Esperar que Trump deixe de fanfarronices e arroubos de retórica é uma perda de tempo. Adepto da política-espetáculo e pronto a mentir descaradamente, o novo Presidente dos EUA construiu seu capital político projetando as miragens de uma idade do ouro que só os grupos de poder conhecem em suas reais possibilidades e consequências. Violar o direito internacional, romper as relações com instituições incômodas, negar princípios consagrados, retaliar manifestações de rebeldia e sufocar as resistências são parte do cardápio com o qual procurará “recalibrar” as políticas externa e interna dos EUA tendo a chantagem e o medo como abre-alas da sua atuação.
Vimos o primeiro ensaio desta realidade na duríssima resposta ao governo colombiano que se recusou a aceitar que aviões militares trouxessem os migrantes ilegais deportados. Aliada de Washington, Bogotá foi imediatamente ameaçada com a imposição de uma tarifa de 25% sobre as exportações para os EUA, com sanções ao Tesouro e ao sistema financeiro, com o cancelamento dos vistos de autoridades do governo e do próprio Presidente da República, Gustavo Petro. Ao assumir os custos da repatriação, a Colômbia neutralizou os problemas que atingiriam a sua economia, mas não há como negar que o caso foi uma severa advertência a quem pretende contrariar as ações do “império”.[1]
Dias depois, uma situação parecida atingiu o México e o Canadá que, numa clara violação do acordo comercial assinado pelo próprio Trump em seu primeiro mandato, viram suas exportações oneradas em 25% e por motivos que não guardam nenhuma relação com o comércio internacional. A trégua de 30 dias conseguida pelos dois governos foi “comprada” com o envio de milhares de soldados às fronteiras com os EUA para inibir o tráfico de drogas e a entrada ilegal de imigrantes. Mais uma vez, os súditos aceitaram pagar a conta do imperador que arrancará deles novas concessões.[2]
Internamente, a ulterior redução do tamanho do Estado na qual Elon Musk trabalha febrilmente se destina a poupar os recursos necessários à implantação dos projetos de uma oligarquia cujos interesses estão atrelados ao aumento da dissuasão militar, ao uso da Inteligência Artificial como arma de disputa geopolítica e à construção de uma ordem interna autoritária. Resgatar a realidade que permite entender os primeiros passos das mudanças em curso é o objetivo das reflexões que seguem.
1. De olho no Canal do Panamá.
Diante das declarações pelas quais Trump afirmava não dispensar qualquer meio para assegurar o controle do Canal do Panamá, não faltaram vozes seriamente preocupadas com uma possível intervenção militar. Baixada a poeira, já dá para perceber que a estratégia do mandatário estadunidense procurava ganhar a luta sem desembainhar a espada. Este resultado só pode ser conseguido quando o guerreiro faz com que o seu adversário, conhecendo a sua força e os motivos de suas ameaças, cede o que lhe é pedido para evitar uma derrota tida como certa.
A ideia de retomar o controle do Canal do Panamá, que os EUA entregaram ao governo local em dezembro de 1999,[3] foi apresentada como uma ação essencial para “proteger o mundo livre” das garras da China. De acordo com as afirmações do próprio Trump, o gigante asiático estaria supervisionando as operações deste corredor interoceânico e encarecendo o pedágio que onera 72% da carga que passa por ele tendo como origem ou destino um porto dos EUA.[4] O governo panamenho mostrou que as afirmações de Trump não fazem sentido, mas as suas explicações não diminuíram a desconfiança de Washington. Sendo assim, vamos verificar o que, de fato, está acontecendo.
A possibilidade de uma intervenção militar estadunidense que retire a soberania sobre o Canal consta do acordo de 1999. Pelos termos do mesmo, o Panamá tem o controle exclusivo das operações da via interoceânica, mas deve assegurar que elas não sejam influenciadas por nenhuma outra nação. Caso esta neutralidade seja ameaçada, os EUA tem o direito de utilizar a força militar para restabelecê-la.
Mas o que estaria violando esta neutralidade? A resposta da Casa Branca é curta e grossa: os investimentos chineses.
De acordo com uma matéria da BBC, “Dois dos cinco portos adjacentes ao Canal, Balboa e Cristobal, localizados, respectivamente, nos lados Pacífico e Atlântico, são operados por uma subsidiária da Hutchison Port Holdings, desde 1997. Por sua vez, esta empresa é subsidiária da CK Hutchison Holdings, um conglomerado com sede em Hong Kong.(...)
