Carta de um Leitor
Estamos perto do aniversário de uma cinquentona. Há o que comemorar? O
passado a condena, mas há quem a chame de redentora. O Norte publica a carta de
um de nossos leitores: João B. da Silva. Em estilo livre e a partir da percepção de
quem viveu o período, nosso leitor diz o que pensa da ditadura Civil/Militar
que governou o Brasil de 1964 a 1985, e ainda apresenta excelentes dicas de
leitura. No final você decide: 31 de março ou 1º de abril?
A Redentora ou de como fomos
salvos sabe-se lá de quem!
Dia 31 de Março de 2017, a “Redentora” faz 53 anos. Não conheces a
“Redentora”? Onde se já se viu? Como bom anfitrião devo apresenta-la a vocês.
A “Redentora” é o golpe militar de 1964 que resultou em 20 anos de
governos militares. Os saudosistas, as viúvas da dita cuja a chamam de
“Revolução de 1964”. Bom..... Revolução não foi não! A ordem constituída não
foi abalada. Os empresários, banqueiros e outros da turma continuaram
enriquecendo, ainda mais graças a ela, “A
Redentora”) e o povo simples continuou empobrecendo. Então como apresenta-la? A
redentora? A gloriosa? A Revolução de 64?
Em Primeiro lugar vamos a “questão da data. ” O golpe, permitam-me
chama-lo assim, ocorreu de fato no dia 1º de abril. Mas sabe como é, não é
mesmo? Não ficaria bem para os golpistas, um evento tão importante começar no
dia da mentira. Daí, atrasaram o relógio para a madrugada de 31 de março. Lindo
né? A dita cuja já nasceu mentindo.
Mas é a questão de por que ela veio?....... A resposta das viúvas é simples
e direta: Ora, veio para nos salvar!?! Salvar do que? Perguntam os incautos. A
“Redentora” nos salvou do comunismo, claro ... esse treco que a gente não sabe
bem o que é mas que, segundo a turma da ditadura e na boa linguagem da caserna e
dos seus inimigos civis, seria uma ideologia estranha a índole do nosso povo. Disseram
que seria instaurada uma ditadura comunista, ateísta, e outros “istas” que
iriam reprimir, torturar e matar. E, pasmem! Para nos salvar de tudo isso,
abnegadamente, sem maiores interesses (um carguinho aqui, uma mamata ali que
ninguém é de ferro) reprimiram, torturam e mataram....
Não sei bem do que fui salvo. No ginásio éramos obrigados (eu disse
obrigados, quase a “manu militare”) a desfilar, ficar em posição de sentido,
agitar bandeirinhas, quando tudo que queríamos era brincar, jogar bola, ter a
primeira namorada ... Havia uma prática de deixar um aluno marcando quem
bagunçava na aula na saída do (a) professor (a). Praticamente um curso de
delação infantil. Evoluímos claro, agora já estamos na delação premiada.
Uma professora, particularmente fascista (outra ora falamos desse negócio
de fascismo) dizia que eles (os comunas, verdadeira encarnação do tinhoso)
iriam acabar com nossas casas, tirar nossos empregos, cassar nossos direitos
sociais, políticos, trabalhistas, gerar uma miséria extrema, que haveria
violência por todo lado e, pior, acabariam com a religião.
Ué? Mas a violência, pobreza, etc, só aumentaram. Talvez sejam os comunistas
infiltrados. Vai saber né! Segundo a professora era um povo ruim ... até
criancinhas comiam!?! Quanto a religião
vou dispensar comentários. Eu acho que passamos bem sem os Edir Macedo,
Malafaia, Valdomiro, e demais Bispos et caterva que a “Redentora” de um jeito
ou de outro ajudou a parir. Como disse antes, não sei bem do que fui salvo.
Não deu muito certo essa coisa de nos salvar. A miséria, pobreza,
violência só aumentaram. Não vejo muito sentido em nos salvar da miséria
gerando mais miséria. Mas, sei lá, “os caras são tudo estudado”, vai ver sabem
coisas que o povo simples não sabe.
E a “Redentora” se esforçou. Reprimiu, torturou e matou por 20 anos.
Pensa que é fácil. Torturador também é gente!!??!! Coitados, magina o cansaço.
Torturar todo santo dia, estuprar, matar e tudo pela gente, pra nos salvar
desse tal de comunismo.
20 anos a cansaram, coitadinha, fez tanto por nós e acabamos indo pra rua
para pedir o fim dela. Somos muito ingratos mesmos! Queríamos umas bobagens
como liberdade, mais direitos para o povo simples, menos pobreza e miséria, coisa
de comunista, segundo os defensores da “Redentora”.
