O
que você faria se um estranho lhe pedisse para cobrir os vizinhos dele de
pancada e também uns conhecidos e amigos de infância que ele na verdade nunca
gostou e que quer que apanhem, por que o dito estranho acha todo mundo que mora
no bairro dele, incluindo os conhecidos de infância que detesta, burros,
ignorantes, péssimos administradores da própria vida. Este estranho argumenta
ainda que todo mundo que mora naquele bairro (o seu) é incompetente e incapaz de
cuidar da própria vida, para ele, todo mundo que mora naquele bairro merece apanhar
e tomar umas “porradas”.
Caso
você aceitasse, quem escolheria para dar as primeiras bordoadas? Se começasse a distribuir cacetadas nos
moradores daquele bairro você deixaria o estranho ileso, ou deitaria o sarrafo
sem dó em todos os moradores daquele bairro independentemente de quem houvesse feito
o pedido?
Poderíamos
chamar este bairro de Brasil. Neste caso o estranho seria aquela gente que tem
pedido uma intervenção militar, alguns já com a mão na cabeça... ou são
ingênuos ou néscios que acreditam que não sobraria nem uma “borrachada” para
eles ou são masoquistas e sentem prazer com o sofrimento dos outros e com o próprio
tormento. Nós, os inconformados, divergimos deste pedido e publicamos um
excelente artigo de Mauro Iasi que lança luz a esta questão.
Boa
leitura e boas reflexões
Psicologia de
massas do fascismo ontem e hoje: por que as massas caminham sob a direção de
seus algozes?
Mauro Iasi revisita
as teses de Wilhelm Reich sobre a psicologia de massas do fascismo para
compreender os impasses políticos do presente.
“o
fascismo, na sua forma mais pura, é o somatório
de todas as reações irracionais do caráter do homem médio”
W. Reich
de todas as reações irracionais do caráter do homem médio”
W. Reich
“queriam que eu falasse do agora
mas, o presente que procuro
está preso em um passado
que insiste em ser futuro”
M. Iasi
mas, o presente que procuro
está preso em um passado
que insiste em ser futuro”
M. Iasi
O psicólogo marxista Wilhelm Reich
(1897-1957) escreveu o livro Psicologia de massas do
fascismoem 1933 (o estudo se estendeu de 1930 até 1933), no contexto
da ascensão do nazismo na Alemanha. O autor se refugiou em Viena, depois
Copenhagen e Oslo, onde iniciou seus estudos sobre as couraças e depois do que
denominou de “energia vital”, levando-o a teoria do “orgon”.
Desde 1926 acumulava divergências com Freud, com o qual trabalhou como
assistente clínico, e em 1934 seria expulso da Sociedade Freudiana e da
Associação Psicanalítica Internacional, sairia da Noruega em direção aos EUA,
onde seria também perseguido com a acusação de “subversão”. Acabou preso em
1957 e morreu no mesmo ano na prisão. Toda sua obra, incluindo livros e
material de pesquisa, foram queimados por ordem judicial nos EUA em 1960.
Ainda que possamos questionar as
teorias reichianas fundadas na teoria do “orgon” e a relação
que esperava estabelecer entre “soma e psiquismo”, temos que ter muito cuidado
ao tratar as considerações que esse importante autor tece sobre o fascismo e o
caráter das massas analisados na obra citada. Em vários aspectos, considero que
as reflexões de Reich sobre o tema podem ser extremamente úteis em nossos
tumultuados dias, principalmente pelas questões que levanta, mais do que pelas
respostas que encontra.
O autor coloca da seguinte maneira o
problema. Se assumirmos que a compreensão da sociedade realizada por Marx
esteja correta – isto é, que o desenvolvimento da sociedade capitalista e suas
contradições leva à possibilidade de sua superação revolucionária (o que
implica a conformação do proletariado como um sujeito consciente de sua tarefa
histórica) –, a questão que se coloca é como compreender o comportamento
político de amplos setores da classe trabalhadora que efetivamente estão
servindo de base para a reação política que emergia com o fascismo.
