Introdução.
Há momentos em que os poderosos fazem
com que o “dançar conforme a música” se apresente como a escolha mais sensata
diante do medo e da incerteza que inoculam nas relações do dia-a-dia. O esforço
para encontrar um pouco de sossego alimenta a indiferença, naturaliza a fome, aplaude
a violência e o preconceito, leva as pessoas a colaborarem com aquilo que
condenavam em momentos anteriores.
Felizmente, há sempre alguém que decide
enfrentar a correnteza ao mostrar com o seu exemplo que é possível dizer “não”.
Suas ações semeiam dúvidas, espalham convites a não se entregar à “força dos
acontecimentos” e abrem os caminhos de uma resistência que vislumbra a
possibilidade de “mudar as coisas”. Trata-se de uma escolha que expõe ao risco,
às incompreensões, à dúvida quanto à eficácia dos resultados que podem ser
alcançados, ao escárnio de uma maioria sempre pronta a encontrar motivos para
não fazer e que protege a própria omissão com posições que fortalecem o
opressor.
Diante de um cotidiano onde sobram dificuldades e
angústias, que mecanismos fazem com que homens e mulheres parem de aceitar as
coisas que não podem mudar para mudar as coisas que não podem aceitar? O que
move estas pessoas para as quais é impensável não reagir aos acontecimentos?
Uma indignação que inquieta a alma? Os valores que dão sentido às suas vidas?
Uma mescla de instintos e fatores inconscientes que se rebelam ao conformismo
que se apresenta como expressão do “bom senso”?
As respostas que encontramos ao
estudar as situações da resistência apontam nas mais variadas direções. Mas há
uma coisa que as histórias resgatadas têm um comum: a decisão de as pessoas agirem
se baseou em convicções que raramente guardavam alguma relação com a que
chamamos de "consciência de classe", e foi justamente a partir delas
que transformaram seus saberes e rotinas em resistência à opressão.
Passo a passo, a liberdade vivida como desobediência à
ordem rompeu a ditadura do medo, minou o consenso em volta do poder e abriu os
sulcos que acolheriam as sementes da mudança. Longe de alimentar ilusões e
utopias, estas pessoas aproveitaram as brechas na dura realidade do seu tempo
para que a palavra resistência atravessasse a ponte que separa o dizer do
fazer. Não perguntaram a ninguém se podiam agir. Simplesmente, arregaçaram as
mangas e deram conta do que estava ao seu alcance.
A seguir, você não vai encontrar as
biografias de líderes extraordinários ou de heróis iluminados que lideraram as
massas à construção de uma nova ordem social, mas somente a história de pessoas
comuns, anônimas em sua grande maioria. Gente das mais diferentes profissões e
correntes de pensamento que arriscaram conscientemente o seu futuro, sua carreira,
seus bens e suas vidas para dizer "não" à opressão.
De um punhado deles encontramos
entrevistas e materiais que resgatam alguns momentos da sua história. De
outros, sobraram apenas registros pontuais, uma fotografia, o breve relato de
alguém próximo, o reconhecimento de pessoas e instituições que mantiveram viva
a importância dos seus gestos. Mas da enorme maioria deles só foram registradas
apenas as mudanças que, sem fazer alarde, introduziram em suas vidas para que
resistir deixasse de ser um desejo para se tornar realidade.
O eco dos seus sacrifícios chegou
até a nós. E nós o levamos até você. Um eco que convoca a agir no presente, a
acreditar na mudança quando tudo parece perdido, a transformar esperança em
ação cotidiana, a não se ajoelhar diante do que fecha as portas do futuro para
a maioria das pessoas.
Primeira Parte: quando resistir é salvar vidas
1. 1939-1945: os anônimos que
impediram uma carnificina maior.
Parece ilógico falar de alguém do
qual sequer conhecemos o nome. Contudo, é justamente a estes incontáveis
anônimos de todas as profissões e países que devemos as primeiras ações de
resistência ao nazi-fascismo. O eco destes passos chegou até nós com a
compilação das miríades de fragmentos recolhidos entre as famílias que contaram
com a sua ajuda, dos breves relatos de amigos e parentes, dos idosos que
transmitiram às novas gerações como era arriscar a própria vida para salvar
alguns judeus. Para a quase totalidade deles resta apenas o aplauso da própria
consciência, a memória das implicações de suas escolhas, a simplicidade de quem
disse “eu posso fazer isso” e se manteve fiel à decisão de fazer o que se
propunha.
Todos nós já ouvimos falar dos
campos de concentração que marcaram a história da Europa entre 1933 e 1945.
Nestes espaços, eram inicialmente confinadas, torturadas e assassinadas as
pessoas que o governo de Adolf Hitler considerava inimigas da Alemanha. Entre
elas encontramos comunistas, sociais democratas, sindicalistas e todas as que,
por alguma razão, eram acusadas de ameaçar o Terceiro Reich.
Pouco tempo depois, as reclusões
envolveram outros "elementos indesejáveis" como negros, inválidos,
homossexuais, ciganos, criminosos e, obviamente, os judeus. O número de
reclusos passou de 45.000 entre 1933 e 1934 para o pico de 715.000 pessoas, em 1945,
quando a decisão de exterminar os judeus caminhava a passos largos nos
territórios ocupados pelas tropas nazistas.
A perseguição deste grupo religioso
vinha de longa data. O governo democrático da República de Weimar (1919-1933)
criou leis para protegê-lo, apesar da presença de membros antissemitas nas suas
fileiras. A ascensão de Hitler provocou uma guinada brusca na relação do Estado
com os judeus. A ideia da "raça pura" constituía a base ideológica do
Terceiro Reich e era considerada pelos nazistas como uma fonte de força para o
povo alemão. Neste sentido, em 1933, a queima dos livros judaicos e a proibição
de publicar uma longa lista de textos marcou o início da purificação de sua
influência na identidade alemã.
Escolhidas por universidades e
estudantes que, em sua grande maioria, nunca haviam lido o seu conteúdo, as
obras destruídas e censuradas eram acusadas de pregarem o marxismo e a
subversão. Este processo era acompanhado pelo crescimento da violência contra
os judeus na forma de profanação e destruição das sinagogas, na depredação de
lojas e casas, nas humilhações em ruas e praças de todas as cidades.
Em 1934, Hitler iniciou um movimento
que visava segregar este grupo étnico-religioso do convívio com os alemães.
Restaurantes, hotéis, trens, praias, estradas e outros espaços públicos
declararam que os judeus não eram bem-vindos, enquanto as agressões à luz do
dia se tornavam cada vez mais frequentes. Aos poucos, o "espírito
judaico" ganhou as feições de um vírus perigoso que contamina e destrói os
seres humanos. Desta forma, o nazismo fazia crescer entre os alemães uma
verdadeira obsessão em relação aos judeus e alimentava um clima de pânico que
deixava a população com a sensação de estar em risco pelo simples contato com
tudo o que guardava alguma relação com o judaísmo.
A fermentação deste caldo de cultura
irrompeu com força em 1939 quando, com o apoio da população, as políticas do
Terceiro Reich se tornaram abertamente genocidas. As pessoas comuns, de fato,
já viam os judeus como corruptos e degenerados, como seres maus por natureza,
sem a menor possibilidade de recuperação. Por isso, exterminá-los não era um
crime, mas apenas um serviço que, em nome do bem, Hitler prestava aos alemães e
ao mundo. Neste ambiente, ajudar um judeu, adulto ou criança que fosse, era
sinônimo de apoiar o mal, algo que o governo devia mesmo punir com a execução imediata
de quem era solidário e de quem havia recebido o seu auxílio.
Diante desta realidade, optar por oferecer
algum tipo de ajuda implicava em enfrentar uma luta feroz contra o próprio
instinto de autopreservação. Afinal, as circunstâncias eram muito incertas, o
perigo batia constantemente à porta de casa, o medo convidava a anular a
vontade de fazer alguma coisa antes mesmo que houvesse tempo para pensar no
impacto que a realidade produzia na própria consciência. Nestas condições, o
que levou milhares de pessoas a remarem contra a correnteza com ações cujos
limites apontavam claramente que o risco era sistematicamente superior aos
resultados que podiam ser conseguidos?
Os estudos aos quais tivemos acesso
convergem para alguns fatores.
O principal deles deita raízes no
fato de que assumir a responsabilidade de esconder e cuidar dos judeus requer a
percepção da própria capacidade de lidar com os desafios a serem enfrentados.
Ainda que a realidade questionasse permanentemente a convicção pela qual estas
ações influenciariam positivamente os acontecimentos, era justamente esta
percepção a mostrar que fazer ou não fazer não era algo indiferente. Ou seja,
apesar de o alcance das ações ser extremamente limitado, “o importante era se
mexer” para não deixar que a opressão marcasse os tempos da vida, para impedir
a morte de algumas pessoas, nem que fosse apenas para viver em paz com a
própria consciência.
Na maioria dos casos, a decisão de
abrigar na própria casa uma pessoa ou uma família judia sempre ocorria a pedido
de um amigo ou de um conhecido que, ao descrever a situação das vítimas, levava
a pensar a quem estava em apuros e não em como a ajuda possível colocaria em
perigo tanto ele, como os seus entes queridos. Ao aceitar o desafio, quem se
dedicava a esta causa costumava passar por um processo de envolvimento
crescente. Começava fornecendo um pouco de comida e algum medicamento. Em
seguida, ajudava, por exemplo, a transferir um judeu para uma área mais segura,
escondendo-o momentaneamente em sua própria casa para, em muitos casos,
abrigá-lo durante semanas, meses e até anos.
Fazer isso era se colocar
automaticamente na posição de "fora da lei" e demandava mudar as
ideias de "certo" e "errado" que haviam orientado a sua
vida até aquele momento. Contrabandear comida, mentir, roubar, conspirar, se
isolar da vizinhança e colocar os familiares em risco deixavam de ser atos
condenáveis para serem parte das necessidades da resistência.
E não é para menos. Muitos vizinhos
simplesmente viam como "egoístas" e "perigosos" todos
aqueles que ofereciam ajuda às pessoas execradas pelo regime. Por isso, bastava
uma palavra mal colocada, um movimento fora dos padrões normais, uma desatenção
ou o comportamento insólito de um familiar para que a fofoca se transformasse
em suspeita que, ao chegar aos ouvidos da polícia, abria o caminho para o campo
de extermínio ou para a execução imediata.
Esconder um judeu sob o próprio teto
obrigava a família a se ajustar ao novo "integrante" da noite para o
dia. As rotinas eram alteradas, padrões de segurança eram introduzidos, marido
e esposa desistiam da sua privacidade, as crianças precisavam aprender
rapidamente a conviver com estranhos, a chamar de tio, tia, irmã ou irmão quem
acabavam de conhecer.
Muitas vezes, a situação exigia que
as próprias crianças se envolvessem nas ações dos pais. Em inúmeras ocasiões
elas assumiram o papel de mensageiros, de agentes de espionagem, de guia nas
transferências dos judeus de um abrigo para outro. A presença delas nas
atividades mais perigosas servia para não despertar as suspeitas de policiais e
soldados, ao mesmo tempo em que credenciava os pequenos a ter voz nas decisões
de resgate.
