira. O seu rosto assume uma expressão irônica, típica de quem se prepara
para devolver com a mesma moeda uma repreensão considerada injusta.
Impenetrável,
a coruja observa atentamente cada um de seus movimentos com a simplicidade e a
firmeza oriundas de longas horas de estudo e pesquisa. Silenciosa, aguarda as
palavras que a boca humana está prestes a pronunciar. Um minuto depois, seus
ouvidos captam os tons maliciosos da nova questão:
-
“Nas páginas anteriores, você disse que o Conselheiro é um profundo conhecedor
do sertão nordestino. Mas, pela descrição de Canudos, parece que a Fazenda
Velha é um lugar inadequado à construção de uma comunidade que almeja ser um
sinal de esperança para aquele povo sofrido. Será que ele não enfiou o pé na
jaca ao escolher por sonho o que não passa de um pesadelo?”, questiona o
secretário ao secar as gotas de veneno que escorrem dos lábios.
-
“O que mais me impressiona nos bípedes da sua espécie é a extraordinária
capacidade de usar jacas como sapatos sem perceber o desconforto deste tipo de
calçados – retruca a ave num sorriso sério e desconcertante. Se a sua preguiça
crônica tivesse deixado você abrir um único mapa da região, já teria percebido
que, apesar da distância da estação ferroviária de Queimadas e da capital, o
arraial se encontra numa região por onde passam as estradas do Cambaio,
Calumbi, Massacará, Jeremoabo, Uauá e Juazeiro, Canabrava e Várzea da Ema. Ou
seja, Belo Monte será erguida num cruzamento de caminhos que, apesar das
dificuldades de acesso oferecidas pela caatinga e pelas montanhas que
atravessam, colocam o povoado em comunicação com os principais municípios das
redondezas e com o vale do rio São Francisco, abrindo reais possibilidades de
estabelecer relações comerciais.
Se
isso não bastasse, o terreno escolhido fica nas margens do rio Vaza-Barris que
entre dezembro e maio, período das chuvas, alcança os 100 metros de largura e
em cujo leito, no restante do ano, basta escavar de três a quatro palmos para
que a água surja do solo nas que os moradores locais chamam de cacimbas.
Nas
proximidades do arraial, é fácil encontrar o sal da terra, o salitre, em
quantidade suficiente para ser usado como tempero e como matéria-prima para os
curtumes que utilizam também a casca da favela, uma árvore tão abundante que
chega a dar o nome ao morro em cujo sopé são construídas as casas dos novos
moradores. As folhas desta mesma planta, depois de secas, perdem suas
características urticantes e são usadas na alimentação do gado.
Estas
condições, por si só, são suficientes para que Antonio Conselheiro use as
esmolas recebidas a fim de introduzir a criação de cabras na vida econômica de
Belo Monte. Por sua fertilidade e capacidade de adaptação, este animal oferece
não só leite e carne aos sertanejos, como uma importante fonte de renda através
da venda do seu couro. Não por acaso um número significativo de moradores vai
ser empregado na criação de cabras e nos curtumes cuja produção é
comercializada nos principais mercados da região.
|
A
propriedade coletiva da terra, das pastagens, dos rebanhos, das plantações e o
trabalho em mutirão são elementos essenciais para vencer as adversidades do clima.
Retirado o necessário para o sustento, os recursos oriundos da venda dos
excedentes, do comércio das peles de cabras e de parte dos salários recebidos
pelos moradores que se empregam nas fazendas vizinhas são depositados num fundo
comum destinado a manter a parcela da população que não tem condições de
subsistir dignamente pelo próprio trabalho.
Resumindo,
em Canudos, há quanto basta para viver em condições melhores do que as
anteriores na medida em que os poucos recursos disponíveis são potencializados
por uma organização econômica alicerçada na responsabilidade de cada indivíduo
pela manutenção da coletividade”.
-
“E isso funciona...?”, indaga o secretário em busca de algo que justifique suas
colocações anteriores.
-
“Tanto é verdade que funciona que, em pouco tempo, Belo Monte ganha fama de
terra da promissão. O consenso e a coesão das pessoas que vão se integrando à
comunidade são garantidos pela pregação religiosa do Conselheiro que define as
linhas gerais do comportamento da população. Ele próprio é quem resolve as
disputas internas e, embora temido, nunca emprega a violência como castigo. Além
da ausência de autoridades policiais, coronéis e cobradores de impostos, o fato
de ninguém passar fome, o medo de serem expulsos do povoado, a proibição dos
prostíbulos e das bebidas alcoólicas garantem a redução dos conflitos e a
manutenção de um clima de tranqüilidade e trabalho. Prova disso é que em Belo
Monte há uma cadeia que os moradores chamam de poeira por estar sempre
vazia.
Em caso de assassinato ou de alguém
que procura escapar da justiça escondendo-se na comunidade, o Conselheiro manda
que este indivíduo seja expulso e entregue às autoridades da comarca de Monte
Santo para ser julgado de acordo com a lei. Esta tentativa de manter uma relação
de boa vizinhança com o poder constituído cessa totalmente após a primeira
expedição militar contra Canudos e raramente se torna uma via de mão dupla. Nos
períodos que antecedem as investidas das tropas, muitos homens leais ao líder
de Belo Monte são presos pelas forças policiais acusados de vadiagem ou pela
simples suspeita de serem procurados por causas desconhecidas. É com ações
deste tipo que as autoridades pressionam ou manipulam os supostos réus para
que, ao acusarem outros membros da comunidade, dêem as razões de que a polícia
precisa para entrar no arraial. Com o tempo, essa postura ganha o apoio das
famílias mais abastadas da região que se encarregam de espalhar boatos a
respeito de supostos crimes cometidos pelos conselheiristas a fim de criar um
clima que justifique os abusos a serem cometidos.
Os
moradores de Belo Monte são livres de ir e vir e ninguém é obrigado a
participar dos momentos de oração coletiva. A vida sexual dos habitantes não é
rígida. O concubinato e as uniões livres são tolerados e bastante difundidos.
Casa quem quer e ninguém faz distinção entre mãe solteira e a que tem filhos
nascidos de uma união estável, entre um filho natural e um legítimo. Todos são
acolhidos e tratados sem discriminação.
Contrariamente
ao que costuma ocorrer no sertão nordestino, a educação das crianças ganha
grande importância no interior do povoado. Antonio Conselheiro funda duas
escolas e acompanha pessoalmente o ensino estendido aos adultos que desejam
aprender a ler e a escrever.
No
arraial, circula livremente tanto o dinheiro do Império como o da República.
Oriundo das doações dos novos moradores, que depositam no caixa comum mais da
metade de seus bens, de esmolas e do comércio realizado com os municípios das
redondezas, as duas moedas não têm serventia nenhuma no interior da comunidade.
Além dos princípios religiosos que dificultam a acumulação e a ostentação da
riqueza, as necessidades são supridas pela troca simples que dispensa o uso do
dinheiro. Por sua vez, a administração do povoado goza de tanto crédito que,
quando necessário para as compras nas cidades vizinhas, utiliza-se um vale impresso
por Antonio Vila Nova, o principal comerciante do arraial.
É
por este conjunto de fatores que os caminhos para Belo Monte se enchem de
crentes e peregrinos que querem viver na comunidade do Conselheiro. Entre eles
há brancos, negros, pardos, cafuzos, mamelucos, indígenas, ex-escravos,
oriundos de grupos étnicos e estratos sociais bastante heterogêneos. Homens e
mulheres de todas as idades e profissões são acolhidos sem distinção e
encontram aí refúgio e alívio para seus sofrimentos. Aos poucos, as casas
desordenadamente construídas chegam a ocupar uma área de 53 hectares. Em 1895,
a população oscila entre 5.000 e 8.000 habitantes. Feitas de barro e madeira,
as moradias têm cerca de 40 metros quadrados de área dividida em 2 ou 3
cômodos. Os móveis são rústicos e improvisados com pedaços de lenha. Os
alimentos são preparados num fogão feito de 3 ou 4 pedras alinhadas e
consumidos em pratos ou recipientes de barro, madeira ou folhas-de-flandres. Longe
de uma situação de luxo ou abundância, a luta pela vida em Belo Monte se dá sob
padrões bem conhecidos pelos pobres do sertão. A grande diferença é que no
arraial ninguém passa fome, não se recebem ordens dos manda-chuvas locais e a
solidariedade ajuda a vencer o desafio diário de derrotar as condições adversas
que, na antiga Canudos, produziam miséria e atraso”.
-
“Também, com alguém que tem uma guarda armada e se faz passar por messias não
deve ser difícil botar ordem na bagunça”, insinua o ajudante ao recuperar parte
da história oficial em tom de aberta provocação.
-
“Em primeiro lugar – retruca Nádia empenhada a frear a própria irritação -, a
chamada Guarda Católica, que constitui uma espécie de milícia permanente do
Conselheiro, não cumpre funções de polícia nem, muito menos, se dedica à
repressão com a finalidade de manter a ordem. Inicialmente composto por
ex-soldados e por aqueles que se destacam no uso das armas, este contingente é
destinado à proteção das igrejas, da casa do Conselheiro e dos próprios
moradores contra as agressões que podem vir de fora do povoado. Na medida em
que qualquer pessoa pode entrar e sair da comunidade e que as tropas oficiais
já atacaram os conselheiristas, nada impede que as elites e suas forças armadas
usem esta movimentação para organizar novas investidas. Daí a necessidade de
ter um grupo armado cuja prerrogativa é a defesa do arraial e não a repressão
interna.
O
número de pessoas que vai se dedicar às atividades militares aumenta após as
primeiras expedições contra Belo Monte e o armamento disponível (velhos
mosquetes e bacamartes usados para caçar, lanças, foices, estacas de madeira e
ferramentas agrícolas) ganha em número e qualidade graças à quantidade de
suprimentos bélicos deixada nos campos de batalha pelas tropas oficiais em
retirada.
Se
a organização interna caminha para a construção de uma sociedade igualitária,
isso se deve não só à liderança do Conselheiro que, como já disse, exerce um
papel fundamental, mas ao trabalho árduo de dezenas de pessoas. Entre os nomes
registrados pela história, está o de João Abade, um dos comandantes da Guarda
Católica, encarregado de acolher os recém-chegados e zelar pelo bem-estar dos
moradores como uma espécie de prefeito cuja autoridade e respeito vêm do
envolvimento ativo e criterioso na solução dos problemas coletivos.
Além
dele, temos Manoel Quadros, profundo conhecedor da flora medicinal. É ele quem
vai assumir o papel de curandeiro da comunidade, tomando conta da farmácia,
medicando os portadores de alguma enfermidade e mantendo informado o
Conselheiro sobre a situação dos doentes.
Antonio
Bento, mais conhecido por Bentinho, dedica o seu tempo às funções religiosas e
a percorrer diariamente a cidade para conversar com os moradores, conhecer suas
angústias e transmitir ao Conselheiro um quadro preciso do que está ocorrendo
em Belo Monte.
Para
as funções tipicamente militares, temos os Macambiras, ambos com o nome de
Joaquim. Pelo conhecimento que detêm das trilhas e caminhos do sertão, o pai
vai se destacar como hábil organizador de emboscadas e o filho pela ação
destemida na qual, com outros 10 combatentes, procura apoderar-se de um canhão
usado pelas tropas oficiais em ataques devastadores.
Ao
lado deles, Antonio Fogueteiro, aliciador de combatentes; Chico Ema que dirige
a rede de espionagem nos povoados por onde passam as tropas do exército; e
Pajeú, ex-soldado de linha, escolhido pelo Conselheiro para comandar as ações
militares nas quais se distingue sempre pela capacidade de orientar os homens
sob o seu comando, pela coragem e espírito de iniciativa nos momentos mais
difíceis.
Entre
as mulheres, Maria Francisca de Vasconcelos e Marta Figueira são as professoras
encarregadas de dirigir as duas escolas e, durante os conflitos, trabalham
incansavelmente para socorrer os feridos. Ao lado delas, encontramos Maria
Rita, de 18 anos, que troca a roupa de chita pelo traje de couro dos
combatentes e se destaca nos enfrentamentos pela coragem e pela pontaria, e Santinha
que organiza um piquete feminino devidamente armado para recolher os feridos e
levar para o arraial os cadáveres dos sertanejos caídos em batalha.
Enfim,
a construção de Belo Monte como comunidade ordeira e trabalhadora, pronta a
defender a vida que nela ganha as cores da igualdade e da autonomia, se torna
possível não só pelos fiéis ardorosos e abnegados que seguem o Conselheiro, mas
por um conjunto de pessoas que assumem esta tarefa e a ela se dedicam
integralmente”.
-
“E, quanto ao messianismo...?!?”, insiste o secretário num tom que insinua um
esquecimento proposital da coruja.
Nádia
levanta e caminha vagarosamente em sua direção. Em seguida, olha para o alto,
emite um longo suspiro e, fixando o olhar no ajudante, aponta a asa direita em
sua direção dizendo:
-
“A sua cabeça-de-vento está muito enganada se acha que estou me furtando a
entrar nesta discussão cujos elementos têm servido para desqualificar a
dedicação e o esforço popular despendidos na construção de Belo Monte.
Neste
sentido, não faltam interpretações que sublinham a existência entre os
conselheiristas da espera milenarista, ou seja, de uma crença numa idade futura
em que todos os males seriam corrigidos, as injustiças reparadas, as doenças
curadas e a morte já não teria poder algum. O fato de alguns moradores
acreditarem nesta visão de futuro não significa que o Conselheiro e Belo Monte
assumam o milenarismo como identidade que orienta a vida no arraial.
De
sua criação, em 1893, à sua destruição quatro anos mais tarde, não há elementos
para provar que os conselheiristas se consideram uma comunidade de eleitos à
espera da salvação. Apesar de ser um dos alicerces que garantem a união e a
coesão dos sertanejos, a vivência das práticas religiosas não está fundamentada
nesta visão de mundo e da história.
Do
mesmo modo, em todos os relatos da época, nas notícias dos jornais, nos
documentos oficiais, nos depoimentos e testemunhos de quem viveu ou ouviu falar
de Belo Monte, não há referência alguma a uma suposta liderança messiânica de
Antonio Conselheiro. Só na última expedição contra o arraial, os militares,
intrigados com a tenacidade da resistência dos moradores, procuram associar
esta reação inesperada a alguma forma de fanatismo religioso.
Em
seu trabalho jornalístico, o próprio Euclides da Cunha se depara com
depoimentos que o deixam intrigado na medida em que negam os pressupostos sobre
os quais fundamenta a sua leitura dos acontecimentos. Numa reportagem de 19 de
agosto de 1897, quando a guerra ainda está em curso, o autor de Os Sertões
transcreve as palavras de Agostinho, um garoto de 14 anos capturado durante os
enfrentamentos e levado a Salvador como prisioneiro. Após descrever as
principais figuras do arraial, a organização econômica da comunidade e outros
detalhes da vida em seu interior, o menino dá respostas que deixam de queixo
caído seus interlocutores. Diante delas, Euclides escreve: Terminamos o
longo interrogatório inquirindo acerca dos milagres do Conselheiro. Não os
conhece, não os viu nunca, nunca ouviu dizer que ele fazia milagres. E ao
replicar um dos circunstantes que aquele declarava que os jagunços mortos
ressuscitariam, negou ainda. Mas o que promete ele afinal aos que morrem? A
resposta foi absolutamente inesperada: salvar a alma. [5]
Com suas colocações, Agostinho põe em cheque os argumentos que apontam o
fanatismo religioso como a razão de ser da vida e da luta dos conselheiristas.
Se
isso não bastasse, analisando o conteúdo dos sermões do Conselheiro que
chegaram até nós, não é difícil constatar que suas reflexões não se distanciam
do catolicismo tradicional e não apresentam formas de messianismo. Neles
encontramos citações bíblicas e dos Padres da igreja, como Santo Agostinho, São
Tomás de Aquino e São João Crisóstomo, além da reafirmação de temas clássicos
do catolicismo como a importância da confissão, da missa e dos sacramentos que
não se distanciam da pregação da igreja oficial da época. O próprio Frei
Evangelista de Monte Marciano, enviado a Belo Monte com outros dois religiosos,
acaba referendando esta interpretação, ele que seria o maior interessado em
apresentar como herética a prática do Conselheiro para fortalecer os argumentos
das forças que se opõem ao arraial.
Resumindo,
podemos afirmar que o surgimento e a resistência de Belo Monte devem ser
procurados, de um lado, no fascínio exercido pela liderança do Conselheiro. O
seu exemplo e os profundos vínculos com a religiosidade do povo sofrido do
sertão transformam o arraial na concretização da esperança de vida e liberdade
do sertanejo, oprimido pelo latifúndio, pelo Estado e por uma igreja distante e
ausente. De outro, a resistência dos conselheiristas demonstra o quanto este
projeto é assumido por toda a população que está disposta a defender com o
próprio sangue as conquistas consolidadas em Belo Monte”.
Com
a testa apoiada na mão esquerda, o homem procura esconder a vergonha que seus
olhos revelam após as palavras da coruja. A direita ainda está traçando as
últimas linhas quando os lábios tentam redimir o secretário com uma nova
questão:
-
“Você acabou de falar da visita de um Frei a Canudos. Será que daria para
aprofundar um pouco mais este assunto...?”.
-
“Com certeza! – afirma prontamente Nádia para não fazer pesar no ajudante o
sentimento de mais uma derrota. No processo de reaproximação ao Estado
Republicano, a igreja baiana se dispõe a tentar esvaziar a comunidade que se
reúne em volta do Conselheiro.
Em
1895, Dom Jerônimo Tomé da Silva assume a direção da diocese da Bahia e recebe
do governador um ofício no qual o próprio Rodrigues Lima pede que seja
organizada uma missão religiosa com o objetivo de convencer o que ele chama de
fanáticos a desertarem do arraial e voltarem à obediência das leis e das
autoridades do país.
O
bispo aceita a incumbência e envia a Canudos uma missão formada por dois
capuchinhos italianos, Frei João Evangelista de Monte Marciano e Frei Caetano
de São Leo. Os religiosos chegam no dia 13 de maio e são cordialmente recebidos
pelo Conselheiro que os convida a conhecer as obras da nova igreja e os deixa
livres de realizar a missão religiosa da qual estão incumbidos.
O
abismo que separa as concepções dos freis do mundo sertanejo não aparece apenas
nas dificuldades do primeiro de se expressar em português e nos sermões prenhes
de ameaças celestiais, mas na própria forma de descrever as obrigações
religiosas. Ao falar sobre a necessidade do jejum, Frei João convida os
conselheiristas a agirem com ponderação, pois, nessas ocasiões, a igreja
permite o uso de líquidos em quantidade moderada, uma xícara de café pela manhã
e carne na janta. Os costumes do país de origem do religioso não lhe permitem
perceber que para sertanejos castigados pela seca e a fome, o que a igreja
oficial chama de jejum é, na verdade, um verdadeiro banquete.
Os
padres se dedicam a confessar, batizar e casar sem que a comunidade revele
sinais de rejeição. Os problemas começam quando eles passam a defender o
governo, condenam o fato dos conselheiristas não se submeterem às leis e às
autoridades, pregam contra as pessoas que andam armadas pelo arraial e
aconselham as famílias a abandonarem Canudos para voltar às terras de origem.
A
reação dos moradores é imediata. Um coro reafirma o apoio de Belo Monte ao seu
líder e o clima esquenta ao redor dos religiosos. A calma é restabelecida pela
pronta intervenção do Conselheiro disposto a evitar qualquer ato de violência
contra os freis, aos quais oferece todas as garantias necessárias para
continuarem a missão religiosa. Mas, no dia 20 de maio, os religiosos deixam o
arraial escoltados pela Guarda Católica que tem a missão de garantir sua
incolumidade.
Diante
do fracasso, Frei João transforma o relatório da missão num processo de
desqualificação da liderança do Conselheiro e da vivência dos moradores.
Insiste na necessidade de restabelecer no
povoado dos Canudos o prestígio da lei, as garantias do culto católico e os
nossos foros de povo civilizado. Para ele, a seita político-religiosa estabelecida e entrincheirada nos Canudos,
não é só um foco de superstição e fanatismo e um pequeno cisma na igreja
baiana; é, principalmente, um núcleo de aparência desprezível, mas um tanto
perigoso e funesto de ousada resistência e hostilidade ao governo constituído
do país. E conclui afirmando que é
aquilo um estado no Estado. [6] Em
português claro, para restabelecer a ordem, o poder público deve, urgentemente,
destruir Belo Monte.
Não
é necessário ser sociólogos ou cientistas políticos para entender que a
tentativa do Conselheiro de criar uma comunidade igualitária desperta o temor
das elites que vivem da exploração dos camponeses. A fama do líder carismático
está se espalhando por toda a Bahia e já atinge outros estados do nordeste. Ao
tornar-se um referencial para os pobres do sertão, a antiga Canudos se
transforma numa ameaça real para os representantes do poder local e regional,
temerosos que as idéias e o exemplo de Belo Monte possam dar vida a outras
comunidades.
Diante das
pressões que se avolumam, o conflito violento parece inevitável. É disso que
vamos tratar no quarto capítulo ao falar de...”
4. As primeiras expedições contra Belo
Monte.
-
“Bom, Nádia, costuma-se dizer que, para começar, toda guerra precisa de um
pretexto – afirma o secretário ao deixar no ar um clima de expectativa. Como é
que a elite vai justificar um ataque armado contra sertanejos pacíficos que
trabalham para viver em paz?”.
-
“A justificativa para a primeira expedição contra os conselheiristas será
oferecida pelo juiz de direito Arlindo Leone, o mesmo que havia assistido
impotente à destruição dos editais que anunciavam a cobrança de impostos.
Em
outubro de 1896, o Conselheiro está prestes a terminar a nova igreja do
arraial, destinada a abrigar o crescente número de moradores e visitantes de
Belo Monte. Com as paredes prontas, o líder envia Joaquim Macambira a Juazeiro
para negociar com o coronel João Evangelista Pereira de Melo a compra das
madeiras para o telhado. Paga a quantia necessária, espera que o material seja
despachado pelo rio São Francisco até Jacaré, onde seria retirado e levado a
Belo Monte pelos conselheiristas.
Alegando
falta de gente para transportar a carga, o coronel não entrega a mercadoria na
data marcada. Desejando terminar logo a construção, o Conselheiro manda avisar
que, se o problema é a falta de pessoal, ele enviaria o seu povo para retirá-la
em Juazeiro. Não há nada que aponte no líder uma atitude de ameaças, mas tão
somente de cobrança e cumprimento de um acordo comercial.