A exploração desses portos oferece à CK Hutchison Holdings uma grande quantidade de informações estratégicas potencialmente úteis sobre os navios que transitam pelo Canal, afirmou Ryan Berg, diretor do Programa das Américas do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, um centro de pesquisas com sede em Washington.
«Existe uma crescente tensão geopolítica de caráter econômico entre Estados Unidos e China», disse Berg. «Esse tipo de informação sobre carga seria extremamente útil no caso de uma guerra, por envolver o controle das cadeias de suprimentos». Embora a CK Hutchison Holdings não seja uma estatal chinesa, Berg mencionou que, em Washington, há preocupações sobre o grau de controle que Pequim poderia exercer sobre a empresa.
Segundo Andrew Thomas, professor da Universidade de Akron, nos EUA, e autor de um livro sobre o Canal, as licitações para operar esses portos enfrentaram pouca concorrência. «Naquela época, os EUA não davam importância a esses portos, e a Hutchison não encontrou objeções», explicou Thomas.
Empresas chinesas, tanto privadas quanto estatais, também ampliaram sua presença no Panamá com investimentos de bilhões de dólares, incluindo a construção de um terminal de cruzeiros e de uma ponte sobre o Canal. Esse «pacote de atividades chinesas», como descreveu Thomas, pode ter motivado a declaração de Trump de que o Canal seria «propriedade» da China, embora a operação desses portos não equivalha à propriedade, enfatizou.
A posição estratégica do Panamá faz com que a China esteja há anos trabalhando para aumentar sua influência no país e expandir sua presença em um continente que, tradicionalmente, tem sido considerado o «quintal» dos Estados Unidos”.[5]
Basta isso para os EUA declararem que a neutralidade do Canal está comprometida e se faz necessária uma intervenção armada para restabelecê-la?
Tudo indica que não. Contudo, as ameaças de Trump mandam um recado ao governo panamenho: está na hora de não aceitar investimentos chineses na infraestrutura e de fazer com que este espaço seja ocupado por empresas estadunidenses. O avanço da China em função do que podemos chamar de “um cochilo” de Washington pode ser recuperado com um ambiente que crie uma situação de insegurança em relação aos lucros esperados. Concretamente, trata-se de fazer com que algumas empresas chinesas se desfaçam do que construíram e outras engavetem os novos projetos enquanto o império negocia condições favoráveis à sua presença nas atividades consideradas estratégicas.
Os primeiros passos deste processo mostram que as ameaças atingiram o alvo desejado. Durante a visita do Secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, o governo do Panamá decidiu sair da Nova Rota da Seda (o projeto de expansão dos investimentos internacionais de Pequim ao qual havia aderido em 2017) e deportou 43 colombianos que atravessavam o país rumo à fronteira do México com os EUA. Trump aprovou as medidas, mas já avisou o governo de José Raul Mulino de que espera bem mais.[6]
Da América Central, subimos em direção ao Polo Norte.
2. A Groenlândia ao centro das atenções mundiais.
Entender as ameaças de Trump de ocupar militarmente a Groenlândia caso a Dinamarca não venda este território aos EUA demanda um pouco mais de paciência. Em primeiro lugar, precisamos dizer que o Republicano não é o primeiro Presidente a negociar a compra desta ilha. A primeira vez que isso ocorreu foi no mandato Andrew Johson, em 1860, e, por incrível que pareça, pelos mesmos motivos: os recursos naturais e a localização estratégica do território.
A Groenlândia tornou-se um posto militar importante após o final da Segunda Guerra Mundial, quando os temores de um ataque nuclear soviético começavam a marcar as relações entre Oriente e Ocidente. Em 1946, Harry Truman ofereceu 100 milhões de dólares em ouro para comprar a ilha, mas o governo da Dinamarca rejeitou a oferta. As negociações caminharam paralelamente à criação da Organização do Atlântico Norte (OTAN) e levaram a um acordo pelo qual Copenhague permitia que os EUA construíssem uma base militar em Thule (a atual Pituffik), no noroeste da Ilha. No momento em que escrevemos, esta posição avançada abriga o 12º Esquadrão de Alerta Espacial dos EUA que, graças a um imponente sistema de radares, rastreia os lançamentos de mísseis russos e as trajetórias de satélites espiões nas órbitas mais baixas da atmosfera terrestre.[7]
Por isso, quando Trump fala em “comprar a Groenlândia” não está dizendo nada novo e nem tão destrambelhado quanto muitos imaginam. Os problemas de sua retórica começam quando cita a possibilidade de uma invasão armada para tomar a ilha, caso a Dinamarca não ceda o seu controle. Caso esta invasão viesse a se efetivar, o mandatário estadunidense estaria colocando em apuros a própria OTAN, da qual a Dinamarca é uma integrante de primeira hora. De fato, segundo as regras da Organização, todos os aliados deveriam socorrer Copenhague e combater o agressor que, por sinal, é quem sustenta financeiramente a própria OTAN e fornece a grande maioria dos equipamentos bélicos dos quais os países membros dispõem.