Mas, para isso, a educação que ensinava a dizer sempre
a verdade tinha que ser substituída pela necessidade aprender a mentir de forma
convincente diante de quem não era de casa e a fingir inocência caso fossem
presas. Às vezes, a imprevisibilidade da guerra colocava filhos e filhas num
papel que os pais nunca poderiam querer ou prever, como é o de cuidar dos que
se escondiam em seus lares depois que os adultos haviam sido capturados e assassinados
pela repressão.
Os adolescentes eram particularmente
afetados pela escolha de ajudar os judeus. As mudanças impostas pela
resistência impediam que eles convivessem com os seus pares, que contassem com
o apoio e a aprovação dos coetâneos, e impunha que se separassem dos amigos.
Convidar alguém a frequentar a própria casa era simplesmente impensável, ao
mesmo tempo em que eles não podiam integrar nenhum movimento juvenil e nem
frequentar os espaços que, em muitas cidades e povoados, eram os únicos lugares
onde os amigos se reuniam.
Comprar comida era outro desafio
diário, não só pela escassez produzida pela guerra, mas pelo fato de que a
necessidade de adquirir uma quantidade maior de alimentos podia despertar a
desconfiança dos donos das quitandas e da vizinhança. Para driblar esta
possibilidade, as compras eram efetuadas em lojas fora dos bairros de
residência, em pequenas quantidades e mais vezes durante o dia. Nas grandes
cidades, isso era relativamente fácil, mas esta ação tão simples e cotidiana
demandava certa engenhosidade quando se tratava de centros menores.
Às vezes, ocorria de os próprios
quitandeiros perceberem o aumento dos volumes adquiridos e, por eles mesmos
estarem escondendo ou ajudando algum judeu, facilitavam as coisas separando os
legumes que a família costumava levar. Apesar da discrição com a qual isso era
feito, estes gestos carregados de uma cumplicidade silenciosa podiam sempre ser
detectados por algum freguês e denunciados à polícia.
Enfrentar o medo demandava um
equilíbrio emocional capaz de suportar a constante exposição ao risco, de lidar
com o terror e a dor ao testemunhar as atrocidades perpetradas à luz do dia, de
enfrentar sentimentos de culpa por não poder fazer mais ou por arriscar a vida
dos familiares, além de manter vivo o próprio medo da morte para não baixar a
guarda diante das exigências da clandestinidade.
A presença de sólidos valores
humanitários em sua educação familiar era o traço distintivo de quem ajudava a
salvar os judeus. Estamos falando de pessoas que acreditavam na democracia, que
praticavam o altruísmo bem antes de 1933, de homens e mulheres que alguns
pesquisadores chamam de "humanos por natureza" e, justamente por
isso, não titubeavam em criar uma espécie de porto seguro para quem estava à
mercê da tempestade.
Estas características, obviamente,
não dispensavam que as pessoas ajudadas fizessem a sua parte. Quem protegia os
judeus nas dependências da própria casa, se comprometia em abrigá-los, em
cuidar de suas necessidades diárias, em alertá-los sobre a evolução dos perigos
no ambiente circunstante e em manter uma fachada de normalidade para proporcionar
um mínimo de segurança aos moradores da casa. Quem dependia destas ações devia
criar o menor número possível de problemas, usar os recursos de que dispunha
para ajudar na vida diária e permanecer invisível aos olhares externos.
Como, a princípio, não dava para
saber quanto tempo os judeus se esconderiam no mesmo ambiente, novas demandas
seriam feitas quando outras vítimas precisassem de ajuda ou a comida de casa
acabasse ou, ainda, nos momentos em que o medo elevasse a tensão entre os
membros da família levando-os a adotar comportamentos estranhos. Do mesmo modo,
quando o ambiente externo apontava um aumento dos riscos, papéis e
responsabilidades precisavam passar por uma redefinição, novas estratégias de
defesa eram desenvolvidas e as bases do acordo em volta do qual se
materializava a resistência deviam encontrar rapidamente um novo equilíbrio.
Apesar destas feições razoavelmente
comuns aos anônimos que agiam na contramão do nazi-fascismo, não podemos pensar
que eles constituíssem um grupo homogêneo em termos de motivações que
sustentavam o envolvimento com quem estava a um passo da morte pelo simples fato
de ser judeu. Entre os motivos de cada um, encontramos aspectos morais,
ideológicos, profissionais e sentimentos do dever em relação aos demais que
foram assimilados na infância. Do mesmo modo, não era estranho se deparar com a
indignação diante do antissemitismo, com a admiração pelos judeus que conheciam
desde antes da ascensão ao poder de Hitler e Mussolini ou com os quais haviam
partilhado algum instante da vida, com o fato de os próprios filhos terem
brincado ou mantido alguma relação com os coetâneos das famílias judaicas.
Em quase todos os que se
solidarizavam com os judeus prevalecia a ideia de estarem fazendo a coisa certa
ou de não ficarem em paz consigo mesmos se deixassem aquelas pessoas morrerem.
Para muitos, o fato de sentir que a vida é sagrada e de se comportar de uma
maneira que mantivesse a própria integridade; o ódio pelos nazistas; a
coerência entre moralidade, crenças religiosas e ação; o preceito bíblico de
fazer aos demais o que se gostaria que eles fizessem com eles mesmos; a
filiação a partidos socialistas e comunistas e, em alguns casos, a partidos
nacionalistas republicanos; e um forte sentimento de compaixão eram parte dos
elementos que levavam a agir. Vivenciadas individualmente com ênfases e
intensidades diferentes a depender das convicções de cada um, regadas pelo
orgulho silencioso de sua capacidade de manter a integridade moral, de ser fiel
às próprias crenças ou aos ideais assimilados no convívio familiar, estas
posturas sustentavam e fortaleciam as ações que, em sua ampla maioria se
alicerçavam em um profundo sentimento de humanidade.
Se, de um lado, a soma de
passividade e aprovação do extermínio dos judeus foram determinantes para o
sucesso do holocausto, de outro, os anônimos que agiram para se contrapor aos
planos do nazi-fascismo, não eram anjos, santos e nem heróis míticos, mas tão
somente gente comum, pessoas vindas de todas as classes sociais e portadoras
das mais variadas convicções sobre a vida e a política, homens e mulheres de todas
as origens e profissões, mas todos e todas com alguns desses elementos
fortemente arraigados no cotidiano de suas vidas.
Nas páginas que seguem, apresentaremos
alguns casos concretos que ilustram as formas como tudo isso se materializava
em escolhas individuais ou através de uma rede de contatos que foi ampliando e
aprimorando as possibilidades de transformar a liberdade em desobediência.
2. Paul Grüninger: a vida acima
da lei.
O que podemos esperar de um policial
que comanda o controle da fronteira entre a Suíça e a Áustria? A resposta
parece óbvia: o cumprimento das ordens superiores. Contudo, há momentos em que
esta receita a ser seguida com o rigor imposto pela hierarquia militar esbarra
na consciência de que cumprir o próprio dever não é um ato de coragem e sim um
gesto de covardia que contribui para a morte de centenas de inocentes que fogem
do extermínio.
Em momentos como estes, a vida coloca
um divisor de águas: desobedecer e enfrentar as duras consequências que esta
escolha demanda; ou vestir a covardia de lavar as próprias mãos com a roupa da
obediência aos superiores? Este foi justamente o dilema com o qual Paul
Grüninger, comandante da polícia na região de Saint Gallen (noroeste da Suíça),
se deparou ao receber a ordem de impedir a passagem dos refugiados judeus que
procuravam se salvar da perseguição do nazismo entrando na Suíça.
Poucos
sabem que, na Conferência de Évian, realizada em julho de 1938, trinta e duas
nações se reuniram para discutir a crise dos refugiados judeus, provocada pela
intensificação da perseguição antissemita na Alemanha. A decisão de selar as
fronteiras à entrada deles representou o ápice de um processo de acordos
bilaterais que alguns governos vinham tecendo com Berlim. Entre eles, em março
de 1938, a Suíça havia se comprometido a barrar a entrada dos refugiados no seu
território, tarefa que o governo de Hitler facilitava ao marcar com a letra
"J" os passaportes dos judeus alemães.
Em 17 de agosto de 1938, na
Conferência Distrital dos Diretores de Polícia, onde se reafirmava a ordem de
bloquear a entrada dos que fugiam da perseguição nazista, Paul pediu que o país
mantivesse abertas as suas fronteiras. As atas do evento registraram as suas
palavras: "É inescrupuloso rejeitar esses refugiados, mesmo que fosse
apenas por considerações de humanidade. Temos que permitir que muitos deles
entrem no país". Mas o seu apelo foi ignorado e a ordem de barrar todos os
judeus que tentassem entrar na Suíça foi mantida. As palavras de Paul buscavam
apenas sensibilizar as autoridades militares e os colegas que participavam da
Conferência em relação a uma realidade que, para ele, era insuportável.
Como comandante da polícia ele passava longe de ser um
rebelde. Paul era um conservador, nascido em uma família conservadora, um
indivíduo da ordem e de valores firmes, um homem decente, cordial, respeitado
pelos colegas, fiel servidor do seu país e, em muitos aspectos, a que poderíamos
chamar de “uma pessoa comum”. Mas era justamente a lealdade aos princípios
sobre os quais havia fundamentado as decisões da sua vida a impedi-lo de ser
cúmplice involuntário da morte de milhares de pessoas que, diariamente, se
apresentavam no posto de fronteira de Saint Gallen. Nas palavras deles,
registradas anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, encontramos a
tradução simples e direta da motivação que o levou a desobedecer: "Era,
fundamentalmente, uma questão de salvar vidas humanas ameaçadas de morte. Como
é que eu poderia levar a sério cálculos e esquemas burocráticos?".
Foi com base nesta reflexão que Paul
deu ordem à equipe por ele comandada de fazer vista grossa ao fluxo de pessoas
que transitavam na passagem de fronteira. Enquanto permaneceu no comando,
falsificou as datas de, aproximadamente, 3.600 documentos para fazer parecer
que os refugiados haviam chegado antes de março de 1938. Desta forma, a
permanência no país não tinha razões legais para ser recusada.
Além disso, entregou relatórios
falsos sobre o número de recém-chegados, atrapalhou os esforços das autoridades
para localizá-los e, junto à Associação Suíça dos Refugiados Judeus, ajudou a
montar um centro de acolhida nas proximidades de Diepoldsav, onde eles
aguardavam a emissão dos vistos temporários. À medida que alguns judeus estavam
doentes e haviam entrado apenas com a roupa do corpo, Paul tirou dinheiro do
seu bolso para comprar casacos e sapatos que permitissem enfrentar os rigores
do inverno suíço e, em alguns casos, pagou consultas médicas e remédios.
Em março de 1939, a Gestapo
interceptou a carta de uma senhora judia que elogiava Paul pela ajuda que havia
prestado a ela e a outros que estavam na mesma condição. Berlim alertou
imediatamente as autoridades suíças do ocorrido e, no dia 3 de abril de 1939,
ele foi expulso da força policial do país e processado. Dois anos depois, o
tribunal de Saint Gallen declarou que o ex-comandante da polícia devia ser
considerado culpado pelo não cumprimento do dever, má conduta e falsificação de
documentos oficiais. Salvar vidas custou a Paul a perda de todos os benefícios
previdenciários, a impossibilidade de concorrer a qualquer cargo no serviço
público, o pagamento de multas altíssimas e das custas processuais.
Com a ficha criminal suja por crimes
considerados graves, o ex-policial se virou como pôde para ganhar a vida.