Todavia,
as suas palavras são maldosamente interpretadas não pelo coronel, mas sim pelo
juiz Arlindo Leone que, há tempo, queria dar uma lição aos conselheiristas. A
notícia da vinda para Juazeiro é transformada em boato pelo qual o próprio
Conselheiro estaria se dirigindo à cidade à frente de homens armados para uma
expedição punitiva que castigaria o juiz e saquearia o comércio. Aproveitando-se
do temor que se apodera dos moradores, o juiz pede ao governador Luiz Viana que
tome providências imediatas para defender Juazeiro desta ameaça de invasão.
A
resposta do governador, porém, não atende aos desejos de Leone, pois o primeiro
promete o socorro militar necessário só no caso dos boatos virem a se
confirmar. Inconformado, o juiz procura o general Frederico Sólon Ribeiro que
envia um contingente de 100 soldados sob o comando do tenente Manuel da Silva
Pires Ferreira com a ordem de agir conforme a orientação do próprio juiz.
A
tropa desembarca em Juazeiro no dia 7 de novembro de 1896 e encontra a cidade
em polvorosa, com muita gente querendo sair dos arredores por acreditar que os
enfrentamentos seriam iminentes. Mas, cinco dias depois, não há o menor sinal
nem do líder de Belo Monte, nem dos supostos jagunços que estariam a caminho
com o intuito de devastar a cidade.
Arlindo
Leone está em maus lençóis. Não só o ataque conselheirista não havia ocorrido,
como nada aponta que este possa se realizar. Por sua vez, Pires Ferreira não
quer voltar a Salvador de mãos abanando, sem a honra de uma vitória sobre os
revoltosos e tendo que confessar a inutilidade da expedição.
Ciente
de poder contar com o apoio de Sólon, a saída encontrada pelo juiz parece
resolver o problema de ambos: já que o inimigo não aparece, é necessário
procurá-lo em sua toca. Ou seja, se os conselheiristas não vão até Juazeiro,
será a tropa que aí se encontra a marchar em direção a Canudos.
Despreparada,
sem conhecer a região e tendo que enfrentar cerca de 200 quilômetros de terreno
hostil e despovoado bem na época do estio, a expedição sai da cidade em 12 de
novembro de 1896. Uma semana depois, o contingente chega em Uauá, cidade cujos
habitantes, em sua maioria partidários do Conselheiro, não vêem com bons olhos
a presença dos militares e, antes da chegada destes, se refugiam em Belo Monte
levando informações preciosas sobre as tropas.
Na
madrugada do dia 20, uma procissão de algumas centenas de pessoas se aproxima
de Uauá rezando, cantando e carregando uma grande cruz de madeira acompanhada
pela bandeira do divino.
Temendo
uma emboscada, os soldados reagem disparando ininterruptamente contra a
multidão. Os conselheiristas reagem. A Guarda Católica, armada de bacamartes,
pistolas, facas, facões, foices, forquilhas de madeira e machados dirige o
ataque servindo-se de apitos com os quais comanda a execução de suas manobras.
Os
enfrentamentos se prolongam por mais de cinco horas. Os soldados esgotam suas
munições, mas conseguem repelir os conselheiristas que, de acordo com algumas
fontes, deixam mais de 70 mortos e amargam um elevado número de feridos. Apesar
da vitória, Pires Ferreira ordena a retirada temendo a chegada de possíveis
reforços frente aos quais os militares cansados, sem víveres e sem munições não
teriam condições de opor resistência.
Antes
de deixar Uauá, os soldados saqueiam as casas, apanham dinheiro e objetos de
valor e, em seguida, incendeiam a cidade para castigar a população que havia se
mostrado hostil à sua presença. Em marcha forçada, a tropa volta a Juazeiro,
faminta, com o fardamento rasgado e frustrada por ter sido obrigada a uma
retirada humilhante”.
-
“O que não consigo entender – diz o secretário ao abrir os braços – é como uma
procissão pode derrotar um contingente do exército...?”.
-
“Simples! – responde a coruja sem pestanejar. O fato é que não se trata de uma
procissão de beatos fanatizados prontos a combater confiando só na proteção
divina, sem táticas e instruções militares. De acordo com alguns historiadores,
é difícil acreditar que idosos, mulheres e crianças tenham vencido a centena de
quilômetros que separa Belo Monte de Uauá a passo de procissão para enfrentar
um combate com tropas armadas de fuzis a repetição. Para eles, a hipótese mais
provável é que, sabendo da aproximação e da intenção dos militares, o
Conselheiro tenha decidido enfrentá-los num ataque inesperado fora do reduto.
Desta forma, o grosso da procissão seria formado pela Guarda Católica integrada
por um núcleo militar disciplinado e selecionado, em volta do qual se articulam
as pessoas aptas a participar de um enfrentamento armado”.
-
“Se, apesar de recuar, os conselheiristas conseguem fazer o exército se retirar,
os comandos militares não devem se conformar com uma situação tão incômoda...”,
indaga o ajudante ao prever o futuro desenrolar dos acontecimentos.
-
“Você tem razão – confirma a ave ao fortalecer as palavras com o menear
afirmativo da cabeça. A derrota da expedição capitaneada por Pires Ferreira
repercute intensamente no sertão e chega a ter ressonância nas grandes cidades
do país. Raras vezes, as forças repressivas do Estado haviam sido derrotadas. A
tradição de vitórias fáceis com a fuga dos revoltosos e a prisão dos líderes é
substituída por um enfrentamento no qual são os sertanejos a tomarem a
iniciativa.
Os
acontecimentos de Uauá não só elevam a popularidade do Conselheiro e a autoconfiança
da população de Belo Monte, como aumentam as levas de migrantes que se dirigem
ao reduto. Ao informar os superiores sobre a situação na cidade, o delegado de
polícia de Pombal diz: A população deste
município e dos limítrofes ficarão reduzidas a menos da metade, tendo em vista
os numerosos grupos que têm saído em direção a Canudos. (...). Todos os dias
chegam a esta vila notícias verdadeiras trazidas por pessoas que moram à margem
das estradas que conduzem a Canudos, da passagem de grandes grupos de homens
armados, que se dirigem para ali, no empenho por eles confessado de se baterem
e morrerem pelo seu Bom Jesus. [7]
Enquanto
o governador da Bahia ainda julga ser possível encontrar uma solução pacífica,
o general Frederico Sólon não aceita que o exército da República tenha sido
vencido pelo que ele considera não passar de um bando de jagunços. No seu
entender, em Uauá, a Pátria e a República haviam sido derrotadas e isso torna
necessária uma ação punitiva rápida e esmagadora.
Com
base nestas ponderações, é organizada uma segunda expedição sob o comando do
major Febrônio de Brito. O contingente conta com 600 homens, 3 metralhadoras,
fuzis a repetição, dois canhões e mais de um milhão de cartuchos, munição
suficiente para matar toda a população baiana da época.
Certa
da vitória, a coluna deixa Queimadas em 12 de janeiro de 1897. A intenção do
major é de chegar em Canudos o mais rapidamente possível e, por isso, opta pela
estrada que atravessa a serra do Cambaio, caminho mais curto, mas certamente
mais difícil. Para acelerar a marcha, deixa em Monte Santo um terço das
munições e não se preocupa em angariar maiores quantidades de mantimentos junto
aos proprietários locais. No entender de Febrônio, a destruição de Belo Monte
seria um passeio.
Cientes
da impossibilidade de enfrentar as tropas em campo aberto, os conselheiristas
adotam uma nova tática: aproveitar os acidentes do terreno para desgastar a
tropa e desferir o golpe final antes que a mesma chegue no arraial. Armados de
espingardas antigas, os piquetes sertanejos usam pontas de chifre, seixos
rolados e pontas de prego como projéteis. Divididos em grupos de 20 a 30
homens, esperam os soldados em pontos previamente estudados do terreno nos
quais a caatinga e as montanhas oferecem abrigos naturais de onde é possível
atacar de surpresa para, em seguida, se retirar em segurança. Desta forma, os
revoltosos atacam duas vezes as tropas oficiais que, ao verem a sua retirada,
acreditam ter conseguido impor uma derrota.
Na medida em
que as munições já não são tão fartas e os víveres começam a ficar escassos, os
oficiais se vêem forçados a apressar a marcha. Cansados e famintos, os soldados
se aproximam de Belo Monte. Antes de avistar o povoado, são recebidos a tiro
pelos conselheiristas que, aproveitando as trincheiras naturais formadas pelo
terreno acidentado, desfecham o ataque definitivo.
Contando com
um número reduzido de armas de fogo e munições, os sertanejos só dispararam
contra os soldados que estão a descoberto e ao alcance de seus fuzis
rudimentares. Para driblar a dificuldade de recarregar os bacamartes, se reúnem
em grupos de 3 a 4 combatentes. Enquanto um atira, os demais, sentados no fundo
da trincheira, preparam as armas para um novo disparo e, caso o atirador venha
a ser atingido, um deles está pronto a substituí-lo.
Diante
da intensidade do tiroteio, os soldados do exército são levados a crer que o
Conselheiro conta com 4.000 homens armados (quando, na verdade, estes não
passam de algumas centenas) e que cada sertanejo atingido volta a reerguer-se
invulnerável e terrível para continuar a luta. Em meio à poeira e à fumaça
levantadas pelos disparos dos canhões, os militares não percebem que a
apontarem novamente a espingarda contra eles não é o atirador recém-baleado,
mas sim um companheiro de luta que acaba de assumir o lugar deste entre as
pedras que servem de trincheira.
A
lenda do que passa a ser conhecido como atirador
fantástico se espalha e abate o moral da tropa que, castigada pela fome e
com poucas munições, vê a retirada como única saída possível. Durante a viagem
de volta, os homens de Febrônio são atacados pela última vez em Bendegó de
Baixo. Abatida física e psicologicamente, a expedição alcança Monte Santo em
condições lastimáveis.
Os
sertanejos conseguem uma segunda vitória. As notícias dos enfrentamentos atraem
para Belo Monte um número ainda maior de pessoas que chegam esperançosas e
alegres de poder fazer parte do arraial.
Enquanto
isso, tanto o governo da Bahia, como o Comando do Exército, concordam que é
preciso organizar sem demora uma expedição capaz de dar uma lição definitiva
aos insubmissos moradores de Belo Monte. A pessoa escolhida para dirigir as
operações militares é o coronel paulista Antonio Moreira César”.
-
“Esse que é o tal corta-cabeças?”.
-
“Exatamente! Corta-cabeças é a alcunha que Moreira César havia recebido pelas
desumanidades praticadas durante a repressão da Revolução Federalista, em Santa
Catarina. Militar prestigiado, o coronel tem o perfil que se encaixa
perfeitamente nos planos de destruição que estão sendo preparados pela elite.
Cabe a ele comandar 1300 homens armados com 6 canhões Krupp, pistolas e fuzis a
repetição, além de 16 milhões de cartuchos e 73 tiros de artilharia. Com este
arsenal e confiante na experiência acumulada, Moreira César vê Canudos como um
levante banal que pode ser facilmente esmagado e, ao mesmo tempo, como a
ocasião para fazer da vitória o trampolim que lhe assegura um papel de destaque
no campo político e militar.
À
frente de suas tropas, o coronel alcança Monte Santo em 18 de fevereiro de
1897. Na cidade, sofre um ataque epilético que voltará a se repetir quatro dias
depois. Desta base de operações, o contingente segue para Cumbe e, em seguida,
parte rumo a Belo Monte em marchas forçadas de dez quilômetros diários pelos
difíceis caminhos do sertão. Em 2 de março, a coluna alcança Rancho do Vigário,
a 19 quilômetros de Canudos, de onde sai no dia seguinte em direção ao povoado.
Apesar de ter sofrido ataques esporádicos de destacamentos conselheiristas, os
militares não amargam perdas significativas.
Enquanto
a terceira expedição está a caminho, Antonio Conselheiro toma as medidas
necessárias para defender o reduto. Com a ajuda de seus principais combatentes,
manda abrir trincheiras nos lugares que julga serem mais indicados e fortalece
os pontos cruciais com pedras justapostas deixando entre estas o espaço
suficiente para que os atiradores possam fazer passar os canos dos fuzis. Além
disso, escolhe algumas áreas onde os arbustos são mais altos e frondosos, os
espinheiros mais densos e os capinzais podem servir de esconderijos
improvisados. Trata-se de transformar a caatinga em aliado que permita aos
sertanejos atacarem de surpresa e fugirem sem serem vistos. Diante do poder de
fogo do inimigo e da escassez de munições, a ordem entre os conselheiristas é
de atirar só quando se tem certeza de não perder o disparo alvejando de
preferência os oficiais facilmente distinguíveis pelas insígnias militares.
|
Após
pesado bombardeio da artilharia, a infantaria começa a se dirigir ao arraial.
Alguns soldados chegam a penetrar numa parte da cidade, quando, de repente,
encontram-se em meio a um intenso tiroteio que provoca pesadas baixas. Na
tentativa de alterar o rumo dos combates, Moreira César ordena uma carga de
cavalaria. Mas esta, ao entrar nos becos estreitos do arraial, se torna alvo
fácil dos conselheiristas. Desapontado, o coronel acredita poder salvar o
ataque com sua presença à frente dos soldados. Montado a cavalo, parte para a
zona de combate, mas antes de alcançar o seu destino, é atingido por um disparo
e acaba morrendo. Diante dos acontecimentos, os oficiais ordenam a retirada.
Ao
tomar conhecimento do falecimento do comandante, os soldados se apavoram e
iniciam uma fuga desordenada para escapar dos conselheiristas que começam a
persegui-los. No desespero, tiram as fardas para não serem identificados e
abandonam tudo o que representa um peso para a marcha. Pouco a pouco, os
caminhos percorridos pela terceira expedição se enchem de cadáveres, fardas,
fuzis, munições e pertences dos militares. Ao todo, os conselheiristas
conseguem apreender mais de 300 armas e 34 caixas de cartuchos. O arsenal
destinado a transformar em pesadelo o sonho de uma vida melhor, será usado
agora para defender Belo Monte”.
-
“O que não consigo entender – comenta o secretário ao coçar a cabeça – são as
razões pelas quais tropas numericamente superiores e bem armadas são derrotadas
por sertanejos que lutam com armas rudimentares...”.
-
“A resposta à sua indagação deve ser procurada, de um lado, nos erros dos
comandos militares e, de outro, na motivação que anima os combatentes.
Os
relatórios dos oficiais que chefiam as operações no campo de batalha são
unânimes em afirmar que o fuzil Mannlicher, uma das principais armas em dotação
do exército não funcionou de acordo com o esperado. Apesar da capacidade de
penetração do seu projétil, do alcance e da precisão de tiro, vários de seus
componentes se revelaram extremamente frágeis e transformaram uma arma a
repetição numa carabina de tiro único ou até mesmo num mero suporte para a
baioneta.
Se
o armamento não inspirava confiança, o fardamento não era nada adequado à vida
nos sertões. Enquanto a roupa de couro dos conselheiristas resistia sem
problemas aos espinhos e demais obstáculos das caatingas, além de se disfarçar
facilmente no ambiente circunstante, as fardas de tecido colorido acabavam
cortadas ou rasgadas pela vegetação e não havia maneira de fazer com que
pudessem ser mimetizadas.
Sem
conhecer a região, sem estudar o terreno e as características do inimigo, os
comandantes se deixaram levar pelas opiniões das autoridades que acreditavam
poder dominar facilmente os conselheiristas e destruir o seu reduto. Enquanto
os sertanejos mudavam de tática a depender das condições do enfrentamento e
realizavam ações próprias da guerrilha, as tropas oficiais se comportavam como
se estivessem enfrentando uma guerra convencional onde o desfecho vitorioso
costumava ser conseguido pela carga de baionetas. Ninguém pensava em se
infiltrar nas linhas inimigas, nem de aproveitar os acidentes do terreno, e as
instruções oficiais ordenavam que ninguém podia procurar abrigo durante os
assaltos e os ataques. Esta concepção da guerra acabava expondo sobremaneira os
soldados aos tiros dos conselheiristas entrincheirados sem que a artilharia
pudesse socorrer as colunas oficiais.
A
fome e as dificuldades de abastecimento podem ser explicadas pelo fato do
Exército não ter nesta época a preocupação permanente de garantir linhas de
suprimentos. Esperava-se poder improvisar tudo e, desta forma, poucos se
atentavam ao fato de que seria impossível encontrar alimento e transporte para
centenas de homens em pleno sertão.
Ainda
que as expedições reunissem efetivos cada vez maiores, os batalhões eram
formados por pessoas literalmente catadas a laço em todo o território nacional.
A falta de instrução e treinamento adequados fazia com que boa parte dos praças
não conseguisse suportar os rigores do clima quente e a alimentação precária.
Se isso não bastasse, os soldados rasos recebiam um soldo miserável (quase
equivalente ao preço de um par de sapatos) e muitos recrutas haviam sido
enganados ou alistados à força. Acrescente agora o fato de que parte deles era
partidária ou simpatizante do Conselheiro e verá que não é difícil entender nem
o grande número de desertores, nem o fato da disciplina ser mantida só na base
de castigos rigorosos.
Por
outro lado, os sertanejos de Belo Monte, profundos conhecedores da região,
conseguiam transformar as adversidades da natureza em poderoso aliado de suas
forças e, graças à constante adaptação de suas formas de luta, multiplicavam a
capacidade de combate enfraquecendo o inimigo com ataques rápidos e
inesperados. Mas o elemento central em volta do qual se movimenta toda a sua
mobilização e preparação militar está no fato de que, à diferença dos soldados,
eles se batem por um ideal. O heroísmo e o sacrifício que se manifestam em cada
combate revelam que os conselheiristas estão cientes de que, naquela guerra,
não há um possível caminho do meio. Ou eles saem vitoriosos ou são
definitivamente destruídos”.
Pronunciadas
as últimas palavras, Nádia deixa que o silêncio permita ao seu ajudante terminar
de escrever.
Com
o queixo apoiado na mão esquerda, o secretário percorre com os olhos as
reflexões da coruja. Tudo parece sugerir um acirrar-se dos enfrentamentos.
Cutucada pela curiosidade, a língua solta um “Pelo visto, a coisa vai
esquentar...” que devolve à ave o comando da situação.
-
“E muito – confirma Nádia em tom de pesar. As vitórias conseguidas não impedem
que contra Belo Monte já tenha sido decretada uma sentença de morte. A decisão
de arrasar o reduto ganha novas dimensões com o passar dos dias. As elites não
têm tempo a perder e, poucas semanas após a derrota da terceira expedição,
preparam uma quarta, bem maior e melhor aparelhada. É sobre ela que vou falar
no próximo capítulo ao relatar os caminhos que preparam...”
5. O massacre de Canudos.
Compenetrada,
a coruja pisca os olhos, franze a testa e gesticula com a expressão típica de quem
costura a memória de datas, personagens e acontecimentos. Instantes
intermináveis fustigam o desejo humano de conhecer o fim desta história.
Mergulhada
em seus pensamentos, Nádia dá as costas ao seu ajudante enquanto os sons
indecifráveis que saem do seu bico parecem resgatar do passado o que o presente
teima em desconhecer. De repente, ergue a asa, gira o corpo e fixando o olhar
nas folhas empilhadas debaixo da caneta afirma decidida:
-
“Após a derrota da terceira expedição, a elite se apressa em mudar a razão
oficialmente apresentada para explicar sua guerra contra os sertanejos de Belo
Monte. Enquanto se intensificam os preparativos para mais uma investida do
exército, Canudos deixa de ser considerado um foco de ladrões e assassinos para
ser transformado no maior inimigo da República. Num movimento que acompanhará,
passo a passo, os fatos produzidos entre março e outubro de 1897, jornais,
peças de teatro e intervenções públicas das autoridades apresentam Belo Monte
como símbolo do retrocesso, da ignorância, do atraso, de tudo o que se opõe aos
ideais iluminados da República e cuja destruição se faz necessária para vingar
a honra nacional pisoteada. Motivo de sátira e gozação, o arraial transforma-se
em assunto do dia e a guerra passa a ser utilizada até mesmo como motivo de
propaganda para vender sapatos e bilhetes da loteria.
Os
jornais das principais cidades brasileiras não poupam tinta para denunciar o
caráter monarquista de Belo Monte e sublinhar o perigo que os sertanejos
representam para a ordem republicana. Dia após dia, são fabricadas e veiculadas
imagens aterradoras sobre o arraial e o armamento utilizado pelos rebeldes,
acusados de empregar balas explosivas como munição para seus modernos fuzis.
Cartas
apócrifas, atribuídas a supostos apoiadores do Conselheiro, são publicadas para
provar a existência de um complô monarquista para a restauração da ordem
imperial. O líder oculto desta trama seria o Conde d’Eu, marido da Princesa
Isabel e genro de Dom Pedro II, auxiliado por grupos como a Unión Internacional
de los amigos del Império no Brasil e o Comitê Imperialista. As operações
bélicas do arraial estariam sendo sustentadas com recursos vindos do exterior,
através de simpatizantes sediados em Argentina, Portugal, Inglaterra, França e
Estados Unidos.
Estas notícias
dão origem a uma onda de revolta contra os defensores do antigo regime. Redações
de jornais monarquistas do Rio de Janeiro e São Paulo são destruídas e alguns
de seus diretores e redatores assassinados. Em Petrópolis, o palácio que havia
servido de residência à Princesa Isabel é apedrejado por manifestantes apesar
de, há muito tempo, estar sendo ocupado pela delegação russa, o que provoca um
acidente diplomático entre os dois países.
Pouco a pouco,
a ficção toma conta da realidade e assume o papel de verdade dos fatos. Na
confusão que se cria, basta ser baiano para ser apontado e execrado como
monarquista e conselheirista. Antonio Vilanova, Pajeú, João Abade e, sobretudo,
Antonio Conselheiro, transformam-se em personagens familiares da política
nacional. Seus nomes são seguidamente citados pelos jornais, nas passeatas e
nas tribunas das grandes cidades como inimigos da República e da civilização.
De matéria em matéria, de discurso em discurso, a elite trabalha a idéia de que
o Exército é o instrumento do progresso que, em determinadas situações, precisa
da força para se consolidar e vencer os instigadores do atraso. De forma aberta
ou disfarçada, os poderosos demonizam Belo Monte para justificar uma decisão já
tomada: a destruição de Canudos.
- “Nádia, será
que na prática e nos discursos do Conselheiro não há nada mesmo que justifique
as posições apresentadas como opinião pública?”, indaga o homem desconfiado.
- “Na verdade
– responde a coruja ao apoiar a asa no ombro do secretário -, há sim alguns
elementos cuja distorção parece dar razão às elites. No início do relato, falei
do processo de implantação da República e do que este implica para o povo
simples em termos de dessacralização do Estado, cobrança de impostos e exclusão
da vida política do país para grandes camadas da população.