Mas, afinal, por que a Groenlândia é tão importante? A resposta guarda uma relação direita com três elementos: as rotas marítimas internacionais, os recursos naturais da ilha e os investimentos bélicos na região do Ártico.
Como todos sabem, o degelo acelerado do Polo Norte permite que o tráfego marítimo nas águas circunstantes seja possível por períodos cada vez mais longos. Durante mais de cinco meses, os navios chineses já usam a rota que, do gigante asiático, sobe em direção à Sibéria e chega aos principais portos da Europa pelos mares da região ártica da Rússia, reduzindo em mais de dez dias o tempo de navegação empregado no trajeto alternativo que percorre o Oceano Índico e atravessa o canal de Suez.
O aquecimento global abre à China a possibilidade de explorar também a rota que atravessa o Oceano Pacífico e alcança os portos da costa leste do Canadá e dos EUA passando pelo estreito entre o Alaska e a Sibéria, evitando assim o Canal do Panamá, já bastante congestionado pelos mais de 14.000 navios que o atravessam todos os anos. Mas, para isso, Pequim precisa de portos onde seus cargueiros podem embarcar o necessário para seguir viagem. Concretamente, o desejo da China é de ter dois portos na Groenlândia. Mas, sabendo que este seria um dos passos para estender o controle de Pequim sobre a ilha, os EUA têm agido no sentido de inviabilizar esta possibilidade junto ao governo dinamarquês.
Em relação aos recursos naturais, o descongelamento mais prolongado da região sudoeste da Groenlândia, onde se concentram os seus povoados e a própria capital, Nuuk, permite a exploração do subsolo local. De acordo com as estimativas do Serviço Geológico dos Estados Unidos, o Ártico pode abrigar até 90 bilhões de barris de petróleo tecnicamente recuperável e um trilhão e 670 bilhões de pés cúbicos de gás natural. Contudo, até o momento, todas as tentativas de encontrar hidrocarbonetos na Groenlândia frustraram as expectativas do setor.[8]
Notícias mais promissoras estão aparecendo em relação às Terras Raras, um conjunto de 17 elementos químicos essenciais para fabricar equipamentos eletrônicos e bélicos (basta pensar que um caça furtivo F-35 estadunidense demanda cerca de 400 kg de terras raras, enquanto a construção de um submarino nuclear classe Virgínia requer 4 toneladas). De acordo com os dados disponíveis, a Groenlândia tem reservas de Terras Raras estimadas em um milhão e 500 mil toneladas, 100 mil toneladas a mais em relação à quantidade que se supõe possa ser encontrada nos Estados Unidos. Sendo assim, controlar a extração e o beneficiamento destes elementos é algo vital para Washington diante de uma Rússia que dispõe de 12 milhões de toneladas e de uma China cujas jazidas estão estimadas em 44 milhões de toneladas (respectivamente, 10% e 38% da disponibilidade mundial). [9]
No momento em que escrevemos, as duas mineradoras que prospectam Terras Raras na Groenlândia têm capital majoritariamente australiano, mas a que opera o “projeto Kvanefjeld” tem uma estatal chinesa como sócia (a Shenghe Resources). Ainda que os volumes extraídos não sejam significativos quando comparados aos das minas do gigante asiático, é impossível não perceber que Pequim está colocando seu “pezinho” neste empreendimento a fim de ampliar o controle sobre a disponibilidade mundial destes minerais. Acrescente que, já em seu primeiro mandato, Trump havia incluído as Terras Raras entre os fatores críticos para a segurança dos EUA e que a China é responsável por 60% da extração e 85% do processamento mundial destes minérios e entenderá as preocupações de um império que precisa destas matérias-primas para as suas armas mais letais.[10]
Mas quando Trump diz que os EUA precisam da Groenlândia para fins de segurança nacional,[11] está se referindo a uma realidade mais urgente: a militarização do Ártico. Antes de seguir na leitura, observe o mapa ao lado.[12]
Nele, as bases militares russas (sinalizadas pelos quadradinhos vermelhos) cercam o espaço ártico de ponta a ponta. Modernizadas e ampliadas ao longo dos últimos 15 anos, estas posições contam com tropas equipadas para sustentar combates a uma temperatura de 50 graus negativos e com o que há de mais moderno em termos de sistemas de radares, defesa aérea e possibilidades de ataque com mísseis ao território estadunidense. A depender do local de lançamento, o tempo entre a partida de um foguete militar russo e a sua entrada no espaço aéreo dos EUA pela rota que atravessa o Polo Norte é estimado entre 15 e 18 minutos, mas este intervalo pode cair substancialmente no caso dos mísseis hipersônicos.
