Este é meu terceiro texto para o blog; e certamente, o
mais difícil de escrever até o momento. Comecei a tomar remédio para controlar
minha pressão alta, logo, tive de parar, mesmo que momentaneamente, com as
cervejas. E como é ruim ter de articular ideias para produzir algo decente,
estando sóbrio. O isolamento social, sempre fora almejado, desejado e
rotineiramente posto em prática por mim. Apesar de ser graduado em Psicologia,
não gosto muito de pessoas; me limito a manter relações sólidas com umas poucas,
porém preciosas; estimo a qualidade – o que julgo ser qualidade. Contudo, tal
isolamento atrelado à necessidade de estar sempre em alerta, mais que o
comumente feito, com higienização e desinfestação, a novidade do uso de
mascaras, a castidade forçada, e, sobretudo, o medo do contágio – de
contagiar-se e contagiar as pessoas queridas – acaba por lhe estafar. Os
elevados e necessários cuidados sugam-lhes as energias.
Você acompanha as notícias e percebe que os jovens que
estão morrendo por conta do novo vírus, em geral, estão acima do peso, são
hipertensos, diabéticos, sedentários... Você se arrepende de algumas coisas.
Isso bloqueia o pouco de criatividade que possui; arrefece o ânimo para
refletir e se expressar com as palavras. Necessitei reler o livro que me
inspirara a escrever o meu: Cartas na Rua... Do velho Bukowski... Bom programa
para este momento de resguardo – fica a dica.
De início, optei por meter o bedelho na discussão
estartada por meio do canal “Decifra-me Enquanto te Devoro”. Tumolo proferiu
seu conhecimento a partir da temática “A Categoria Trabalho Perdeu a
Centralidade no Nosso Século?”. Concepção do trabalho em Marx, o biocapitalismo
de Negri, o ócio criativo de Damasi – e por tabela, a sociedade de
predominância dos serviços, descrita por um sociólogo americano chamado Daniel
Bell –, a sociedade do cansaço de Byung-Chul Han, a falta de sentido em um
futuro sem trabalho profetizado por Harari... Juntei algum material para criar
uma narrativa com a qual pudesse levar a polêmica sobre a centralidade – ou não
– da categoria trabalho na atual conjuntura neoliberal, adiante. Mas isso tudo
era muito técnico, apesar de relevante. Posso morrer até o fim do ano; não
quero ser muito técnico.
E por que não replicar um texto do próprio blog,
escrito por uma companheira da classe, contrapondo-a, partindo da ideia de que
as lutas “identitárias”, como o feminismo, por exemplo, pelo menos por agora,
não obrigatoriamente têm de se vincularem às lutas de classes por algumas
questões emergenciais que podem significar a sobrevivência das mulheres em meio
às relações abusivas nas quais estão imersas, independentemente de posição
social ou “ideologia”? Não; melhor não. Não haveria tempo hábil para coleta de
material fidedigno para a montagem de um argumento sensato.
Minha noiva, nesse interim, havia sugerido que eu
respondesse a uma indagação que por ela vinha sendo feita há algum tempo: por
que tantos, apesar de todas as informações de órgãos e profissionais da saúde,
de mídia técnica – mesmo que burguesa – e de secretarias e até do ministério da
saúde, insistem em dizer que tudo isso – o vírus, a pandemia, e principalmente,
a quarentena – não passam de besteira? Em pesquisas de opinião, as pessoas
relatam serem a favor do isolamento, de multas, de fiscalização, de
denúncias... Mas na prática, o que podemos observar, tendo como fonte, entre
outras, o procedimento de monitoramento feito pelo governo do Estado em
parceria com operadoras de serviços de telefonia e internet, é que em sua
grande maioria, a população tem furado a quarentena... Por quê?
Disse a ela que “sem chance”. Tanto quanto na questão
do feminismo, não existiria para mim tempo o suficiente para teorizar meu
argumento. Mas matutei, mesmo sem querer, muito sobre o assunto. Fui
relembrando de uma ou outra coisa que possuo e que pudesse me auxiliar na
montagem de uma narrativa nesse período em que, gostemos ou não, temos sempre
um pouco mais de chances de adoecer e falecer. E assim, elaborei este
raciocínio. Que merda... Talvez eu seja um Sofista...
***
De repente, a coisa ficou séria. Não era como o H1N1;
não era como a gripe aviária; não era como o antigo Corona. Era algo realmente
desconhecido; mais letal. A vida não poderia ser conduzida do modo como
vínhamos fazendo até então. As rotinas mudariam; as relações interpessoais
mudariam; o circuito de consumo mudaria; a economia mudará. Teria o vírus
antecipado um já previsto colapso da economia do livre-mercado? E essa
antecipação poderia significar nada mais que o inicio de um novo ciclo de
retomada de um mesmo sistema de produção que vai se esgotando e se renovando
independentemente de qualquer consequência que esse movimento de “prosperidade”
e miséria possa ter para as pessoas que a ele estão submissas?
