Em 2014, psicólogos
brasileiros, criaram a campanha “Janeiro Branco”. Uma forma de fazer com que a
sociedade pense, repense, fale, enfim, reflita sobre a saúde mental. Segue
abaixo, nossa colaboração nessa reflexão...
***
O
relógio desperta quatro da manhã. Você titubeia; apesar de saber sobre sua
necessidade de acordar todos os dias no mesmo horário, nem sempre se faz
possível dormir cedo. O clima está agradável, você estava dormindo profundamente,
a cama está muito aconchegante; mas você tem de se levantar; precisa abrir mão
do conforto do leito. Escova os dentes, toma um copo de café, come um pão duro
com margarina, se despede de alguma outra pessoa que também já estiver acordada
e se dirige para o ponto no qual o ônibus da empresa vai lhe apanhar. Seu turno
começa as seis, você é o primeiro a embarcar, ainda terá de percorrer boa parte
da cidade para que o motorista possa baldear outros funcionários de outros
bairros. Você só retornará para sua casa, depois de dia estafante de trabalho
braçal, por volta das três e dez da tarde. Você é o último a desembarcar...
***
Um
aplicado aluno, filho de metalúrgico e de uma costureira; matriculado na escola
estadual do bairro em que sempre morou. Sempre tirou boas notas, quase nunca
precisou responder por algum ato de indisciplina, sempre teve facilidade em
construir e em manter relações de amizade e amistosidade com todos da sala e
até com colegas de outras turmas. É aprovado, na adolescência, em vestibular do
SENAI e se forma mecânico de usinagem; aos 16 anos de idade, já tem uma
profissão. Insere-se no mercado por meio de estágio, é efetivado, exerce sua
profissão por quase dez anos, mas aí há uma restruturação na empresa; há a
necessidade de se cortar gastos, inclusive, com mão de obra e como sua mão de
obra é cara por ser qualificada, na sociedade do mérito, você é dispensado. Aí
você e sua esposa percebem que a sociedade mudou; o mundo é outro e se faz
ímpar uma adaptação. Necessitam de criatividade para empreenderem; você passa a
prestar serviço para o UBER e sua companheira vende bolos de pote. Você não se
transformou no jogador de futebol, no ator ou no astro da música que a escola
fazia com que todos entendessem que seria possível de se tornarem. Mas dão
conta da comida e do aluguel com o novo empreendimento...
***
Seu
filho era um amor; um doce de pessoa. Você sempre foi mãe esmerada. E sua cria
sempre lhe demonstrou gratidão; e reproduzia para com o filhinho, seu neto, os
mesmos cuidados que você despendera com ele; talvez até com maior exagero. A
vida lhe impeliu para o mercado dos motoboys. No exercício do trabalho, aos 28
anos de idade... Seu filho era um amor; um doce de pessoa...
***
Como
são doces as lembranças da infância; videogames, Jaspion, os dias de jogos com
estádio lotado... Meu pai era palmeirense fanático; não perdíamos quase nenhum
jogo; bons tempos. Sempre me foi ofertado do bom e do melhor. Frequentei
escolas privadas, a comunidade evangélica da qual fazíamos parte era formada
por gente educada, pude fazer cursinho intensivo antes do vestibular. Não
consegui entrar em uma universidade pública; mas minha família pôde bancar meus
estudos em um centro universitário, tranquilamente. Sou formado bacharel em
recursos humanos. Atuo na área desde que concluí o curso. Vou de carro ao
trabalho, participo de happy hour nas sextas depois do expediente, a empresa
financia minha formação continuada investindo em palestras, meus amigos do
departamento, eu e minha namorada, que conheci na época daquela comunidade
evangélica costumamos frequentar hamburguerias ou nos reunimos para festejar em
algumas das varandas gourmet, sempre na casa de um de nós, em sistema de
revezamento... Viajo uma vez por ano com minha parceira para algum paraíso do
Nordeste... Tomo três litros de água por dia, não como fritura, não exagero no
açúcar, faço academia... Vou confessar... A pressão por resultados na empresa
acaba comigo; às vezes tenho a sensação de que a amizade com o pessoal é só de
aparência; no fundo, todos apenas querem se conhecer para, no dia-a-dia
organizacional, estrategicamente, poderem acabar uns com os outros; o chefe é
um porre; é o mais burro de todos, contudo, o único reconhecido. Não quero mais
ser o amigo, o colaborador, o filho, o religioso ou o namorado perfeito. Estou
cansado... Cuido do corpo, mas não devo tê-lo... Um filósofo, certa vez, me
ensinou que quem não tem corpo, não têm alma; eu não sinto minha alma...
***
Sempre
fora mimada; sempre. O xodozinho da família. Pele branquinha, cabelos escuros e
lisos, olhos verdes. A família, com certa capacidade monetária e certa
influência em alguns círculos, conseguia fazer com que essa princesa
participasse de pequenas peças publicitárias, fossem televisivas, em outdoors,
fotos em revistas infantis... A garota adolesceu, se desenvolveu, cresceu e se
converteu... Bela mulher... Seguiu a carreira no mundo da moda... Formou-se em
Psicologia recentemente. Beira os trinta, e nem todo mundo é Gisele, apesar de
tudo. Tenta se consolidar como Coach. Agência própria, canal no Youtube, página
no Insta. É uma linda mulher; mas não se conforma com o fato de o mercado não
pensar a mesma coisa...
***
Meu
pai construiu esse restaurante... Hum... Na verdade, de início, era um boteco.
Garrafas 600 ml de cerveja para os bebuns que vinham pra cá, de tubaína para
seus filhos, sobrinhos ou netos... Aquele globo giratório com balas de fruta ou
de menta; a estufa com coxinha... Em certo momento se fez possível investir no
estabelecimento; minha mãe sempre cozinhara bem e fez cursos para aperfeiçoar
sua culinária; minha irmã e eu crescíamos e poderíamos ajudar no caixa e no
atendimento. Sacrificamos um pouco da adolescência e o comecinho da vida
adulta, mas valeu a pena. Hoje, somos tradição, nessa cidade tradicional. Não
esperávamos passar por isso, sabe. Uma crise sanitária dessas. Empregamos
garçons, balconistas, cozinheiras, faxineiras... Nossa única renda não é daqui,
claro; temos outra fonte. Mas nossa outra fonte é mais instável; nunca fomos
verdadeiramente ricos, financeiramente falando, e nossos investimentos na
bolsa, por si só, ainda não são fonte segura. O grosso vem daqui. Sabemos como
a coisa funciona; mas precisamos fingir que não sabemos; temos de mentir.
Triste realidade na qual, entre a economia e a vida, temos de lutar pela
"liberdade" de escolher a economia... Uma pergunta... Você consegue
me responder, o que é liberdade?... Hehehehe... Ainda bem que há a campanha do
Janeiro Branco... Falar sobre saúde mental é sempre importante, né?
Nenhum comentário:
Postar um comentário