Veio a tal da liberdade, aos trancos e barrancos, as viúvas da
“Redentora” sempre atuantes para nosso país não virar uma Cuba, credo não? Já
pensou morar num pais comunista onde saúde e educação são para todos e de forma
gratuita? Ainda bem que as viúvas estão sempre a postos.
No meio dessa liberdade veio que um operário e virou presidente da
república, fez umas coisinhas ai pro povo simples, emprego, saúde, educação,
essas coisas que podem te transformar num comunista se você se acostumar com
elas. Ai deu BO. As viúvas da “Redentora” não lidam bem com domésticas pegando
avião, filhos do povo simples frequentando universidades. Imagina, mais a madame não poder tratar a
doméstica como escrava? Onde já se viu? Que absurdo dessa gentinha que não sabe
seu lugar. Coisa de comunista. Só pode.
Essa “gente de bem”, “bem nascida”, “de berço” foi a rua para acabar com
essa “pataquada”. Que negócio é esse do povo simples não saber o seu lugar. Doméstica
é doméstica, porteiro é porteiro, se cada um souber o seu lugar seremos todos
felizes.
Nossa classe média, fiel avalista da “Redentora” voltou as ruas para
pedir a volta da dita cuja. Marcharam por ela em 1964. Participaram do Impeachment
de 2016. Foi a coisa mais linda a classe média, que nunca passou dificuldade
desfilando de camisa verde amarela e batendo panela contra a corrupção. Vocês
precisavam ver. Tudo bem que um monte desse povo aí dos desfiles, foi sendo
indiciado e preso por, ora essa, corrupção. Mas, como dizem as viúvas “é
diferente”, “não é a mesma coisa”.
A “Redentora” tá feliz. “Devagarinho” tá sendo ressuscitada. Tá na maior
alegria. Toda aquela gente pedindo para ela voltar para reprimir, torturar e
matar. Imagina a emoção da dita cuja.
Eu não tenho saudade. Não curti apanhar da policia ou ter uma arma
apontada na faculdade por um oficial da PM. Pasmem ! Me chamou de comunista, eu?
Os caras são foda mesmo. Virei comuna sem saber.
Não estou muito a fim da volta dela. Acho que um monte de gente a quer de
volta, mas não sabe o que tá querendo, são ignorantes, tem medo e é disso que a
“Redentora” se alimenta.
Se a gente não conhece o passado corre o risco de sofrer com o futuro. O
estudo, a reflexão e a análise crítica são as únicas formas de compreender o
horror que foi aquilo e lutar para que a “Redentora” não volte. Não é nada, não
é nada, mas um monte de gente escreveu sobre a “Redentora”. Visões diferentes,
abordagens diferentes, mas vale o esforço da leitura para depois fazer uma
análise. Precisamos disso. O povo simples também.
Segue algumas dicas
01. 1964. Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes. Editora Civilização
Brasileira
02. Ideais Traídos (este foi escrito pelo General Silvio Frota, um dos
maiores defensores da “Redentora”. Recomento porque é importante saber como
esse povo pensa). Jorge Zahar Editor
-03. História Indiscreta da Ditadura e da Abertura. Brasil 1964-1985,
Editora Record
04. A Coletânea de Elio Gaspari sobre a Redentora:
- A ditadura envergonhada
- A ditadura escancarada
- A ditadura derrotada
- A ditadura encurralada
- A ditadura acabada
Gaspari não é nenhum petralha/esquerdizande/guevarista. Longe disso. Teve
acessos aos círculos do poder e arquivo dos militares (que como sabemos só
liberam informação para quem confiam) A leitura vale pela riqueza de
informações. Feita em estilo jornalístico permite conhecer bem o período.
Insisto. O cara não é critico da “Redentora”.
05. Combate nas Trevas. Jacob Gorender. Um clássico.
06. Forças Armadas e Politica no Brasil (José Murilo de Carvalho), Jorge
Zahar Editor
07. Dos filhos deste solo. Nilmário Miranda. Boitempo editora
08. A Lei da Selva (sobre a guerrilha do Araguaia, que mais preocupou as
viúvas) Hugo Studart. Geração Editorial
09. Operação Araguaia Tais Morais e Eumano Silva, Geração Editorial.
10. A coleção “História Geral da Civilização Brasileira”, Editora
Bertrand Brasil, Sérgio Buarque de Holanda, dá uma visão geral do Brasil desde
o descobrimento e tem um bom capitulo sobre os militares. Detalhe. A obra toda
tem uns 20 volumes ou mais.
Todos esses livros, notadamente os do Elio Gaspari tem enormes
bibliografias que remetem a livros, artigos, documentários muito bons.
Aqui foi só uma tentativa de ajudar a deixar a “Redentora” descansando na
lata de lixo da história que é o lugar dela.
João Batista da Silva
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