Acontece que,
diante da visível piora das condições de vida, o passado vivido sob o antigo
regime acaba sendo lembrado como essencialmente bom ao passo que os problemas
do presente são invariavelmente associados à nova forma de governo. A
República, na visão de mundo dos sertanejos, veio para quebrar a ordem pela
qual o poder vem de Deus e, ao viabilizar medidas que pioram a existência dos
de baixo, passa a ser vista como a personificação do mal.
Diante do
mundo virado de cabeça pra baixo, entre os próprios conselheiristas ganha
alguma expressão a esperança do retorno do rei português Dom Sebastião, cujo
reinado seria de paz, justiça e prosperidade para todos. Esta crença, surgida
em Portugal durante o século XVII, é introduzida no Brasil ao longo do período
colonial e passa a ser incorporada no imaginário e nas tradições sertanejas
dando origem a vários movimentos de resistência, sistematicamente reprimidos a
ferro e fogo pelo exército do próprio império”.
- “E quem é
esse tal de Dom Sebastião?”
- “Trata-se do
último rei da dinastia Avis, morto na batalha de Alcácer Quibir, em Marrocos,
quando chefiava uma expedição militar contra os mouros, em 1578. Dois anos depois
da derrota, o reino e os domínios portugueses são anexados à coroa espanhola. A
perda da independência nacional, marca o início de um período de grande crise nas
terras européias de Portugal.
Inconformados
com a nova situação, os lusitanos alimentam a esperança no retorno do monarca,
mesmo após a reconquista da independência diante da Espanha. O mito de que o
rei desaparecido desencantaria antes do juízo final e transformaria Portugal
num império universal se desenvolve entre os séculos XVII e XIX e nele se
expressam os anseios populares de uma vida melhor.
Agora, uma
coisa é dizer que versículos e poemas, recolhidos após a destruição de Belo
Monte, registram a presença deste sentimento de espera messiânica, que os
estudiosos chamam de sebastianismo, e outra, bem diferente, é afirmar que a
concepção de monarquia no meio popular da região é a mesma que se faz presente
entre políticos e intelectuais de São Paulo e Rio de Janeiro, adeptos do
monarquismo.
No que diz
respeito à figura do Conselheiro e à sua pregação não há nenhuma registro que
indique a crença no retorno de Dom Sebastião ou que aponte para a restauração
da monarquia no Brasil. Católico convicto, o líder de Belo Monte vê a República
como uma ameaça direta à religião e, ao não reconhecer a legitimidade do novo
regime, não admite a autoridade republicana sobre os impostos e a política.
Crítico da escravidão, perseguido pelas autoridades do império e conhecedor das
contradições que marcam presença no sertão nordestino, o Conselheiro não tem
nenhuma razão para desejar a volta do antigo regime e nem soma forças com os
defensores deste. Ao contrário, diante do acirrar-se dos conflitos e do crescente
peso da exploração, funda uma comunidade que se torna uma pedra no sapato até
mesmo para os interesses dos antigos administradores do Estado, entre os quais não
há voz que se levante em defesa de Belo Monte.
Resumindo,
para que a destruição de Canudos seja recebida como natural e necessária, os
formadores de opinião transformam sertanejos em jagunços; povo simples que
trabalha em busca de um futuro melhor em ameaça ao progresso da nação; pessoas
que fazem da sua religiosidade o elemento de identidade sobre o qual constroem
relações de igualdade em fanáticos e alucinados; homens e mulheres que, apesar
das carências, erguem uma comunidade onde ninguém passa fome em inimigos da
civilização. Diante do espelho das elites, a imagem que aparece aos olhos
distantes da vida no sertão não é a da realidade, mas tão somente o reflexo
que, apesar das aparentes semelhanças, permite ver apenas o contrário do que,
de fato, existe”.
- “Quer dizer
que, enquanto a nação é fascinada por pomposas declarações, os de cima costuram
e aprimoram a trama que garante a manutenção de seus interesses?!?”
- “Exatamente
– confirma a ave com a asa levantada. A tarefa de restabelecer a ordem no
sertão de Canudos é entregue ao general Artur Oscar de Andrade Guimarães. Das
lições aprendidas nas derrotas anteriores, o militar planeja a formação de duas
colunas: uma que se dirige a Canudos pelo sul, saindo de Monte Santo; e outra
que, vinda de Aracaju, chegaria no arraial através da estrada de Jeremoabo.
As tropas
alcançam Belo Monte no final de junho de 1897 numa viagem marcada por
confrontos de pouca importância. O seu deslocamento é acompanhado pelos olhos
atentos dos sertanejos que se infiltram nos povoados por onde passam os
soldados, acompanham os batalhões em sua marcha pela caatinga e até prestam
alguns serviços para ganhar a confiança dos militares e poder extrair
informações que ajudem a preparar a defesa do arraial.
Ao falar sobre
o assunto, Alfredo Silva, correspondente do jornal A Notícia, do Rio de
Janeiro, relata: o general Barbosa, em
Monte Santo, comprava ovos de preferência a um sertanejo que fornecia-os por
preço muito menor que outro qualquer. Em um ataque feito pelos jagunços à
artilharia, as nossas forças vitimaram oito e verificando o general os
cadáveres reconheceu em um deles o seu fornecedor. Duvidando, chamou o seu
ajudante de ordens, que também o reconheceu! Eis as condições em que se acha o
exército, espiado em toda parte por emissários de Antonio Conselheiro, muitos
dos quais, segundo afirmam, servem dedicadamente em diversos serviços. [8]
O primeiro
combate significativo se dá no morro da Favela. O exército conquista o terreno
palmo a palmo e impõe várias baixas aos sertanejos. Mas logo a situação se
inverte. Os conselheiristas cercam o lugar onde os soldados estão posicionados,
cortam suas linhas de abastecimento e, com as tropas na alça de tiro de seus
fuzis, colocam a coluna de Artur Oscar diante da possibilidade de mais um
desastre. Ao perceber que caiu numa armadilha e que lhe restam poucas munições,
o general organiza a defesa na tentativa de resistir até a chegada de reforços.
A coluna
comandada pelo general Cláudio de Amaral Sevaget também não tem vida
fácil. Atingida por um pesado ataque
conselheirista na serra de Cocorobó, não tem condições de socorrer as tropas do
colega de armas.
No dia 13 de
julho, chegam os reforços comandados pelo coronel Joaquim Manuel de Medeiros.
Os comandantes se reúnem para discutir a condução das operações militares e
decidem lançar um novo ataque ao reduto. Cinco dias depois, Belo Monte é
fustigado por um intenso bombardeio de artilharia contra o qual os sertanejos
nada podem fazer. Apoiados pela cavalaria, os soldados marcham em direção ao
arraial e chegam a ocupar um pequeno subúrbio de umas 300 casas, mas,
impossibilitados de continuar o ataque, se retiram em condições desastrosas.
Artur Oscar
confessa a derrota e solicita um reforço de 5.000 homens além de suprimentos
adicionais para seus soldados. No momento, só lhe resta organizar a defesa,
manter a disciplina da tropa faminta e aguardar que os novos contingentes
ajudem a alterar a sorte da expedição.
Sabendo não
poder enfrentar o exército em campo aberto, os rebeldes de Belo Monte optam por
uma estratégia aparentemente desordenada, mas muito eficiente. Em pequenos
grupos, atacam os comboios com os suprimentos e atingem pontos determinados da
tropa com o intuito de eliminar seus comandantes e provocar a debandada dos
destacamentos. Durante a noite, investem de surpresa contra os acampamentos
militares matando alguns soldados e tentando esgotar as munições da tropa que,
acordada de repente, responde aos tiros de forma desordenada. Para os
sertanejos, trata-se de semear o desespero e a desorganização na tentativa de
provocar o maior número possível de deserções.
Alvos fáceis
de um inimigo que não conseguem ver, torturados pelo sol e pela sede que
transformam o sertão num verdadeiro inferno, sem ter o que comer e privados do
atendimento médico para os feridos, os soldados são tomados pelo pânico e
tentam sair da região a qualquer preço. Os caminhos que levam a Belo Monte são
percorridos por praças e oficiais que perambulam em busca de alimentos e água.
No desespero, alguns atiram na palma da mão para fugir da guerra e voltar às
suas casas.
Apesar de terem
sido derrotados nas tentativas de silenciar a artilharia do exército, os
conselheiristas contam com um novo recurso para facilitar suas manobras
militares no interior do reduto. Além da inteligente rede de trincheiras já
existente, as casas são unidas por túneis que permitem aos combatentes um
deslocamento rápido e seguro na hora de reagrupar suas forças em pontos
estratégicos”.
- “Desse
jeito, os sertanejos podem resistir por muito tempo...”.
- “É verdade - confirma
a coruja em tom nada animador -, mas o fato é que sua comunidade tem os dias
contados. A chegada de vários batalhões do exército e das polícias estaduais, a
melhoria das linhas abastecimento, o aumento do poder de fogo dos soldados com
mais fuzis, canhões e uma ingente quantidade de munição desequilibram a
situação a favor das tropas oficiais. A idéia, agora, é de impedir aos
sertanejos qualquer acesso à água e à comida através de um cerco militar que
feche todos os caminhos de entrada e saída do povoado. Ao mesmo tempo a
artilharia não dá trégua e seus bombardeios conseguem derrubar as torres da
igreja nova, importante ponto de defesa contra os assaltos dos soldados.
A situação em
Belo Monte se torna dramática. Água, comida, armas e munições são bens cada vez
mais escassos. A maior parte do arraial é destruída pelas bombas. Os principais
comandantes sertanejos estão mortos e o próprio Antonio Conselheiro vem a
falecer em 22 de agosto de 1897.
Apesar disso,
os rebeldes mantêm a luta. A população que poderia ter abandonado o arraial não
arreda pé. Os valores construídos e vivenciados na comunidade consolidam o
vínculo entre o destino individual e coletivo e prolongam a capacidade de
resistência dos conselheiristas.
Na madrugada
de 1º de outubro, cerca de 6.000 soldados aguardam a ordem de ataque dos oficiais
que esperam tomar Canudos em um par de horas. O ataque é precedido por um
intenso bombardeio e, apesar dos novos estragos, os sertanejos entrincheirados
nas proximidades da igreja resistem furiosamente às investidas do exército.
No dia seguinte, Antonio Beatinho apresenta
aos generais uma proposta de paz. Artur Oscar rejeita o acordo e o encarrega de
convencer os demais a se entregar, com a promessa de ter salva a própria vida.
Nas horas que seguem, um grupo de 600 a 1.000 pessoas composto, em sua maioria,
por idosos, doentes, estropiados, mulheres e crianças, se entrega.
O que parecia
ser o início da rendição se revela mais tarde uma medida astuta para prolongar
a resistência. Aliviados da necessidade de proteger quem não têm condições de
combater, no anoitecer do dia 4 de outubro, os conselheiristas usam todas as
forças disponíveis para atacar as posições do exército num enfrentamento que se
prolonga durante a noite e pela manhã seguinte.
Na tarde do
dia 5, sobre os cadáveres de seus irmãos de luta, 4 homens ainda guerreiam até
gastar os últimos cartuchos. Euclides da Cunha assim descreve a cena final que
marca a derrota de Belo Monte: Canudos
não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento
completo. Expunhado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia
5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram.
Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos
quais rugiam raivosamente cinco mil soldados. [9]
O cenário é
desolador. Milhares de cadáveres se espalham por toda parte. Minas e granadas
são usadas para não deixar pedra sobre pedra. No dia seguinte, os soldados se
preparam para entregar o que resta do arraial às chamas de um incêndio que
devore qualquer sinal de vida. Entre os trabalhos que ainda precisam ser
executados, está o de achar o corpo do Conselheiro. Por ordem do general João
da Silva Barbosa, o terreno em volta do santuário é removido até encontrar o
cadáver do líder sertanejo envolto num lençol. Antes de enterrá-lo novamente, o
oficial manda que a cabeça seja cortada e enviada à Faculdade de Medicina da
Bahia para que as análises dos peritos comprovem se tratar de um louco ou de um
criminoso de nascença. Depois de cuidadoso exame, o famoso antropólogo Nina
Rodriguez emite um laudo que contraria as expectativas dominantes: O crânio de Antonio Conselheiro não
apresenta nenhuma anormalidade que demonstre traços de degenerescência. É um
crânio normal. [10] A
seu modo, os meios científicos da época confirmam que o líder de Belo Monte não
era nem louco, nem criminoso”.
- “E o que
acontece com os conselheiristas que se renderam?”, pede o secretário com
expressão de quem teme o pior.
Nádia abaixa a
cabeça e, abrindo as asas para visualizar a amplitude dos sofrimentos que
aguardam os sobreviventes, com voz compenetrada, diz:
- “Destruído o arraial,
a fúria dos militares se volta contra os prisioneiros indefesos. Certos da
impunidade e, em alguns casos, com a própria autorização dos superiores, os
soldados agem com requintes de crueldade. Inúmeros presos são degolados, outros
têm seus corpos esquartejados, as costelas quebradas ou são jogados vivos nas
fogueiras caso não gritem Viva a
República! Os mais sortudos são arrastados até os povoados próximos amarrados
em cordas que chegam a penetrar em suas carnes. Mulheres e moças são estupradas
e dezenas de meninas, chamadas de jaguncinhas, são entregues a cafetinas e
levadas a prostíbulos. As anotações de Frei Pedro Sinzig, que assiste à
passagem de um grupo de prisioneiros nas proximidades de Cansanção, relatam os
sentimentos de quem tem a impressão de estar num mercado de escravos
barbaramente acorrentados. E, no dia 13 de outubro, a página do seu diário
denuncia: Aurino conta que soldados pegam
as crianças pelas pernas, rodam com elas e esmigalham o crânio batendo contra
as árvores. [11] Outras
são feridas pelas tropas e abandonadas pelos caminhos quando já não têm forças
para andar.
Apesar do
estado lastimável em que se encontram os sobreviventes feridos, os médicos
militares se recusam a atendê-los e, entre eles, há quem não titubeia em
afirmar que sua medicina não é pra ser gasta com os prisioneiros. Poucos são os
oficiais que dispensam um tratamento humano e menos ainda os que assumem a
guarda de uma criança órfã.
Enquanto a suposta
força civilizadora do exército se abate sem piedade contra civis indefesos, os
rudes sertanejos de Belo Monte continuam sendo exemplos de dignidade e
igualdade. Após falar das péssimas condições em que se encontram as mulheres e
crianças aprisionadas, os enviados do Comitê Patriótico, organizado para cuidar
dos sobreviventes, se deparam com situações que contradizem o título de
jagunças que a elas atribuem. Na matéria publicada pelo jornal O Comércio, de
São Paulo, em 24 de dezembro de 1897, lemos: O que muito é honroso para as desventuradas jagunças e não nos é dado
calar, em nosso relatório, como informações que devemos ao Comitê Patriótico, é
o fato de havermos verificado que nenhuma, dentre todas as prisioneiras, era
mulher de má reputação ou de conduta irregular notando-se-lhes bons costumes,
hábitos de trabalho e depois o sentimento de honra e esse recato, que são
apanágio e a maior riqueza da família sertaneja.
Pudicas, forçando posições para esconder com
os andrajos a nudez da pele, vimos raparigas e mulheres ocultando envergonhadas
o rosto entre as mãos.
Mesmo dentre as crianças, não conseguimos
observar gestos nem palavras reprovadoras, assim como modos grosseiros nem
coisa alguma que lhes desabonasse a educação doméstica. Era digno de vê-las
partilhando os sofrimentos umas das outras, e socorrendo-se mutuamente, dividir
o que lhes dava sem a menor sugestão.
Testemunhamos a nobreza de algumas mulheres
distribuir pequenas quantias, que traziam escondidas consigo, no sentido de
melhorar o rancho às mais indigentes: quase todas que tinham maior cópia de
recursos também assim procediam como podemos afirmar, frisando o nome da
prisioneira Maria Leandra dos Santos que, trazendo de Canudos perto de um conto
e quinhentos mil-réis, gastou quase metade desta quantia procurando minorar a
condição às suas companheiras de infelicidade, até Alagoinhas!
Em Queimadas, uma destas pobres vítimas da
desgraça em que foram arremessadas, já nos paroxismos da morte, sentindo que se
lhe iam desaparecendo os últimos lampejos de vida, voltou-se para Frei Electus,
que lhe assistia aos derradeiros momentos, e lhe entregara os últimos 5$ que
possuía, pedindo-lhes que distribuísse aquela pequena quantia, em segredo, às
mulheres mais desgraçadas do que ela e aos pobres!” [12]
- “E...há
alguém que comemora a vitória do Exército...?”, indaga o ajudante temendo uma
resposta afirmativa.
- “Depois de
meses de incertezas e boatos – diz Nádia ao piscar os olhos -, milhares de
soldados mortos e ingentes quantias de dinheiro gastas na guerra, os grandes
centros urbanos recebem a notícia da vitória em meio a grandes manifestações de
júbilo. A igreja, satisfeita com a destruição do arraial, participa ativamente
das comemorações.
Entre as raras
manifestações contrárias, está o manifesto dos estudantes de Salvador que,
considerando um crime a degolação dos conselheiristas aprisionados, boicotam as
homenagens que a Bahia prepara ao general Artur Oscar.
Para
justificar a demora em conquistar o arraial, valorizar o heroísmo dos soldados
e ocultar a capacidade de resistência dos sertanejos, o exército superestima a
população de Canudos apontando a existência de 5.200 habitações nas quais
morariam entre 25.000 e 30.000 pessoas. Para Manuel Benício, correspondente de
O Jornal do Comércio, que havia contado as casas dos sertanejos do alto do
morro da Favela semanas antes dos bombardeios, Belo Monte não possuiria mais do
que 2.000 casas e, de conseqüência, os moradores da comunidade seriam cerca de
12.000. [13] Mas,
diante da vitória que consagra seus propósitos, a elite está bem pouco
interessada em apurar os fatos. O importante já foi conseguido: Canudos não
existe mais.
A euforia é
tamanha que, ao retornar às suas famílias, no Rio de Janeiro, capital da
República, os soldados são saudados pelo governo com a promessa de receber uma
casa como forma de compensar os sacrifícios impostos pela guerra. Meros
instrumentos nas mãos da elite, não só os praças vão ficar a ver navios, como,
sem recursos para sobreviver, se vêem obrigados a construir barracos de madeira
no morro da Providência. Com a expulsão dos moradores dos curtiços do centro da
cidade no início do século XX, o número destas construções cresce até ocupar
toda a área das encostas.
Por ironia da
história, o conjunto de barracos passa a ser chamado de favela, numa clara
analogia ao morro da Favela, em Belo Monte. Com uma diferença: enquanto para os
conselheiristas as casas de barro e madeira representavam o início da
construção de um sonho de igualdade, na civilizada capital da República elas
não passam da triste comprovação de um processo de espoliação e marginalização
que se prolonga até os nossos dias”.
- “Pelo visto,
a história de Canudos acabou”, afirma o secretário sem esconder uma sensação de
alívio.
- “Ainda
não!”, prorrompe a coruja ao apontar a asa esquerda para o rosto do ajudante.
“Antes de passar à guerra sertaneja do Contestado, vale a pena deixar claro
porque a elite investiu tanto para destruir a comunidade de Belo Monte e os
sinais que, posteriormente, poderiam relembrar sua resistência.
Pelo que vimos
nas páginas anteriores, o comportamento do Conselheiro nos povoados do sertão
segue os padrões comuns aos missionários apostólicos e aos beatos que percorrem
a região. Não faz milagres, não pratica o curandeirismo, não veicula
expectativas messiânicas, mas, ao manter uma vida ascética coerente, dialoga
ininterruptamente com a religiosidade e a visão de mundo dos sertanejos. Ao
transformar a pobreza em virtude religiosa, esta começa a deixar de ser um
sinal de inferioridade social para transformar-se em elemento aglutinador das
camadas mais baixas da sociedade e numa crítica viva da opulência dos
poderosos.
Se para as
elites isso já representa um problema, as coisas se complicam na medida em que
o aspecto religioso dá impulso a uma comunidade de relações igualitárias que
permitem vencer a fome e se tornam um exemplo desafiador e perigoso para os
latifundiários. Nestas relações não encontramos apenas a continuidade da
resistência contra a cobrança dos impostos e os desmandos dos coronéis, mas sim
uma organização social e econômica que abre a possibilidade de transformar cada
sertanejo em agente do próprio destino. Este ambiente, no qual a religiosidade
cria identidades e vivências que abrigam e materializam os sonhos dos mais
pobres, passa a ser uma referência que atrai as populações dos arredores e
ameaça a manutenção das relações de poder existentes.
Se, de um
lado, o princípio de uso útil da terra, implementado pelos conselheiristas,
coloca em cheque a lógica do latifúndio, de outro, os grandes proprietários percebem
que estão perdendo o controle sobre seus antigos trabalhadores. De pessoas que
vivem em regime de semi-escravidão nas grandes propriedades do sertão se
transformam, em Belo Monte, em cidadãos que autonomamente decidem e produzem o
seu futuro. A simples falta de braços para a lavoura projeta para o latifúndio
a necessidade de elevar os salários e melhorar os acordos com os arrendatários
como forma de garantir recursos para uma acumulação que tende a ser mais magra
em relação às épocas anteriores.
Por sua vez, o
exército define Belo Monte como um exemplo nefasto de organização subversiva
que, de agora em diante, vai servir para as elites apontarem as situações de
mobilização social que justificam uma rápida e cruenta intervenção armada de
suas forças.
A importância
que os poderosos atribuem a esta interpretação pode ser visualizada no número
de soldados da quarta expedição contra Canudos. De maio a setembro de 1897, os
comandos militares mobilizam nada menos do que 22.200 homens, entre recrutas e
efetivos, num esforço até àquele momento comparável apenas com a Guerra do
Paraguai. [14]
No mesmo ano
em que é aniquilada a comunidade sertaneja, um curandeiro e milagreiro chamado
Francelísio Sutil de Oliveira dá origem a um agrupamento religioso nas
proximidades de Lages, em Santa Catarina. Seus moradores, conhecidos como Canudinhos de Lages, são massacrados por
forças policiais catarinenses aliadas a bandos de jagunços que prestam serviços
aos coronéis locais.
Quinze anos
depois, em 1912, os jornais do Paraná e Santa Catarina relatam notícias que
despertam o temor das elites locais. Na cidade de Taquaruçu, um movimento de
sertanejos pobres estaria se dedicando a restaurar a monarquia. É pra lá que
dirigimos agora nossas atenções no esforço de resgatar as razões que dão origem
a mais uma guerra. Por isso, prepare-se porque agora vou tratar de...”
6. A vida e as relações nas terras do
Contestado.
Após tomar um
café, o secretário transforma a pausa em momento precioso para esticar as
pernas e se recompor do cansaço. Seus gestos são lentos e nada fazem para
esconder o propósito de aproveitar até o fim os breves instantes de folga.