Trabalhou como operário, balconista, vendedor de tapetes, instrutor de
autoescola, gerente de uma loja de capas de chuva e professor. Não bastassem os
apertos financeiros, não faltavam ocasiões em que era insultado publicamente,
perseguido e acusado de ter recebido propinas para deixar os refugiados
entrarem no país. Sorrindo, ele próprio respondia que não havia como ser
subornado por pessoas que tinham deixado tudo para trás e, muitas vezes, tinham
como únicos bens os indumentos que vestiam e os sapatos que calçavam.
Diante
das dificuldades financeiras, a filha que estudava em Lausanne teve que
abandonar a universidade a fim de trabalhar para garantir o sustento da
família. Marcada como a filha de um criminoso, enfrentou várias dificuldades
para encontrar um emprego, antes de ser finalmente contratada por uma empresa
têxtil administrada por judeus. Apesar de todos os perrengues pelos quais a
família teve que passar, a esposa sempre o apoiou. Para ela também era
importante que aquelas pessoas que chegavam à noite em meio ao denso nevoeiro
fossem acolhidas e levadas para um lugar seguro para receber os cuidados
possíveis.
Paul faleceu em 22 de fevereiro de
1972. Morreu pobre, hostilizado em muitos lugares, considerado um tolo por ter
destruído uma carreira brilhante a troco de nada. Mas, em nenhum momento, se
arrependeu do que havia feito e nem abriu mão dos valores que orientaram suas
escolhas.
Em 1954, ao ter negado o pedido de
reabilitação enviado ao governo a fim de poder receber os benefícios
previdenciários, afirmou com todas as letras: "Tenho orgulho de ter
salvado a vida de centenas de pessoas oprimidas. Meu bem-estar não era nada
comparado com o destino cruel dos judeus". Como testemunha a própria filha
dele, Paul manteve esta mesma postura até o dia da sua morte e, em inúmeras
ocasiões, repetia de cabeça erguida que, se necessário, voltaria a fazer
exatamente as mesmas coisas.
O primeiro reconhecimento de suas
ações veio do Instituto Yad Vashen, sediado em Jerusalém, que lhe entregou o
título de "Justo entre as nações", uma honorificência simbólica
concedida àqueles que haviam arriscado suas vidas para salvar os judeus da
perseguição nazista.
Após inúmeras pressões internas e
externas, o governo da Suíça reabriu o caso de Paul. A sua reabilitação foi
assinada somente em 1996, 24 anos depois da sua morte e 57 anos depois de
condená-lo por ter feito de sua rotina de policial de fronteira o caminho para
subtrair vidas humanas das garras do nazismo.
Da Suíça, passamos agora para a
França e, mais precisamente, para a cidade de Vichy para encontrar o primeiro
hacker do qual a história tem notícias.
2. Renê Carmille: a mecanografia como arma de
resistência.
Nascido em janeiro de 1886 na cidadezinha de Trémolat, Renê Carmille teve a formação humana fortemente marcada pelas atividades militares. Durante a Primeira Guerra Mundial, ele serviu no exército francês como comandante de bateria e, tempos depois, supervisionou operações de espionagem até ser nomeado auditor do Exército, em 1924.Após esta fase, trabalhou na Bull SAS, uma empresa francesa que transferia dados dos formulários preenchidos manualmente para cartões perfurados. Eram os primeiros passos da mecanografia, a tataravó da informática moderna. Naquela época, as máquinas inventadas por Herman Hollerith permitiam classificar os indivíduos por ordem alfabética, gênero, estado civil, formação escolar e profissão. O problema é que, frequentemente, surgiam casos de identificação incorreta em função de as pessoas terem o mesmo nome. A dedicação de Renê ao desenvolvimento destes sistemas não só lhe proporcionou um profundo conhecimento do seu funcionamento, como o levou a criar um número de doze dígitos (algo parecido com o nosso CPF) que facilitaria a identificação das pessoas cadastradas, uma inovação que poderia servir para o bem...e para o mal.
Foi em junho de 1933, enquanto
trabalhava no aperfeiçoamento da leitura dos cartões perfurados, que ele
visitou a Dehomag, uma empresa alemã subsidiária da IBM que havia fornecido ao
governo nazista uma maneira fácil e rápida de compilar as estatísticas do censo
de 1933. As dúvidas em relação à possível utilização da mecanografia cresceram
em maio de 1939, quando ele soube que a evolução das máquinas havia permitido
tabular em 105 milhões de cartões os dados do maior censo já realizado na
Alemanha e que isso possibilitava ao regime nazista selecionar em tempos extremamente
breves tanto os homens destinados a integrar as tropas alemãs, como a
localização dos judeus a serem enviados aos campos de extermínio.
Ciente disso tudo, no início de
1940, Renê observava com preocupação o avanço das tropas alemães em direção à Europa
Ocidental. Até esse momento, ele era o que podemos chamar de "um cara
quieto", perspicaz, de caráter forte, um funcionário público dedicado e
leal aos valores da França republicana e que usava as próprias habilidades
profissionais a serviço do país. Contudo, no segundo semestre daquele ano, os
acontecimentos fariam com que esse conjunto de elementos produzisse uma guinada
nas suas escolhas e atitudes. Vejamos o que aconteceu.
Nos planos nazistas, a França
representava a maior ameaça da Alemanha na Europa continental. Derrotá-la era
uma obrigação. E isso aconteceu com uma invasão que, em apenas 46 dias de
duração, ocupou o norte do território e entrou em Paris impondo ao Exército
francês uma derrota vergonhosa. A rendição ocorreu em 10 de junho de 1940.
Doze dias depois, foi assinado um armistício
que dividiu a nação em três partes: o centro-sul do país, cujo território
ficaria livre das forças alemãs, foi entregue aos cuidados do marechal francês
Henri Pétain e teve a sede administrativa fixada na cidade de Vichy. A França
ocupada pelos nazistas, formada pelo norte e pela costa atlântica, incluindo a
capital, Paris, era uma zona comandada diretamente pelas autoridades militares
germânicas. A terceira parte era constituída pelos territórios da Alsácia-Lorena,
anexados à Alemanha.
Formalmente, o "governo de Vichy" se apresentava como um regime neutro, mas na prática colaborava ativamente com Hitler. Cabia aos franceses arcar com os custos da ocupação alemã, realizar um policiamento ostensivo em todo o território e impedir que os cidadãos deixassem o país. O termo “República Francesa” foi substituído por “Estado Francês” e o lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" por "Trabalho, Pátria e Família".
Desde o início, o marechal Pétain adotou as práticas
dos governos fascistas. Perseguiu violentamente os opositores, prendeu líderes
políticos, extinguiu os partidos, os sindicatos e acabou com a liberdade de
imprensa. Suas ações instilavam o medo na população e levavam as pessoas a uma
paralisia assustadora diante da rápida evolução dos acontecimentos.
A violência da polícia francesa garantia
a face repressiva e racial do regime. Capturava judeus e todos aqueles que os
alemães consideravam indesejáveis, prendendo-os, fuzilando-os ou simplesmente
entregando-os à deportação para os campos de concentração. Enquanto isso, a
população mergulhava na miséria em função do desemprego, da inflação galopante
e da escassez de alimentos.
Na luta diária pela sobrevivência, a
população demorou a esboçar sinais de reação e rebeldia. Pouco a pouco, a
submissão à Alemanha nazista e as consequências econômicas, políticas e sociais
desta subserviência levaram vários setores da sociedade francesa a criar grupos
de resistência. Comunistas, judeus, anarquistas, sacerdotes, religiosos,
católicos conservadores, liberais, jornalistas e pessoas de todas as camadas
sociais se uniram em grupos que davam vida à que ficou conhecida como a
Resistência Francesa.
Diante da clara traição dos ideais
republicanos nos quais acreditava e pelos quais havia lutado durante a Primeira
Guerra Mundial, Renê uniu-se ao grupo clandestino "Marco Polo", uma
rede de inteligência altamente profissional formada por cerca de 900 agentes
espalhados no país inteiro. A partir do segundo semestre de 1940, o seu trabalho
no Serviço Nacional de Estatística teve como objetivo prioritário o de
inviabilizar os planos do governo de Vichy e dos nazistas.
De início, atrasou quanto pôde a
realização do censo solicitado pelos alemães que demandavam dados precisos em
relação à população e, sobretudo, aos judeus e demais opositores. Em 1941, agiu
para reduzir o objetivo do recenseamento a um levantamento das profissões,
vendendo a ideia de que era imprescindível identificar as áreas do país onde
faltavam certos empregos e determinados profissionais. Porém, apesar de seus
esforços, não conseguiu evitar que o formulário utilizado trouxesse uma
pergunta sobre a confissão religiosa de cada habitante.
Diante da pressão dos nazistas em obter rapidamente a tabulação dos dados referentes à religião, Renê ganhou tempo alegando que a carga de trabalho era tão grande que ele não poderia reservar pessoas e recursos para produzir o relatório solicitado. Enquanto isso, os seus subordinados obedeciam à sua ordem de trabalhar em marcha lenta para adiar ao máximo a tabulação do censo. Em seguida, justificou os atrasos alegando que as informações solicitadas se encontravam em várias jurisdições e haviam sido reunidas em sistemas de arquivamento diferentes daqueles que estavam sendo usados. Renê sabia disso desde o início, mas, obviamente, não moveu um dedo para corrigir o problema que se manifestava, sobretudo, nas coletas realizadas nos territórios ocupados pelos nazistas. Para ele, qualquer dificuldade adicional era muito bem-vinda.
No início de 1942, a desculpa pela
não produção do relatório seguidamente cobrado pelos nazistas ganhou a forma de
um protesto formal por ele assinado junto às administrações regionais que não
haviam fornecido 30.000 registros solicitados pelo seu departamento. Mais uma
vez, tratava-se de empurrar com a barriga o que se destinava a mandar muita
gente para os campos de extermínio.
Enquanto enrolava os alemães, Renê
adulterava as máquinas de tabulação do seu departamento para que, se um cartão
do censo tivesse os furos na coluna que indicava a pessoa como pertencente à fé
judaica, os equipamentos simplesmente ignorariam o furo. Desta forma, os
nazistas seriam obrigados a examinar manualmente cada cartão para encontrar os
judeus que tanto procuravam.
Cansada dos atrasos e suspeitando de
envolvimento com a Resistência, no dia 3 de fevereiro de 1944, a Gestapo
vasculhou as repartições que Renê chefiava e descobriu que ele tinha milhares
de registros de judeus não processados no seu escritório. Renê foi preso, torturado
e enviado ao campo de concentração de Dachau onde morreu de tifo em 25 de
janeiro de 1945, poucos meses antes do fim do conflito.
Enquanto chefiava o Serviço Nacional
de Estatística, ele não se limitou a adiar a entrega de um relatório que, três
anos depois de ter sido solicitado, ainda não estava pronto. Lidar com o censo aplicando
a cada pessoa o número de identificação por ele criado permitiu fornecer ao
grupo Marco Polo a localização precisa de veteranos de guerra que poderiam ser
contatados pela resistência a fim de se unirem às suas forças para a realização
de ações armadas contra os invasores e contra o governo de Vichy. Além disso, à
medida que o seu Departamento registrava os óbitos ocorridos no país, os dados
dos defuntos eram usados para a produção de carteiras de identidades oficiais
com identidades falsas a serem entregues aos judeus, aos combatentes da
resistência e aos desertores alemães que colaboravam com ela.
