Para estes tempos nos quais muitos perdem a esperança no povo, muitos aceitam a pecha de "pacífico e sossegado" , num mau sentido, para o povo brasileiro, nada melhor do que este " CAMINHOS DA LIBERDADE" de Emílio Gennari.
Num tempo quase sem esperança, de opressão e violência sem limite, no qual parecia não haver saída, um povo inteiro, povo trabalhador rebelou-se e lutou.
As coincidências e os interesses mais controversos somaram-se as lutas sem tréguas dos trabalhadores escravos, amigos da liberdade...
Conheça o resultado
Boa leitura
Emilio Gennari
Em busca da liberdade – traços das lutas escravas no
Brasil.
O conteúdo desse estudo foi publicado em livro com o mesmo
título pela Editora Expressão Popular em julho de 2008Ao reproduzir, total ou parcialmente,
cite a fonte.
Índice
Apresentação 03
Introdução 04
1. A escravidão negra no Brasil 05
2. O quilombo
de Palmares 13
3. Os quilombos
em Minas Gerais e Mato Grosso 22
4. A Balaiada e a insurreição dos escravos no Maranhão 29
5. A Bahia do século XIX e a Revolta dos Malês 36
6. Os tortuosos caminhos da abolição 43
7. Do quilombo do Jabaquara à liberdade das elites 49
8. Bibliografia 53
Apresentação.
Reconstruir as
lutas que marcaram séculos da nossa história pode não passar de uma perda de
tempo para quem vive buscando garantir os meios de sua sobrevivência e
realização pessoal.
Mas,
para os homens e as mulheres que dedicam seus esforços à construção de um mundo
onde haja tudo para todos, o passado é muito mais do que um momento distante.
Sua preocupação de resgatar o ambiente em que já foi desafiada a ordem dos
dominadores é um passo indispensável para entender profundamente a realidade
atual. Guiados por ele, ponderam as razões das derrotas sofridas pelos
movimentos e aprimoram o estudo das artimanhas com as quais os poderosos vêm
colocando a serviço de uma minoria a riqueza produzida pela imensa maioria.
É assim que, para superar a
indiferença, a resignação, a frustração e a sensação de impotência do presente,
quem luta sente a necessidade de olhar para trás, de recuperar etapas de
caminhos já percorridos, de compreender as possibilidades e os limites de cada
momento para afiar nas oficinas da história as ferramentas que permitem moldar
novas escolhas.
Consciente desta possibilidade e dos
riscos que ela envolve, a elite trabalha incansavelmente para veicular uma
visão do passado que reafirme seus interesses de classe como elementos
motivadores de toda a sociedade. Nos debates e conferências, nas escolas e nos
meios de comunicação, nos locais de trabalho e nos bairros seus intelectuais
atuam em diversos níveis para alterar o sentido dos fatos, apagar da memória do
povo o que pode dar alento às suas lutas e até mesmo culpar as vítimas da
opressão pela violência com a qual foi esmagada a busca de uma vida melhor para
todos.
Contada
pelo vencedor, a história alimenta as feições enganadoras da preocupação com o
bem comum. O quotidiano é apresentado como a viabilização do melhor dos mundos
possíveis e o amanhã vem recheado de promessas que têm na sorte e na aceitação
das regras do sistema a trilha de uma incerta afirmação individual.
Neste
embate, a reconstrução de alguns momentos marcantes das lutas dos negros contra
a escravidão busca levar os oprimidos a perceberem dois aspectos fundamentais.
O primeiro é que o presente não é fruto do acaso e, nele, nem o sofrimento, nem
a falta de meios materiais impossibilitam a luta pela liberdade. O segundo, tão
importante quanto o anterior, é que uma sociedade da qual seja banida toda
exploração do homem pelo homem não cairá do céu, mas será sim o resultado de
sua participação ativa nas batalhas que, longe de terminar, estão apenas
começando.
Sabendo
da importância desta tarefa e da necessidade de fazer com que o estudo que aqui
começamos se torne acessível a um maior número de pessoas, não hesitamos em
pedir ajuda à coruja Nádia. Assim como reconstruiu a Questão Palestina, o
levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional do México e a situação do
Iraque, ela vai nos acompanhar neste novo desafio.
Por isso, cedemos a palavra a esta
sábia representante do mundo das aves para que suas pesquisas e reflexões nos
levem a conhecer melhor a realidade que queremos transformar.
Introdução.