De pé, em meio
às folhas que ocupam boa parte da mesa, a ave apóia a ponta da asa na cintura e
aguarda impaciente o retorno do ajudante. Um rápido olhar ao relógio de parede,
alguns passos em direção à beirada da mesa e, justo quando o bico se prepara
para exigir a retomada dos trabalhos, suas palavras são precedidas por uma pergunta
cujo objetivo parece ser o de evitar a bronca iminente:
- “Nádia, você
poderia dizer de onde vem o nome de Contestado?”, pede disfarçadamente o humano
enquanto o corpo está prestes a assumir o seu lugar à mesa.
- “Muito esperto –
murmura a coruja num sorriso maroto. O termo Contestado tem sua origem na disputa
territorial entre os estados do Paraná e Santa Catarina nas últimas décadas do
século XIX. Situada na região limitada pelos rios Uruguai, Iguaçu, do Peixe e
pelas fronteiras com a Argentina, a área em questão soma cerca de 48.000
quilômetros quadrados. Sem limites definidos, cada entidade federativa contesta
para si a incorporação de terras e municípios da outra na tentativa de colocar
sob sua jurisdição regiões importantes do ponto de vista econômico. A
proclamação da República e a descentralização da cobrança dos impostos acirram
ainda mais as disputas entre os governos paranaense e catarinense que serão
resolvidas só em 20 de outubro de 1916.
Para os
sertanejos, que a duras penas conseguem reunir condições mínimas de
sobrevivência, pertencer a um Estado ou a outro não faz a menor diferença. Do
lado dos grandes proprietários, porém, não podemos dizer o mesmo. Ainda que a
expansão do latifúndio não dependa da definição dos limites territoriais,
grandes fazendeiros e políticos locais costuram laços de dependência recíproca
para defender os interesses que ganham amplitude diferenciada no interior de
uma ou de outra administração estadual. De fato, para afirmar a jurisdição
sobre parte dos territórios em disputa, as autoridades do Paraná e Santa
Catarina usam suas relações com os latifundiários para fundar vilas, legalizar
posses, conceder terras a correligionários e empresas.
Na incerteza
de quanto deste território será efetivamente incorporado ao seu Estado, os
governantes deixam a população no mais completo abandono. Além de nada investir
no desenvolvimento social da região, os políticos ajudam a elevar as tensões
locais na medida em que buscam aliar a força pública aos jagunços, assalariados
pelos coronéis seus partidários, para ameaçar as propriedades dos que apóiam a
administração adversária”.
- “Pelo visto,
esta situação coloca as camadas mais baixas entre o prego e o martelo”, conclui
o secretário apostando no acerto de sua intuição.
- “Sim e não –
responde a coruja ao desconfiar das intenções do ajudante. Apesar de influir
nas relações da região, a dominação que pesa sobre os ombros dos pequenos
independe desta disputa e é anterior a ela.
Bem antes da
guerra sertaneja do Contestado, a vida nesta área apresenta aspectos
semelhantes aos que encontramos no sertão nordestino. Em cada município, o
manda-chuva é um grande proprietário de terras que conta com milhares de
cabeças de gado. Ele é quem dita as leis em colaboração com outros
latifundiários e criadores locais, que lhe servem de conselheiros e substitutos
quando algo exige sua ausência prolongada. A troca de favores com as
autoridades políticas estaduais faz com que os coronéis possam influenciar a
nomeação de juízes, promotores, delegados de polícia, coletores de impostos,
telegrafistas, agentes de correios e demais funcionários que desempenham
tarefas importantes tanto em nível estadual como regional. Graças a esta rede
de relações, negociam obras para a sua área de influência, vetam a ascensão
política de adversários e desafetos, atendem demandas de sua clientela e têm
carta branca na administração local e na aplicação de normas que suas milícias
de civis armados fazem respeitar, por bem ou por mal.
Como no sertão
nordestino, engana-se quem acredita que o poder dos grandes proprietários se
sustenta somente no uso da força e nas relações com as altas esferas da
política. A concessão de favores alimenta os sentimentos de dívida de gratidão
de quem está a seu serviço nas fazendas e, ao lado desta, o compadrio garante
uma resignada submissão à sua autoridade. Para os sertanejos, ter um padrinho
forte significa garantir proteção para o próprio filho e a família. Ao mesmo
tempo, se apadrinhar uma criança leva o fazendeiro a assumir uma série de
compromissos com o afiliado e os compadres, este vínculo também proporciona a
lealdade de quem, a partir de agora, estará, literalmente, ao seu completo
dispor.
Quando existe
uma oposição política, esta costuma ser exercida por outro coronel que procura
aumentar sua influência com ações e atitudes que, ao apresentá-lo como uma
espécie de pai dos pobres e defensor dos fracos, elevam sua popularidade no município.
Via de regra, porém, suas metas e formas de atuação não apresentam diferenças
significativas quando comparadas com as de quem já está no poder.
Donos das
terras mais férteis e das melhores pastagens, os latifundiários alimentam suas
riquezas com o trabalho de agregados e peões. Os primeiros constroem seus
ranchos nos campos das fazendas de menor valor onde, em troca da prestação de
serviços gratuitos aos proprietários e da metade ou um terço do que vier a ser
produzido, recebem um pedaço de terra para plantar suas roças e a permissão de
criar algumas cabeças de gado.
Vivendo uma
vida igualmente sacrificada, os peões se dedicam a cuidar do gado, à coleta de
erva-mate, a cortar madeira, conduzir tropas e a todo tipo de trabalho
exaustivo cumprido em longas jornadas de trabalho pagas com salários
irrisórios, comida e um canto onde poder descansar. Ao lado da peonagem, há uma
série de homens que perambulam pelo interior oferecendo aos fazendeiros os
serviços nos quais são especializados. Entre eles encontramos domadores de
burros, ferreiros, carapinas, amestradores de cães e pessoas que ganham a vida
levantando muros de pedra para separar as propriedades. Devido ao seu caráter
ambulante, trabalham em troca de abrigo, comida e uma remuneração que, muitas
vezes, não é paga pelos proprietários que os escorraçam a tiros uma vez acabado
o serviço para o qual foram contratados.
Além de
fazendeiros e criadores de gado, na área do Contestado encontramos também
famílias de lavradores que, vindas de outros lugares do Paraná e Santa
Catarina, ocupam terras devolutas afastadas dos grandes centros em regiões de
matas e capoeiras. O agrupamento de certo número delas dá origem ao que podemos
chamar de um esboço de povoado na medida em que as casas, afastadas umas das
outras, são unidas pelas terras de onde tiram o sustento. Nos bairros assim
formados, os moradores tecem vínculos baseados na proveniência, em atividades
de auxilio mútuo, nas festas e nos rituais religiosos.
A partir de
1870, este processo de ocupação e colonização de terras dá origem a um grupo
significativo de pequenos e médios lavradores independentes, posseiros em sua
ampla maioria, cuja sobrevivência é garantida por quatro atividades: uma
agricultura de subsistência, criação de porcos, coleta e beneficiamento da
erva-mate extraída de ervais nativos e devolutos e, finalmente, das relações
com os tropeiros que percorrem a região”.
- “E que tipo
de relação dá pra estabelecer com pessoas que vão e vêm de um canto a outro
levando mulas para os grandes mercados?”, questiona o ajudante na tentativa de
entender este aspecto da vida no Contestado.
- “Em primeiro
lugar – responde a ave ao piscar os olhos -, estes lavradores aproveitam os
pequenos excedentes de suas lavouras e criação para vender víveres aos tropeiros
em trânsito e obter assim alguma quantia em dinheiro ou as mercadorias de que
precisam. Além disso, o trabalho com a erva-mate oferece às famílias a
possibilidade de trocar os surrões de produto beneficiado por mulas. Os animais
adquiridos são levados para estâncias e aí mantidos até que seu número compense
os gastos da viagem até os principais mercados compradores.
A
possibilidade destes lavradores independentes garantirem melhores condições de
vida depende não só da continuidade destas atividades como da ampliação do
próprio acesso à terra. Para eles, limpar áreas de mata e capoeiras para obter
novas pastagens ou lavouras é algo imprescindível tanto para sustentar o crescimento
das famílias, como para melhorar a própria situação econômica.
Este aparente
bem-estar, nem sempre conseguido pelos colonos, é constantemente ameaçado pelos
latifundiários. De um lado, o aumento dos rebanhos faz coronéis e fazendeiros
cobiçarem os pastos recém-formados. Os registros de grilagem e destruição das
roças pelo gado dos criadores são freqüentes. De outro, além das normas
previstas pela Lei de Terras, a promulgação da Constituição de 1891, que
repassa aos estados as áreas devolutas e a prerrogativa de legislar sobre elas,
eleva o número de conflitos no campo. Os processos de legalização da posse
conhecem longas listas de coronéis, tabeliães, advogados, agrimensores e
membros da máquina estatal que registram em próprio nome terrenos que pouco ou
nada conhecem, mas que, em função da localização ou das obras de infra-estrutura
que vão beneficiá-los, têm grandes chances de passar por uma rápida
valorização. Antes mesmo da eclosão da guerra sertaneja, a região do Contestado
conhece uma seqüência de conflitos pela posse da terra que, gota a gota, faz o
nível da água subir no interior do vaso.
- “E aí então
aparece alguém como o Conselheiro que junta o povo e o leva à luta!”, prorrompe
o secretário decidido a impor um atalho ao relato da coruja.
Nádia pára de
falar e fendendo o ar com um gesto rápido da asa direita afirma:
- “Humanos!
Sempre prontos a reduzir a história a um resuminho no qual pouco cabe e após o
qual se queixam de não conseguir entender o porquê das coisas...”. Em seguida,
vira as costas para o ajudante, sacode a cabeça e, desenhando círculos no ar
acima dela, retoma indiferente o fio da meada: “Como estava dizendo, a luta pela
terra agrava as tensões entre as classes sociais do Contestado. Enquanto os
conflitos ainda não se manifestam em toda a sua amplitude, a região é
percorrida por um monge de origem italiana que responde pelo nome de João Maria
D’Agostini.
Dele, temos
poucas notícias. Dos estudos realizados sabemos que sua presença é registrada
em Sorocaba no ano de 1844 e, em 1848, ele estaria no Rio Grande do Sul, onde
ergue uma capela dedicada ao culto de Santo Antão no cerro do Campestre,
próximo a Santa Maria.
Em suas
peregrinações, costuma parar longe das casas, dorme ao relento ou em alguma
gruta nas proximidades de uma fonte de água cristalina. Alimenta-se de frutas,
verduras e leite, veste roupas simples e leva uma vida de penitência que, em
vários aspectos, imita os antigos monges eremitas. Ao passar pelos povoados,
levanta cruzes e convence a população a fazer o mesmo. Munido de um
conhecimento razoável do evangelho, suas pregações são aceitas pelos sacerdotes
católicos que as consideram úteis para atingir a alma dos sertanejos mais
simples.
Se a sua
relação com a igreja é de amizade e de colaboração, o mesmo não ocorre com as
autoridades civis. Durante a sua permanência em Campestre, várias pessoas se
dizem curadas de seus males após terem bebido da água de uma fonte próxima ao
local. Na medida em que as notícias se espalham pelas povoações, o número de
doentes e necessitados que se aglomera em volta da capela cresce sem parar. O
fenômeno desperta a atenção e a desconfiança das elites, pois em seus rituais o
monge defende uma doutrina de cooperação e fraternidade inspirada nos preceitos
do cristianismo primitivo. Apesar de nunca procurar um confronto direto com as
autoridades, sua pregação parece ser recebida como uma crítica à ordem social
existente.
Preocupado com
a crescente concentração de pessoas à sua volta, o governador da província
riograndense, Francisco José de Souza Soares D’Andréia, manda que o monge seja
preso e enviado a Porto Alegre de onde é despachado para Santa Catarina. Num
período em que o Rio Grande do Sul se prepara para a intervenção no Prata, precisa
concluir a pacificação com os farroupilhas e combater os bandos armados que
vivem do roubo do gado, o nascimento de um movimento religioso que concentre a
população desvalida é uma dor de cabeça que as autoridades pretendem evitar.
Na região do
Contestado, João Maria percorre os mesmos caminhos dos tropeiros, continua sua atividade
de pregador leigo e eremita, e, em seu caminhar, indica a muitos as novas
terras a serem ocupadas e preparadas para a lavoura. Em constante peregrinação,
o monge procura evitar a concentração de fiéis em torno dele e sai da região
por volta de 1855 deixando o povo na expectativa do seu retorno. De volta a
Sorocaba, se abriga na gruta de Ipanema, próxima à cidade. Ali permanece até
1875, quando o local amanhece vazio e com marcas de sangue. Deste momento em
diante, nada mais de sabe sobre o seu paradeiro.
Anos depois, em 1895, no
Alto da Lapa, corre a notícia da presença de um segundo monge que a população,
porém, identifica com o eremita que, 40 anos antes, havia deixado a região do
Contestado. De hábitos bem parecidos, passa a ser conhecido como João Maria de
Jesus e como João Maria de Santo Agostinho. Seu verdadeiro nome é Anastás Marcaf.
Diz ter sido criado na Argentina e afirma ter recebido em sonho a ordem de
caminhar pelo mundo sem comer carne às quartas, sextas e sábados e sem pousar
em casa alheia.
Magro, de
barba branca, cabelos longos, pobremente trajado, tem como únicos pertences um
chimarrão, uma lata onde cozinha a própria comida, uma guampa para beber água e
uma imagem de Nossa Senhora da Abadia guardada numa caixinha que usa como
oratório. Por onde passa, cativa a simpatia dos humildes e muitos deixam os
próprios afazeres para segui-lo. Sua principal atividade é conversar com as
pessoas, indicar medicamentos, transmitir orientações e batizar as crianças.
Para os sertanejos, o monge é, acima de tudo,
um grande curador. Os relatos contam que doenças são vencidas com rezas
especiais e personalizadas, águas santas e chás de vassourinha do campo, uma
planta facilmente encontrada na região. Mais do que nas propriedades terapêuticas
desta erva, o povo acredita mesmo numa força mágica e milagrosa que ele
transmitiria a tudo o que toca. A crença chega a tal ponto que, quando o monge
muda de pouso, o povo disputa as cinzas de suas fogueiras, enche garrafas de
água nas fontes e nos riachos onde ele bebera, usa as folhas e as cascas de
árvore onde recostara o corpo para fazer remédios tidos como infalíveis e
considera sagrado qualquer lugar onde tenha plantado uma cruz.
Envolvido
nesta áurea de santidade que acompanha o seu peregrinar, João Maria declara
abertamente que a República é a ordem do demônio e que o fim da monarquia
representa o prenúncio das catástrofes que devem afligir o mundo. São anunciadas epidemias, pragas nas
lavouras e na criação, a vinda de máquinas monstruosas como corvos de aço [os
aviões que, pela primeira vez, seriam utilizados numa guerra], gafanhotos de ferro [as serrarias] que acabariam com as florestas. Uma
inversão de valores e comportamento também aconteceria: os homens seriam cada
vez mais parecidos com as mulheres e vive-versa. Uma longa noite que duraria
três dias levaria à morte a maioria da população, todos seriam julgados, os
pecadores iriam para o inferno, apenas sobreviveriam os penitentes que levassem
uma vida justa e plantassem cruzes em frente às casas. [15] De
acordo com o depoimento de Frei Menandro Kamps, contemporâneo de João Maria e
com o qual teve várias ocasiões de atrito, o monge teria profetizado também a
santa guerra de São Sebastião terminada a qual teríamos a volta da monarquia. [16]
Longe de significar o
retorno do imperador deposto ou de um de seus sucessores, o regime monárquico
de João Maria, apresentado como lei de Deus, seria a implantação de um sistema
de vida que se opõe ao dos coronéis e de seus aliados políticos. Ao interpretar
os sentimentos populares contra o peso dos impostos e as conseqüências da
aplicação das normas que regulam a propriedade de terra, João Maria começa a
construir uma espécie de elo de ligação entre o quotidiano da história e uma
utopia a ser alcançada. Este vínculo é tão forte que, nas palavras do próprio
Frei Menandro, a guerra sertaneja só foi
possível na fé que o povo tinha àquele mensageiro. Uma palavra de sua boca
valia e vale ainda hoje [1915] mais
do que as verdades eternas do evangelho, do que quaisquer instruções de
sacerdotes e bispos, e até o Santo Padre só acerta ensinar a verdade se esta
confere com a pregação de João Maria. [17]
Recusando o
título de santo e fazendo questão de ser visto como um homem igual aos demais,
em 1908, o monge desaparece da região. Para muitas pessoas, ele estaria vivendo
encantado no morro do Taió, entre Curitibanos e Rio do Sul, de onde voltaria
para pôr tudo em ordem”.
Após esta
longa explanação, a ave permanece silenciosa por algum instante à espera da
reação do seu ajudante ainda entretido em escrever suas últimas palavras.
Terminada a
tarefa, o secretário deita a caneta na resma de folhas ao seu lado e, após estalar
os dedos, pergunta intrigado:
- “O que não
consigo entender é como tudo isso se torna possível num ambiente onde a dureza
da vida e as tensões provocadas pelos conflitos com os grandes proprietários
deveriam levar as pessoas a pôr os pés no chão mais do que a erguer os olhos
para os céus...”.
- “Para
responder à sua indagação, precisamos mergulhar no ambiente típico do sertão do
Contestado, no qual elementos mágicos e religiosos são parte fundamental do
quotidiano das pessoas. No mundo do povo simples, abundam os especialistas que
dedicam seus esforços à relação com o sobrenatural exercendo, frequentemente,
práticas mágico-medicianis. Neste tipo de serviço à comunidade, encontramos os
benzedores que aplicam suas rezas na cura dos animais, valendo-se quase
exclusivamente de fórmulas mágicas. Por sua vez, as benzedeiras são
requisitadas para usar suas orações quando as doenças atingem as pessoas e
costumam dividir este campo de ação com curandeiros que associam aos rituais
mágico-religiosos o conhecimento que têm do uso de ervas, chás e infusões. Caribambas
são aqueles que, com base nas noções de homeopatia e medicina adquiridas ao
logo da vida, se fazem passar por doutores. Ao lado destas figuras, nos
deparamos com os entendidos que, sem transformar seu saber em profissão, dão
consultas a quem precisa de algum tipo de sortilégio. Entre as mulheres que
exercem funções parecidas, há as intendentes que, além de servir de comadres
durante os partos, são portadoras de práticas para esconjurar doenças e atrair
a felicidade.
Por sua
relação com as forças do bem, o povo simples acredita que a maioria desses
homens e mulheres tem sido tocada pela graça divina e se opõe ao trabalho das
madraqueiras que, por praticarem a magia negra, são apontadas como bruxas cujos
poderes vêm de um trato com o diabo.
Finalmente,
entre as comunidades mais distantes dos centros, não é difícil encontrar leigos
que puxam terços, dirigem cerimônias, realizam enterros e, quando necessário,
até batizam através de rituais baseados em rezas antigas, guardadas de memória
e repassadas de pai pra filho.
Portanto, não
é de estranhar que este ambiente mágico-religioso tenha aberto seus braços à
pregação de dois monges e, nas pegadas destes, tenha começado a rever sua visão
de mundo justo a partir dos aspectos com os quais ambos procuram fazer o bem. À
semelhança do que ocorre com os demais agentes do sagrado, os dois homens
também se colocam como intermediários de uma sociedade que busca alcançar no
âmbito do sobrenatural o que lhe é negado pela injustiça das relações entre os
homens. Ainda que, na maior parte das vezes, isso leve a sentimentos de resignação
diante do presente, a prática destes rituais cria espaços nos quais os
oprimidos buscam fazer ouvir a sua voz, forjam uma identidade coletiva onde o
drama pessoal é sentido pela comunidade e alimenta a capacidade dos indivíduos
entrarem em contato com os demais. Se, de um lado, este mundo real e místico,
que mistura sofrimentos e sonhos, em geral, tende a não representar uma ameaça
para as elites, de outro, o desenrolar dos acontecimentos pode transformar a
experiência religiosa no caminho pelo qual as pessoas que a vivenciam buscam
realizar o que sua religiosidade aponta como uma nova sociedade a ser
construída.
Ainda que de
forma confusa, fantasiosa e nem sempre compreensível, a vida social e
espiritual das camadas mais baixas da população expressa através de imagens
míticas suas razões de sofrimento, seus anseios, sua busca da felicidade,
enfim, sua vontade de mudar os rumos da história. O bizarro conjunto de
manifestações, símbolos e intuições, com o qual se revela, traduz as
experiências de luta e resistência já vivenciadas e pode preparar os tempos
que, diante das contradições, exigem a construção de novas respostas. Mais
adiante, vamos ter melhores condições de compreender e visualizar quanto acabo
de afirmar. Por enquanto, vale a pena resgatar outro elemento determinante
deste universo onde tudo aparece de forma nebulosa e contraditória. Trata-se do
papel desempenhado pela igreja oficial na região do Contestado.
Na última
década do século XIX, o clero secular, acostumado a lidar com a visão de mundo
dos sertanejos, começa a ser substituído por franciscanos alemães. A atuação
destes religiosos entra em choque com o catolicismo popular, através do qual
vem se dando a prática religiosa das camadas mais baixas da sociedade.
Animados pelo
espírito de quem pretende realizar uma cruzada em nome da verdadeira fé, os
religiosos se queixam do estado em que encontram as igrejas, da escassa
participação nas missas, das poucas crianças que fazem a Primeira Comunhão, do
número ínfimo de casamentos e do fato de muitos não se confessarem a anos,
apesar de todos se declararem católicos fervorosos.
Para espanto
dos franciscanos, durante as festas da igreja, no lugar da veneração
compenetrada e das disciplinadas manifestações de espírito religioso o povo celebra
os dias santos com festanças, comida farta e bebidas alcoólicas em momentos de
encontro que, não raro, acabam em bailes e brigas. Some a isso o fato dos
antigos padres terem permitido certa licenciosidade dos costumes e deles mesmos
terem fama de não cumprir os votos de castidade e pobreza e entenderá a razão
de ser da animosidade e do fervor religioso dos freis recém-chegados.
Os choques
entre a população e o novo clero começam a acontecer na medida em que, a partir
exclusivamente de suas concepções, os sacerdotes impõem regras de comportamento
e uma moral rígida que em nada dialogam com a visão de mundo dos sertanejos. De
1911 em diante, os livros paroquiais registram várias situações de insultos e
ameaças sofridas pelos freis. As coisas se complicam ainda mais quando, dois
anos depois, os franciscanos procuram aplicar a tabela diocesana pela qual
seria cobrado o acesso aos sacramentos, até mesmo das famílias mais pobres.