É impossível dizer quantos judeus
Renê salvou ao adulterar as máquinas que liam os cartões perfurados e ao emitir
identidades falsas. A título de ilustração, é importante notar que, antes do
início da Segunda Guerra Mundial, havia cerca de 300.000 judeus morando na
França, 82.000 dos quais morreram no Holocausto (25% do total). Na Holanda,
igualmente invadida pelos nazistas, dos 140.000 judeus residentes no país,
107.000 morreram nos campos de extermínio (75% da população judaica). Basta
isso para entendermos a importância das suas ações.
Os judeus franceses não sabiam que
suas vidas estavam sendo protegidas por este "burocrata" do Serviço
Nacional de Estatística que, ao se tornar o primeiro hacker da história, pagou
com a vida a coerência aos valores nos quais acreditava.
Da França, vamos para a Lituânia
onde encontramos a história do Cônsul do Japão, país que, na Segunda Guerra
Mundial, era aliado da Alemanha nazista e da Itália fascista.
4. Chiume Sugihara: uma folha, um
carimbo e uma assinatura salvam vidas.
Nascido no primeiro dia de 1900,
Chiume Sugihara sempre foi um aluno dedicado aos estudos e firme nas escolhas
que marcariam a sua vida. Diante das altas notas do ensino médio, o pai queria
muito que ele se matriculasse na universidade de medicina, mas o filho sonhava
em estudar literatura e morar no exterior. No dia do vestibular, Chiume saiu de
casa com o conselho do seu pai de dar o melhor de si, mas, na hora de entregar
a prova, as folhas que havia recebido traziam apenas o próprio nome. Vetado na
Medicina, entrou na universidade Waseda para estudar inglês, pagando o curso
com um trabalho de meio-período como estivador e como tutor.
Anos depois, foi aprovado em um
concurso público promovido pelo Ministério das Relações Exteriores do Japão e
ingressou na carreira diplomática. Designado para trabalhar na Manchúria (uma
região ao norte da China que, naquela época, era controlada pelo Japão),
renunciou ao cargo em 1934 em protesto contra a forma cruel com a qual o
governo do seu país tratava a população local.
Quatro anos depois, assumiu o
escritório diplomático em Helsinki, capital da Finlândia e, em 1939, Tóquio o
encarregou de abrir um consulado em Kaunas, capital da Lituânia, com a missão
de mapear os planos de guerra dos soviéticos e dos alemães. Seis meses depois, as
tropas de Moscou ocuparam o país e ordenaram o fechamento dos consulados.
No mesmo período, a invasão nazista
da Polônia levou milhares de judeus a fugirem para a Lituânia, na tentativa de
escapar do extermínio. Um grupo deles descobriu que Curaçao e Guiana Holandesa
(hoje conhecida como Suriname) não exigiam vistos formais de entrada e
permanência. Mas havia um obstáculo a ser superado. Com as rotas de acesso ao
Oceano Atlântico obstruídas pela ocupação nazista da Europa, o único caminho
possível em direção ao Caribe seria atravessando a União Soviética até
Vladivostok, seguindo de navio para o Japão e, em seguida, cruzar o Oceano
Pacífico rumo ao destino final. Naquela altura, nenhum refugiado se preocupava
com a possibilidade de não chegar a Curaçao ou a Guiana Holandesa. O essencial
era sair daí o mais rapidamente possível a fim de não cair nas garras dos
alemães e ser deportado para um campo de extermínio.
Os soviéticos eram sensíveis ao drama dos refugiados, mas não queriam que eles se abrigassem em seu território. Por isso, concordaram em deixá-los passar desde que tivessem um visto de entrada no Japão, já que o país era parte do trajeto rumo ao destino final. Demorou muito pouco para que judeus de todas as idades se aglomerassem em volta do consulado japonês em Kaunas pedindo os vistos de que precisavam para iniciar a sua longa viagem.
Chiume, observava atentamente aquela
massa humana desesperada, faminta, sem casa e cujas histórias narravam as
atrocidades do nazismo. Sensibilizado, enviou imediatamente três telegramas a
Tóquio solicitando a permissão para emitir os vistos. Mas a resposta
contrariava abertamente as expectativas do Cônsul: o Ministério das Relações
Exteriores pedia que não emitisse nenhum visto para pessoas ou empresas e, em
sua última comunicação, foi taxativo em afirmar que não admitia exceções e que
esperava não receber mais nenhum pedido neste sentido.
Enfrentar a ordem do governo
implicava em arcar com as consequências desta decisão. Os problemas começariam
com as dificuldades econômicas de manter uma família numerosa sem poder contar
com um trabalho que proporcionasse uma renda próxima ao salário da sua função.
Mas tudo poderia se agravar à medida que, Berlim, aliado de Tóquio na Segunda
Guerra Mundial, talvez não hesitasse em ordenar a prisão dele e dos seus
familiares por um ato que afrontava o plano nazista de eliminar os judeus.
Não foi fácil para Chiume tomar a
decisão de desobedecer, mas esta era a única que fazia sentido. Para ele e a
esposa a vida humana era importante demais para ser sacrificada em nome do
cumprimento de uma ordem do governo e das possíveis consequências deste ato.
Viver de acordo com os próprios valores era o caminho que a sua consciência
apontava enquanto fazia ressoar um velho ditado samurai pelo qual "nem
mesmo um caçador pode matar um pássaro que voa em sua direção procurando
refúgio".
Tomada a decisão de emitir os vistos,
Chiume solicitou e obteve dos soviéticos que ampliassem em 20 dias a sua
permanência em Kaunas. Único diplomata estrangeiro a permanecer no país, sentou
com a esposa à mesa de trabalho e ambos começaram a emitir febrilmente todos os
vistos de entrada no Japão que suas energias permitiam. Em um único dia, foram
mais de 300 vistos, o mesmo número de permissões que o consulado costumava
entregar em um mês inteiro.
Quando acabaram os formulários impressos, Chiume pegou
folhas em branco e preencheu a caneta todos os dados que deviam constar para
que o documento não fosse rejeitado no seu país. Na tentativa de atender o
maior número possível de pessoas, o Consul japonês não parava de trabalhar nem
mesmo na hora de comer. As poucas horas de sono pesavam cada vez mais, as mãos
doíam, mas ele e a esposa sabiam que ter um tempo maior para si significaria
expor alguém à morte.
De posse dos vistos, os refugiados procuravam embarcar
imediatamente em direção a Moscou e daí para Vladivostok. A última etapa até o
Japão seria de navio, até o porto de Kobe. Não havia tempo a perder, pois os
nazistas avançavam em direção à Lituânia.
No final de agosto, os soviéticos ordenaram que o
consulado fosse fechado. Chiume pediu mais 24 horas. Pagou um hotel para a
família e trabalhou incessantemente até a hora de embarcar no trem que, no dia
1 de setembro de 1940, o levaria a Berlim e daí para Bucarest, conforme havia
sido disposto pelo seu governo após a ocupação soviética da Lituânia. O trajeto
do hotel até a estação foi percorrido em meio a uma multidão que queria o visto
de entrada no Japão. Chiume continuava preenchendo papéis e entregando-os às
pessoas mais próximas.
O seu último ato foi no interior do
vagão. Sabendo que não havia tempo para mais nada, que já não era possível
cumprir nenhuma formalidade das que deviam acompanhar a concessão de um visto,
o Consul simplesmente carimbou e assinou todos os papéis em branco que pôde. O
trem já estava saindo da estação quando Chiume abriu a janela e lançou em
direção à multidão o resultado da última tentativa de salvar uma vida. No
entender dele, dificilmente, em tempos de guerra, alguma autoridade soviética
poderia recusar um documento que trazia o carimbo e a assinatura oficial de um
Cônsul ainda que os dados tivessem sido preenchidos a mão por outra pessoa.
Estima-se que a desobediência de
Chiume tenha salvado cerca de 6000 judeus. Muitos conseguiram chegar a Kobe.
Outros pararam pelo caminho. Quem desembarcou no Japão, recebeu a permissão de
ficar durante alguns meses. Em seguida, os refugiados foram enviados para
Xangai, na China. Quando a Alemanha invadiu a Lituânia, em junho de 1941, esta
última janela de fuga foi definitivamente fechada. A matança dos judeus começou
imediatamente após a chegada das tropas nazistas no país.
Devido ao seu conhecimento e às
habilidades diplomáticas que o distinguiam, Chiume foi mantido como membro do
corpo consular. Em 1944, foi preso pelas tropas soviéticas, sendo libertado
após o final da Segunda Guerra Mundial. Voltou ao Japão em 1945 e, logo após o
desembarque, recebeu a carta de demissão. A sua carreira de diplomata estava
arruinada e ele teve que começar a vida do zero. Sem emprego e com uma família
numerosa, usou o seu conhecimento das línguas para fazer biscates de tradutor e
intérprete.
Em 1950, se mudou com a família para Moscou, onde trabalhou como tradutor em uma empresa de comércio exterior. Humilde, discreto, altruísta, calmo e com um grande senso de humor, Chiume jamais falou ou mencionou a alguém o que havia feito para arrancar os judeus da morte certa. Foi somente em 1969 que o encontro casual com Yehoshua Nishri, um homem que se salvou graças a um dos vistos que ele havia emitido, levou centenas de outros a testemunharem o que havia feito.
Chiume aposentou-se em 1975 e
decidiu voltar ao Japão. Dois anos depois, ao ser questionado sobre os motivos
que o levaram a desobedecer respondeu: "Eu não me importava em perder o
meu emprego, outra pessoa teria feito a mesma coisa se estivesse no meu lugar.
(...) Eram seres humanos e precisavam de ajuda. Estou contente de ter
encontrado forças para tomar a decisão de ajudá-los".
Em 1985, foi reconhecido como
"Justo entre as nações" pelo instituto Yad Vashen, mas as condições
físicas não lhe permitiram se deslocar até Israel para receber a homenagem.
Chiume faleceu em 31 de julho de 1986, aos 86 anos de idade. Até a sua morte, o
governo japonês não lhe ofereceu sequer um pedido de desculpas. Isso só ocorreu
em 1991, quando o Vice-Ministro das Relações Exteriores do Japão, Muneu Suzuki,
reconheceu o seu ato humanitário e se desculpou com os familiares.
Da Lituânia, atravessamos a Europa
em direção à Itália para resgatar as ações de uma rede clandestina que
falsificava documentos de identidade para os refugiados.
5. A resistência nas rodas de uma
bicicleta.
O que um cardeal da igreja católica,
um campeão de ciclismo, o abade de um mosteiro, um tipógrafo comunista e ateu
podiam ter em comum? Apesar das distâncias geográficas e de concepção de mundo
que separavam um do outro, todos eles se encontraram na oposição ao fascismo e
no compromisso de organizar uma rede clandestina cujo único objetivo era o de
salvar vidas. Antes de resgatarmos o que fizeram, acreditamos seja importante
ilustrar quem eram estas personagens para que seja possível compreender o
percurso que levou estes homens a arriscarem a vida para salvar pessoas das
quais nunca haviam ouvido falar.
Naqueles tempos sombrios, o Cardeal Elias Della Costa era uma referência importante para os religiosos e os cristãos da região da Toscana. Longe das honrarias típicas do cargo, abria as portas da casa episcopal de Florença a quantos o procurassem. Com um olho na Bíblia e outro na realidade, sempre soube de que lado estava, e nunca titubeou na hora de mostrar claramente a sua oposição ao fascismo.