As bases de defesa e ataque estadunidenses mais próximas estão no Alaska, o único território dos EUA na região do Ártico. Concretamente, isso significa que, após a sinalização do lançamento de foguetes russos, o tempo útil de interceptação pelos equipamentos posicionados em seu território e nas bases da OTAN ao norte do Canadá é curto demais para impedir a entrada no espaço aéreo estadunidense com certo grau de confiabilidade.[13]
Estas brevíssimas reflexões permitem entender dois aspectos das falas de Trump. O primeiro guarda uma relação direta com a vontade de transformar a Groenlândia na base avançada do sistema de interceptação e ataque de Washington. Isso elevaria as chances de neutralizar os mísseis russos, mas transformaria a ilha num alvo imediato de Moscou que precisaria se livrar destas posições para atingir os EUA. Ou seja, o território dinamarquês seria o primeiro a ser sacrificado para que o estadunidense permaneça intacto.
O segundo aspecto guarda uma relação direta com a afirmação de Trump pela qual o Canadá deveria se tornar o 51º estado da federação.[14] No momento em que escrevemos, os dois países divergem em relação ao papel e à presença da OTAN no Ártico. O governo de Ottawa afirma que a Organização Atlântica não deveria interferir na região, pois, ao ampliar seu poder de fogo, elevaria a exposição do seu território a eventuais ataques russos. Bom, não precisamos ser especialistas em relações internacionais para entender que, como membro dos EUA, a decisão de onde e que tipo de base militar instalar seria do Pentágono em colaboração com o governo federal e não do que viria a ser um mero governador do Canadá. Além das possíveis consequências em caso de conflito, abrigar bases militares da OTAN forçaria o Canadá a aceitar restrições e controles militares que influiriam negativamente em seus interesses econômicos.
Contudo, a resistência de Ottawa às investidas de Donald Trump pode ser fragilizada na exata medida em que o imposto de 25% sobre suas vendas aos EUA seja reafirmado e produza estragos econômicos superiores aos que teria se cedesse às pressões do mandatário estadunidense. Fazer com que esta barreira tarifária seja definitivamente esquecida depende de o país se integrar corpo e alma às necessidades do império, uma posição que as palavras de próprio Trump traduzem de forma convidativa ao sublinhar que o Canadá teria muito menos impostos, proteção militar muito melhor para o seu povo e não pagaria tarifas para comercializar suas mercadorias.[15] Após o fim da atual trégua de 30 dias devemos começar a vislumbrar mais elementos da evolução desta queda de braço.
Como vimos, a pressa de Trump em redefinir a política militar para o Ártico tem várias justificativas. Mas a principal dela é de caráter militar, pois, diante do vazio criado pelo esgotamento dos acordos internacionais de limitação de armas nucleares e de controle dos seus meios de lançamento, o desenvolvimento estadunidense dos mísseis hipersônicos e dos sistemas para interceptá-los está bastante atrasado em relação à Rússia. Entre os problemas para recuperar o terreno perdido encontramos o preço deste esforço de guerra que o Presidente dos EUA procurará repassar a todos os governos que cederem às suas chantagens.
3. Os primeiros passos da nova ordem interna
Por muito que os discursos oficiais marquem os debates da mídia, qualquer governante sabe que não é possível viabilizar as mudanças que deseja só com as palavras. Recalibrar a política do Estado demanda ações que esvaziem o que não soma com as metas propostas, criem políticas alinhadas aos novos rumos do poder e afirmem sentidos que consolidam o consenso social quanto à necessidade das mesmas.