A rejeição do
catolicismo oficial cresce também na medida em que, sob orientação do bispo Dom
José de Camargo Barros, os religiosos começam a desqualificar João Maria e a
combater o costume popular de pendurar suas imagens nas casas.
Se a isso você
acrescenta as alianças entre a hierarquia da igreja e os coronéis, não vai ter
nenhuma dificuldade para entender o abismo que separa as duas formas de
vivenciar o catolicismo e porque, ao hostilizar a figura do monge, os próprios
sacerdotes contribuem para aumentar a sua fama no meio popular”.
- “Ao que tudo
indica, há uma boa quantidade de elementos que apontam para a possibilidade de
um conflito de sérias proporções – sugere o homem com expressão visivelmente
preocupada”.
- “Você tem
razão – confirma a coruja satisfeita em ver que seu ajudante está acompanhando
os rumos da história. Trata-se, porém de um assunto complexo no qual vou me
adentrar só no próximo capítulo ao falar de...”
7. A construção da estrada de ferro e a
atuação de José Maria.
- “Em 1908,
ano do desaparecimento de João Maria – relembra Nádia ao sublinhar com um gesto
a importância da data -, iniciam os trabalhos do trecho da ferrovia São
Paulo-Rio Grande, que atravessa a região do Contestado de norte a sul, a ser
finalizado dois anos depois.
A construção
vai empregar cerca de 4.000 trabalhadores, parte dos quais vem de regiões distantes
com a promessa de que, terminado o serviço, seriam levados de volta a seus
locais de origem. Divididos em numerosas turmas e entregues à cobiça dos
empreiteiros, os operários sofrem abusos de todos os tipos e têm seus protestos
violentamente reprimidos pelo corpo de segurança particular criado pela Brazil
Railway, a empresa encarregada da obra.
Terminado o
trecho, os homens são abandonados à sua sorte. Ao permanecerem na região se
misturam à população local elevando o grau de descontentamento e o potencial de
conflito já presente em função dos elementos que descrevemos no capítulo
anterior”.
- “Pelo menos,
agora, tem algo que vai trazer o progresso à região!”, comemora o secretário.
- “Isso é o que você
pensa – retruca a ave anunciando com seu tom de voz o iminente agravar-se das
tensões. Na verdade, os trilhos da ferrovia vão beneficiar apenas uma reduzida
parcela de proprietários. A conclusão da estrada de ferro em 1910, e de seu
ramal até União da Vitória e Rio Negro três anos depois, marca o início de um
período de grandes sofrimentos para os sertanejos do Contestado.
Ao assumir a
obra, a Brazil Railway, capitaneada pelo magnata estadunidense Percival
Farquhar, com a participação de capitais ingleses e franceses, recebe do
governo federal a concessão da linha por 90 anos, garantias de pagamentos
adicionais em caso de prejuízos e, sobretudo, a doação de terrenos até 15
quilômetros de cada lado dos trilhos. Para aumentar suas posses futuras, a
empresa desenha o traçado da ferrovia de forma a evitar a construção de pontes
e túneis, que encareceriam a obra, e a garantir o acesso à maior quantidade de
terra possível.
Para explorar
as matas nativas dos lotes conseguidos por contrato e dos que seriam adquiridos
em seguida, a Brazil Railway cria uma subsidiária, a Southern Brazil Lumber and
Colonization Company. Após este momento, a Lumber, nome pelo qual vai se
popularizar, compra cerca de 180.000 hectares de terra nas proximidades de
Canoinhas e assina diversos contratos pelos quais os fazendeiros da região,
interessados na formação de novas pastagens, negociam a venda de madeiras
nobres das matas de suas propriedades. Ao lado da estrada de ferro, em Calmon e
Três Barras, a subsidiária monta duas serrarias onde o processo de beneficiamento
da madeira é totalmente mecanizado. O acesso às arvores é facilitado por ramais
que entram mata adentro. Graças a estes, as locomotivas arrastam as toras do
local de corte até o de embarque usando pesadas correntes de ferro.
O início das
atividades ferroviárias traz aos moradores da região uma piora de suas condições
de vida. Numa área onde há força de trabalho sobrando, a competição desencadeada
pela Lumber leva ao fechamento de, praticamente, todos os velhos engenhos de
serrar madeira. Se isso não bastasse, os ervais nativos e devolutos, que por
longos anos haviam sido uma importante fonte de renda, são devastados pela
implantação dos ramais e pelas toras arrastadas até os vagões.
Com as cargas
sendo transportadas a custos bem inferiores, a demanda de mulas começa a cair e
os antigos caminhos das tropas deixam de existir. Sem os tropeiros, a economia
das regiões interioranas conhece uma profunda depressão na medida em que pontos
de venda, locais de pouso, descanso e invernada não têm mais a quem oferecer os
próprios serviços.
Ao mesmo tempo, os lugares mais distantes da
linha férrea começam a sofrer os altos custos do transporte. Agora não há mais
como esperar que a simples passagem das tropas garanta o abastecimento e se faz
necessário que alguém leve as mercadorias da ferrovia até os povoados. Para
termos uma idéia do que isso significa, basta pensar que, em 1916, o frete de
uma lata de querosene de Porto Alegre à estação de Capinzal (a 800 quilômetros
de distância) é de 2.000 Réis. Mas o custo para levar o produto deste ponto até
Campos Novos (40 quilômetros no lombo de burros) chega a 2.500 Réis. [18]
- “Não
imaginava que uma obra tão importante trouxesse tantas dificuldades...”,
confessa o ajudante entre a surpresa e o desconcerto.
-
“Infelizmente, o pior ainda está por vir – afirma a coruja ao se aproximar da
mão que, perplexa, acaba de soltar a caneta. O ano de 1911 é de grande
sofrimento para os sertanejos pelas calamidades naturais que atingem a área do
Contestado e, sobretudo, pelo violento processo de grilagem que abrange as
terras em volta da estrada de ferro. Sabendo da existência de posseiros e
pequenos proprietários que contam com o reconhecimento legal de suas posses, a
Brazil Railway e a Lumber percorrem caminhos que visam fechar o cerco em volta
deles e esmagar qualquer possível resistência.
De um lado, as
empresas cooptam as lideranças políticas paranaenses e catarinenses para evitar
entraves legais e facilitar os processos administrativos que levam à
apropriação das terras cedidas pelo contrato assinado com o governo federal. É
neste sentido que, por exemplo, Affonso Camargo, vice-governador do Paraná, é
contratado como advogado da Lumber durante o exercício do seu mandato e, em
1916, Nereu Ramos, filho do ex-governador Vidal Ramos, é nomeado representante
oficial dos interesses da empresa junto ao governo de Santa Catarina. Da mesma
forma, o coronel Henrique Rupp, superintendente municipal de Campos Novos,
torna-se inspetor de terras da Brazil Railway no período em que se acirram as
expulsões dos antigos moradores do vale do Rio do Peixe.
Para
viabilizar os seus planos, a Lumber cria uma milícia particular com mais de 300
homens, efetivo maior do que os 280 soldados à disposição do Regimento de
Segurança de Santa Catarina para policiar todo o Estado. As atitudes para com
os sertanejos variam da assinatura de papéis em branco, com os quais os
empregados da empresa oficializam a renúncia voluntária dos moradores à
manutenção de suas posses, a ações armadas que expulsam posseiros e pequenos
proprietários com requintes de crueldade. Em outros casos os jagunços usam sua
presença ostensiva para viabilizar a retirada das madeiras sem a autorização
dos moradores e, obviamente, sem pagar pelas toras e demais prejuízos causados.
Terminado o
desmatamento, as áreas que agora pertencem oficialmente à Lumber e à Brazil
Railway são loteadas e vendidas a caro preço a colonos alemães, poloneses e
ucranianos. Este comportamento alimenta ainda mais a revolta entre os antigos
moradores para os quais o governo da República expulsa os brasileiros dos
terrenos que pertencem à nação, nega a eles o acesso à terra e vende tudo para
os estrangeiros.
A paciência do
povo está no fim. A aversão ao novo regime cresce e eleva-se a tensão com seus
representantes locais. O nível da água já está na boca do vaso. Falta só uma
pequena gota para fazê-lo transbordar”.
- “E há sempre
alguém que a faz cair...”, conclui o homem que aguarda ansioso o desenrolar dos
acontecimentos.
-
“Exatamente!”, confirma a coruja ao menear a cabeça. “Entre os últimos meses de
1911 e o início de 1912, na região de Campos Novos, aparece um monge que
responde pelo nome de José Maria de Santo Agostinho. Quase nada se sabe sobre
suas origens, mas várias testemunhas informam se tratar de um penitente que se
dedica a curar doentes. Destes depoimentos aprendemos que, em momento algum,
ele se apresenta como irmão de João Maria diante do qual admite não ser nem do tamanho de uma formiguinha. [19]
Em mais de uma ocasião, afirma admirar o monge, concordar com suas práticas e
pontos de vista e o chama, publicamente de nosso
irmão.
Apesar de
saber ler e escrever, e de ter cadernos nos quais guarda as propriedades
medicinais que a experiência popular atribui a determinadas plantas, José Maria
não diz ser médico, mas suas receitas, escritas com a ajuda de um secretário,
se mostram realmente eficazes. O bom êxito de sua medicina e a disposição de
atender gratuitamente os aflitos até tarde da noite aumentam o seu prestígio na
região. Em pouco tempo, um crescente número de pessoas não só acorre à Farmácia do Povo, instalada no Rancho do
Capataz, em busca de consultas, conselhos e orações, como começa a se
identificar com ele e com o seu discurso.
Uma das coisas
que desperta a atenção dos sertanejos é a história de Carlos Magno e dos Pares
de França que o monge lê ou conta a seus ouvintes nos poucos momentos de folga
e que, tempos depois, vai servir de suporte à releitura que seus seguidores
farão do presente e do futuro pelo qual vão lutar”.
- “E...como é
que um rei que atuou mais de onze séculos antes deles pode inspirar a visão de
mundo com a qual vão enfrentar as forças que os oprimem?”.
- “Simples! O
estilo literário do romance e a forma como os acontecimentos são descritos
conferem às personagens uma aura de idealização. Na narrativa, o rei incorpora
justamente as atitudes que os sertanejos consideram um sinal de virtude e
caráter. Carlos Magno é um homem instruído nas artes liberais e nas ciências,
visita a igreja três vezes ao dia, nas festas solenes manda ornar os lugares de
culto às suas custas, é caridoso com seus súditos pobres, todo ano distribui
verdadeiros tesouros para ajudar pessoas necessitadas e, sobretudo, é um homem
preocupado em governar com justiça e equidade, pois não se furta a enviar gente
de sua confiança aos recantos mais distantes do reino para saber se seus
prepostos estão agindo de acordo com suas orientações, impedindo assim que os
pequenos sejam maltratados pelos grandes.
No processo
pelo qual se cria um culto religioso em torno de Carlos Magno, a figura do rei
que age para fazer justiça torna-se uma espécie de baluarte seguro em volta do
qual o povo simples que acompanha José Maria projeta seus ideais. Na medida em
que a história é transformada em lenda e passa a trilhar os caminhos da utopia,
as personagens do livro fortalecem entre os sertanejos o apego à lealdade, à honestidade,
ao companheirismo e a coragem de enfrentar as dificuldades.
A primeira
reedição desta história na ótica do povo ganha vida em Taquaruçu durante a
folia da festa popular. Acompanhando os costumes locais, o monge nomeia Manuel
Alves de Assumpção Rocha como rei, seleciona 12 homens para a guarda de honra e
outros 12 para acompanhar os primeiros, pois, para ele, a palavra Pares não significa iguais, conforme
consta do texto original, mas sim duplas”.
- “Você não
está querendo dizer que de uma festa pode nascer uma guerra...? Está...?”,
pergunta o ajudante ainda mais confuso e atordoado.
- “Sim –
responde a ave ao abrir as asas para confirmar que a gota d’água pode cair no
momento mais inesperado. Acontece que, pesar das autoridades tentarem
desqualificar José Maria com acusações sistematicamente rechaçadas pelos fiéis
que convivem com ele, a fama do monge cresce a tal ponto que garantir sua
presença numa festa é algo que, sem dúvida, vai prestigiar o evento.
Em julho de
1912, o nosso homem recebe uma comissão proveniente de Curitibanos que o
convida a comparecer na festa do Bom Jesus, programada para o dia 6 de agosto
em Taquaruçu. Ao que tudo indica, porém, o grupo de festeiros formado por
Manuel Alves de Assumpção Rocha (dono de uma pequena fazenda, curandeiro e
fundador do arraial de São Sebastião das Perdizes Grandes), Euzébio Ferreira
dos Santos (compadre de Manuel), Praxedes Gomes Damasceno (dono de uma venda) e
Chico Ventura (pequeno criador e boiadeiro), chega a discutir com José Maria algo
que vai bem além da organização das cerimônias.
De fato, as
últimas celebrações do padroeiro de Perdizes Grande, em janeiro do mesmo ano,
haviam reunido um grande número de pessoas parte das quais, durante as festas,
acabou dando vida a reuniões de agitação contra os abusos cometidos pela Brazil
Railway. Neste sentido, a presença do monge não só serviria para atrair ainda
mais gente, como ajudaria a fortalecer o coronel Henriquinho de Almeida,
adversário político de Francisco Albuquerque (superintendente do município e
manda-chuva da região) e do qual os festeiros são simpatizantes. É certo que as
duas questões são tratadas durante a reunião, mas não sabemos qual é o acordo a
que chegam as duas partes. Seja como for, José Maria parte numa comitiva
formada por aqueles que o haviam convidado e por um bom número de sertanejos
que não quer se separar dele.
Os festejos se
realizam de acordo com o cerimonial previsto. Como de costume, o principal
patrocinador da festa recebe as homenagens da população sendo nomeado rei e
acompanhado por uma guarda de honra de 24 membros, os Pares de França. No
âmbito das atividades que acompanham as celebrações, há um desafio de
repentistas vencido pelo cantor que defende a monarquia como Lei de Deus.
Terminada a
festa, o povo não se dispersa. Um grupo crescente de pessoas que havia perdido
a terra pela ferrovia e acredita firmemente no retorno do antigo monge João
Maria se mantém em volta de José Maria. É tanta gente que as bancas montadas
para os festejos aumentam em número e tamanho diante do inesperado afluxo de
sertanejos que se dirigem a Taquaruçu.
O ajuntamento
ganha dimensões que assustam as autoridades. Primeira entre elas, o coronel
Francisco Albuquerque que decide tentar um contato direto com José Maria para
conhecer suas verdadeiras intenções. Para este fim, envia um emissário que leva
ao monge o pedido de se apresentar na casa do coronel para cuidar da doença de
uma pessoa da família. Caso viesse logo, o gesto seria interpretado como prova
de obediência e o prestígio do monge beneficiaria o manda-chuva local.
Ainda que em
condições normais fosse temerário deixar de atender uma solicitação de
Albuquerque, José Maria responde dizendo que a distância entre os dois é a
mesma e que, portanto, é ele a esperar a visita do superintendente de
Curitibanos. A atitude, interpretada como insubordinação, é usada pelo coronel
como pretexto para solicitar ao governador do Estado a intervenção do Regimento
de Segurança a fim de dispersar o ajuntamento monarquista de Taquaruçu.
O telegrama de
Albuquerque alarma as autoridades de Florianópolis que avisam imediatamente o
Marechal Hermes da Fonseca, presidente da República, de que nas terras
catarinenses acaba de surgir um movimento semelhante ao de Canudos com o
objetivo de restaurar a monarquia.
Para evitar o
confronto, José Maria deixa Taquaruçu em setembro de 1912 acompanhado por 40
homens. Enquanto as demais pessoas se dispersam, o monge se dirige aos campos
do Iraní, no município de Palmas, no Paraná, região de fortes tensões pelas
disputas dos limites territoriais com Santa Catarina. O governo paranaense
recebe com extrema inquietação as notícias sobre o novo movimento e chega a
pensar na possibilidade deste ser parte de uma manobra orquestrada pelos
catarinenses a fim de guarnecer o Contestado com tropas federais e garantir a
execução da sentença do Supremo Tribunal que, tempos antes, havia definido os
limites entre os dois estados.
Com o passar
dos dias, esta interpretação perde importância, mas, apesar disso, as
autoridades paranaenses enviam o Regimento de Segurança para dispersar o
movimento e prender seus líderes. Em outubro, as tropas comandadas pelo coronel
João Gualberto de Sá Filho desembarcam do trem em Porto União e se dirigem em
marchas forçadas à sede do município de Palmas.
Diante do
ataque iminente, e querendo evitar derramamento de sangue, José Maria envia
seus homens para tentar um contato direto com os oficiais. Na negociação com o
coronel Domingos Soares, a posição do monge é clara: não quer lutar, não tem
problemas com o governo do Paraná, só está na região devido às intrigas de
Albuquerque e pede três dias para dispersar os seus seguidores. Soares aceita o
acordo, mas João Gualberto, que comanda o regimento e está decidido a levar os
rebeldes amarrados para Curitiba, opta por atacar os sertanejos.
Sem conhecer a
região, subestimando a capacidade de resistência dos seguidores de José Maria e
confiando excessivamente no poder de fogo do seu contingente, o militar expõe
suas tropas a riscos inúteis e estas são destroçadas em 22 de outubro num
banhado próximo a Iraní. Pouco mais de 200 sertanejos se envolvem no
enfrentamento decidido num combate com arma branca onde demonstram extrema habilidade.
José Maria, que marcha à frente dos caboclos, é atingido por disparos e morre”.
- “Morto o
líder, é de se esperar que seus seguidores se dispersem...”.
- “É assim que
a polícia do Paraná interpreta os acontecimentos ao ver na morte do monge uma
razão de consolo pela tragédia que atingiu a corporação. E, de fato, terminada
a batalha, os sertanejos se dispersam.
No início de
novembro, ao saber que mais tropas estão se dirigindo para a região, os
moradores de Iraní e das redondezas fecham suas casas e se mudam para Santa
Catarina levando amigos e parentes feridos no combate que havia acabado de
ocorrer. O que parece indicar o fim de um movimento se transforma no seu
contrário. Levadas pelos colonos que abandonam o povoado, as notícias da
vitória transformam as atitudes de José Maria num ato de extremo heroísmo.
Atacado pelo governo, o monge havia feito de tudo para defender a comunidade
que o acompanhara e, na impossibilidade de evitar o conflito, havia lutado e
vencido as forças oficias.
A releitura
dos acontecimentos é acompanhada por um contagiante sentimento religioso que se
espalha como uma epidemia e dá vida à crença na ressurreição do monge. A
passagem de José Maria pela região começa a ser santificada, suas curas são
consideradas mais milagrosas do que quando ele estava vivo e a identificação do
povo com sua mensagem produz uma reelaboração coletiva da memória. Nela, o
monge não teria sido só uma esperança para muitos, mas sim o construtor de uma
pequena comunidade capaz de vencer as forças que expulsam os agricultores de
suas posses e submetem os pobres aos desmandos dos coronéis.
O afã de
liberdade dos pequenos alimenta a crença pela qual José Maria não teria morrido
e sua cova no Iraní não passaria de um ponto de partida para, um dia, voltar e
resolver todos os problemas. O seu retorno se daria um ano após a sua morte e
ele não regressaria sozinho. A segui-lo estaria o exército encantado de São
Sebastião ao qual se incorporariam todos os companheiros caídos em batalha
para, após o último combate, restabelecer a monarquia e fazer justiça”.
Atônito, o
ajudante abandona o instrumento de trabalho, apóia o rosto na palma das mãos e
emite um longo suspiro.
- “Isso é
coisa de maluco...”, murmuram seus lábios.
Passo a passo,
Nádia se aproxima e, num gesto de compreensão silenciosa, apóia a asa no ombro
do secretário. Na que parece uma conversa ao pé do ouvido, o bico sugere:
- “Não julgue
os bizarros e tortuosos caminhos pelos quais a esperança e a sede de justiça
dos oprimidos enveredam inesperadamente debaixo dos nossos olhos. São homens e
mulheres que pensam o mundo e formulam respostas a partir dos poucos e frágeis
elementos teóricos de que dispõem. Ainda que isso traga várias dificuldades ao
nosso esforço de compreensão, não podemos deixar de ouvir a eco de seus gritos
de revolta que, ao ressoar pelas terras do Contestado, ganha expressões
aparentemente incompreensíveis. Temos que entender sim o que seus gestos
pretendem dizer e, ao fazer isso, aceitarmos o convite a aprimorar os
instrumentos que nos permitem identificar até a que ponto as expressões
aparentemente fantásticas do povo simples são um sinal de resignação ou apontam
para a formação de uma identidade coletiva capaz de enfrentar a ordem
dominante.
Por isso,
anime-se, pois é justamente sobre isso que vamos nos debruçar no próximo capítulo
ao falar de...”
8. O reduto de Taquaruçu.
Acreditando
nas palavras da coruja, o homem recobra forças e seus dedos voltam a hospedar
carinhosamente o instrumento de trabalho. Se a breve pausa não ajudou o corpo a
descansar, permitiu, pelo menos, criar condições para enfrentar mais uma etapa
do relato.
Certa de ter
alcançado o seu objetivo, a ave aproveita os instantes de silêncio para
recuperar idéias e elaborar uma exposição que contribua para o entendimento dos
momentos de luta que se preparam. Compenetrada, a coruja cruza as pontas das
asas atrás das costas e, de cabeça baixa, se movimenta vagarosamente entre as
folhas do relato que forram a mesa. Instantes de expectativa envolvem os dois
seres até que a ave retoma os trabalhos ao dizer:
- “O que soa
estranho para nós, é algo que se repete inúmeras vezes ao longo da história. Em
determinadas condições, os oprimidos que participam dos conflitos sociais não
só transformam sua religiosidade em algo que não pode ser separado do
enfrentamento político, como é exatamente ela a definir a linguagem através da
qual se expressarão as tarefas que se fazem necessárias e a identidade que dá
cor e forma ao seu movimento.
Desconhecemos
os caminhos percorridos pelo processo de releitura do passado entre os adeptos
de José Maria que aguardam impacientes o seu retorno. O fato é que os
seguidores do monge encontram em aspectos mítico-religiosos a explicação para o
destino dos que haviam tombado na luta e o estímulo para evitar que o grupo
volte a um estágio de resignada submissão.
À diferença de
Canudos, onde parte dos conselheiristas aguarda a vinda do rei Dom Sebastião, os
sertanejos do Contestado elegem São Sebastião como comandante do exército
encantado. Santo guerreiro, protetor divino contra a fome e a peste, padroeiro
do sertão, São Sebastião é também o padroeiro de Perdizes Grandes, lugar que
concentra muitos seguidores de José Maria. O contexto em que nasce a visão do
seu exército encantado deixa crer que as tropas sobrenaturais nada mais são a
não ser a representação coletiva que a comunidade dos crentes faz de sua
capacidade de luta. Habituados a julgar-se desprotegidos e impotentes diante
dos acontecimentos cotidianos, começam a ter consciência de sua força real
projetando-a como algo que existe fora deles mesmos.