Tarde de novembro. Barrado pela
cortina de nuvens, o sol não consegue impedir que uma fria garoa tome conta da
cidade. Por toda parte, há pedestres apressando o passo, indiferentes ao que
está ao seu redor. O trânsito se torna nervoso e a disputa por cada palmo de
rua congestionada transforma o dirigir numa luta encarniçada de todos contra
todos.
Deitado,
o corpo se regozija no conforto do sofá. Entre o sonho e a realidade, o cérebro
cede à tentação de se entregar a alguns instantes de inesperado descanso. Tudo
parece embalar este doce momento de torpor em que os problemas são esquecidos e
a consciência se desliga do mundo real.
De
repente, uma úmida brisa investe teimosa contra o rosto relaxado. Alertada do
perigo, a cabeça se agita, os músculos se contraem e levam as mãos a removerem
as pequenas gotas que atingem a face. Arregalados, os olhos constatam a
presença que o sexto sentido havia preanunciado...
- “Ah! É você?!?”, investem os lábios
ao demonstrar indiferença e total falta de ânimo.
- “Viva e pronta para a próxima
empreitada!”, responde Nádia, a coruja, enquanto bate as asas na altura do
rosto do seu secretário com movimentos que revelam manchas de poeira e ferrugem
impregnadas na plumagem.
- “Em
que galinheiro ficou dormindo para sair emporcalhada desse jeito?”, provoca a
língua entre a ironia e a maldade.
- “Em primeiro lugar – retruca Nádia
ao pousar na cabeceira do sofá –, fique sabendo que as minhas plumas e penas
ganharam este tom avermelhado não por suas supostas visitas a ninhos alheios,
mas pelo fato de eu ficar horas fuçando na sala do museu que reúne grilhões,
correntes, chicotes, imagens, relatos e demais testemunhos da época da
escravidão”.
- “Sinceramente...não acho graça
nenhuma em gastar tempo com velharias enferrujadas e inúteis...”, comenta a
boca entre um bocejo e outro.
Em
silêncio, a ave apóia a ponta das asas na cintura e assume uma expressão de
reprovação nada agradável. Um suspiro... Um rápido piscar de olhos...e...:
- Que eu saiba, velha é a preguiça
que faz seus neurônios ganharem espessas camadas de ferrugem por total falta de
uso a ponto daquela que costumam chamar de massa cinzenta servir só para encher
o espaço oco do crânio.
Ao contrário da maioria dos bípedes
da sua espécie que se acomoda à espera de dias melhores, nós corujas procuramos
ouvir as lutas e os sofrimentos que aquelas peças trazem do passado para o
presente. Cada uma delas revela uma seqüência interminável de formas
silenciosas de resistência, de fugas, de quilombos e de levantes que deixam no
solo do tempo as marcas de centenas de rebeliões escravas. Resgatar estes
acontecimentos é reavivar a memória de algo que os poderosos procuram fazer
cair no esquecimento, cientes de que um povo sem história é como um homem sem
memória, que não sabe de onde vem e nem para onde vai.
Apagado
o passado, o que sobra é um presente de resignação e um futuro de incertezas
nos quais os de cima vão introduzir, sem grandes dificuldades, novas e mais
aprimoradas formas de dominação. Assim, enquanto a maioria parece começar suas
lutas sempre do zero e a ausência de uma identidade própria faz com que assuma
como seus os valores e a visão de mundo das elites, a minoria, que faz
acontecer, mantém bem aberto o túmulo do esquecimento. Nele trata de enterrar
tudo o que pode dar vida a um projeto de mudança capaz de concretizar aquelas
que hoje são simples esperanças”, conclui a ave enquanto acompanha de rabo de
olho as reações do secretário.
Entendido
o recado, os pés enveredam pelo caminho do trabalho. Com gestos precisos, as
mãos retiram da pasta as folhas de rascunho nas quais a caneta vai dar forma e
cor às palavras da coruja.
Certa de
dominar a situação, Nádia voa até os livros desordenadamente empilhados num
canto da mesa. Alguns instantes de concentração... O costumeiro “Muito
bem...vejamos...” que escapa por entre o bico, e, do alto de sua posição,
ordena:
- “Escreva! Capítulo 1º......”
1. A escravidão negra no Brasil.
- “Para início de conversa – diz a
coruja ao limpar a garganta – é necessário resgatar as razões que levam
Portugal a realizar longas viagens marítimas. Como os demais reinos da Europa,
o governo de Lisboa tem grande interesse em ampliar o comércio que, no século
XV, é uma poderosa fonte de enriquecimento. A busca de matérias-primas e de
metais preciosos em terras distantes visa garantir ao rei novos domínios e
recursos suficientes para fortalecer seu poder bélico, assegurar o controle dos
mercados recém-conquistados e possibilitar a acumulação de riquezas ainda
maiores. Em outras palavras, longe de se preocupar com o bem-estar e o futuro
das populações, nobres e comerciantes lusitanos estão interessados em saquear
tudo o que pode vir a engordar seus tesouros.