Para que o orçamento a ser discutido em março deste ano tenha espaço suficiente para as novas prioridades do governo, Trump está decidido a eliminar sem cerimônias os projetos que não somam com o seu mandato. É assim que, em pouco mais de 15 dias depois da posse, a tesoura governamental estadunidense já cortou os valores que supriam 42% da ajuda humanitária mundial rastreada pela ONU, as verbas para a Organização das Nações Unidas e para a Organização Mundial da Saúde, os recursos de vários programas sociais locais e abriu um processo de demissão voluntária que não poupou os próprios funcionários da Agência Central de Inteligência (CIA).[16]
Nenhuma reação popular repudiou os cortes que ameaçam vitimar milhões de pessoas cuja sobrevivência dependia dos recursos eliminados.[17] Só a justiça federal interveio para anular a ordem executiva com a qual Trump bloqueou os gastos sociais aprovados pelo Congresso à medida que o seu conteúdo violava os limites legais que regulamentam a sua emissão.
Mas, se Trump sabia que esta ordem poderia ser rechaçada, porque não entregou a tarefa de remanejar estas verbas à maioria com a qual conta nas duas Casas do Congresso? [18]
A resposta é simples. De um lado, o governo precisa testar as reações às suas medidas e, sobretudo, à vontade de ampliar a autoridade do Presidente da República. Muitos eleitores escolheram Trump em função de questões pontuais, como o aumento do custo de vida e a deportação dos migrantes ilegais, mas não apoiam os aspectos mais radicais da sua agenda. Trata-se de um grupo significativo cuja fidelidade pode evaporar em caso de frustração das expectativas iniciais, o que encolheria os índices de aprovação do governo. Do mesmo modo, se o Poder Judiciário não tivesse imposto um revés, Trump não demoraria em dar mais um passo para tentar forçar outros limites que a lei impõe à sua autoridade. Concretamente, o mandatário estadunidense está testando as reações populares e institucionais para dosar a forma e o ritmo das mudanças a fim de mante um índice de aprovação bem próximo daquele com o qual foi eleito.
De outro, Trump tem uma maioria muito frágil na Câmara dos Deputados e apesar de, no Senado, o Partido Republicano ter seis cadeiras a mais em relação ao Democrata, a maioria qualificada para a aprovação das medidas mais importantes demanda o apoio de 7 senadores da oposição. Do mesmo modo, não podemos esquecer que 23 dos 50 Estados da Federação são governados por Democratas cujas pressões e políticas locais podem obstaculizar parte das iniciativas do novo governo.[19] Neste sentido, quanto maior a certeza do apoio popular e o silêncio do judiciário, maior é a velocidade com a qual Trump pode vencer as resistências aos seus planos.
Ainda é cedo para estimar qual será o tamanho final dos cortes que o Presidente dos EUA conseguirá viabilizar no primeiro ano de mandato e em que medida eles atingirão negativamente as condições de vida do povo simples. Trata-se de um processo delicado no qual é necessário fazer com que, através do sentido atribuído aos acontecimentos, as pessoas assimilem os prejuízos que enfrentam como uma condição sem a qual não realizariam os seus sonhos de prosperidade na idade do ouro prometida pelo seu mandato...enquanto as resistências são derrotadas por motivos semelhantes.
Um exemplo vai nos ajudar a visualizar quanto acabamos de descrever. No dia 29 de janeiro, Trump assinou ordens executivas que acabaram com os fundos para as disciplinas escolares que abordam o racismo como elemento estrutural da sociedade estadunidense e para a discussão da teoria de gênero. Em nome da necessidade de brecar o processo de “doutrinação e divulgação de valores antiamericanos” no ensino público, as reflexões de quem vai às raízes das questões sociais são violentadas pela imposição de ideias que, alimentadas por conservadores e supremacistas brancos, mostrarão às pessoas em idade escolar que a marginalização social é um elemento natural das relações humanas.[20]
Em nome de um conceito deturpado de liberdade, quem incomoda o topo da pirâmide social com seus estudos e reflexões é amordaçado e calado com o corte das verbas federais e com a proibição de suas ideias serem parte do debate que ocorre nos processos educacionais voltados às novas gerações. Enquanto isso, a minoria, cuja riqueza e posição de poder são questionadas por reflexões incômodas, apela ao tradicional “sonho americano” para que a única cartilha ideológica a vingar nas escolas seja aquela que cimenta os passos rumo a estágios mais profundos de marginalização social.
A coerção imposta por esta dinâmica pode levar os opositores do governo a se retraírem pelo temor das consequências, a jogarem a toalha ou a julgarem como uma vitória o que, no fundo, é uma perda que abre alas à ordem que está sendo construída. Quanto maior o número de joelhos que se dobrarão às exigências do império, mais os grupos de poder parecerão se agigantar e ganhar feições de invencibilidade diante de indivíduos e governos.