Neste primeiro
momento, é mais fácil e reconfortante confiar no socorro sobrenatural do que
dedicar-se incessantemente à preparação das condições que, tendo como base os recursos
próprios, permitem aos sertanejos enfrentarem o desafio de repelir os ataques
do exército e organizarem a vida nos redutos para proporcionar melhores
condições de resistência. As lutas que se preparam vão levar os seguidores de
José Maria a percorrer o caminho no qual o elemento mítico-religioso nunca se
separa da luta diária contra os representantes do poder. De um lado, este
processo dá ao grupo coesão, força, confiança na vitória final e uma capacidade
de enfrentar a morte que impressiona os comandantes das tropas oficiais. De
outro, os limites da identidade religiosa em torno da figura do monge, da
espera do seu retorno e da fé no exército de São Sebastião vão gerar
contradições que dificultam a expansão do movimento e alimentam conflitos
internos.
Ao dizer isso,
não quero antecipar o desenrolar dos acontecimentos, mas tão somente ajudar a
compreender melhor até a que ponto as práticas adotadas pelos sertanejos, por
estranhas e bizarras que possam parecer, contribuem ora para fazer crescer, ora
para travar os fatores que possibilitam e animam sua resistência”.
- “Tudo bem,
Nádia, agora que as coisas começam a ficar mais claras, você pode prosseguir na
narração dos acontecimentos”, assinala o secretário com voz reconfortada.
Sem perder
tempo, a ave ajeita as plumas do peito e, limpando a garganta diz:
- “Faltando
dois meses para o aniversário do combate do Iraní e a esperada ressurreição de
José Maria, uma menina de 11 anos, chamada Teodora, neta de Euzébio Ferreira
dos Santos, começa a relatar supostos sonhos e visões que ela teria tido do
monge. A notícia se espalha como um rastilho de pólvora e atrai para Pedras
Brancas uma romaria de curiosos e antigos adeptos. Como a própria Teodora
admite em depoimentos posteriores, ela nunca teve visões, mas tudo o que contava
era sugerido pelos anciãos das comunidades que aguardavam impacientes o retorno
de José Maria. Porém, na medida em que seu comportamento se afasta do que seria
de esperar em situações parecidas, o relato de suas visões não consegue
mobilizar os que ainda se mostram incrédulos.
Justo neste
período, Manoel, um jovem de 18 anos também filho de Euzébio, diz que ao
encontrar o monge no meio do mato, este teria lhe transmitido a ordem de levar
todos para Taquaruçu onde seria erguida uma cidade santa na qual o próprio José
Maria reapareceria para todo mundo.
Em estado de grande
exaltação, Euzébio chega em Taquaruçu no dia 1º de dezembro de 1913 com sua
família e um grupo de 20 pessoas que se instalam nas terras de Chico Ventura. A
notícia de que no povoado está sendo fundada uma cidade santa se espalha pela
região atraindo famílias inteiras e um grande número de curiosos.
Manoel,
considerado enviado de Deus e intermediário entre a comunidade e o monge, se
reveste de um caráter sagrado e começa a ter poderes de chefe absoluto. Se, nos
primeiros dias, qualquer pessoa pode entrar e sair do reduto sem impedimento
algum, o crescimento, a sucessiva organização de povoados deste tipo e a
necessidade de se precaver diante das investidas oficiais levam à criação de
regras pelas quais se exigem provas de fé dos que pretendem se incorporar aos
seguidores de José Maria.
Além de
procissões que se realizam de duas a três vezes por semana, a comunidade passa
a estabelecer um ritmo de atividades diárias que vai se tornando mais complexo
com o passar do tempo. De acordo com vários estudos, é neste momento que são
introduzidas as formas e o quadrado santo. Diante da igreja do reduto, há
sempre uma praça quadrangular cujos cantos são demarcados por uma grande cruz. No
âmbito desse espaço, pela manhã e à tarde, toda a comunidade é reunida em fileiras
paralelas de homens, mulheres e crianças. Nestes momentos, a unidade familiar é
momentaneamente dissolvida. As pessoas são colocadas como indivíduos diante dos
discursos dos chefes e a vida comunitária ocupa o centro das atenções. Cantos e
preces são entoados, lançam-se vivas à monarquia e aos monges, discursos
renovam a motivação dos moradores do reduto em preparar a comunidade para o
retorno de José Maria e do exército de São Sebastião.
Estas reuniões
não servem só para o culto ou a reafirmação da identidade grupal. Nelas são
organizadas e distribuídas as tarefas coletivas e corrigidos os comportamentos
que podem dar origem a desgastantes conflitos internos. È neste período de
espera que os adeptos do movimento devem adotar um modo de vida compatível com
o que chamam de Lei de Deus. E isso se torna possível na medida em que
viabilizam práticas baseadas no igualitarismo, cujo fundamento é remetido aos
próprios ensinamentos do monge, e graças ao qual a comunidade prepara o suposto
período de fartura e felicidade que deve iniciar com o seu retorno”.
- “E...será
que dá pra saber um pouco mais sobre estes ensinamentos?”, pede o ajudante
quase em tom de súplica.
- “Simples,
querido secretário. A base do igualitarismo comunitário é contida numa frase
curta, mas que, para os sertanejos submetidos a todo tipo de arbitrariedade,
tem um significado profundo: Quem tem
mói, e quem não tem mói também. Isso faz com que os bens das pessoas sejam
colocados em comum, que haja trabalho coletivo para cuidar das roças e dos currais
da irmandade, que os membros do reduto que mantêm alguma plantação fora do
mesmo coloquem as colheitas à disposição de todos.
É assim que,
pouco a pouco, a vivência comunitária é construída em torno de uma realidade na
qual do que um come, todos têm que comer;
do que um bebe, todos têm que beber; os que têm devem ajudar os que não têm. Quem se recusa a fazer isso é preso e
seus bens são distribuídos. Como todos são irmãos, ninguém tem o direito de
vender nada pra outro e se alguém precisa, por exemplo, de um vestido, este é
dado. A tentativa de um membro do reduto vender algo para um irmão pode ser
punida com a morte. [20]
A vida
comunitária demanda uma total rejeição ao acúmulo de riquezas e qualquer
contribuição, em dinheiro ou em bens, é usada para atender às necessidades
coletivas. Em breves palavras, os sertanejos não rejeitam as atividades
econômicas e produtivas, sem as quais a sobrevivência se tornaria impossível,
mas se opõem frontalmente a toda forma de acumulação e exploração. Neste
sentido, participar da Lei da Monarquia como Lei de Deus, não significa para os
sertanejos trazer de volta o imperador ou um membro de sua família, mas tão
somente comungar, como iguais, como irmãos, das idéias e dos bens.
Além das
relações que se estabelecem no interior dos redutos, três aspectos reforçam a
ruptura com a ordem dominante. Todas as cidades santas são construídas sempre
em locais antes desabitados ou até mesmo abertos no meio da mata fechada. No
ideário sertanejo, a Nova Jerusalém não pode ser vista como a continuidade da
vida existente, mas sim como algo novo, que define uma identidade territorial
na qual não há espaço para o poder dos coronéis e de seus prepostos.
Nesta linha,
além de chamarem-se mutuamente de irmão, os que pretendem ingressar nos redutos
são rebatizados numa cerimônia durante a qual escolhem um novo padrinho. Ao
romper com os antigos vínculos de compadrio, os sertanejos do Contestado
mostram que a vida em comunidade demanda novas referências sociais ao mesmo
tempo em que fortalecem os vínculos de fidelidade recíproca.
Finalmente,
como distintivo, os homens do reduto passam a usar no chapéu uma fita branca do
tamanho da estatura de José Maria, raspam a barba e cortam o cabelo a
escovinha. Em função disso, serão chamados de pelados pelos seus adversários. Termo que, além de retratar o
aspecto externo atribui a eles a conotação pejorativa de indivíduos pobres e
sem dinheiro. Em resposta, os moradores do reduto chamarão de peludos os que consideram inimigos da
santa religião.
As relações
entre o vidente e a comunidade são intermediadas pelos Doze Pares de França
que, neste primeiro momento, integram também o que podemos chamar de conselho
deliberativo do reduto. Longe de ser uma simples guarda de honra, como nos
tempos de José Maria, o desenrolar da guerra vai levar este conjunto de pessoas
a se transformar num piquete de elite muito hábil no confronto corpo a corpo e
no uso de armas brancas. Com uma espada na mão direita e uma bandeira na
esquerda, os Pares se distinguem pela facilidade com a qual, graças a um
movimento rápido, vedam a visão do soldado com a bandeira enquanto o golpeiam
mortalmente com a arma que carregam.
- “Imagino
que, nesta altura dos acontecimentos, a elite deve estar de cabelo em pé...”
- “E nem
poderia ser diferente. Assustado com a movimentação em volta do reduto,
Albuquerque entra em contato com o governador e este com a presidência da
República. Mais de 200 soldados são mobilizados e enviados ao Contestado com a
missão de dispersar os sertanejos.
Com o
propósito de evitar um novo derramamento de sangue, Frei Rogério Neuhaus se
dirige a Taquaruçu, mas sua tentativa de convencer os moradores do reduto a
voltarem a seus locais de origem fracassa.
A notícia de
que as tropas oficiais estão a caminho, leva os seguidores de José Maria a se prepararem
para o combate iminente. No entanto, os recursos bélicos propriamente ditos são
extremamente reduzidos. A maior parte dos sertanejos conta só com facões e
espadas de ferro ou de madeira com um prego na ponta. As armas de fogo são poucas,
de curto alcance e nada podem fazer para deter o poderio dos fuzis à repetição
e da metralhadora do exército. Das 600 pessoas que moram em Taquaruçu, os
combatentes propriamente ditos não passam de 300, mas todos, grandes e
pequenos, homens e mulheres, treinam ou contribuem com o esforço de guerra
cavando trincheiras, juntando pedras e tudo o que pode servir para repelir o
ataque inimigo.
A confiança
nas profecias de Manoel faz os sertanejos acreditarem que as carabinas dos
soldados vão negar fogo e que, tanto o monge, como o exército encantado, vão
aparecer em sua glória para derrotar as forças adversárias. Longe de instigarem
os rebeldes a serem relapsos em sua organização militar, as palavras do vidente
visam infundir nos combatentes uma esperança mística que procura dar-lhes ânimo
e torná-los moralmente capazes de enfrentar as forças adversárias, por
poderosas que sejam.
Inesperadamente,
na véspera do combate, Manoel reúne o povo e declara ter recebido de José Maria
a ordem de dormir com duas virgens. A situação soa estranha no âmbito de
austera moralidade que marca presença constante em Taquaruçu e, imediatamente,
os sertanejos destituem o vidente do seu cargo. Quem vai substituí-lo é
Joaquim, um garoto entre os 11 e 12 anos, neto de Euzébio, que ganha o apelido
de Menino-deus.
Enquanto isso, 210
homens do exército marcham em direção ao reduto divididos em três colunas que
percorrem caminhos diferentes e às quais se incorporam piquetes de civis
armados. A que parecia uma brilhante estratégia militar se transforma numa
fragorosa derrota. No dia 29 de dezembro de 1913, comandados por Joaquim, os
revoltosos realizam ataques de surpresa contra cada coluna espalhando o pânico
entre os soldados que se vêem obrigados a bater em retirada. Os combatentes do
reduto conseguem se apoderar da metralhadora, de vários fuzis e de seis carros
lotados de suprimentos. O que não é queimado por ser considerado impuro passa a
enfeitar os caminhos que levam a Taquaruçu. Fardas, bonés, distintivos
militares e demais apetrechos são dependurados em árvores e arbustos como
sinais da vitória dos rebeldes.
Os
prisioneiros trazidos ao reduto devem jurar servir e respeitar os princípios
anunciados pelo monge. Em seguida, pedem perdão por seus pecados, beijam as
mãos dos Pares de França e são por estes proclamados soldados de José Maria. Os
que não cedem são açoitados até aceitar se submeter ao ritual e, caso resistam,
são fuzilados.
O fracasso das
forças oficias, cujas razões devem ser procuradas mais na desorganização, no
medo e no despreparo da tropa do que nos méritos dos sertanejos, consolida a
fama de invencibilidade dos pelados e atrai para Taquaruçu um maior número de
pessoas revoltadas com a ordem dos coronéis”.
- “Imagino
que, depois do sucesso militar, o reduto esteja crescendo a olhos vistos...”,
sugere o homem ao se familiarizar com a história.
- “E seria
isso mesmo, não fosse pela ordem de Joaquim de transferir a cidade santa para o
norte, em direção a Caraguatá – rebate a coruja ao apresentar um aspecto
inesperado da organização dos sertanejos.
No início de
1914, o Menino-deus revela que os seguidores de José Maria perderiam a batalha
caso o exército investisse novamente contra Taquaruçu. A migração é realizada
aos poucos. De início, só os homens se dirigem para o local indicado com a
tarefa de roçar o mato, construir os casebres e a igreja, enfim, arrumar tudo,
no mais tardar, para o final de janeiro.
Na primeira
semana de fevereiro, 700 homens comandados pelo coronel Aleluia Pires estão
prontos para atacar Taquaruçu. Contando com duas seções de metralhadoras, uma
unidade de artilharia de montanha e um esquadrão de cavalaria, a vitória parece
certa. O problema, agora, é a hesitação de alguns oficiais que não vêem os
sertanejos como inimigos, mas sim como vítimas da politicagem das autoridades.
Diante desta
situação, Aleluia Pires consente que o deputado federal paranaense, Manoel
Correia de Freitas, faça uma tentativa pacífica de convencer os moradores do
reduto a se dispersarem. Do relato publicado no Jornal da Tarde, de Curitiba,
em 6 de março de 1914, lemos: Em
Taquaruçu há poucas armas. Todos, entretanto, andam armados com «cacetes de
três gumes». Apesar de tão reduzido armamento, os fanáticos asseguram que se
baterão contra qualquer força que vá atacá-los. Há um profundo ressentimento
político e social. Queixam-se das autoridades de Curitibanos e Campos Novos,
dizendo que se estes não os perseguissem, iriam imediatamente pra casa tratar
de suas lavouras. (...)
Em resposta às gestões do deputado,
afirmavam-lhe sempre que ali se encontravam congregados numa santa missão e que
não possuíam intuitos de atacar ninguém; mas, se fossem atacados, não tinham
remédio senão defender-se. Animando-os em sua fé renovadora continuava presente
não só a crença na ressurreição dos que morressem na defesa da santa causa, mas
também – como algo palpável – o Exército Encantado. Ao cair da noite, relata
Antonio Sampaio, todos olham para as nuvens e as grimpas dos pinheiros, e,
alucinados, julgam ver no céu castelos, torres, igrejas e o Exército de São
Jorge e São Sebastião. Se alguém afirma nada conseguir enxergar, há sempre uma
resposta pronta: «Não tens fé, não podes ver». [21]
Na negociação
com os sertanejos de Taquaruçu, o máximo que o deputado consegue é a promessa
de que todos se dispersariam desde que também os de Caraguatá fizessem o mesmo.
Na esperança de evitar o massacre, Correia de Freitas se dirige ao novo reduto,
mas tem pouco tempo para fazer sua última tentativa. Sabemos bem pouco do que
acontece durante o encontro com os líderes, mas, de acordo com todas as fontes,
os chefes do movimento exigem a monarquia como condição de paz. Não querem uma
simples distribuição de terras, pretendem sim ir ao Rio de Janeiro e derrubar o
governo. Em breves palavras, querem o fim do governo dos coronéis para
implantar a monarquia no país inteiro, tal como os sertanejos em armas já vimos
que a compreendem e vivem.
Sem atingir
seu objetivo, o deputado começa o caminho de volta e chega em Campos Novos em
10 de fevereiro de 1914, de onde parte de trem em direção a Porto Alegre.
Enquanto isso,
entre os soldados que integram o Regimento de Segurança de Santa Catarina, a
situação antes do combate se agrava em função das deserções. Diante do pânico
provocado pela crença de que os redutários de Taquaruçu contam mesmo com algum
tipo de proteção divina e da falta de convicção em combater simples sertanejos,
dos 60 homens que integram o destacamento, 22 abandonam o contingente.
No dia 8 de
fevereiro, o general Alberto de Abreu Pires ordena o inicio do ataque. Após
atravessar a mata e posicionar os canhões, o reduto é atingido por 175 granadas
explosivas que destroçam a igreja e mais de 200 casebres. Os poucos homens que
ainda estão em Taquaruçu correm para as trincheiras cavadas atrás das casas. Os
tiros que partem de seus fuzis não conseguem sequer se aproximar das tropas, ao
passo que, quando suas cabeças se erguem para espreitar o inimigo, acabam sendo
atingidos pelos disparos das metralhadoras.
Ao anoitecer,
após uma jornada sem combates corpo a corpo, é decretado o cessar-fogo. Na
manhã seguinte, as tropas estão prontas para tomar o reduto em cujos terrenos
estão esparsos os corpos sem vida de um grande número de mulheres e crianças.
As bandeiras brancas com a cruz verde que, segundo se acreditava, possuíam o poder
mágico de destruir 50 soldados toda vez que descrevessem três cruzes no ar, se
confundem entre os pedaços de pernas, braços e cabeças dos moradores
destroçados. Taquaruçu parece ter sido abandonada. Só uma imagem intriga os
oficiais. Na frente das trincheiras há uma linha de atiradores firmes e
imóveis. A aproximação das tropas revela se tratar de cadáveres assim
enfileirados e postados pelos retirantes para atrasar o assalto final e
possibilitar a fuga dos sobreviventes. De acordo com algumas fontes, os
sertanejos deixam mais de 90 mortos no campo de batalha. Entre as baixas do
exército só há um morto e três feridos”.
Encerrada a
história do massacre, o olhar triste da coruja acompanha os momentos de
silêncio que antecedem o progredir do relato.
Firme em sua
posição, o secretário entende os sentimentos da ave e, para ajudá-la a superar
os instantes de sofrimento, deixa os lábios ensaiarem uma nova pergunta:
- “Como é que
os acontecimentos de Taquaruçu repercutem entre os sertanejos que labutam para
erguer o reduto de Caraguatá?”.
- “O massacre
- responde Nádia com voz emocionada e triste - é recebido na nova cidade santa
com um sentimento que mescla, ao mesmo tempo, uma sensação de terror e de
profunda indignação. Aos sobreviventes dos bombardeios que se refugiam no
reduto, se unem os parentes das vítimas, movidos pelo desejo de vingança. Tanto
entre os chefes encarregados de garantir a realização das atividades
econômicas, militares e religiosas, como entre o grupo de videntes, que agora se
alternam na direção da comunidade, está clara a sensação de que a tragédia de
Taquaruçu não representa o fim, mas sim o início da guerra sertaneja
propriamente dita.
Passados os
primeiros dias, a nova situação e o fluxo crescente de pessoas que chegam em
Caraguatá impõem mudanças na própria organização da comunidade. Se, de um lado,
as relações de igualdade e a partilha dos bens são mantidas como pilares da
vida econômica e social do reduto, a destruição de Taquaruçu levou consigo as
roças e as criações que estavam sendo formadas. Ou seja, se os primeiros tempos
de Caraguatá prometiam fartura, a perspectiva da guerra começa a fazer pairar a
sombra ameaçadora da fome. Diante da previsão de novos ataques do exército, os
sertanejos sabem que se verão obrigados a mais deslocamentos e isso implica na
impossibilidade de poder contar com recursos próprios suficientes para
alimentar a população. As provisões trazidas pelos colonos que passam a morar
na cidade santa, assim como as doações dos pequenos proprietários que se sentem
honrados em contribuir com a alimentação do que consideram Povo de Deus e os
donativos de alguns fazendeiros que esperam manter os redutários bem longe de
suas propriedades não vão garantir comida suficiente por longo tempo. A falta
de farinha, por exemplo, já é registrada pelos chefes entre o final de
fevereiro e o início de março de 1914.
Neste
processo, as práticas de caráter mágico que haviam se demonstrado ineficazes,
são abandonadas e a preparação militar do reduto ganha cuidados especiais. Os
Pares de França se tornam um corpo de elite. Os piquetes que, nos primeiros
tempos, se limitavam a recrutar alguns soldados, partem agora em todas as
direções a fim de arrebanhar cabeças de gado, armas e tudo o que pode servir
para enfrentar a guerra, tomando à força estes bens de fazendeiros e
proprietários considerados inimigos da fé. Postos de guarda avançados são
instalados em pontos estratégicos e, em não poucas ocasiões, em volta deles
começam a se formar redutos menores.
Todos os dias,
Venuto Baiano, comandante militar de Caraguatá, dirige os exercícios de tiro e
de marcha nos quais envolve grande parte dos moradores. A produção de facões é
acelerada e ganha a dedicação exclusiva de um grupo que se especializa na
feitura destas armas.
Alguns
redutários são treinados e enviados para sondar o movimento das tropas nos
arredores. Além de auxiliar os postos de vigilância avançada, se infiltram nas
fileiras inimigas para extrair o maior número de informações sobre os passos
que o exército pretende dar para derrotar o movimento. É assim que, homens e
mulheres de Caraguatá se apresentam aos soldados como camponeses humildes da
região e, fingindo-se perseguidos pelos moradores do reduto, tentam ganhar sua
confiança vendendo guloseimas da roça. Conseguida a amizade da tropa, sua
presença nos acampamentos é vista com naturalidade e isso permite aos rebeldes
do Contestado aproveitar a boa fé conquistada para ver e ouvir tudo o que se
passa a respeito da guerra.
Passado o
pânico inicial, reconfortados os espíritos e infundido um novo ânimo, entre os
sertanejos começa a predominar a crença de que ninguém morreu em Taquaruçu, mas
que todos, simplesmente, passaram para o Exército de São Sebastião. Além de
fortalecer a identidade do grupo num momento crítico de sua existência, a
releitura mítica do massacre deixa entender que, contrariando o que seria
previsível em qualquer situação de fanatismo religioso, os sertanejos não
querem morrer. Os homens e mulheres que integram o reduto querem apenas escapar
do mundo de violência e de morte em que estão mergulhadas suas vidas e, ao
fazer isso, não têm outra opção a não ser enfrentar a própria morte.
A liderança do
reduto passa a ser compartilhada por Elias de Moraes e pela virgem Maria Rosa,
de 15 anos, que, à diferença dos videntes anteriores, não submete suas ordens à
avaliação do conselho. Após o massacre de Taquaruçu, é ela a dirigir as formas
e distribuir os comandos específicos das atividades econômicas e militares que
garantem a vida na comunidade.