Decepcionado
pela ausência das fabulosas minas de ouro e prata que os espanhóis estão
explorando em outros países, Portugal põe as mãos no único produto visível e
abundante, o pau-brasil, de cuja madeira vermelha se extrai um corante usado na
Europa sobretudo para tingir tecidos. Por cerca de 30 anos, as companhias de
navegação se beneficiam com uma troca vantajosa. Suas embarcações saem
carregadas de pedaços de pano colorido, espelhos, facas, canivetes, serras,
machados e outras bugigangas e voltam abarrotadas com as toras que os índios
extraem das florestas.
Mas, a
partir de 1530, outras nações estão de olho nestas terras. Pressionada, a coroa
portuguesa se vê diante da necessidade de colonizar rapidamente o seu pedaço do
chamado novo mundo onde, graças ao clima quente e às características do
solo, é possível implementar com sucesso o cultivo da cana.
Esta escolha,
obviamente, não tem como preocupação central o desenvolvimento local, mesmo
porque a sua viabilização exige a devastação pura e simples de amplas áreas de
floresta, mas sim a busca das altas margens de lucro propiciadas pelo açúcar,
vendido a caríssimo preço nos mercados europeus. O problema é que, para ser
rentável, o canavial deve ocupar grandes extensões de terra e uma quantidade
considerável de força de trabalho”.
- “Então, para resolver esta
pendenga, o passo mais lógico é trazer da Europa parte dos camponeses sem
terra!”, prorrompem os lábios sem pesar as palavras.
Ouvido o comentário, a coruja desenha
no ar um cifrão com a ponta da asa direita e diz:
- “O que a sua cabecinha de humano
não consegue entender é que, num sistema econômico baseado na exploração do
homem pelo homem, não há como conciliar o atendimento das necessidades das
pessoas com a lógica do mercado. Nela não há espaço para os sentimentos, mas só
para o frio cálculo das perdas e ganhos. A preocupação com as camadas mais
pobres do povo, alardeada pela elite, se dá somente na medida em que a reação
destas pode vir a ameaçar a manutenção da ordem social que garante a fortuna de
poucos.
Se as coisas fossem como você sugere,
o camponês vindo do outro lado do oceano para um país onde há abundância de
terras incultas e sem dono acabaria se instalando num lugar qualquer, se
tornaria um produtor independente, dedicado a garantir o próprio sustento e não
o enriquecimento dos senhores dos dois lados do oceano. Ainda que se dispusesse
a trabalhar para eles em troca de um salário, a escassez de braços elevaria o
ordenado a um patamar tão alto que os lucros obtidos com o açúcar não seriam
compensatórios.
Além do mais, por ser um homem livre,
os grandes proprietários locais não poderiam obrigá-lo a um trabalho forçado em
suas terras e nem conseguiriam impedir que este se instalasse em outras
transformando-as numa espécie de propriedade privada cuja produção seria quase
integralmente voltada à auto-sustentação. Resumindo, um trabalhador agrícola
que pudesse ser obrigado a ficar na terra e a desempenhar suas funções nas
condições impostas pelo dono da plantação só poderia ser um escravo.
Por isso, uma vez tomada a decisão de
colonizar o território, a coroa portuguesa muda radicalmente a sua relação com
os povos indígenas. A guerra e o extermínio estão entre as primeiras medidas
para expulsar os nativos de grandes extensões de terra e para submetê-los à
escravidão.
Poucos sabem que, de 1530 a 1600, a
exploração escrava dos índios vai ser a força motora da produção da colônia. É
ela que vai estar na base do cultivo de cereais, algodão, açúcar e café de São
Paulo até por volta de 1820. No Maranhão, a escravidão indígena só acaba no
século XVIII, ao passo que a economia do Pará vai se aproveitar dela até 1755
quando, com a proibição do Marquês de Pombal, assume uma forma de dependência
que se distancia muito pouco das relações de trabalho anteriores. A própria
extração do ouro nas regiões que hoje pertencem aos estados de Minas Gerais,
Goiás e Mato Grosso, dá o pontapé inicial tendo como base o trabalho escravo
dos índios e até mesmo na Bahia e Pernambuco estes entram em cena toda vez que,
por alguma razão, o número de negros trazidos pelo tráfico diminui sem
possibilidade de pronta recuperação”.