Um dos momentos mais tensos ocorreu quando
Hitler e Mussolini se encontraram em Florença. Elias recusou-se a participar de
todos os eventos oficiais marcados para aquele dia e, enquanto os ditadores andavam
pela cidade, passou horas visitando os dissidentes presos pelo regime no
presídio de Florença. Além disso, proibiu que a catedral e a sede episcopal
fossem decoradas com os símbolos do nazi-fascismo e mandou fechar os portões da
igreja pouco antes que Hitler e Mussolini viessem visitá-la. Nada disso passou
inobservado ao núcleo fascista da cidade que ameaçou pôr fogo na residência do
Cardeal.
Viver em aberto contraste com o fascismo era algo que também atraia a admiração e o apoio de outros religiosos. Entre eles, lembramos aqui do Padre Rufino Nicacci, Abade do Mosteiro de São Damião, na cidade de Assis, a 180 quilômetros de Florença. Forte e bonachão, Rufino era daqueles religiosos que não se recusam a conversar com ninguém e que param tranquilamente em praça pública ou em um bar para ir ao encontro de todos sem receios e sem preconceitos.
Rufino era muito amigo de Luigi Brizzi,
um homem de 71 anos, tipógrafo experiente, comunista e ateu declarado. Para
ganhar a vida, Luigi mantinha uma pequena papelaria no centro de Assis onde,
além dos produtos típicos destas lojas, vendia imagens de alguns Santos
esculpidas na madeira, em gesso ou estampadas numa cartolina. Nos fundos da
loja, havia uma máquina de impressão com a qual atendia a demanda de folhetos
com a propaganda dos comerciantes e restaurantes da cidade, bem como das cartas
circulares encomendadas pelas igrejas. Conhecido por todos os Padres e
Religiosos da região, Luigi havia ensinado o ofício ao filho Trento, de 28
anos, que o ajudava a produzir e entregar os materiais encomendados.
A amizade entre Rufino e Luigi vinha de bem antes da guerra. Quem andasse pelo centro de Assis, tinha boas chances de encontrar os dois em volta de um tabuleiro para um jogo de dama, tomando um café ou um copo de vinho em algum bar ou, simplesmente, conversando no meio da praça. Se a amizade entre um ateu comunista e o Abade responsável de um Mosteiro podia escandalizar os "bons cristãos" da época, para estes dois homens que olhavam para a vida sem negar os próprios valores era algo absolutamente tranquilo e corriqueiro.
A última personagem responde pelo
nome de Giovanni Bartali, mais conhecido como Gino no mundo do ciclismo
profissional. Mau aluno na escola e apaixonado desde cedo pela bicicleta, Gino
cresceu no ambiente católico da cidade de Florença e, apesar de seu pai
simpatizar com as ideias socialistas, a sua formação foi influenciada pelos
valores cristãos que ele próprio sempre afirmou terem sido a base de suas
escolhas nos momentos mais difíceis.
O seu talento como corredor apareceu desde as primeiras competições. Mas foi em 1937, quando ganhou o seu primeiro "Giro d'Itália", uma corrida a etapa pelas principais regiões do país, que a imprensa passou a apontá-lo como um dos atletas mais promissores. Desejosa de apresentar suas vitórias como conquistas que enalteciam o fascismo, a mídia do regime se aproximou cada vez mais de Gino. Esta tarefa era facilitada pela Federação Italiana de Ciclismo, controlada pelo Partido Fascista, que era a encarregada de escolher os atletas que participariam das principais competições e de oferecer o necessário para que pudessem ter um desempenho à altura de cada corrida. Obviamente, isso não era de graça, pois os corredores eram colocados na obrigação de usar as premiações para retribuir o que havia recebido da Federação com alguma manifestação de apoio a Mussolini.
As pressões em volta de Gino
alcançaram o ápice, em 1938, quando ganhou pela primeira vez o "Tour de
France". Cercando o pódio, os representantes do Partido Fascista da Itália
esperavam ansiosamente que o discurso do vencedor incluísse um elogio e
agradecimento a Mussolini e a saudação romana ao ditador com o braço direito
levantado. Para eles, isso era o mínimo que o corredor devia fazer ao celebrar
uma vitória tão importante para ele e para o país.
Mas Gino sabia que ganhar uma
corrida dependia, sobretudo, do seu esforço, das intensas e longas horas de
treinamento e não do governo fascista que desejava se apropriar do que ajudava
a produzir em mínima parte e com o qual havia tido vários atritos nos anos
anteriores. Num gesto politicamente inequívoco, ele usou o lugar mais alto do
pódio para agradecer os torcedores italianos e franceses que o incentivaram em
todas as etapas do circuito e, antes de erguer a taça, as máquinas fotográficas
prontas para imortalizar a saudação fascista do atleta registraram apenas um
humilde sinal da cruz com o qual ele se benzeu para agradecer a Deus pela
vitória. A postura de Gino enfureceu Mussolini e os fascistas que esvaziaram as
comemorações desta vitória na Itália.
De um lado, ele não era o que
Mussolini esperava que fosse. De outro, não era possível eliminá-lo pela
importância que tinha no mundo esportivo italiano. Então, como não dava para
excluí-lo pura e simplesmente das competições, o jeito era manter sobre ele uma
pressão capaz de levá-lo a ceder, de fazê-lo reconhecer o que o regime estava
fazendo pelo esporte e por ele. Por isso, Gino continuava sendo escalado para
participar das corridas que o próprio Mussolini havia organizado após o início
da Segunda Guerra Mundial.
É neste contexto que, ao ser
derrotado por atletas considerados menores no "Giro da Toscana", a
região onde nasceu e morava, Gino percebeu nas reações da imprensa e das autoridades
que ele estava sendo reduzido à personagem de uma farsa montada pelo regime
fascista. Ao pensar na realidade da época e no papel dos atletas do seu esporte,
ele ficou revoltado ao ver que as pessoas em volta dele não só pensavam apenas
nas corridas em bicicleta, como fingiam que nada estava acontecendo, como se a
guerra fosse um problema dos outros, e não dos próprios atletas. Esta
percepção, somada aos seus valores cristãos e à relação com Elias Della Costa,
estará na base da sua adesão à rede clandestina organizada pelo Cardeal.
No dia 8 de setembro de 1943, os
dissidentes italianos celebravam o controle da região sul da Itália pelas
tropas aliadas. Enquanto isso, para fortalecer Mussolini, os soldados de Hitler
ocuparam o norte e o centro do país. A partir deste momento, o ditador italiano
continuaria a governar formalmente estes territórios que, de fato, seriam
controlados e comandados pelos generais nazistas.
Se a situação dos judeus sob o
fascismo não era fácil, a ocupação nazista fazia com que o perigo da deportação
crescesse com o passar das horas. As passagens de fronteira do norte da Itália
haviam sido seladas pelos alemães. O porto de Genova que, nos anos anteriores,
foi uma das rotas de fuga para cerca de 15.000 refugiados judeus, já não
oferecia nenhuma possibilidade de escapar das garras da morte. Restava o
caminho que saía das regiões centro e norte em direção aos territórios
libertados pelos aliados, mas para percorrê-lo era necessário contar com uma
identidade falsa e com a possibilidade de encontrar abrigo e comida ao longo da
viagem.
A Delegação para a Assistência dos
Imigrantes Judeus (DELASEN), que atuava na clandestinidade, solicitou a ajuda
de Elias Della Costa que, imediatamente, colocou à disposição todos os recursos
com os quais podia contar, dentro e fora da cidade de Florença. Contatou
pessoalmente os conventos da Toscana pedindo que acolhessem quem batia às suas
portas sem perguntar nada e sem limitar o tempo de permanência. O próprio
Cardeal alimentou e abrigou inúmeros judeus na sua própria casa, enquanto esta
permanecia um lugar seguro.
Dias depois, entrou em contato com o
Abade Rufino pedindo que ajudasse a abrir uma rota de fuga em direção aos
territórios liberados. A primeira tarefa era de procurar um tipógrafo de
confiança para produzir identidades falsas para os judeus. Assis era vista como
o lugar ideal para que o recebimento das fotos, a falsificação e a entrega dos
documentos prontos pudesse ocorrer sem grandes percalços devido à baixa
presença de policiais e militares. O fato de não ter indústrias, de viver da
agricultura familiar e obter algum recurso adicional das peregrinações em volta
da figura de São Francisco, fazia com que a cidade não tivesse nenhuma
importância estratégica nem para os fascistas, nem para os nazistas.
Rufino procurou imediatamente Luigi,
no qual sabia que podia confiar. Bastou uma única conversa e nenhuma explicação
para que o velho tipógrafo aceitasse a tarefa e começasse os primeiros testes
para a produção dos documentos. Fabricou os carimbos necessários, aprendeu a
falsificar assinaturas e, após várias tentativas, chegou a um exemplar diante
do qual o próprio Rufino não titubeou em afirmar que passaria facilmente por
uma identidade verdadeira.
Para evitar repetições de nomes e dados, Luigi se valeu de uma antiga lista telefônica das cidades da Itália do Sul que, naquela altura, se encontravam nos territórios libertados pelas tropas aliadas. Desta forma, não só os nomes e sobrenomes realmente existiam como, em caso de alguma desconfiança por parte de policiais e soldados, seria impossível entrar em contato com as autoridades para verificar a veracidade dos documentos. Acidentalmente descoberto por seu filho Trento enquanto imprimia as primeiras identidades, o tipógrafo passou a contar com a sua ajuda.
Com o modelo pronto, bastava que as
pessoas retirassem cuidadosamente a foto colada em outro documento e a
entregassem a Luigi para que, em poucos dias, a nova identidade ficasse pronta.
Mas ainda restava um problema: quem cobriria o trajeto de 180 quilômetros entre
Florença e Assis para que as fotos chegassem até Rufino e recebesse dele os
documentos a serem entregues à DELASEN? Entre as pessoas conhecidas pelo
Cardeal, só havia uma que poderia assumir esta tarefa: Gino Bartali.
Num final de tarde, o atleta recebeu
um telefonema de Elias Della Costa pedindo que o procurasse com urgência na
casa dele. A conversa entre os dois foi direto ao ponto: os judeus precisavam
de casa, comida e documentos falsos. As duas primeiras coisas já estavam sendo
viabilizadas, mas era necessário que Gino assumisse o papel de mensageiro da
rede com a tarefa de entregar as fotos e trazer os documentos falsos. Ele
conhecia os vilarejos da região como a palma da sua mão, havia percorrido
inúmeras vezes aquelas estradas, policiais e cidadãos comuns lembravam-se dos
seus feitos e ninguém estranharia que estivesse treinando para manter a forma física
apesar de as competições terem sido paralisadas pela guerra.
O Cardeal encerrou a conversa
alertando-o que se tratava de uma missão extremamente perigosa, pois, se a sua
carga fosse descoberta por alguma patrulha nazifascista, as possibilidades de ele
ser preso, fuzilado ou enviado a um campo de extermínio seriam altíssimas. Tudo
deveria ser mantido no mais absoluto segredo e nem mesmo a esposa poderia saber
o que estava fazendo. Ele próprio receberia somente as informações
indispensáveis para cumprir a sua missão a fim de não comprometer ninguém da
rede, caso viesse a ser preso e torturado.
A resposta de Gino não foi imediata.