A nossa única esperança? Simples: que, entre os de baixo, ninguém esqueça que o rei só tem os poderes que ostenta não só pela força do seu exército, mas, sobretudo, porque a população se reconhece como seu súdito. Pode parecer pouco, mas sem a consciência desta servidão, não haverá motivos para sair dela e nem para esboçar formas de resistência aos grupos de poder.
Emilio Gennari, Brasil, 06 de fevereiro de 2025.
[1] Estas e outras informações sobre o caso constam da página eletrônica: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/01/27/eua-x-colombia-enteda-a-crise-diplomatica-entre-os-dois-paises.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias Acesso realizado em 28/01/2025.
[2] Estas e outras informações sobre o tema podem ser obtidas acessando as páginas eletrônicas:
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3rwzeywpzno
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/c98yqdzp4ggo Acessos realizados em 04/02/2025.
[3] Você pode encontrar um breve histórico dos principais acontecimentos que cercam a disputa de soberania sobre o Canal de Panamá em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4gl4qg0vpko Acesso realizado em 29/01/2025.
[4] Você pode encontrar estas e outras informações em:
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/crr0jrln1xyo
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/c627jkx8r2lo Acessos realizados em 30/01/2025.
[5] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c627jkx8r2lo Acesso realizado em 30/01/2025.
[6] Mais notícias sobre a evolução das relações entre Panamá e EUA podem ser encontradas em:
- https://www.bbc.com/mundo/articles/cwyj8wv7941o Acessos realizados em 03/02/2025.
[7] Todos os dados citados foram publicados em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-49429641 Acesso realizado em 29/01/2025.
[8] Dados publicados em Niels Soendergaard e Victor Thives, “Riding the Dragon in the Scramble for Independence: Chinese-Greenlandic Cooperation on Large-Scale Projects in the Arctic Sea”. Em: Meridiano 47, 2022, disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/38123/37046 Acesso realizado em 28/01/2025.
[9] Estes e outros dados sobre o mesmo tema podem ser encontrados em:
- https://miningpress.com/350649/tierras-raras-el-top-ten-de-paises-productores-y-las-mayores-reservas
- https://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/38123/37046 Acessos realizados em 28/01/2025.
[10] Estes e outros dados sobre o mesmo tema podem ser encontrados em: https://www.bbc.com/mundo/articles/cvge793pj7yo e em: https://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/38123/37046 Acessos realizados em 28/01/2025.
[11] Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpw2wv4dl59o Acesso realizado em 29/01/2025.
[12] Extraímos o mapa da página eletrônica: https://www.impala.pt/noticias/politica/posicoes-militares-artico-eua-nato-russia/ Acesso em 29/01/2025.
[13] Uma discussão mais abrangente sobre o tema pode ser encontrada na dissertação de mestrado de Ana Laura Marnoto Figueiredo, O despertar do Ártico no panorama geopolítico: A militarização russa como ameaça à estabilidade regional. Acesso através do link: https://ubibliorum.ubi.pt/bitstream/10400.6/14246/1/10039_22139.pdf
[14] Em: https://elpais.com/internacional/2025-01-07/trump-sugiere-presiones-economicas-o-militares-para-lograr-el-control-de-groenlandia-o-el-canal-de-panama.html Acesso realizado em 10/01/2025.
[15] Em: https://www.infomoney.com.br/mundo/trump-dor-provocada-por-tarifa-valera-a-pena-e-canada-deveria-ser-nosso-51o-estado/ Acesso realizado em 04/02/2025.
[16] Você pode encontrar mais informações a este respeito acessando as páginas eletrônicas que seguem:
- https://www.bbc.com/mundo/articles/c1ez3qd9zpdo Acessos realizados em 03/02/2025
[17] Esta matéria do G1 traz um exemplo do que acabamos de afirmar: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/02/06/cortes-na-usaid-geram-panico-na-africa-muita-gente-morrera.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias Acesso realizado em 06/02/2025
[18] Você pode resgatar os passos posteriores aos decretos assinados por Trump através das matérias divulgadas em:
Acessos realizados em 05/02/2025.
[19] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/c1m55038g5ko Acesso realizado em 01/02/2025.
[20] Estas e outras informações podem ser encontradas em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/01/29/trump-assina-ordem-executiva-para-acabar-com-fundos-para-disciplinas-que-abordam-racismo-e-teoria-de-genero-nas-escolas.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias Acesso realizado em 30/01/2025.