- “Mas, Nádia, eu sempre ouço dizer
que os indígenas são substituídos por não gostarem de trabalhar, não se
adaptarem á escravidão, não terem um físico que resiste às doenças trazidas
pelos europeus ou por fugirem mais facilmente do cativeiro na medida em que
conhecem a mata e podem encontrar abrigo sem dificuldade... Confesso que suas
colocações me deixam confuso...”.
Questionada, a ave desce da pilha de
livros e emite um longo suspiro. Reunidas as idéias, aponta a asa para a caneta
com um “vamos pegar um bicho de cada vez!” que sinaliza a necessidade de
responder detalhadamente às afirmações do secretário. E continua:
- “No que diz respeito às fugas, é
verdade que os indígenas levam uma certa vantagem na medida em que se defrontam
com os colonizadores organizados em sociedades tribais, conhecem as matas e
podem facilmente encontrar abrigo. Mas, por outro lado, não podemos dizer que a
submissão do negro à escravidão é maior pelo simples fato deste já ter
conhecido situações parecidas em sua terra natal.
Introduzidos nas plantações após
terem sido arrancados à força do seu meio social, os africanos das senzalas têm
apenas maiores dificuldades em levar adiante uma resposta coletiva na medida em
que se deparam com pessoas de diversas etnias, línguas, tradições e costumes.
Apesar disso, a longa lista de insurreições, fugas, assassinatos de feitores e
demais formas de resistência mostra que a hipótese de uma maior submissão dos
negros não tem fundamento.
Do mesmo modo, não é convincente o
argumento que atribui a substituição do escravo indígena pelo negro à
capacidade deste último de resistir às doenças. Os defensores desta idéia
esquecem que a maior parte das mortes entre os índios não se deve aos problemas
de saúde trazidos pelos europeus, mas sim ao esgotamento físico provocado pelo
excesso de trabalho e pelas condições subumanas a que são submetidos.
Contrariando a crença de que o
escravo, enquanto propriedade do senhor, representa um bem a ser preservado, o
sistema escravista vê na sua máxima rentabilidade o elemento que define a
velocidade do seu esgotamento físico. Quanto maior o volume de trabalho que o
cativo pode dar hoje, tanto mais vantajoso é estafá-lo para extrair, no menor
tempo possível, o valor investido na compra do africano e a margem de lucro que
pode oferecer. Agir no sentido de prolongar a vida útil do escravo significa
aumentar os gastos com o seu sustento diário e correr o risco de obter
porcentagens menores de trabalho excedente na medida em que as doenças e a
morte podem interromper, repentinamente, a sua exploração. E se isso vale para
os negros, vale ainda mais para os índios cujo preço de compra é de,
aproximadamente, um quinto da quantia paga por um cativo africano. Ou seja, por
se tratar de uma força de trabalho muito barata, os indígenas reduzidos à
escravidão são obrigados a dar conta de uma quantidade absurda de tarefas sem
que seus donos se preocupem minimamente com eles.
Por sua vez, o crescente e
ininterrupto fluxo de escravos trazidos pelo tráfico é, por si só, uma prova de
que, também entre os negros da senzala, a mortalidade não é tão baixa como
pretendem nos fazer crer. Vivendo em condições extremamente precárias e
submetidos a um regime de trabalho extenuante, os escravos empregados nos
canaviais e nos engenhos têm uma vida útil reduzida. Em outras palavras, o
período de tempo em que eles têm a capacidade de desempenhar a quantidade de
trabalho exigida costuma girar, em média, em torno de 8 anos.
Na medida em que não consegue dar
conta da carga imposta pelos feitores e passa a ser considerado um peso morto
no orçamento do proprietário, o negro escravo pode vir a ser alforriado,
ganhando com esta suposta liberdade a igualmente dura tarefa de mendigar os
meios de subsistência. Esta situação mais corriqueira é acompanhada de duas
variantes: de um lado, encontramos senhores que confiam tarefas leves (como a
criação de aves) aos cativos tornados inválidos para o trabalho e, de outro,
não são poucos os que resolvem esta questão assassinando pura e simplesmente
aqueles que já não rendem o esperado.
No que diz respeito ao nível técnico,
não há dúvidas de que os negros superam os índios na agropecuária, no
artesanato e na forja dos metais, mas este saber não é aproveitado na labuta
primitiva das plantações que, para muitos africanos, representa um verdadeiro
retrocesso.