Passou algumas noites sem dormir, remoendo internamente todos os elementos que
o aconselhavam a recusar e aqueles que, caso não assumisse a tarefa, lhe
tirariam o sono para sempre. Aceitar a proposta era expor a si próprio e a
esposa ao risco de morte. Recusar poderia condenar aos campos de extermínio os
judeus que haviam sido seus amigos de infância e os que integravam o círculo
dos conhecidos mais próximos. Não fazer nada, além de não garantir a sua
incolumidade, seria uma covardia e, pior ainda, ajudaria Mussolini e o Partido
Fascista que ele nunca havia engolido. Dias depois da visita ao Cardeal,
chegava o seu sim à missão de mensageiro.
Os perigos aumentariam com o passar
dos dias. No início de novembro de 1943, o Congresso do Partido Fascista
declarou que os judeus residentes no território governado por Mussolini seriam
considerados estrangeiros pertencentes a uma nação inimiga e quem fornecesse
qualquer tipo de ajuda ou, simplesmente, alugasse uma casa a um judeu estaria
cometendo um crime passível da pena de morte.
No dia 6 do mesmo mês, a realidade já traduzia as decisões oficiais.
Patrulhas nazistas vasculharam vários bairros de Florença, casa por casa,
prenderam inúmeros judeus, fuzilaram famílias inteiras, separaram os filhos dos
pais que seriam deportados, agindo sempre com requintes de crueldade tanto em
relação aos judeus, como aos não judeus suspeitos de ajudá-los.
É neste contexto que Gino realizou a primeira viagem entre Florença e Assis. Levantou cedo. Avisou a esposa que saía para treinar. Escondeu cuidadosamente as fotos no quadro da bicicleta ao qual é fixado o selim e partiu rumo ao Mosteiro de São Damião. Naquele dia, a sua missão previa uma tarefa adicional. Devia parar em Terontola, uma cidade próxima do seu destino final e que era o ponto de encontro das linhas férreas que uniam o norte ao sul da Itália.
No pequeno vilarejo, aguardaria a chegada de um trem
no qual estavam escondidos vários judeus a caminho dos territórios libertados.
Gino devia usar a sua fama para distrair policiais e soldados na hora em que os
judeus passavam de uma composição a outra, evitando assim que fossem
descobertos e presos.
Ao chegar antes da hora, aguardou
pacientemente que o trem aparecesse no horizonte e, em seguida, se dirigiu ao
bar próximo da estação. Ao ver que se tratava de "Bartali em carne e
osso", em poucos instantes, já havia uma multidão em volta dele. Sorrindo
e sendo amável com todos, deixou autógrafos, ouviu quem rememorava algumas de
suas façanhas, conversou e apertou a mão dos mais próximos.
Mais se espalhava a voz de que
Bartali estava em Terontola, mais juntava gente, mais aquela multidão atraía os
policiais que vigiavam a estação ferroviária. Afinal, não era todos os dias que
um campeão do ciclismo, passava por aquele fim de mundo. A conversa foi longe,
Gino ganhou pão com presunto do dono do bar (um almoço de primeira em tempos de
guerra) e, em seguida, pegou a bicicleta com a preciosa carga e foi ao encontro
de Rufino que o esperava no mosteiro.
Por razões de segurança, a troca de
fotos por documentos acontecia tomando todos os cuidados possíveis para que
ninguém percebesse a presença de Gino, algo que levantaria imediatamente curiosidades
e suspeitas. Mas nem tudo o que havia sido previsto para a clandestinidade
proteger os membros da rede funcionava à perfeição.
O fato de Assis não ser uma cidade
fortemente vigiada, levou o filho do tipógrafo a cometer um descuido que
poderia custar muito caro. No afã de produzir as identidades encomendadas,
esqueceu aberta a cortina que dava acesso ao local onde a impressora estava
funcionando a todo vapor. Ao ouvir ruídos na loja, foi ver o que estava
acontecendo e se deparou com dois soldados alemães. Trêmulo pelo medo de ter
sido descoberto ouviu deles que estavam procurando uma estatueta de Santa Clara
para levar às suas famílias, na Alemanha. Trento retirou da estante duas
imagens entalhadas na madeira e presenteou os soldados que saíram sorrindo e
agradecendo.
Apavorado com o que poderia ter acontecido,
decidiu que procuraria Rufino para dizer que estava saindo da rede. No dia
seguinte, foi ao mosteiro onde o monge que o atendeu pediu que esperasse em um
quarto até que o Abade estivesse disponível. Ao ouvir a voz dele conversando
com outro homem, Trento saiu da sala para o pátio e viu de relance a figura de
um ciclista que estava subindo na sua bicicleta. Bastou um nada para entender
que o mensageiro era Gino Bartali.
Rufino ouviu as perguntas de Trento
a respeito do homem que acabava de sair do mosteiro, confirmou se tratar de
Gino, deu algumas explicações para diminuir a surpresa que iluminava o rosto do
tipógrafo e pediu como estava indo o trabalho. Trento respondeu balbuciando as
poucas palavras que conseguiu reunir entre a vergonha que sentia pelo motivo da
sua visita e a descoberta da identidade do mensageiro. E, sem dar explicações
quanto ao seu pedido de encontrar o Abade em um momento não combinado,
despediu-se dele dizendo: "Diga a Bartali que, em breve, terá que pedalar
com outras identidades na bicicleta...e diga a ele de treinar direito".
Anos depois, ao falar da importância daquele encontro na sua decisão de
continuar, Trento disse: "Sim...a ideia de pertencer a uma organização que
tinha um campeão como Gino Bartali em suas fileiras me deu tanto orgulho que o
medo passou em segundo plano".
Quanto a Gino, o trabalho de
mensageiro tinha encontros inevitáveis com patrulhas de policiais italianos e
soldados nazistas. Ao pedalar entre Florença e Assis, costumava se esconder na
mata próxima à estrada sempre que ouvia o ruído de algum veículo se
aproximando. Mas, quando as patrulhas de prontidão bloqueavam a passagem de
qualquer pessoa, ele simplesmente freava a bicicleta, descia dela, se
aproximava vagarosamente para dar tempo de ser reconhecido pelos agentes e, sem
demora, entregava a sua identidade.
Ao constatar que era ele mesmo,
policiais e soldados não costumavam fazer muitas perguntas. Era difícil não
acreditar que um atleta de renome estivesse treinando, ainda que, em 1943 e
1944, fosse impensável que alguém organizasse uma competição de ciclismo em
algum canto da Europa. Além disso, Gino nunca carregava bolsas ou mochilas. Era
só ele e a bicicleta, nada que despertasse a necessidade de uma revista.
Ajudava muito também o fato de vários policiais serem seus torcedores cujos
conselhos para as futuras competições ele ouvia atenta e pacientemente. Um
autógrafo aqui, uma piada em dialeto local aí e, depois de cumprimentar todo
mundo, subia na bicicleta para retomar a estrada.
Mas as coisas estavam prestes a
mudar...para pior.
No final do primeiro trimestre de
1944, os seguidos bombardeios e a requisição de mantimentos do governo para
sustentar o esforço de guerra haviam provocado uma pesada escassez de alimentos
e produtos de primeira necessidade. As gôndolas dos mercados e das quitandas
estavam vazias. Um litro de azeite custava o equivalente ao salário mensal de
um funcionário público. A fome castigava a população. Quem podia sair das
cidades, buscava abrigo nas áreas rurais para se colocar a salvo dos
bombardeios e tentar encontrar algo para comer.
Além de continuar o seu trabalho de
mensageiro, Gino começou a arrecadar comida e roupa para o crescente número de
refugiados que vinham do norte da Itália e passavam por Florença rumo ao
Centro-Sul do país. Além disso, assumiu a tarefa de mapear os principais postos
de bloqueio instalados pelos alemães nas rotas de fuga em direção aos
territórios controlados pelas tropas aliadas. Não demorou muito para que fosse
ele a entrar em contato com alguns contrabandistas que, durante a noite,
introduziam os judeus nos territórios liberados e a negociar o preço desta
ajuda.
Em abril de 1944, a violência
nazista em Florença atingia o ápice. Os soldados vasculhavam casa por casa.
Conventos, hospitais, hospícios, asilos de idosos, escolas e instituições
religiosas não escapavam dos controles da Gestapo. Os alemães irrompiam sem
aviso prévio e usavam de tudo para descobrir a presença de algum judeu e estar
pronto para tudo havia se tornado uma obrigação. No Convitto Santa Maria, por
exemplo, uma instituição religiosa que cuidava dos órfãos, os soldados nazistas
ordenaram que as crianças fossem levadas para o quintal. Enfileiradas,
obrigaram cada uma delas a repetirem uma das orações católicas que as famílias
da época costumavam ensinar aos filhos.
A ideia de usar a religião para descobrir a presença
de meninos e meninas judias falhou graças a uma senhora conhecida como
"mãe Cornélia". Ao tomar conta da garotada, ela foi ensinando todas
as orações que conhecia. E, no caso de alguém se esquecer de uma parte delas,
bastava que olhasse atrás do soldado interrogador para encontrar o rosto de mãe
Cornelia que sugeria as palavras movendo os lábios.
Em meio a esta tormenta diária, Gino se ofereceu para esconder uma família judia no porão de um prédio próximo de onde morava e a levar o pouco alimento que conseguisse encontrar em meio à carestia que castigava a cidade. Tudo isso entre os patrulhamentos constantes, os bombardeios, a insegurança crescente pelas operações de guerra que os nazistas e as tropas aliadas realizavam nestes que, para Florença, seriam os últimos meses de uma longa guerra.
Resistir a tudo isso não era fácil
para ninguém e, sob o peso das responsabilidades assumidas, do estresse
constante que o impedia de dormir, das ameaças que vinham de toda parte, do
fato de Adriana, sua esposa, estar grávida de quatro meses, Gino estava a um
passo de sucumbir. Quem o conhecia, percebia que estava escondendo alguma
coisa. Dentro e fora de casa, suas desculpas eram cada vez menos convincentes.
Os fascistas e, sobretudo, Mario Caritá, um dos comandantes da polícia local
que se tornou tristemente famoso pela crueldade nos interrogatórios, procuravam
colocar Gino em maus lençóis.
Em julho de 1944, enviaram a ele uma
ordem para comparecer imediatamente na Villa Triste, o lugar onde os presos
políticos costumavam passar por interrogatórios intermináveis, humilhações
degradantes, torturas destinadas a arrancar deles o que sabiam em meio a
sofrimentos atrozes. Ao entrar naquele lugar cujas histórias e ambientes
aterrorizavam a cidade, a cabeça de Gino conseguia formular uma única pergunta:
como sairei daqui?
Enquanto esperava pelo início do
interrogatório, viu apoiadas sobre a mesa algumas cartas a ele destinadas que
haviam sido interceptadas pelos fascistas. Não saber que tipo de informação
seria usada por Caritá e pelos policias que o acompanhavam tinha o poder de
fazê-lo entrar em pânico. Qualquer indício referente à falsificação dos
documentos ou ao fato de estar escondendo uma família judia era sinônimo de
traição à Pátria e muita gente já havia perdido a vida por muito menos do que
isso.
Caritá entrou na sala, pegou uma das
cartas e leu o conteúdo em voz alta. Era uma carta do Vaticano agradecendo Gino
pela sua ajuda. Aos gritos, o fascista acusou o atleta de enviar armas para o
Vaticano. Imediatamente, ele negou a acusação e explicou que o escrito se
referia ao envio de farinha, café e açúcar para ajudar os que precisavam. O
interrogatório seguiu na mesma batida durante algum tempo e Gino foi detido.