Diante das
dificuldades de abastecimento e das necessidades impostas pela guerra, a
vigilância dos chefes sobre os moradores do reduto se torna mais rigorosa e as
medidas disciplinares mais rígidas. As saídas passam a ser proibidas e, todas
as manhãs, durante as formas, os chefes contam os moradores para verificar a
ocorrência de deserções. Os suspeitos de delação ou de serem inimigos
infiltrados são sumariamente investigados e executados com o suplício da
estaca. Os condenados são amarrados e têm seu queixo apoiado numa haste
pontiaguda que, devido ao peso do corpo, vai penetrando na cabeça provocando uma
morte lenta e extremamente dolorosa.
Punição
parecida atinge os que são considerados hereges. Ao mostrar-se descrente em
relação à santa religião, o indivíduo não corre só o risco de perder todos os
bens que ainda possui em favor da causa, como de sofrer a pena capital. A
identidade que deve garantir a coesão do grupo nos momentos de sofrimento que
se preparam deixa o terreno da adesão voluntária para ser garantida a ferro e
fogo”.
- “Isso deve
ser porque os sertanejos estão esperando novas investidas das tropas
governamentais...”.
- “Exatamente.
A declaração de guerra, assinada pelo governo com o massacre de Taquaruçu,
mobiliza os rebeldes. O exército real de José Maria está na iminência de um
novo combate. É disso que vou tratar no próximo capítulo ao falar do período
que vai da...”
9. Da vitória de Caraguatá às primeiras
rendições.
- “No início
de março de 1914 – afirma a coruja ao levantar a asa direita -, as tropas
oficiais se dirigem a Caraguatá sob o comando do tenente-coronel José
Capitulino Freire Gameiro. Guiados por moradores locais, os soldados entram em
Perdizes Grandes, mas encontram o arraial em estado de completo abandono. Três
dias depois, levantam o acampamento em direção à meta de sua expedição. Após
meia hora de marcha, o contingente é atacado na retaguarda. Os sertanejos se
dispersam antes da chegada dos reforços, mas a troca de tiros atrasa a coluna e
provoca inquietação entre os militares.
Em seguida, os
oficias percebem que estão sendo levados por um caminho errado e mais tempo é
perdido até enveredar numa picada que leva ao reduto. Ao adentrar-se na mata,
alguns soldados avistam ao longe um grupo de mulheres que, percebendo sua
aproximação, fogem para se esconder. Quebrando a disciplina, um contingente
corre atrás delas e não tarda a se deparar com uma situação totalmente
inesperada: vestidos com roupas femininas, os sertanejos acabam de atrair a
tropa no local escolhido para uma emboscada devastadora.
Passado o incidente,
o exército é novamente atingido por disparos. O fato de não conseguir sequer
perceber onde estão postados os atiradores semeia o pânico entre as tropas que,
atacadas pela retaguarda, começam a ficar desorientadas. Sem poder usar
metralhadoras e canhões, os oficiais ordenam uma carga de baioneta mato adentro
na tentativa de desalojar os atiradores.
Conhecedores
do terreno, hábeis na luta com arma branca e apoiados pelos companheiros
armados de fuzil que se escondem na vegetação, os sertanejos não têm dificuldades
em repelir as tropas que, ao amargar pesadas baixas, se retiram no dia 9 de
março.
A vitória de
Caraguatá traz grande alegria ao reduto. Seus combatentes, temidos pela
determinação com a qual encaram a luta, são tidos como invencíveis, ao passo
que, os soldados do governo, muitos dos quais partilham as crenças dos
caboclos, se consideram vencidos por antecipação. Ganhos os primeiros combates,
os redutos conseguem contar com a simpatia e a admiração da população pobre do
Contestado. Pouco a pouco, a monarquia sertaneja, nos moldes descritos nas
páginas anteriores, deixa de ser um projeto isolado a ser vivido pelos devotos
de José Maria para transformar-se num sonho que contagia a região.
Sabendo que o
desenrolar dos acontecimentos traria novos e pesados ataques das forças
oficiais, os sertanejos espalham seus piquetes em todas as direções. Pequenos
redutos se formam em volta dos postos avançados de vigilância. No breve momento
de paz após o conflito, Caraguatá se prepara para a guerra.
Fortes em suas
posições militares, admirados pela população e impulsionados pela necessidade
de garantir o abastecimento, os piquetes atacam as fazendas e impõem tributos
aos povoados das redondezas. Propriedades são assaltadas e têm seus bens tomados
pelos sertanejos. Alguns fazendeiros são presos e levados para os redutos a fim
de serem julgados, outros são surrados e libertados ou, considerados inimigos
dos pobres e da santa religião, acabam supliciados e fuzilados. Outros ainda
são mortos durante os ataques e suas famílias são ameaçadas de terem o mesmo
fim caso tentem enterrá-los. A exigência do não-sepultamento dos cadáveres se
deve à crença pela qual o simples fato do corpo não ficar sete palmos abaixo do
chão impossibilitaria à alma de entrar no paraíso. Ao castigo sofrido na terra
por seus desmandos, se acrescentaria assim a condenação eterna.
Enquanto estes
fatos começam a tomar conta da realidade, a expansão do movimento assusta ainda
mais as elites que começam a construir em volta dos sertanejos não a imagem de
rebeldes que lutam por uma causa, mas sim a de bandidos cuja ação precisa ser
contida a qualquer preço.
No final de
março, a virgem Maria Rosa faz uma revelação que esfria o clima de euforia em
Caraguatá. Ao prever a chegada de uma nova força de governo, ordena a mudança
do reduto para a região de Bom Sossego.
A
transferência da comunidade é apressada por uma epidemia de tifo. Protegidas
por uma centena de combatentes armados de fuzil, famílias inteiras, a pé e a
cavalo, levam como podem os seus pertences e as mais de 600 cabeças de gado
arrebanhadas nos ataques às fazendas. Ao chegar no local indicado, em poucos
dias, erguem centenas de casebres improvisados dando vida a um intricado
conjunto de ruas e vielas que desembocam na praça central”.
- “E as previsões
de Maria Rosa se confirmam?”, pergunta o ajudante em voz baixa.
-
“Infelizmente, sim – responde prontamente a ave. O problema é que os setores da
elite envolvidos na manutenção de seus interesses e relações de poder vêem nas
armas o único meio de destruir a rebeldia que vem de baixo e de restabelecer a
ordem. Em meados de abril de 1914, o general Frederico Mesquita assume o
comando das operações de guerra. Veterano de Canudos, o oficial se depara com
uma série de dificuldades. Além da sensação de abandono pela falta de
pagamento, remédios e comida para as tropas, se faz presente entre os soldados
a convicção de que estão enfrentando guerreiros invencíveis e que, portanto,
estão condenados à derrota.
Constatando
que seus subordinados estão prestes a se revoltarem, o general se desdobra para
garantir verbas e mantimentos capazes de sustentar uma nova expedição militar.
Antes de preparar seus planos, Mesquita se reúne com o Padre José Lechner,
profundo conhecedor da região, que ajuda a esboçar um croqui dos redutos e
fornece informações precisas sobre os mesmos. Com base nestes dados, o general
prepara um ataque simultâneo pelo norte e pelo sul enquanto um terceiro
contingente marcha em direção a Caraguatá.
Se esta última
coluna não encontra dificuldades em destruir e atear fogo nas casas abandonadas
da antiga cidade santa, o mesmo não se pode dizer das primeiras duas. A marcha
dos soldados é fustigada por atiradores escondidos na mata contra os quais de
nada adiantam os seguidos tiros de canhão e as descargas de metralhadora
ordenadas contra os lugares de onde se supõe estariam partindo as balas do
inimigo. O único embate se dá nas proximidades do povoado de São Paulo onde os
sertanejos mantêm um posto de guarda avançado.
No dia
seguinte, quando oficiais e praças ainda comemoram a vitória, as tropas são
surpreendidas por uma verdadeira chuva de balas que provoca dezenas de baixas.
Encurralados, os soldados improvisam trincheiras para não serem atingidos
durante a noite. Na manhã seguinte, diante da impossibilidade de continuar a
marcha, o general ordena a retirada, durante a qual suas forças continuam sendo
alvejadas pelos sertanejos escondidos na mata.
Diante de mais
uma derrota, o governo encarrega o capitão João Teixeira de Matos Costa de
proteger os serviços da ferrovia contra a possível expansão das atividades dos
rebelados. À diferença de seus antecessores, o oficial chega a simpatizar com a
causa dos sertanejos. Para ele, a responsabilidade da revolta camponesa deve
ser atribuída aos desmandos dos coronéis que agora, apertados pelas
conseqüências produzidas, pedem socorro ao governo.
Disfarçado de
vendedor ambulante, o capitão visita os redutos que se formam em torno dos
postos de guarda e conversa longamente com seus moradores. Ao seu retorno,
declara: A revolta do Contestado é apenas
uma insurreição de sertanejos espoliados nas suas terras, nos seus direitos e
na sua segurança. A questão do Contestado se desfaz com um pouco de instrução e
o suficiente de justiça, como um duplo produto que ela é da violência que
revolta e da ignorância que não sabe outro meio de defender o seu direito. [22] A
indignação diante das injustiças sofridas pelos camponeses não faz Matos Costa
mudar de lado, mas apenas tentar outros meios para resolver o conflito.
Contando com o apoio da virgem Maria Rosa, o capitão envia dois civis à região
de Bom Sossego com a missão de tentar uma saída pacífica. Ao voltarem, os
emissários trazem por escrito as condições impostas por Elias de Moraes: Os redutos se dispersariam depois de liquidados
os coronéis Arthur de Paula, Fabrício Vieira, Chiquinho de Albuquerque,
Amazonas Marcondes, Affonso Camargo, Pedro Vieira, Pedro Ruivo, os irmãos
Michinicovsk da estação Escada e outros, e ainda depois da restituição das
vidas das mulheres e crianças que foram mortas pelas forças do governo no
ataque a Taquaruçu. [23]
Em agosto, o
oficial vai ao Rio de Janeiro para conferenciar com o governo da República, mas
já sabe qual é a saída que será apontada pelas autoridades”.
- “Pelo visto,
os redutos devem estar em ebulição...”.
- “É isso
mesmo. O prestígio de Maria Rosa começa a diminuir na medida em que pesam sobre
ela as suspeitas de que teria participado da tentativa de pacificação promovida
pelo capitão. O comando do reduto é assumido por Francisco Alonso de Souza,
cuja bravura e coragem à frente do piquete por ele comandado havia aumentado
sua reputação entre os moradores da comunidade.
Da metade de
julho em diante, a escassez de comida leva os sertanejos a multiplicarem seus
ataques contra fazendas e cidades próximas. Entre estes, ganha destaque o que
ocorre no dia 5 de setembro, em Calmon, quando a estação ferroviária, a
serraria da Lumber, o depósito de madeira e as casas da companhia são
incendiadas pelos revoltosos que só poupam a vida de mulheres e crianças. Ao
passar pela região, os piquetes sertanejos convocam a população a dirigir-se
aos redutos na tentativa de afastar o maior número possível de pessoas da
arregimentação compulsória das forças oficiais e de aumentar as próprias
fileiras.
As cidades santas
crescem a olhos vistos, mas nem todas as famílias que aceitam a convocação o
fazem em apoio à causa dos rebeldes. Grande parte delas faz isso por temer uma
possível retaliação, pois as propriedades dos que se negam a acompanhar o
movimento são sistematicamente destruídas e incendiadas.
Nos assaltos às
fazendas, os sertanejos derrubam cercas, ateiam fogo nas casas e se apropriam de
colheitas, rebanhos, armas e utensílios existentes. Ao investir contra os
povoados, a atenção cai sobre o que pode ajudar as comunidades a enfrentarem as
necessidades da guerra e há uma preocupação especial em destruir os livros de
registro de imóveis dos cartórios.
Além disso, os
sertanejos mantêm relações secretas com os comerciantes de vários municípios
aos quais vendem o couro do gado consumido nos acampamentos em troca de gêneros
de primeira necessidade, armas e munições. Estas últimas são introduzidas nos
redutos disfarçadas em caixas de ferragens e mantimentos ou em latas de doce e
de manteiga.
Na medida em
que os ataques contra as colunas do exército surtem o efeito desejado, fuzis,
revólveres e cartuchos, deixados pelas tropas em retirada, passam a integrar o
arsenal rebelde. Só os carros com os mantimentos são abandonados por acreditar
que a comida neles transportada pode ter sido previamente envenenada.
No auge do
movimento, a área de influência dos redutos se aproxima dos 28.000 quilômetros
quadrados, tamanho de pouco inferior ao do estado de Alagoas. Nela vivem cerca
de 20.000 sertanejos (divididos em comunidades que concentram de 300 a 5.000
moradores) dos quais 8.000 seriam combatentes. Durante os enfrentamentos, o
desempenho deste contingente é favorecido não só pelo aprimorado conhecimento
do terreno, que permite explorar os acidentes geográficos e as características
da mata, como pela intensa e dedicada participação de toda a comunidade. Em
várias ocasiões, por exemplo, grupos de adolescentes acompanham de perto os
ataques de surpresa com gritos de viva à monarquia e a José Maria, o que
desperta nos inimigo a impressão de estar sempre diante de um grande número de
adversários armados e, portanto, em condições de inferioridade”.
- “Confesso
que estou curioso em saber como é que o capitão Matos Costa vai agir diante
destes acontecimentos...”, comenta o ajudante com expressão desconcertada.
- “O oficial
volta do Rio de Janeiro no final de agosto. Informado das ocorrências, reúne os
poucos homens de que dispõe para tentar proteger a ferrovia. No dia 6 de
outubro, chega com 60 praças em Porto União, de onde segue para Calmon. Na
estação Nova Galícia, o capitão ordena o desembarque de parte das tropas que
continua a pé pela via férrea acompanhada pelo trem em marcha vagarosa. Atacada
de surpresa, a maior parte do contingente é alvejada por um piquete sertanejo,
cujas balas matam o próprio Matos Costa. O trem com os demais soldados recua a
toda velocidade e só pára em Porto União.
As notícias
trazidas pelos passageiros espalham o pânico entre a população que foge rumo a
Ponta Grossa em composições lotadas de famílias aflitas e aterrorizadas.
Ao espalharem-se, os
boatos aumentam a gravidade dos acontecimentos. Povoados inteiros são
esvaziados às pressas. Os habitantes de Curitibanos deixam suas casas ao cair
da noite para procurar refúgio nos bosques e matas das redondezas de onde
voltam no dia seguinte para cuidar de seus afazeres. Em Ponta Grossa, a 15
horas de trem da União da Vitória, há quem diz que os fanáticos estariam por
perto e em Curitiba circulam vozes de que grupos deles teriam sido vistos em
alguns bairros.
Apesar do
impacto que as ações sertanejas causam na região, o movimento rebelde não ganha
as atenções da imprensa nacional. Ocupados com a intervenção federal no Ceará,
com o estado de sítio na capital e com a eclosão da primeira guerra mundial na
Europa, os debates parlamentares e a imprensa não abrem espaço aos
acontecimentos do Contestado. As poucas notícias publicadas divulgam relatos
avulsos de militares que buscam plantar informações fornecidas por partidários
de Santa Catarina ou do Paraná, com o intuito de ganhar a simpatia da opinião
pública no que se refere à velha questão dos limites territoriais entre os dois
estados.
O silêncio dos
meios impressos não impede que os seguidos ataques sertanejos levem as
autoridades catarinenses e paranaenses a apresentarem, juntas, um pedido de
intervenção federal na região. É assim que, enquanto Matos Costa faz seus
últimos movimentos em 26 de agosto de 1914, o Ministro da Guerra entrega ao
general Setembrino de Carvalho a incumbência de destruir os redutos sertanejos.
Diante dos fracassos anteriores, da mobilidade dos rebeldes e da gravidade do
momento, o oficial percebe a impossibilidade de sufocar a revolta e restabelecer
a ordem com alguns combates. Por isso, planeja e viabiliza a implantação de um
cerco militar em torno da área controlada pelos sertanejos que, ao cortar as
linhas de comunicação e abastecimento com as regiões fora dos redutos vai se
estreitando e enfraquecendo a capacidade de resistência dos rebeldes.
As tropas,
divididas em quatro colunas, são posicionadas em pontos estratégicos, prontas a
intervir, mas sem serem submetidas à ação desgastante das emboscadas
sertanejas. Estas medidas visam quebrar a impetuosidade dos revoltosos e fazer
com que a fome tome conta dos redutos e provoque conflitos internos capazes de desgastar
a coesão das comunidades.
Na primeira
etapa do plano, o general busca restabelecer a circulação dos trens e impedir a
passagem dos rebeldes para Palmas e Iraní. Nesta operação ganha o apoio da
diretoria local da Brazil Railway que incumbe os funcionários de aprimorar a
fiscalização das mercadorias transportadas para impedir que os sertanejos usem
os vagões de carga para levar armas e munições à região do conflito.
Em seguida,
tenta esvaziar as comunidades rebeldes mostrando aos moradores
recém-incorporados que o governo entende os anseios dos quais são portadores e
oferece uma chance de reconciliação. No texto divulgado para este fim, lemos: Apelo. Fazendo um apelo aos habitantes da
zona conflagrada, que se acham em companhia dos fanáticos, eu os convido a que
se retirem, mesmo armados, para os pontos onde houver forças, a cujos
comandantes devem apresentar-se. Aí lhes são garantidos meios de subsistência,
até que o governo do Estado do Paraná lhes dê terras, das quais se passarão títulos
de propriedade. A contar, porém, desta data em diante, os que não fizerem
espontaneamente e forem encontrados nos limites de ação da tropa, serão
considerados como inimigos e assim tratados com todos os rigores das leis da
guerra.
Quartel General das Forças de Operações, 26
de setembro de 1914. General Setembrino de Carvalho. [24]
No mesmo dia,
a Vila de Curitibanos é tomada por 212 sertanejos que incendeiam casas,
saqueiam lojas e armazéns, destroem o prédio a Intendência Municipal e a
cadeia, ateiam fogo na mansão do coronel Francisco Albuquerque e só poupam as
moradias onde encontram imagens de José Maria. Dias depois, outros piquetes
ocupam Salseiro e Três Barras, invadem as colônias Iracema e Moema e atacam a
fazenda Corisco, poderosamente fortificada. Esta última ação é realizada quando
já é noite fechada e, no escuro, os rebeldes acabam se ferindo e matando
mutuamente. Ao amanhecer, entre os cadáveres que se espalham pelo chão,
reconhecem o do chefe Francisco Maria Camargo.
No dia de
Finados, um piquete chefiado por Francisco Alonso ataca a colônia Rio das Antas
com 35 homens, entre os quais está Adeodato Manoel Ramos. A inesperada
resistência dos colonos surpreende os revoltosos e atinge mortalmente o
comandante do destacamento.
Diante do
clima de tensão que se apodera do Contestado e da demora em fechar o cerco
militar pelo norte, Setembrino procura suprir suas deficiências pedindo ao
coronel Fabrício Ferreira, grande proprietário de terras, que organize uma
coluna volante para fiscalizar as margens do Rio Iguaçu e fechar os caminhos
entre União da Vitória e Canoinhas, alvo constante dos ataques rebeldes.
Atendendo ao
pedido, o latifundiário organiza um contingente de vaqueanos, ou seja, de civis
armados que conhecem todos os caminhos e lugares da região devido ao seu
trabalho com o gado. Dias depois, um dos bandos assim formados prende 17 homens
e, sob a alegação de que estes haviam se negado a mostrar supostos depósitos de
mercadorias destinadas aos redutos, degola todos eles.
A notícia
provoca grande escândalo. O general ordena uma devassa para apurar os
acontecimentos, mas os executores do massacre permanecem impunes. Ao que tudo
indica, Setembrino sabe que ainda vai precisar destes homens para ganhar a
guerra e, portanto, prefere deixar o fato cair no esquecimento”.
- “Pelo visto,
os seguidores de José Maria não vão ter vida fácil...”, observa o secretário ao
coçar a cabeça.
- “Não mesmo –
confirma Nádia ao piscar os olhos. Além dos revezes sofridos em alguns
combates, a notícia da morte de Francisco Alonso acirra a disputa pela
liderança no interior das comunidades. Elias de Moraes, que considera traição
qualquer compromisso com as autoridades, quer que a chefia seja entregue a
Adeodato enquanto os partidários de Maria Rosa preferem Antoninho, líder do
ajuntamento de São Sebastião. Após várias desavenças e incertezas, o primeiro assume
o comando geral dos redutos.
De início, o
novo líder manda interromper a ofensiva em todas frentes para permitir que uma
coordenação mais direta e unificada sobre os vários grupos proporcione a
reorganização dos combatentes. A manobra de isolamento implementada por
Setembrino de Carvalho levanta a necessidade do movimento se expandir a oeste
do Rio do Peixe onde os redutários ficariam mais afastados das tropas do governo
e iriam dispor de mais recursos para a guerra. Em meados de dezembro de 1914,
Adeodato ordena a mudança do reduto-mor para o vale de Santa Maria, onde os
acidentes geográficos, além da mata virgem, dariam ao novo povoado uma posição
defensiva privilegiada.
Os sertanejos
passam a acreditar que Santa Maria é chão sagrado e que, aí, todos seriam
imortais. Pouco a pouco, os nove quilômetros entre o reduto de Caçador e a nova
comunidade são ocupados por casebres de adeptos do monge e, no seu auge, Santa
Maria vai contar com uma população que se aproxima das cinco mil pessoas.
O problema é
que, apesar de suas qualidades defensivas, as características do vale onde está
situada a nova cidade santa facilitam o fechamento do cerco planejado pelo
exército. Se, um lado, as ladeiras íngremes e os penhascos dificultam o acesso
dos soldados, de outro, complicam a vida de quem quer sair ou entrar no reduto.
Com o comércio
externo interrompido pelas tropas legais, as crescentes dificuldades de arrebanhar
gado e a impossibilidade de plantar para garantir o abastecimento, as condições
no interior da cidade santa se tornam dramáticas. Não bastasse a fome, uma epidemia
de tifo se abate sobre Santa Maria matando uma média de 30 pessoas diárias.
Paralelamente
a isso, as autoridades oficiais permitem, de forma tácita, que os vaqueanos a
serviço dos coronéis da região ataquem os rebanhos dos redutos e os que
pertencem aos sertanejos suspeitos de simpatizarem com os rebeldes ou de
tolerarem suas ações.