Agora, uma coisa é dizer isso e
outra, bem diferente, é afirmar que o indígena não gosta de trabalhar ou não se
adapta ao trabalho sedentário. As missões dos jesuítas provam exatamente o
contrário. Nelas, os índios desempenham excelentemente todos os trabalhos
agrícolas, pastoris, extrativistas e artesanais. Este aprendizado grupal deita
raízes no fato dos religiosos terem criado uma organização econômica e social
inspirada na propriedade coletiva, no trabalho comunitário e na igualdade, ou
seja, em elementos familiares ao mundo indígena.
Por outro lado, não podemos esquecer
que, além da campanha contra a escravização dos índios, a substituição destes
pelos cativos africanos conta com as crescentes pressões da coroa portuguesa e
dos traficantes. Ao veicular a idéia de que os indígenas são preguiçosos,
incapazes e menos resistentes ao esforço físico, buscam abrir caminhos à
elevação dos gordos lucros obtidos com o tráfico de escravos graças à troca
destes pelas mercadorias destinadas à exportação”.
- “Quer dizer, então, que a coisa é
pior do que se imagina?”, pergunta a boca ao deixar transparecer toda a
perplexidade gerada por esta descoberta.
Nádia balança a cabeça em sinal de
afirmação e, piscando os olhos, acrescenta:
- “Como acabo de dizer, quando
analisamos a substituição do cativo indígena pelo africano, percebemos que esta
se dá de forma rápida e irreversível nas regiões onde a economia é integrada ao
comércio internacional. Esta situação, em geral, não se manifesta nas áreas
onde predominam atividades de subsistência ou a produção se destina ao mercado
interno. A razão de ser deste processo deve ser buscada no triângulo comercial
que une Europa, África e Brasil”.
- “Triângulo comercial?!? Que diabo é
isso?!?”
- “Calma, eu já vou explicar – diz a
coruja ao levantar as asas. Nos primeiros séculos da escravidão, as grandes
companhias de navegação levam panos, ferragens, trigo, sal, cavalos,
aguardente, tabaco, açúcar, armas de fogo, munição e até búzios (usados como
moeda em várias regiões) nos porões dos navios que se dirigem aos portos
africanos. Nestes, os portugueses contam com verdadeiras fortalezas e
entrepostos fartamente abastecidos de escravos pelos pumbeiros, ou seja,
por agentes que se dirigem até os pumbos, como são chamados os mercados
do interior onde as tribos locais trocam gente por bugigangas. Acorrentadas, as
vítimas são privadas de alimentação adequada, têm o corpo exposto às
intempéries, sofrem inúmeros maus tratos e começam uma jornada que, até o
momento do embarque para o Brasil, pode durar meses.
A maior parte dos produtos usados
nesta primeira fase é de origem européia e sua troca por cativos é muito
vantajosa. A contas feitas, podemos dizer que o valor dos escravos embarcados
na África supera em sete a dez vezes o das mercadorias usadas para a sua
compra.[1]
Batizados e
marcados a fogo com uma cruz no peito, os negros são colocados em navios que
deixam o continente africano abarrotados de gente. A depender da distância
entre o porto de partida e o de chegada no litoral brasileiro, de eventuais
epidemias ou acidentes que podem prolongar o tempo de viagem, os traficantes
perdem até 20% da carga humana que transportam. Mas esta mortalidade é
amplamente compensada pela diferença entre o preço de compra na África e o de
venda no Brasil. Como os custos com a tripulação, o navio e a alimentação dos
escravos (a base de farinha e água) não sofre grandes alterações, é mais
vantajoso transportar 200 cativos, mesmo sabendo da possibilidade de perder 40
deles, do que embarcar só uma centena e não perder nenhum.
Além disso, os interesses das
companhias de navegação coincidem com os dos funcionários da coroa encarregados
de regulamentar o tráfico. Tanto na saída da África, como na chegada em terras
brasileiras, os impostos são cobrados sobre o volume transportado. Quanto mais
escravos são carregados e descarregados, maiores são as rendas que afluem para
os cofres reais. Em nome desta dupla possibilidade de ganho, as autoridades não
titubeiam em esquecer os decretos que determinam a quantidade de comida, água e
negros que pode ser legalmente transportada em cada navio.
Ao chegar nos portos, os esqueletos
ambulantes dos africanos que conseguem sobreviver à viagem são trocados pelo
açúcar e demais produtos a serem levados para a Europa. O escravo, vendido a
caro preço, é a moeda que, neste momento, substitui o ouro e as demais formas
de pagamento usadas nas relações comerciais do velho mundo. Lotadas e
reabastecidas, as embarcações atravessam o oceano rumo ao continente europeu
onde sua preciosa carga é vendida por uma quantia bem maior.