Alguns dias depois, os guardas o
levaram novamente para ser interrogado. Desta vez, Caritá era acompanhado por
três torturadores, prontos a auxiliá-lo. Gino repetiu a sua versão dos
acontecimentos, mas sem conseguir convencer o seu acusador. Num excesso de
raiva, perdeu a paciência e disse: "Se quiser ver o que acontece, vou lhe
ensinar a fazer. Você me entrega açúcar e farinha. Empacotamos tudo e o
enviamos a seu nome. Verá que o Papa mandará uma carta para agradecê-lo".
Caritá ficou furioso diante daquela resposta que afrontava a sua autoridade e,
a um passo de começar a bater em Gino, um dos seus ajudantes o parou dizendo:
"Se Bartali disse café, farinha e açúcar...é realmente café, farinha e
açúcar...ele não mente!".
Quando olhou para o seu defensor
inesperado, Gino reconheceu se tratar de Olexindo Salmi, o militar que havia
sido seu supervisor na época em que serviu o Exército e que, a seu pedido, o
havia autorizado a usar a bicicleta no lugar da moto para levar as ordens dos
comandantes de um quartel a outro. Ao se arriscar a defendê-lo ele entendeu que
Caritá não tinha outras provas para incriminá-lo. Instante depois, o homem que aterrorizava
os presos de Villa Trieste estava assinando a ordem de soltura.
De volta para casa, encontrou
Adriana, num estado calamitoso. Sabendo que poucos saíam vivos de lá e ao vê-lo
sem nenhum sinal de tortura, simplesmente não acreditou que fosse ele. Dias
depois, ela perderia a criança num aborto espontâneo. Uma dor imensa se
apoderou do casal. Gino e Adriana se consolaram reciprocamente, mas demorou
anos para que conseguissem falar sobre o assunto com os familiares.
No dia 4 de agosto de 1944, as
tropas aliadas entraram em Florença. A cidade estava em ruínas, mas estava
livre. Uma mescla de felicidade, angústia, incredulidade e energia diante das
tarefas da reconstrução tomava conta da população. Aos poucos, a vida
renasceria dos escombros.
Impossível dizer quantas vidas foram
salvas pelos esforços despendidos pela rede de pessoas que descrevemos.
Estima-se que pelo menos 650 judeus foram diretamente beneficiados pelos
documentos falsos com os quais puderam chegar aos territórios controlados pelos
aliados.
Gino nunca falou publicamente do que
havia feito durante a ocupação nazista. Andrea, o seu filho primogênito,
decidiu contar o que sabia somente em 2005, cinco anos depois da morte do pai.
A quem perguntava as razões de manter em segredo este capítulo da resistência,
ele apenas repetia a justificativa ouvida do pai: "Se você é bom no
esporte que pratica, vai ganhar medalhas que serão penduradas nas camisetas que
veste e depois irão parar em algum museu. Mas as medalhas que se ganham ao
fazer o bem, a gente pendura na alma e elas brilharão em outro lugar".
Lembre, dizia ele, que “o bem se faz, mas não se fala para ninguém”.
Da Itália, saímos em direção a Varsóvia,
na Polônia, ao encontro de uma enfermeira que trabalhou no Gueto onde os
nazistas prenderam centenas de milhares de judeus para fazê-los morrer de fome e
de frio e para enviá-los aos campos de extermínio.
6. Irena Sandler: o desejo de
salvar que desafia o impossível.
"Detesto! Fico furiosa quando
me chamam de heroína! Não sou nenhuma heroína. Apenas fiz o que o meu coração
mandava!". É com estas palavras que Irena Sandler introduziu a resposta à
primeira pergunta do jornalista na que seria uma das últimas entrevistas antes
de falecer, aos 98 anos de idade. Enquanto muitos a consideram uma pessoa
especial, o "anjo do gueto de Varsóvia", o coração valente e generoso
que salvou milhares de vidas, Irena se apresentava apenas como alguém que colocou
em prática os valores aprendidos durante a infância.
“Para salvar uma criança da morte certa, em primeiro lugar - afirmava ela na mesma entrevista - é necessário querer salvá-la”. Para isso, precisava vencer tudo o que bloqueava a passagem da comiseração para a ação e derrotar o medo que paralisava a vontade de fazer alguma coisa. Querer salvar alguém das garras da morte era a decisão que ia se materializando em pequenos atos de desobediência diária e o guia para transformar o medo em mestre das condições que ela devia reunir para garantir um mínimo de segurança a si própria e a quem colaborava nos resgates. "É claro que dá muito trabalho", como ela mesma admitiu ao sorrir para o entrevistador, "mas é possível fazer com que o medo jogue a próprio favor", aguçando os sentidos para aprimorar a capacidade de observação, para descobrir brechas na vigilância dos nazistas a fim de transformar situações corriqueiras em chances de salvar uma vida.
Mas, afinal, quem foi e o que fez
esta idosa simpática cujo olhar transmite a serenidade de quem viveu em
sintonia "com o que o seu coração mandava"?
Irena Sandler nasceu em Otwock, uma
cidade próxima de Varsóvia, capital da Polônia, no dia 15 de fevereiro de 1910.
Filha de um casal católico, o pai era médico e, entre seus pacientes, havia
vários judeus, muitos dos quais ele atendia gratuitamente por serem pobres.
Ardente socialista, não cansava de ensinar à filha que o ato de ajudar devia
ser para todos os seres humanos, como uma necessidade que emanasse do coração,
sem se importar com o fato de o indivíduo ser rico ou pobre, nem a qual
religião ou nacionalidade pertencia.
Em 1917, a região onde a família
morava foi tomada por uma epidemia de tifo e o pai de Irena, fiel aos seus
ideais, ficou na cidade para socorrer os contaminados, até o dia em que
contraiu a doença. Antes de morrer, fez uma última recomendação à filha:
"Se vires alguém se afogando, deves pular na água e tentar ajudar, mesmo
que você não saiba nadar", um legado que a criança de sete anos guardou
durante a vida toda.
Na juventude, Irena estudou
literatura e se filiou ao Partido Socialista. Em meados da década de 1930, foi
suspensa da faculdade durante três anos por contestar um professor que
discriminava os alunos judeus obrigando-os a sentarem em um local separado. A
jovem foi para o "setor judaico" da sala e quando o professor lhe
disse para sair de lá, respondeu: "Hoje sou judia". Anos depois, como
assistente social na prefeitura de Varsóvia, uma de suas maiores preocupações eram
os cuidados com as mães solteiras e com os filhos nascidos fora do casamento.
Tratava-se de um grupo fortemente marginalizado e discriminado pelo pensamento
conservador da época. Mais uma situação que nos permite entender a sua
personalidade e a força dos seus valores.
Na Polônia, a perseguição dos judeus
começou imediatamente depois da ocupação nazista, em setembro de 1939. O
primeiro decreto mandava que todos eles fossem demitidos dos seus empregos, o
que mergulhou a maioria de suas famílias numa situação de penúria e desespero.
A crueldade dos nazistas estava sob os olhos de todos. Irena, que liderava uma pequena equipe com a qual cuidava dos doentes e dos que precisavam de algum tipo de assistência social, disse às cinco pessoas que trabalhavam com ela: "Temos que declarar guerra a Hitler!". Era a primeira forma com a qual expressava a sua decisão de dizer "não" ao nazismo.
As formas que traduziriam este “não”
deram logo o ar da graça. Quando os alemães proibiram a prefeitura de atender
os judeus, a equipe de Irena registrou com nomes cristãos fictícios todas as
pessoas que iam pedir ajuda e, para evitar as temidas visitas de inspeção,
colocava em suas fichas que na família havia um caso de doença contagiosa.
Em outubro de 1940, a Gestapo
ordenou a transferência imediata de todos os judeus de Varsóvia para um antigo
bairro que, em poucos meses, se tornou um gueto no sentido mais nefasto da
palavra. Muros instransponíveis separavam as famílias judias da Varsóvia
"ariana" e os acessos ao local eram estritamente vigiados pelos
nazistas. Em condições normais, aquela área de 4 quilômetros quadrados poderia
abrigar no máximo umas 60.000 pessoas. Contudo, segundo algumas estimativas,
chegaram a morar nela cerca de 480.000 judeus.
Dentro do gueto, as condições de
vida eram sub-humanas. As cotas de alimentos eram mínimas e foram ficando ainda
mais escassas. Produtos sanitários e medicamentos eram fornecidos sempre em
quantidade insuficiente. Grande parte dos moradores não tinha abrigo e quem
conseguia um quarto partilhava o espaço com mais de 10 pessoas. Além das
execuções sumárias se tornarem corriqueiras, estava cada vez mais claro que os
alemães queriam matar os judeus de fome, frio e doenças. Calcula-se que, entre
1940 e meados de 1942, cerca de 83.000 deles faleceram por um desses motivos.
Quando os portões do gueto foram
fechados à entrada e saída de pessoas, Irena percebeu que os cerca de 3.000
judeus pobres aos quais havia prestado algum tipo de ajuda ficariam
completamente fora do seu alcance. Para driblar esta situação, pediu e
conseguiu para ela e para a amiga Irena Schultz duas identificações do Gabinete
Sanitário a fim de conter as doenças contagiosas que poderiam proliferar entre
os judeus e se espalhar pela cidade, uma possibilidade temida pelos próprios
alemães.
Com esta medida, as duas Irenas e,
em seguida, outras colaboradoras, podiam ter acesso ao gueto e restabelecer os
contatos com os conhecidos. Às vezes, entravam e saiam repetidamente durante o
dia para aumentar a quantidade de alimentos e remédios que, obtidos junto ao
Departamento de Bem-Estar Social da Prefeitura, traziam embaixo das roupas.
Para não levantar suspeitas, utlizavam portões diferentes, apresentavam
documentos que elas próprias haviam falsificado e, uma vez no interior do gueto,
Irena usava no braço a faixa com a estrela de Davi para se confundir entre as
pessoas e evitar que alguém a parasse para verificar os seus documentos ou
questionar o que estava fazendo.
A partir de junho de 1941, as
condições de vida dos judeus se tornaram ainda mais duras. A média mensal de
mortos chegou a 5.000 pessoas. A única maneira de salvar alguém era ajudando-o
a fugir daquele inferno. Fazer isso implicava em correr riscos enormes e
demandava contar com gente de plena confiança. O início das viagens que levavam
milhares de judeus aos campos de extermínio apontava a necessidade de escolher rapidamente
quem salvar com os recursos e as pessoas disponíveis.
No início de 1942, Irena entrou no
ZEGOTA, uma organização clandestina de resistência criada e sustentada por
judeus de vários países e por pessoas não judias. Com a ajuda do grupo, começou
a organizar o resgate das crianças órfãs do gueto, contatou famílias polonesas
católicas que pudessem recebê-las antes de serem encaminhadas aos orfanatos ou
que cuidassem delas até o fim da guerra.
Vale lembrar que, nesta época, as
instituições religiosas só recebiam crianças católicas. Por isso, além de quem
se dedicava às ações de resgate, a rede devia incluir uma família que ensinasse
as orações tradicionais e alguns hábitos do catolicismo, um padre que emitisse
certidões de batismo falsas com base nas quais eram elaborados os novos documentos
dos pequenos e até alguém que ensinasse o polonês, à medida que muitos só
haviam aprendido o Iídiche no convívio familiar.