Na medida em
que a fome avança, as relações nas comunidades se deterioram. Adeodato passa a
tratar com extrema severidade qualquer desvio de conduta. A disciplina é
imposta com mão de ferro. Os que fraquejam diante das dificuldades são vistos
como traidores potenciais. Entre os que conseguem fugir dos redutos, parte se
entrega aos bandos de vaqueanos que vasculham a região e parte coloca-se a
serviço das tropas oficiais fornecendo informações precisas sobre contingentes
armados, postos de vigilância e estratégia defensiva de cada comunidade”.
- “Nesta
altura, os enfrentamentos com as tropas do exército e os civis armados pelos
latifundiários parecem anunciar um verdadeiro desastre...”.
Sem emitir
palavra, a ave limita-se a fazer um sinal afirmativo com a cabeça. Em seguida, senta
na beirada de um livro deitado como quem precisa retomar fôlego para seguir
viagem. Instantes de silêncio anunciam a tempestade que está prestes a se
abater sobre os redutos sertanejos.
Após um rápido
piscar de olhos, Nádia limpa a garganta e, com voz compenetrada diz:
- “Em 21 de
dezembro de 1914, chega preso em Curitibanos o sertanejo Augusto Alves. Durante
o interrogatório, revela que os rebeldes estão transformando Taquaruçu numa
Nova Jerusalém onde aguardam para o dia 25 a ressurreição de José Maria. Em seguida,
com o apoio do monge, atacariam a fazenda do coronel Henriquinho de Almeida e as
cidade de Lages e Curitibanos.
De posse
destas informações, o major Leovigildo Paiva se dirige ao reduto com 300
soldados e ataca a comunidade enquanto seus membros se preparam para iniciar as
cerimônias. Sem condições de oferecer resistência, Taquaruçu é totalmente
destruída pela segunda vez.
Dias depois,
Setembrino de Carvalho dá início às ações ofensivas que devem completar a obra
de desmantelamento dos redutos iniciada com o cerco militar. No dia 28 de
dezembro, lança um novo apelo aos revoltosos no qual não oferece terra em troca
de rendição, mas sim garantias para as famílias voltarem a seus locais de
origem.
Entre os
primeiros a se entregar está Henrique Wolland, antigo chefe de Pedras Brancas,
destituído em função do excessivo rigor dos regulamentos por ele impostos à
comunidade. Acompanhado por cerca de 250 homens, Wolland se declara disposto a
combater ao lado do exército. Dias depois, revela aspectos desconhecidos das
táticas de guerrilha utilizadas pelos sertanejos, localiza nos mapas as
comunidades que ainda resistem e aponta com precisão de quantas forças estas
dispõem. De posse destes dados, o general fecha ainda mais o cerco em volta dos
rebeldes.
Pressionados
pelas necessidades, alguns chefes sertanejos da região norte do Contestado
negociam a rendição, mas nem sempre o exército respeita o que é pactuado. Ao
tratar com Antonio Tavares, os oficiais aceitam dar um prazo para viabilizar a
rendição e a desmobilização da pequena comunidade por ele liderada, mas, em 8
de fevereiro de 1915, a mesma é cercada pelas tropas que incendeiam todas as
casas e prendem mais de 300 pessoas. Tavares consegue escapar com 18
companheiros, 15 dos quais morrem de fome durante a longa fuga.
Ao sul da área
de influência dos revoltosos 200 sertanejos do reduto de Santa Maria tentam
romper o cerco para penetrar nas terras de Henriquinho de Almeida em busca de
víveres. Após um breve sucesso inicial, o ataque é repelido pelos vaqueanos armados
pelo exército. Obrigados a se retirarem, os rebeldes ateiam fogo em todas as
sedes de fazenda que encontram pelo caminho.
No início de
1915, a falta de alimentos e munições torna-se cada vez mais aguda. As
rendições se multiplicam em várias comunidades e centenas de famílias se
entregam aos soldados. As prisões da região estão lotadas e o destino dos
prisioneiros depende da formação e da conduta de cada comandante do exército
encarregado de recebê-los.
Em alguns
casos, ao perceber que se trata de pessoas que aderiram ao movimento por
curiosidade ou porque foram forçadas a fazê-lo, os oficiais as colocam em liberdade
quando se convencem de que elas querem realmente mudar de vida. Em outros, a
cadeia é o destino certo até os prisioneiros serem entregues aos vaqueanos que
providenciam a degola e deixam insepultos os cadáveres dos executados. Os
sertanejos que aparentam ser inofensivos são enviados a Rio Negro onde são
mantidos em campos de concentração até serem encaminhados para as colônias
agrícolas do governo paranaense.
A
heterogeneidade de classe e de adesão ao movimento, somada à fome que assola os
redutos, leva milhares de pessoas a abandonarem suas comunidades. Entretanto,
em muitos casos, esta situação está longe de significar o fim da resistência. A
grande maioria dos que se entregam às autoridades é composta por mulheres,
crianças, aleijados, doentes e idosos. Como observam os militares, trata-se de
um grupo do qual os sertanejos procuram se desvencilhar para que os homens em
condições de continuar os combates possam ter mais chances de levar adiante a
luta.
Frente ao
esvaziamento de algumas comunidades e na tentativa de aprimorar a resistência,
muita gente converge para o vale de Santa Maria levando as armas e os víveres
que ainda restam”.
- “Desse
jeito, se, nesta cidade santa, as coisas já não estavam boas em função da falta
de suprimentos, agora é que podem ficar ainda piores...”, admite titubeante o
ajudante ao pressentir a iminência do desastre.
- “Ainda que
os sertanejos tenham plena consciência disso, não há outra saída para
rearticular as forças que se propõem a continuar a resistência. É falando desta
fase da luta que vou concluir o nosso relato ao tratar de...”
10. Os últimos suspiros da guerra sertaneja
do Contestado.
- “Em Santa
Maria – diz Nádia ao levantar e andar cabisbaixa de um lado pra outro -, o
cerco e o acúmulo de pessoas produzem uma fome sem precedentes. De acordo com
alguns relatos, a luta pelas frutinhas da imbuia, por um pouco de mel ou para
obter alguma caça ganha dimensões desesperadoras. A mata é vasculhada palmo a
palmo para extrair os recursos que pode oferecer. Cavalos e cachorros são
sacrificados e as pessoas chegam a lamber o suor próprio e alheio para suprir a
completa falta de sal. Tamanha é a miséria que alguns devoram couro cru,
correias, capas de cangalha e bruacas.
Desavenças e
disputas internas se transformam em conflitos desagregadores. As medidas
disciplinares aplicadas por Adeodato levam à execução de dezenas de pessoas em
função de simples suspeitas ou de atitudes consideradas impróprias durante as
formas. A situação torna-se ainda mais pesada na medida em que o chefe cria um
clima que favorece a espionagem e a delação no interior do grupo. A disciplina
é mantida a ferro e fogo. Apesar disso, Santa Maria ainda resiste”.
- “Bom, diante
desta situação, os militares não devem ter dificuldades para esmagar o reduto”,
afirma o secretário ao tirar uma conclusão aparentemente óbvia.
- “Nada disso
– retruca a ave ao esboçar um sorriso amargo. Enquanto vários sofrimentos
atingem a cidade santa, Setembrino de Carvalho reúne os comandantes militares
em União da Vitória para preparar o ataque final. A primeira tentativa ocorre
em 8 de fevereiro de 1915, mas os 600 homens sob as ordens do capitão Potiguara
são repelidos por uma centena de sertanejos.
A segunda
investida ocorre um mês depois. O plano prevê que o reduto seja bombardeado
para, em seguida, ser ocupado pelas tropas. Apesar do susto, o tipo de bombas
utilizado não produz grandes danos e, esgotada a munição, os militares atônitos
vêem a população da comunidade voltar novamente a seus afazeres.
No final de
março, é organizado um destacamento especial com pouco mais de 500 soldados
escolhidos de várias unidades ao qual se incorporam 110 vaqueanos. Saída de
Canoinhas, a coluna enfrenta a resistência sertaneja a partir do terceiro dia
de marcha, mas, graças a novas táticas de combate, consegue neutralizar os
ataques rebeldes. Dez dias após sua partida, as tropas estão nas proximidades
de Santa Maria. Os enfrentamentos se tornam mais duros e o exército perde
dezenas de homens, a maior parte dos oficiais e amarga centenas de feridos.
Apesar da
inesperada resistência, Potiguara consegue entrar no reduto. Soldados e
vaqueanos percorrem as vielas, revistam os casebres, saqueiam e incendeiam o
que encontram pelo caminho. A igreja é transformada em sede do quartel geral e
uma trincheira improvisada é construída com pinheiros tombados. O que o capitão
ainda não sabe, é que os sertanejos acabam de fechar o cerco em torno do que
resta de suas tropas.
Ao cair da
noite, os militares são alvo de um tiroteio que se prolonga durante todo o dia
seguinte. Víveres e munições começam a escassear, mas alguns homens escolhidos
conseguem romper o cerco dos rebeldes e avisar as colunas de Setembrino que,
com mais de 2.000 homens, estão posicionadas em Taperas, a pouco mais de 6
quilômetros do reduto. Os reforços chegam rapidamente, atacam os sertanejos
pelas costas e dispersam suas forças. A possibilidade de vencer este novo
contingente é praticamente nula.
Tomada Santa
Maria, os chefes militares se apressam a decretar a derrota do movimento.
Enquanto parte dos contingentes se prepara para deixar a região, os rebeldes
que restam se dirigem para o reduto de São Miguel. Lugar de difícil acesso, a comunidade
já vinha abrigando mulheres, crianças e adultos impossibilitados de combater
que para lá haviam se transferido antes do último ataque do capitão Potiguara.
Em meados de
abril, aproveitando a retirada dos soldados, Adeodato sai de São Miguel com um
piquete de 300 homens a fim de arrebanhar gado e mantimentos para a comunidade.
O ataque produz os resultados esperados.
Após voltar da
incursão, o líder ganha fama de ter sido tocado pelo poder divino e se torna
chefe absoluto do reduto. Com o apoio dos Pares de França, Adeodato exige que
suas ordens sejam cumpridas cegamente. Sustentada em ações que espalham o
terror na comunidade, a sua autoridade não admite que outras lideranças possam
surgir e ameaçar o seu prestígio. Pequenos deslizes, críticas veladas,
possíveis deserções e simples desconfianças são punidos com rigor extremo.
Basta pouco para que alguém seja acusado de atentar contra a religião e tenha
que sofrer a pena capital.
Lamentações,
lamúrias e expressões de dor são proibidas. As viúvas são impedidas de chorar
os maridos mortos. Filhos e parentes dos executados no reduto devem declarar
diante da comunidade que tinha que ser assim. A crueldade e o grande número de
assassinatos despertam ódios e rancores no interior de São Miguel. Abalados, a
solidariedade e o companheirismo cedem lugar a velhos padrões de vingança
pessoal.
Alguns meses
depois, Adeodato ordena que a comunidade mude para um lugar próximo ao Rio
Timbó, onde é edificada a cidade santa de São Pedro. Em pouco tempo, o novo
reduto conta com 2.000 casebres, uma igreja, uma grande praça na qual, três
vezes ao dia, são realizadas as formas. As procissões integram os rituais
cotidianos, sempre lideradas por Adeodato que marcha à frente do cortejo com a
estátua de São Sebastião no ombro, acompanhado pelas virgens e os Pares de
França, todos armados.
Apesar de
mantidas, as cerimônias religiosas não refletem mais o autêntico e generalizado
entusiasmo dos primeiros tempos. Ao contrário, em São Pedro, há um
descontentamento crescente tanto em função da escassez de alimentos, como dos
desmandos de Adeodato. As rivalidades e o clima de desconfiança recíproca se
acirram ainda mais após a chegada das centenas de sertanejos do reduto de
Pedras Brancas”.
- “Pelo menos,
agora tem mais gente para organizar a resistência...”.
- “E para
alimentar – acrescenta a coruja ao abrir as asas. Perdidas todas as provisões
armazenadas, as famílias que se dirigem a São Pedro chegam famintas e de mãos
abanando. A produção das poucas roças cultivadas pelos sertanejos não dá conta
de alimentar os 4.000 moradores aí existentes e agora, com a chegada do novo
contingente de refugiados, a situação de penúria piora sensivelmente.
O problema é
que, a norte de São Pedro, os piquetes de vaqueanos, policiais e soldados
impossibilitam a procura de víveres, enquanto, a sul, os recursos escasseiam na
medida em que, com a destruição das fazendas, muitos proprietários e agregados
abandonaram a região deixando as terras incultas e sem nenhuma cabeça de gado.
Se isso não bastasse, nesta área, o capitão Vieira da Rosa mantém sob suas
ordens nada menos do que 1.000 homens armados, entre civis e militares,
divididos em grupos volantes que controlam uma extensão de 120 quilômetros e
não dão trégua aos rebeldes.
No final de
outubro de 1915, Adeodato sai à frente de um piquete com a intenção de repetir
o que havia conseguido meses antes. Mas um dos destacamentos sob as ordens de
Francisco Dias surpreende os rebeldes num ataque fulminante. Ferido, o chefe
sertanejo consegue escapar com vida.
Sem comida,
sem roupas e sem munições, São Pedro não tem mais condições de resistir. Em
meados de dezembro do mesmo ano, um contingente de 26 praças e 168 civis
armados, sob o comando do capitão Euclides de Castro, se aproxima da comunidade
por um caminho desguarnecido e lança um ataque de surpresa logo após uma
procissão. Na confusão, Adeodato consegue fugir com 40 homens armados. Alguns
tentam resistir, outros se refugiam na mata. Por toda parte, há cadáveres de
mulheres e crianças que não conseguiram escapar da fúria destruidora dos
agressores. No final do dia, a cidade santa é reduzida às cinzas”.
- “E o que vai
ser do povo que consegue salvar a própria pele?”, pergunta o homem animado por
um último fio de esperança.
Envolvidos em
trapos e desesperados de fome, mais de 1.000 sertanejos entram em Canoinhas sob
os olhares estupefatos de uma população que nunca havia imaginado miséria
igual. Esquecendo ressentimentos e contrariando as ordens das autoridades, o
povo simples tenta socorrer aquela multidão esfomeada de homens, mulheres e
crianças que não tem forças para ficar em pé.
Enquanto isso,
os grupos de vaqueanos e policiais que patrulham a região dedicam-se a
vasculhar a mata em busca dos fugitivos. Em suas andanças, se deparam com os
cadáveres dos vitimados pela fome ou com pequenos agrupamentos de miseráveis
que mal conseguem caminhar. Em Perdizinhas, os primeiros sertanejos a serem
feitos prisioneiros são levados para uma grande casa. Destes, 81 são fuzilados
nas primeiras horas e outros 86 vão ser degolados nos dias que seguem.
Terminada a guerra,
fazendeiros e políticos locais desatam sua sede de vingança. Sob a alegação de que
se trata de jagunços e bandidos inimigos da República e das autoridades
constituídas, por cinco anos após a destruição de São Pedro, quem vigiar,
perseguir, prender e até matar alguém que tenha lutado na guerra do Contestado,
familiar deste ou suspeito de ter pertencido a algum reduto não está cometendo
um crime, mas realizando sim uma ação que conta com o apoio dos poderosos.
As vítimas
que, inconformadas com a situação de miséria, haviam se rebelado contra seus
exploradores, são colocadas no banco dos réus e condenadas pelo mesmo sistema
que as produziu. Isso se torna possível na medida em que, além do aparato
militar e paramilitar, as elites e seus meios de comunicação forjam uma visão
de mundo na qual seus interesses são apresentados como a realização natural, e,
portanto, inquestionável, da história. Em volta desta, somam vontades
dispersas, ganham adeptos e não poupam meios para buscar a aprovação da igreja
oficial, das autoridades, das forças armadas e do próprio povo, cujo aplauso
transforma em pessoas de bem quem construiu sua fortuna sobre a espoliação e o
suor alheio. O consenso assim criado silencia qualquer questionamento e faz com
que as tentativas de contestação de sua ordem sejam vistas e condenadas não
como ameaça a seus interesses particulares, mas sim à sociedade como um todo.
Por isso,
demonizar e desqualificar quem passa da resignação à revolta é o passo necessário
e imprescindível para condenar como subversiva qualquer criação dos de baixo
que não possa ser reconduzida e enclausurada nos estreitos limites do sistema.
Realizada esta tarefa, as elites conseguem a aprovação de amplas camadas da
população às ações que desatam contra os rebeldes a execração pública, os
rigores da lei e a repressão que procura restabelecer o silêncio cúmplice sobre
a realidade que possibilitou seu aparecimento. Neste processo, jagunço e
bandido não é quem está a serviço dos latifundiários e, muito menos, quem lhe
fornece armas e dinheiro para defender terras griladas e privilégios
questionáveis sob todos os pontos de vista. Ao contrário, jagunço e bandido só
pode ser quem, desesperado pelas injustiças a que está submetido, decide defender
coletivamente o próprio pão numa realidade que lhe nega seguidamente o direito
de viver.
Massacrados os
revoltosos, a pacificação do Contestado não conhece a distribuição de terras
entre quem delas realmente precisa ou alguma forma do que pode ser chamada de
justiça social. Ao contrário, a área assiste à ampliação das fazendas, à
exploração irrestrita das madeiras nobres e demais riquezas da região, à
concessão de grandes faixas de terreno agricultável em pagamento de dívidas do
estado ou para promover novas famílias de fazendeiros, além da venda, a caro
preço, de lotes a colonos europeus.
- “E do antigo
chefe dos redutos...alguma notícia...”.
- “Sim –
confirma a ave ao apontar a asa direita para o secretário. Dormindo no mato e
contando com a ajuda de alguns moradores, Adeodato consegue escapar por alguns
meses às investidas dos grupos de vaqueanos que vasculham a região. Abatido
pelas dificuldades do seu peregrinar e pela rigidez do inverno, acaba se
entregando em Canoinhas no início de agosto de 1916.
Temendo a fuga
da prisão local, o ex-chefe é levado a São Francisco, de onde segue para
Curitibanos a fim de ser julgado no tribunal local. Condenado a 30 anos de
prisão, é transferido para o presídio de Lages, de onde consegue fugir.
Recapturado, é
enviado a Florianópolis para cumprir o resto da pena. Aqui realiza uma nova
tentativa de fuga, mas é alvejado pelo diretor da penitenciária e morre”.
- “Meu Deus!
Que final mais triste...”, comenta o ajudante em voz baixa.
- “O problema,
querido bípede da espécie humana, não é o final desta história, mas sim o risco
de fazer cair no esquecimento a luta e o sacrifício de milhares de pessoas que,
a seu modo e com os poucos recursos de que dispunham, tentaram construir um
amanhã melhor para todos. Ao resgatar as lutas de Canudos e Contestado, não
procuramos ocultar seus erros e fragilidades, nem, muito menos, buscamos apresentar
modelos para os enfrentamentos futuros. A nossa preocupação foi somente a de
fazer com que a memória se torne um instrumento capaz de instigar os de baixo a
perceber a possibilidade e a necessidade de criar um mundo diferente daquele em
que vivem.
Ao desvendar o
que as elites escondem nos intricados caminhos da história, esperamos que os
homens e mulheres do nosso tempo comecem a se perguntar o porquê das coisas,
aprendam a ouvir e costurar os anseios de justiça e de mudança que vêm de baixo
e, sobretudo, não aceitem que seu silêncio ajude os poderosos a manter sua
dominação.
Os sertanejos
de Belo Monte e da região do Contestado não tinham condições materiais,
militares e culturais de vencer as guerras travadas contra eles, mas nem por
isso deixaram de enfrentar um inimigo poderoso. A ousadia revelada em suas
lutas deixou no solo do tempo marcas tão fortes que seus feitos não só
continuam sendo objeto de estudos e debates acadêmicos, como fazem chegar até
nós a eco das vozes que exigiram, e exigem, uma sociedade onde haja tudo para
todos”.
Pronunciadas
as últimas palavras, Nádia se despede e seu vôo ganha os céus escuros da noite.
Nas ruas, as
pessoas voltam para casa após uma dura jornada de trabalho. Poucas vozes rompem
a monotonia que esmaga suas esperanças e convida a uma resignada submissão.
Passo a passo,
as pernas se afastam da janela pela qual os ouvidos tiveram acesso a um breve
período do passado. Como um marco de estrada, os acontecimentos reconstruídos
pelo relato da coruja podem continuar sendo ignorados pelos passantes, mas,
faça chuva ou faça sol, continuam firmemente plantados no solo do tempo. Em seu
silêncio pétreo, se tornam testemunhas vivas da necessidade dos oprimidos
fazerem ressoar o seu “Não!” diante das investidas de seus opressores.
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[1] Dados
publicados em José Rivair Macedo e Mário Maestri (16), pg. 36.
[2] Dados
publicados em Robert M. Levine (13), pg. 66.
[3] Trecho
extraído de Edmundo Moniz (18), pg. 35.
[4] Trecho
extraído de Marco Antonio Villa (23), pg. 52.
[5] Texto
extraído de Marco Antonio Villa (23), pg. 240.
[6] As
citações do relatório foram extraídas de Marco Antonio Villa (23), pg. 79.
[7] Trecho
extraído de Marco Antonio Villa (23), pg. 146.
[8] A
matéria do correspondente do jornal A Notícia foi enviada de Queimada em
16/08/1897 e publicada na edição dos dias 24 e 25 de agosto do mesmo ano. O
texto citado foi extraído de Walnice Nogueira Galvão (8), pg. 416.
[9] Trecho
extraído de Euclides da Cunha (6), pg. 575.
[10] A
citação do laudo foi extraída de Edmundo Moniz (18), pg. 98.
[11] A
citação foi extraída de Oleone Coelho Fontes (7), pg. 118.
[12] O texto
citado foi extraído de Walnice Nogueira Galvão (8), pg. 502 e 503.
[13] Dados
mais completos sobre esta questão podem ser encontrados em Marco Antonio Villa
(23), pg. 220-221.
[14] Dados
extraídos de José Rivair Macedo e Mário Maestri (16), pg. 92.
[15] Trecho
extraído de Paulo Pinheiro Machado (41), pg. 169.
[16] A
citação completa do relato deste Frei encontra-se em Ivone Gallo (39), pg. 78.
[17] A
transcrição desta parte do depoimento encontra-se na nota N.º 21 de Paulo
Pinheiro Machado (41), pg. 231.
[18] Dados
publicados em Paulo Pinheiro Machado (41), pg. 143.
[19] Trecho
extraído Ivone Gallo (39), pg.83.
[20] Estas
regras encontram-se copiladas em Jean Claude Bernadet (30), pg. 64.
[21] Texto
extraído de Maurício Vinhas de Queiroz (49), pg. 128-129.
[22]
Trecho extraído de Maurício Vinhas de Queiroz (49), pg. 161.
[23] Idem,
pg. 161.
[24] Idem,
pg. 195.
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