No balanço final, o lucro líquido das
companhias de navegação que atuam nestas rotas varia de 300% a 600% do total
investido. Além de abastecer a Europa de matérias-primas e garantir um mercado
para suas manufaturas, os ganhos oriundos da escravização dos índios, que antes
acabavam nas mãos dos colonos, são agora apropriados em dose bem mais abundante
pelos comerciantes das metrópoles que passam a ter no tráfico de escravos
negros uma parte essencial dos seus negócios”.
Atordoado pelas inesperadas
revelações da coruja, o secretário apóia a testa na palma da mão esquerda
enquanto a direita termina de traçar no papel as últimas linhas do relato. Um
profundo silêncio se estabelece entre os dois, até que a língua expressa uma
conclusão tão esperada quanto assustadora:
- “Pelo que você acaba de dizer, se a
lógica do mercado transforma a vida dos escravos num inferno antes mesmo de
sair da África, a submissão a estas mesmas regras no Brasil só vai prolongar e
aprofundar seus sofrimentos...”
- “Sua afirmação faz sentido –
comenta a ave ao andar de um lado para outro da mesa. Mesmo assim, nossas
reflexões não podem se limitar a gerar sentimentos de compaixão, mas devem dar
ao leitor uma noção clara do que é a vida na época da escravidão e de como a
elite busca justificar até mesmo suas manifestações mais cruéis.
Desembarcado do navio e levado ao
mercado, o escravo recebe uma alimentação a base de farinha de mandioca, angu
de fubá, toucinho, carne-seca, feijão e algumas frutas a fim de combater as
doenças contraídas durante a viagem. Mas você não ache que com tudo isso ele
vai engordar, pois as porções diárias de comida são extremamente reduzidas.
O vestuário é quase inexistente até
mesmo nos meses frios do ano, e, durante a visita dos possíveis compradores,
homens e mulheres são expostos completamente nus para que estes possam realizar
uma inspeção completa das peças nas quais estão interessados.
Para não mostrar sinais de apatia e
depressão, os escravos recebem estimulantes (pimenta, gengibre e tabaco) ou,
como costuma ocorrer no Rio de Janeiro, são obrigados a dançar alegremente
durante o exame físico a fim de convencer os interessados de sua saúde
excelente, elevando assim o preço de venda. Caso isso venha a falhar, socos,
tapas, pontapés e ameaças de serem chicoteados são fartamente distribuídos aos
que não atendem às ordens recebidas.
Ao chegar na senzala, os cativos são
novamente marcados a fogo com as iniciais do nome e sobrenome do seu dono para
que, ao gravar na carne o vínculo de propriedade, se facilite o reconhecimento
e a reapropriação de cada fugitivo. Entre os que se destinam às plantações, não
são poucos os casos em que se registra a prática da primeira hospedagem,
uma surra inicial com açoites ministrada ao recém-chegado com a finalidade de
baixar a crista dos possíveis rebeldes.
A relação dos senhores com a massa
escrava se baseia no princípio do use e abuse. A duração da jornada de trabalho
não conhece limites e, sobretudo nas épocas de corte e moagem da cana, passa
das 15 horas diárias. Em geral, a labuta vai de segunda a segunda com cinco
dias de descanso por ano: Natal, Epifania, Páscoa, Ascensão e Pentecostes.
Sendo o escravo batizado e cristão, o
fato de não respeitar os domingos e demais dias santos chega a suscitar
escrúpulos entre os religiosos. Mas a autoridade eclesiástica liquida a questão
argumentando que as necessidades da produção justificam o não cumprimento dos
preceitos da igreja.
A alimentação dos moradores da
senzala é resolvida de três maneiras. Alguns senhores não fornecem nenhuma
ração, mas permitem que seus cativos trabalhem aos domingos num pedacinho de
terra de onde devem tirar o sustento e só fornecem pequenas porções de mel
grosseiro na época da colheita. Outros não concedem dias livres, mas
proporcionam uma escassa quantia de farinha e carne-seca. Os mais humanos,
acrescentam à comida um dia livre por semana. Porém, mesmo nas situações mais
favoráveis, a produção do escravo destinada a si próprio está sempre sujeita ao
arbítrio e às conveniências do senhor, razão pela qual, na senzala, a fome não
é exceção, mas regra.
Como mercadoria, o cativo pode ser
vendido, alugado, penhorado e morto. Apesar da legislação não admitir o direito
de vida e morte, senhores e feitores assassinos de escravos não são incomodados
pela justiça cujas autoridades estão preocupadas na manutenção da ordem
escravista e não na preservação da incolumidade dos africanos. Até mesmo no
século XIX, as denúncias de crime que chegam nos tribunais são freqüentemente
respondidas por investigações e sentenças que atribuem a morte do cativo a um
acidente ou ao suicídio”.