Seja qual fosse o destino final da criança,
Irena mantinha o registro do seu nome verdadeiro, do nome falso que a protegia,
da família ou instituição onde havia sido abrigada. As folhas eram enroladas e
guardadas em potes de vidro selados e enterrados em um lugar que só ela
conhecia, na esperança de que, terminada a guerra, elas tivessem a chance de
encontrar algum familiar e de voltar à sua comunidade de origem.
Esgotado o número de órfãos,
tratava-se de convencer os pais a se separarem dos seus filhos. Independentemente
da idade da criança, esta era uma tarefa extremamente difícil, à medida que
ninguém podia garantir que o menino ou menina sobrevivesse ao holocausto ou até
mesmo que conseguisse sair vivo do gueto. Driblar os controles dos soldados não
era fácil e a maior parte dos resgates demandava, no mínimo, a ajuda de 10
pessoas. De acordo com o depoimento de Irena, eram quatro as principais
possibilidades de tirar um pequeno do interior do gueto. A primeira delas era
através da ambulância. Depois de dirigir horas durante a sua jornada de
trabalho a serviço da Cruz Vermelha, um motorista de confiança entrava no gueto
com qualquer pretexto e recolhia a criança no lugar combinado.
A necessidade de fazer com que tudo
corresse em segredo e sem despertar as atenções dos alemães esbarrava no choro
compreensível de alguém que, com 2, 3 ou 4 anos de idade, era separado dos seus
pais para ir com um estranho. O motorista da ambulância sempre preparava um
cantinho no qual o pequeno passageiro pudesse se aconchegar e se sentir menos
inseguro, mas, muitas vezes, era impossível fazê-lo parar de chorar mesmo
quando o veículo passava pelos soldados alemães.
Temendo ser preso, o condutor avisou
Irena da sua impossibilidade de seguir cumprindo aquela tarefa. Ela simplesmente
pediu que não abandonasse a empreitada e buscasse uma solução. Dois dias
depois, o motorista comunicou que levaria na ambulância um cachorro que latia
sem parar e, quando fosse passar na frente de uma patrulha, pisaria na pata
dele para que o animal latisse ainda mais forte, encobrindo assim o choro e os
eventuais gritos da criança. Uma saída que deu certo.
A segunda possibilidade de sair do
gueto obrigava as mães a colocarem os recém-nascidos em caixas com alguns furos
nas paredes para que pudessem respirar. Por corredores subterrâneos, alguém
levaria a caixa com o seu precioso conteúdo até a garagem dos bondes antes das
6 da manhã e a colocaria embaixo do primeiro assento atrás do condutor ou no
espaço onde ele operava o bonde para que o próprio condutor a ajeitasse de
forma a não despertar a atenção dos passageiros. Da garagem, o recém-nascido
viajava até o ponto onde outro contato do grupo recolhia a caixa e encaminhava
a criança para a família encarregada de recebê-la.
O carro dos desinfetantes era o
terceiro meio usado nos resgates. Entrava no gueto para descarregar o material
destinado a conter as epidemias e saía levando meninos ou meninas onde, até
poucos minutos antes, estava a carga que acabava de deixar.
A quarta rota de fuga demandava
conhecer as passagens subterrâneas que ligavam o gueto aos porões do prédio do
Tribunal que tinha uma saída para o lado ariano de Varsóvia e ter no porteiro
um dos contatos secretos do grupo.
Sacos de batatas, cestos de lixo,
caixas de ferramentas e até caixões de defunto serviram de esconderijo para as
cerca de 2.500 crianças que Irena e o seu grupo conseguiram salvar em pouco
mais de um ano e meio. Uma vez fora do gueto, famílias polonesas de confiança
usavam suas casas como abrigos de emergências, cuidando para não despertar a
curiosidade dos vizinhos, arranjando alimentos, levando as crianças à beira do
rio para que tomassem um pouco de sol e se livrassem da palidez derivada das
condições miseráveis do gueto, ensinando as orações da tradição católica antes
de serem entregues para a adoção de outras famílias ou aos orfanatos.
Apesar de adotar o codinome de
"Jolanta", Irena sabia que este cuidado seria insuficiente para
proteger a sua vida. Ser presa era sinônimo de acabar diante do pelotão de execução.
Espalhados pelas ruas de Varsóvia, os cartazes afixados pelos nazistas avisavam
que esconder judeus era um crime punido com a pena de morte. E, naquele
ambiente onde a incerteza era a marca registrada do cotidiano, não faltava quem
buscasse ganhar alguma recompensa entregando aos alemães os judeus que haviam
conseguido se esconder, levantando suspeitas em relação a quem poderia estar
colaborando para salvá-los e chantageando aqueles que haviam conseguido uma
forma de viverem fora do gueto.
Os nazistas descobriram as
atividades de Irena em outubro de 1943. O seu apartamento foi invadido no dia
20, às três da madrugada. A patrulha vasculhou cada canto, fez em pedaços o
fogão de lenha, quebrou paredes divisórias e arrancou o chão da cozinha em
busca de algo que pudesse comprometê-la. Mas, naquela altura, tudo estava
devidamente guardado em lugar seguro. Apesar disso, Irena foi levada à prisão
de Pawiak, um lugar assustador, onde a quase totalidade das pessoas reclusas
era executada.
Na prisão, foi brutalmente torturada. Os agentes
chegaram a quebrar as suas pernas, mas ela não entregou ninguém. Três meses
depois era julgada e condenada à morte. Colocada diante do pelotão de execução
foi salva por um soldado que solicitou que fosse retirada do grupo para ser
novamente interrogada em outro lugar. Ao sair do presídio, o militar a conduziu
a uma rua próxima e pediu que fugisse o mais rapidamente possível.
Os membros do ZEGOTA haviam reunido quanto puderam
para subornar o soldado e tirá-la da morte certa. Todos sabiam que ela havia
escondido as listas com as verdadeiras identidades das crianças e, sem elas, seria
impossível fazê-las voltar à comunidade judaica após o fim da guerra. Irena viu
o seu nome na lista dos que haviam sido executados, mas a Gestapo não tardou a
descobrir o que havia acontecido. Após deixar a poeira baixar, ela assumiu uma
identidade falsa, tomou cuidados adicionais para escapar de uma nova captura e
continuou a atuar na resistência ao nazismo.
Terminada a guerra, Irena
desenterrou os vidros com as listas das crianças e as entregou a Adolfo Berman,
o 1º presidente do Comitê de Salvação dos Judeus Sobreviventes. Alguns dos
resgatados faleceram nos bombardeios que arrasaram Varsóvia. Entre os
sobreviventes, poucos encontraram algum familiar. A maioria tinha falecido nos
campos de extermínio.
Durante duas décadas, Irena nunca
falou do que havia vivido e ajudado a construir. Nunca havia pensado em algum
tipo de reconhecimento pelo que havia feito. Para ela, salvar as crianças era o
que dava sentido à sua existência diante dos horrores da guerra e só lamentava não
ter conseguido fazer mais. A ação dos grupos judaicos poloneses fez com que, em
1965, ela recebesse do Instituto Yad Vashen o título de Justo entre as Nações e
alguns jornais publicaram a sua foto. A partir deste momento, muitos a
reconheceram como a mulher que salvou suas vidas.
Em março de 2003, o governo polonês organizou uma homenagem
para ela. Devido ao seu delicado estado de saúde, Irena não participou da
cerimônia oficial, mas enviou a sua cuidadora, Elzbieta Ficowska, que resgatou
do gueto quando tinha apenas cinco meses de vida, para ler uma carta em seu
nome. Entre outras coisas, o escrito dizia: "Nós e as gerações futuras
precisamos recordar a crueldade e o ódio humano que dominavam aqueles que
entregaram seus vizinhos aos inimigos; o ódio que ordenou de cometerem os assassinatos
e a indiferença diante da tragédia dos que pereceram. Meu sonho é que esta
recordação se torne um alerta para o mundo, para que a humanidade jamais volte
a vivenciar uma tragédia de igual proporção".
Em 2007, Irena recebeu o prêmio
Nobel da Paz e, em 12 de maio de 2008, partiu deste mundo deixando a todos a
força e a lucidez que, aos 98 anos de idade, ainda brilhavam em suas palavras e
em seu olhar.
A segunda parte de “Ecos da Resistência” começará em
Varsóvia, no mesmo gueto de onde Irena resgatou as crianças que estavam a um
passo da morte para trazer à luz a organização do primeiro levante que ousou
desafiar o nazismo.
Emilio Gennari, abril de 2023.
______________________________________________________________
Para compor a
primeira parte do texto lançamos mão da bibliografia que segue:
Aili & Andres
Mc Connon. La strada del coraggio - Gino Bartali, eroe silenzioso. Edição
digital da Editora 66THAND2ND, 2013
Alon Confino. Um
mundo sem judeus: da perseguição ao genocídio, a visão do imaginário nazista.
Ed Cultrix, São Paulo, 2016.
Eva Fogelman. Conscience
and courage: Rescuers of Jews During the Holocaust, New York Doubleday,
1994.
Eva Fogelman, The
rescuer self, em: Berembaum M. & A. J. Peek eds. The holocaus and
the history: The Known, the Unknown, the Disputed and the Reexamined,
Indiana University Press & United States Holocaust memorial Museum, 1998. Pg 663-677.
Paolo Raineri. A
colpi di pedale - la straordinaria storia di Gino Bartali. Ed. Ave-FAA,
Roma, 2017.
·
https://www.yadvashem.org/righteous/stories/grueninger.html
·
https://www.raoulwallenberg.net/saviors/others/example-gr-uuml-ninger/
·
https://www.swissinfo.ch/por/-n%C3%A3o-tenho-certeza-se-tanta-coisa-realmente-mudou-/47394278
·
https://houseofswitzerland.org/swissstories/history/police-commander-who-saved-hundreds-jews
·
https://jeocaz.livejournal.com/53037.html
·
https://imgur.com/gallery/gX3rB6X
·
https://magnet.xataka.com/idolos-de-hoy-y-siempre/rene-carmille-santo-hacker
·
https://brewminate.com/tag/rene-carmille/
·
https://www.herodote.net/La_Resistance_au_bureau_des_statistiques-synthese-3040.php
·
https://brewminate.com/the-nazi-census-and-a-quiet-hero/
·
https://daily.jstor.org/wwii-and-the-first-ethical-hacker/
·
http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/Sugihara/home.html
·
https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/chiune-sempo-sugihara
·
https://www.pbs.org/wgbh/sugihara/readings/sugihara.html
·
https://www.yadvashem.org/righteous/stories/sugihara.html
·
https://www.japaoemfoco.com/conheca-o-japones-que-salvou-a-vida-de-mais-de-seis-mil-judeus/
·
http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/Sugihara/home.html
·
https://hospitaldocoracao.com.br/novo/midias-e-artigos/artigos-nomes-da-medicina/irena-sendler/
·
http://www.morasha.com.br/holocausto/a-historia-de-irena-sendler.html
·
https://amenteemaravilhosa.com.br/biografia-de-irena-sendler/
·
Duas entrevistas com Irena Sandler em: https://youtu.be/ReFfugp6eMg e em https://youtu.be/05ROSf-zpmg
Todos os acesso foram realizados entre 1
de outubro de 2022 e 09 de abril de 2023.
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