Chamar atenção aos efeitos da
exploração capitalista, como a miséria, a fome e o conjunto das injustiças
próprias do sistema capitalista para ativar o “ímpeto revolucionário”, dizia
Reich, já não era suficiente. Tampouco acusar o comportamento conservador das
massas de “irracional”, de constituir uma “psicose de massas” ou uma “histeria
coletiva” – algo que em nada contribui para jogar luz sobre a raiz do problema,
a saber, compreender a razão pela qual a classe trabalhadora respaldava o
discurso fascista que em última instância atacava exatamente seus próprios
interesses.
Na base dessa incompreensão se
encontrava um sentimento de espanto. Os marxistas acreditavam que a crise
econômica de 1923-1933 era de tal forma brutal que produziria “necessariamente
uma orientação ideológica de esquerda nas massas por ela atingidas”. Entretanto
o que se presenciou foi, nas palavras do autor, uma “clivagem entre a base
econômica, que pendeu para a esquerda, e a ideologia de largas camadas da
sociedade que pendeu para a direita”. O autor conclui com a constatação de que
a “situação econômica e a situação ideológica das massas não coincidem
necessariamente”. (Wilhelm Reich, Psicologia de massas do
fascismo, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 7).
Nesse ponto, Reich afirmará que – e a observação
dele aqui me parece profundamente pertinente hoje – essa não correspondência
não deveria surpreender aos marxistas, uma vez que o materialismo dialético de
Marx não compreende a relação entre a situação econômica e a consciência de
classe como sendo algo mecânico, ou seja, como se a situação material
determinasse esquematicamente sua expressão ideal na consciência dos membros de
uma classe social. Somente um “marxismo vulgar” concebe uma antítese na relação
entre economia e ideologia, assim como entre a “estrutura” e a
“superestrutura”, uma perspectiva precária que não leva em conta o chamado
“efeito de volta” da ideologia, isto é, as formas pelas quais a ideologia
incide sobre a própria base material que a determina. Presa a essa visão
esquemática e pouco dialética, resta a essa modalidade de marxismo vulgar
apenas recorrer ao chamamento moral para que os trabalhadores correspondam em
sua ação às condições objetivas em que se inserem, clamando pela “consciência
revolucionária”, às “necessidades das massas” ou ao “impulso natural” para as
greves e a luta (p. 14). Melancolicamente, Reich conclui então que essa versão
esquemática do marxismo:
“Tentará, por exemplo, explicar uma
situação histórica com base na ‘psicose hitleriana’ ou tentará consolar as massas,
persuadindo-as a não perder a fé no marxismo, assegurando-lhes que, apesar de
tudo, o processo avança, que a revolução não pode ser esmagada, etc. O marxista
comum acaba por descer ao ponto de incutir no povo uma coragem ilusória, sem,
no entanto, analisar objetivamente a situação em sem compreender sequer o que
se passou. Jamais compreenderá que uma situação difícil
nunca é desesperadora para a reação política ou que uma grave crise econômica
tanto pode conduzir à barbárie como a liberdade social. Em vez de
deixar seus pensamentos e atos partirem da realidade, ele transporta essa
realidade para a sua fantasia de modo que ela corresponda aos seus desejos.”
(pp. 14-5)
A miséria econômica causada pela crise
atualiza a disjuntiva “socialismo ou barbárie”, mas o que faria com que os
trabalhadores optem pela alternativa socialista? Reich está convencido de que
em uma situação como essas os trabalhadores escolhem em primeiro lugar a
barbárie. O marxismo vulgar compreende a ideologia como um conjunto de ideias
que se impõe à sociedade e, portanto, aos trabalhadores. Dessa maneira, os
partidários desse tipo de perspectiva acreditam que as ideais marxistas ganham
força na crise porque desmentem na prática as ideias conservadoras. O que foge
à compreensão dessa análise é exatamente o modo de operação da ideologia, muito
mais do que a definição escolástica do “que é” ideologia.
Assim, o psicólogo comunista fará a
pergunta decisiva: se uma ideologia se transforma em força material quando se
apodera das massas, como afirmava Marx, a pergunta é “como é possível que um
fator ideológico produza resultado material”, seja na direção de uma política
revolucionária ou na direção de uma “psicologia de massas reacionária”? (p. 17)
Se compreendermos a ideologia na chave
de ideias dominantes em uma sociedade – isto é, as ideias das classes
dominantes que expressam as relações sociais que fazem de uma classe a classe
dominante (Marx e Engels, A ideologia alemã, Boitempo,
p. 47) –, a pergunta se formula da seguinte maneira: como é que relações
sociais se convertem em expressões ideais, valores, juízos e representações
interiorizadas pelas pessoas que constituem uma determinada sociedade? A
resposta é que isto se dá na vivência de instituições no interior das quais as
pessoas formam seu próprio psiquismo, neste caso, fundamentalmente, na família.