- “Esta situação vale para todos os
escravos ou há diferenças entre uma região e outra?”
- “Grosso modo, podemos dizer –
responde a coruja ao espetar o ar com a ponta da asa – que, de início, a maior
parte dos africanos que chega no Brasil é destinada aos canaviais, mas, nas
cidades, já a partir do século XVII, assistimos à introdução dos chamados negros-de-ganho.
Trata-se de homens e mulheres
escravos que prestam serviços ou executam algum ofício nos centros urbanos.
Neste grupo encontramos barqueiros, carregadores, mascates, oleiros,
marinheiros, carpinteiros, ferreiros, serradores, sapateiros etc. que, diária
ou semanalmente, entregam ao seu dono uma quantia combinada ficando com o pouco
que sobra para a sua própria manutenção. Mesmo ruins, suas condições de vida
são um pouco menos duras em relação às que encontramos no ambiente rural.
Apesar disso, a jornada de, no mínimo, 12 horas somada à precariedade da
moradia e da alimentação levam a vida útil da maioria destes escravos a não
superar a marca dos dez anos.
As escravas, além de servirem de
amas-de-leite, parceiras sexuais de seus senhores e dar conta dos trabalhos
domésticos, situação corriqueira em todas as plantações, nas cidades são
forçadas a se dedicar ao comércio de rua e, no caso das mais atraentes, a se
prostituir em tempo parcial ou integral.
Cativos doentes, cegos ou inválidos
são forçados à mendicância tanto para juntar dinheiro para seus senhores como
para obter o próprio sustento. Em caso de doença terminal, incapacidade total
ou morte, são jogados porta afora para evitar que seus amos tenham que arcar
com os gastos do funeral. No Rio de Janeiro, por exemplo, é comum encontrar o
cadáver de algum escravo pelas ruas da cidade. Quando isso acontece, um soldado
se posiciona sobre ele com uma caixa na qual recolhe a contribuição dos
passantes e o corpo só é removido do local quando nela já se encontra a quantia
suficiente para custear as despesas do enterro.
- “Nádia, agora fiquei curioso –
intervém o secretário ao parar de escrever. Se há homens e mulheres escravos,
significa que podem procriar e que, pouco a pouco, o tráfico poderia ser
substituído pelo aumento da população nascida no cativeiro! Certo?!?”
- “Errado! – responde a coruja sem
pestanejar. Se você refletir sobre o que acabo de dizer, não só vai perceber
facilmente que a exploração colonial do Brasil precisa de um constante e
crescente fluxo de escravos como a reposição destes é praticamente inviável com
a procriação que ocorre nas senzalas. Além da mortalidade que atinge 80 em cada
100 crianças nascidas vivas, a chance de uma das 20 restantes chegar à idade
adulta é muito reduzida na medida em que o recém-nascido é submetido às mesmas
condições adversas dos pais e a possibilidade de contrair doenças que o levem à
morte é realmente muito grande. Isso não só explica o baixo preço de uma
criança escrava, como a falta de interesse dos senhores de engenho investirem
recursos em seu crescimento na medida em que os riscos e os custos são bem
maiores daqueles com os quais se deparam na compra de um africano adulto.
Ao que tudo indica, só as ordens
religiosas cuidam da reprodução de seus escravos. Silva Lisboa escreve que os
Jesuítas deixam seus engenhos e fazendas cheios de numerosos cativos entre os
quais é raro encontrar alguém da costa da África. Koster, por sua vez, observa
que, em Pernambuco, o plantel dos Beneditinos já é totalmente crioulo, sendo
que o mesmo acontece com o dos Carmelitas. Os frades incentivam a procriação
nas senzalas a ponto de permitir o casamento de homens livres com escravas, mas
não o contrário, isto é de escravos com mulheres livres, pois, neste caso,
pelas regras da época, os filhos não poderiam ser forçados ao cativeiro”.[2]
- “Diante desta realidade, como é
possível manter submissa a massa escrava sabendo que, com o tempo, ela passa a
ser numericamente maior dos brancos tanto na cidade como no campo?”
- “Para este propósito, as elites
criam o que podemos chamar de um verdadeiro sistema de terror que se apóia não
só na violência efetivamente praticada, como na ameaça permanente de que esta
vai desatar o seu rigor contra qualquer expressão de rebeldia.