Bem... Isso não importa... Não para a maioria de nós.
Como teria dito um governante chinês, não importa a cor do gato, o importante é
que ele casse e mate o rato... Vou explicar...
Um isolamento forçado e preocupado – e não voluntário
e desprendido como fazia há pouco – e a real possibilidade de ser acometido por
uma síndrome de insuficiência respiratória aguda que possa me levar à morte me
fizeram perceber o quão desperdiço muito da minha vida com muita coisa que não
vale nada. Absolutamente nada.
Um amigo
recitou – e gravou – um poema de Gabriel Garcia Marquez e entre tantos outros,
enviou para mim... Que alimentação de bosta eu tenho; como eu cometo o pecado
da gula; como eu como sem ter vontade e necessidade de comer... Aprendi com o
capitão – personagem do poema – e com a falta de ar oriunda de uma pressão
17x10 – que posso aproveitar esse momento de isolamento para reeducar meu
estômago e minha ânsia por saciar um desejo imaginário de comer sempre mais e
mais, do bom e do melhor. Se quero tentar, ao menos tentar, prolongar minha
existência, por que não me aproveitar dessas situações inusitadas e
desagradáveis para tal?
Como desperdiço meu ócio com futebol, com vídeos
frívolos na internet, ouvindo músicas banais, lendo noticias bizarras... Como
jogo conversa fora com gente que não vale a pena ter nem uma conversa
necessária, como me disponho a ouvir besteiras ou testemunhar atitudes toscas
sem demonstrar insatisfação apenas para cumprir os bons modos socialmente
exigidos para a pacificação das relações interpessoais... Como eu disponho-me a
agir de modo infantil, brigando ou enervando-me em situações ou por questões
que não merecem o mínimo de atenção ou dispêndio de energia de alguma pessoa
que realmente saiba aproveitar o mínimo da vida.
Como deixo de escrever, de ler O Capital, de assistir O
Parasita, de ouvir música clássica, de comprar brigas relevantes, de ser
duro com quem merece, de dar uma caminhada, de não consumir muito lixo
industrializado, de assistir a uma boa aula on-line,
de ouvir meus pais falando sobre suas boas lembranças da juventude, de jogar
partidas de truco, de arejar e renovar minha mente, de abraçar minha noiva, de
cagar sem pressa... Como deixo de fazer tudo isso e muito mais para seguir a
cartilha de vida que por vezes nos é cobrada, vendo lixo, lendo lixo, ouvindo
lixo, comendo lixo, respirando lixo, trabalhando com lixo.
O vírus, a pandemia, a quarentena, a lembrança de que
um dia eu vou morrer, fizeram me atentar para o fato de que, via de regra, a
rotina urbana e pequena burguesa, copiada por nós, proletários, nos enfraquece,
nos emburrece, nos impede de procurar e de criar o novo, nos tolhe a
possibilidade de viver uma vida um pouco mais intensa.
Em um trecho do filme “Clube da Luta”, de 1999, o personagem Tyler Durden, vivido por Brad Pitt, ao discursar para a plateia
composta por homens sedentos por extravasar suas frustrações diárias nos
combates do clube, diz que “os anúncios nos
fazem comprar carros e roupas; empregos que odiamos para comprarmos porcarias
que não precisamos. Somos os filhos do meio da história, gente; sem propósito,
sem lugar. Nós não temos grandes guerras, nem grandes depressões. Nossa grande
guerra é a guerra espiritual; nossa grande depressão é nossas vidas”. O
dia-a-dia no capitalismo, seja para as gerações da sociedade de consumo na era
industrial, pautado pelo acúmulo de bens materiais seja na atual sociedade de
consumo dos tempos de financeirização do capital, do empreendedorismo –
precarização do trabalho – e de acumulo de vivências/experiências – setor de
serviços –, nos impele a fazer de nossa essência, uma consequência barata,
superficial de uma existência pobre, covarde, que objetiva a fuga de grandes
lutas, dos grandes embates, a vida do não incômodo, a vida da experimentação de
uma felicidade entorpecente. Sartre deve ter lamentado isso; provavelmente,
ainda lamentaria.
Heidegger nos alertou: a consciência da morte gera-nos
angústia, pois entramos em contato direto com nossa finitude. Devemos aceitar
essa finitude; resignarmo-nos diante dessa angústia, pois só assim,
criticamente, poderemos assumir as rédeas da condução de nossos projetos de
vida e guiar nossa existência de modo mais autêntico e potente, mesmo que seja,
no fim de tudo, para a morte. Tyler
Durden, mais uma vez, nos auxilia no complemento desta etapa do raciocínio:
“primeiro você tem que se entregar;
primeiro tem que saber, não temer, saber que um dia você vai morrer. Só depois
de perdermos tudo, é que estamos livres pra fazer qualquer coisa”.