É aqui que as relações sociais dadas
são apresentadas pela pessoa em formação como “realidade”, onde se desenvolve a
transição do “princípio do prazer” para o “princípio da realidade” e se produz
um complexo processo de identificação com aquele que representa o limite, a
ordem e a norma social a ser imposta, mas, o que é essencial ao nosso tema, que
é incorporada pela pessoa como se fosse sua (autocontrole) e não uma imposição
oriunda de uma ordem social. O fundamento desse processo de interiorização, na
formação daquilo que Freud denominou de “superego”, está a repressão à
sexualidade infantil, o seu recalque e a volta como sintoma nos termos de Reich
(Materialismo Dialético e Psicanálise. Lisboa:
Presença/São Paulo: Martins Fontes, 1977).
É mister lembrar neste momento que o
resultado desse processo de interiorização das relações sociais na forma de
valores e normas de comportamento implica na identidade com o agende da
imposição das normas externas, no caso do complexo de Édipo descrito por Freud
na formação de uma identidade com o pai.
Dessa maneira, Reich localizará a base
de uma determinada expressão de uma psicologia de massas (a do fascismo) em
dois pilares: uma certa forma de família tendo no centro a repressão à
sexualidade infantil; e o caráter da “classe média baixa”. Para ele, a
repressão à satisfação das necessidades materiais difere da repressão aos impulsos
sexuais pelo fato que a primeira leva à revolta enquanto a segunda impede a
rebelião, uma vez que o retira do domínio consciente “fixando-o como defesa
moral”, fazendo com que o próprio recalque do impulso seja inconsciente, seja
visto pela pessoa como uma característica de seu caráter. O resultado disso,
segundo Reich, “é o conservadorismo, o medo a liberdade, em resumo, a
mentalidade reacionária” (Psicologia de Massas do
Fascismo, p. 29).
Os setores médios não são os únicos a
viverem esse processo (que é de fato universal para nossa sociedade) mas o
vivem de maneira singular. Trata-se de uma classe ou segmento de classe
espremido entre o antagonismo das classes fundamentais da sociabilidade
burguesa (a burguesia e o proletariado), desenvolvendo o curioso senso de que
estão acima das classes e representam a nação. Seus impulsos jogam os setores
médios ora para a radicalidade proletária (a luta contra as barreiras da
realidade que se levantam contra os impulsos), ora para o apelo à ordem da
reação burguesa (a defesa das barreiras sociais impostas como garantia da
sobrevivência). Como o indivíduo teme seus impulsos e clama por controle, os
segmentos médios temem a quebra da ordem na qual se equilibram precariamente e
pedem controle e repressão.
Não é acidente ou casualidade que no
campo dos valores reacionários vejamos alinhados à defesa abstrata da “nação”
características como o “moralismo” quanto aos costumes (que vem
inseparavelmente ligado a preconceitos, a homofobia, etc.) e a defesa da
“família”, assim como o chamado “irracionalismo”, a “violência”, o mito da
xenofobia e do racismo como constituintes da nação, e o clamor pela “ordem”. A
recente cena dantesca de “manifestantes” enrolados na bandeira do Brasil, de
joelhos e mãos na cabeça, pedindo uma intervenção militar é a imagem que
condensa todos esses elementos. Por incrível que pareça, essa não é uma
sociedade “doente”, mas a sociedade “normal” exposta sem os filtros que
rotineiramente a oculta.
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Os argumentos de Reich estão longe de
dar conta da totalidade do fenômeno do fascismo. Ainda que justificada, sua
crítica aos marxistas oficiais (em 1931 Reich criou a Sexpol Verlag que
aglutina mais de 40 mil membros discutindo uma política sexual e suas relações
com a luta revolucionária, o que causou preocupações no Partido Comunista
austríaco e redundou na sua expulsão do partido em 1933) não pode dar conta de
todos os elementos históricos, políticos, sociais e culturais do tema que foram
abordados em inúmeras obras de competentes marxistas (de Gramsci a Adorno e
Benjamin, passando por Togliatti, Polantzas e tantos outros). Ele apenas aponta
para um aspecto que normalmente é desconsiderado. O que nos parece pertinente é
que o comportamento fascista não pode ser reduzido a manipulação e engodo, mas
encontra profunda raízes na consciência imediata das massas e seus fundamentos
afetivos, seja nos segmentos médios, seja na classe trabalhadora.