É dessa forma, que o Corona me acometeu. Me fez
lembrar de coisas que já havia esquecido. Afinal, nos últimos tempos, apesar de
todas as dificuldades, eu estava sendo bem alimentado; eu estava bebendo
bastante; eu via vídeos no YouTube; eu tinha o Campeonato Paulista. Eu estava
acomodado em meu ninho. Como todos fazem. Em boas doses, eu estava
desperdiçando minha vida.
Mas há outra advertência de Heidegger: a
inautenticidade. O inautêntico não suporta a angústia; esguia-se do assunto
morte; apega-se ao cotidiano. Isso o acalenta. A morte nunca é para si; é
sempre para o outro. Bolsonaro é inautêntico; Bolsominions são inautênticos.
Por isso tagarelam que o vírus é lorota; que a pandemia é uma farsa; que a
quarentena é uma estupidez. São covardes demais para admitir a própria
finitude; fracos demais para assumir as rédeas dos projetos de vida rumo ao inexorável
fim que a todos chegará.
Mas o bolsonarismo, por si só, dentro do capitalismo,
não é suficiente para explicar o porquê de tanto esbravejarem contra e até
boicotarem, em alguns casos, o isolamento social. Não... Bolsonaro e o
bolsonarismo são fortes; mas nem tanto.
Estamos falando, de no mínimo, duas gerações que estão
acostumadas, mais do que qualquer outra coisa, a consumir. Fizeram do consumo
sua essência; o SENTIDO de suas vidas. Conduziram suas existências em direção
ao trabalhar para ter, para vivenciar, para experimentar, e se possível, para
publicar. O vírus suprimiu esse ato; cessou com o costume.
Muitos esbravejam e inventam “estórias” acerca do
Covid-19, em performance desesperada para readquirirem a essência de suas
vidas, pautada pela compra, pelo prazer oriundo do entretenimento, pela
demonstração da felicidade invencível, pela não aceitação de percalços, de
fracassos, de fragilidade, de falta de sentido prévio, por não estarem
dispostos a tornarem-se protagonistas de uma existência singular.
Dizem estarem preocupados com a economia; com o
desemprego; com a situação ainda mais calamitosa que muitos de nós estaremos em
breve. Mas não debatem sobre a necessidade de superação de um sistema produtivo
que movimenta-se única e exclusivamente rumo a sua produção e reprodução, pouco
importando a condição de vida de todas as pessoas que o alimentam; não falam
sobre Estado de bem-estar social; não ponderam sobre solidariedade e
colaboração... Não... Apenas use álcool-gel, higienize-se o quanto puder, use
mascara e isso bastará; faça sua parte; cada um por si.
Ao final da equação, querem apenas a volta da Champions League, do passeio no shopping, a realização da virada
cultural na capital estadual da cultura, dos churras com a família e com os
amigos nos finais de semana. Querem se embebedar nas baladas, curtir o domingo
a noite de pagode na Praça XV, xavecar, flertar, amassar, palpar, beijar, transar,
circular, gritar... Tudo sem empecilhos; tudo com liberdade absoluta; tudo sem
desgaste. Querem apenas comprar e viver.
Como os fornecerão isso após a pandemia? Não estão nem
aí; não estão se lixando para a cor do gato; o que importa, é que ele casse e
mate os ratos. Mesmo que os que venham sobrar para a maioria de nós, sejam uns
ratos doentes, dos mais sujos, encontrados nos mais nojentos e vis esgotos do
mundo. Desejam encomendar o açaí no sábado a tarde e irem a uma loja
pessoalmente retirar a churrasqueira elétrica, andando e trombando com a
multidão, sem que ninguém os encha o saco. Só querem a vida antiga de volta.
Nem que para isso, tenham de aceitar medidas provisórias que se encaixem a eles
como vibradores na vagina de uma solteira carente e que para tal, tenham de
dizer que só nos reergueremos disso, se andarmos em consonância com os
interesses patronais. Dependemos deles, certo?
Não nos iludamos, companheiros (as). A aceitação da
angústia da morte, o protagonismo da própria existência, o afastamento do
conforto e a aproximação da rispidez de um prélio de cunho político/econômico,
em suma, a ressignificação da vida como um todo no possível pós-pandemia, para
os que dela saírem vivos, nem de perto, são aspectos ansiados pela maioria de
nós e, para nossa decepção, isso inclui, a classe trabalhadora. Sejamos
diferentes, apesar de sermos também proletários, pelo menos por ora, dessa
maioria. Não apelemos para mentiras. Continuemos, enquanto grupo minoritário, a
crescer.
Sejamos reais; autênticos. Valorizemos a vida!!!!!
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