O fascismo é, na sua essência, uma
expressão política da crise capitalismo em sua fase imperialista e na etapa do
domínio dos monopólios, como define Leandro Konder (Introdução
ao fascismo, São Paulo, Expressão Popular, 2009). Ele disfarça sob
uma máscara modernizadora seu conteúdo conservador, sendo antiliberal, antissocialista,
antioperário e, principalmente, antidemocrático. A dificuldade do fascismo
reside exatamente em juntar esses dois aspectos contrários em sua síntese –
isto é, uma intencionalidade à serviço do grande capital (imperialista,
monopolista e financeiro) e uma base de massas que permita apresentar seu
programa reacionário como alternativa para a “nação”. Creio que o estudo de
Reich nos dá aqui uma pista valiosa. A ideologia fascista conclama à revolta
dos impulsos reprimidos (seja das necessidades materiais, seja aqueles
relativos à repressão da sexualidade) e depois oferece a ordem como
alternativa, dialogando assim diretamente com o fundamental da estrutura do
caráter universalizado pela sociabilidade burguesa, principalmente das chamadas
classes médias. É, portanto, uma política da pequena burguesia que mobiliza
massas trabalhadoras para defender os interesses do grande capital monopolista.
Acreditem, realizou-se esta façanha com eficiência e sucesso naquilo que
conhecemos por nazifascismo.
Na luta contra o fascismo, a burguesia
democrática é sempre a primeira derrotada e junto a ela a pequena burguesia que
acredita no seu próprio mito de um Estado acima dos interesses de classe. A
única força social capaz de enfrentar o fascismo é a revolução proletária, por
isso são os trabalhadores o alvo duplo do fascismo, seja no sentido da
cooptação, seja na repressão brutal e direta. Quando a luta de classes se
acirra e qualquer conciliação é impossível, a burguesia se inquieta, os
segmentos médios entram em pânico e os fascistas vendem seu remédio amargo para
a doença que ajudaram a criar. Se nesse momento os trabalhadores se
movimentarem com autonomia em direção ao seu projeto societário – o socialismo
–, impelidos inicialmente pelos impulsos mais elementares e ainda não
conscientes, eles podem colocar toda a sociedade em torno de sua luta e se
constituir como alternativa à barbárie do capitalismo em crise. Se, por razões
várias, esse segmento não se movimentar com a força necessária, uma longa noite
de terror se impõe com seus cadáveres e cortejos fúnebres.
Ainda que tenham particularidades em
seu processo de consciência, os trabalhadores não podem escapar ao fato de que
são socializados nas instituições de uma ordem burguesa, portanto, que os
valores, princípios, representações ideais desta ordem constituam o fundamento
de sua consciência imediata. Diante do caos que emerge da crise do capital vive
uma contradição entre os impulsos materiais que os impulsionam à luta e à
identidade com os opressores que os mantêm presos às correntes da ideologia. Na
ausência de uma política revolucionária se somam às “classes médias”
conclamando pela ordem e se prestam a ser a base de massas para as aventuras
fascistas.
Toda a esperança da psicanálise é
tornar possível que o inconsciente emerja, em parte, para que seja compreendido
o sintoma. Guardadas as mediações necessárias, a luta de classes torna possível
que as determinações ocultas pelos mecanismos da ordem se façam visíveis e que
o sintoma se torne exposto. No primeiro assim como no segundo caso isto não
significa a resolução do sintoma, mas o início de uma longa luta para
enfrentá-lo. O novo que pulsa vigoroso nas entranhas do cadáver moribundo do
velho mundo, não pode ser detido a não ser pela violência. Não pode se libertar
sem quebrar violentamente a ordem que o aprisiona.
“Veintiuno veintiuno
firmamento del dos mil
en el cielo la paloma
va en la mira del fusil”
Silvio Rodriguez
firmamento del dos mil
en el cielo la paloma
va en la mira del fusil”
Silvio Rodriguez
***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de
Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas
Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do
livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com
os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do
Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo,
2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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