Por exemplo, quando incorre em faltas
leves, o cativo é colocado no tronco (dois grandes pedaços de madeira
retangular que imobilizam pés, mãos e pescoço) ou no vira-mundo (um pesado
grilhão de ferro que prende pés e mãos e obriga o sentenciado a uma posição
incômoda e, não raro, deformante).
Em caso de fuga, após a aplicação de
até 100 açoites nos pelourinhos das cidades ou na presença dos demais colegas
de sofrimento da fazenda, o corpo do supliciado, já em carne viva, é banhado
com vinagre, água salgada ou pimenta e jogado numa cela. Se conseguir
sobreviver, vai passar o resto da vida no libambo (uma argola de ferro ao redor
do seu pescoço com uma haste à qual é fixado um chocalho ou uma placa com
dizeres aviltantes) ou preso a um sistema de correntes que dificultam seus movimentos.
Para extrair confissões, se usam os
anjinhos, dois anéis de ferro que vão comprimindo os polegares da vítima na
medida em que cada aperto de um pequeno parafuso diminui progressivamente o seu
diâmetro, provocando dores horríveis.
Outro castigo bastante comum consiste
na aplicação de uma máscara de folhas de flandre sobre o rosto do escravo. A
este devemos acrescentar a castração, a destruição dos dentes a marteladas, a
amputação dos seios, o vazamento dos olhos, as marcas no rosto com ferro em brasa,
as queimaduras provocadas pelas fagulhas das caldeiras quando o cativo é
acorrentado com o corpo nu bem próximo de suas chamas.
A lista dos horrores se completa com
os casos menos freqüentes de africanos emparedados vivos, afogados,
estrangulados, arremessados ao fogo ou esmagados na moenda de cana. Se a isso
somamos o suplício das longas jornadas de trabalho, não vamos ter nenhuma
dificuldade em entender o que significa viver o inferno das senzalas”.
- “Confesso que fiquei horrorizado...
Parece mesmo que a maldade humana não tem limites...”, diz a boca ao externar
sentimentos de compaixão.
A coruja permanece silenciosa. O
piscar de seus olhos parece indicar que reações de espanto, aparentemente tão
acertadas, não bastam para compreender a profundidade de séculos de história e,
muito menos, para entender os limites da luta pela liberdade que vão se
manifestar nas mais variadas formas de resistência e rebeldia dos escravos.
Ciente da necessidade de colocar cada coisa em seu lugar, a ave se aproxima,
apóia a asa no ombro do secretário e com voz pausada sussurra:
- “Não assuste. Esta é apenas parte
da realidade de um período no qual, como em tantos outros, o lucro ocupa o
centro das preocupações da sociedade e faz girar ao seu redor os elementos que
o justificam e o tornam racional.
Pra início de conversa, as investidas
de Portugal na África e no Brasil são saudadas e apóiadas pelos próprios papas
como uma forma de levar o cristianismo pelo mundo. Entendidas como uma
verdadeira cruzada da fé, a serviço de Deus e do rei, as expedições que vão
alimentar a colonização e o tráfico de escravos têm os abusos e as culpas de
seus integrantes e patrocinadores automaticamente perdoadas pelas bulas papais.
Por sua vez, os escravos são
considerados eleitos de Deus e escolhidos, à semelhança de Cristo, para salvar
a humanidade através do sacrifício. Em 1633, o Padre Antonio Vieira, expressa
esta compreensão da igreja católica ao falar aos escravos de um engenho da
Bahia: Cristo despido e vós despidos; Cristo sem comer e vós famintos;
Cristo em tudo maltratado e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os
açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa
imitação, que se for acompanhada de paciência também terá merecimento de
martírio. [3] Enquanto
aos cativos se recomenda a submissão com a promessa de um futuro glorioso nos
céus, os senhores são ameaçados com os castigos divinos e terrestres (a
rebelião e a sedição) caso não diminuam os maus-tratos. Ou seja, de acordo com
esta lógica, a escravidão não é condenada pela igreja desde que moderada,
justa, racional, rentável e equilibrada.
Ao mesmo tempo, as elites alimentam
preconceitos pelos quais o cativeiro passa a ser justificado, assimilado e
aceitado com naturalidade. O ato de arrancar o negro de sua terra natal é
apresentado como um benefício para ele próprio enquanto caminho para afastá-lo
da barbárie e levá-lo à civilização. Além disso, atribuem ao africano más
qualidades, como a preguiça, a libidinagem, a malícia, a vadiagem, o caráter
traiçoeiro e maldoso, invocadas para justificar tanto o peso do trabalho como
os castigos corporais.
O cimento da estrutura racista da
sociedade ganha consistência na medida em que se inculcam nos africanos
sentimentos de inferioridade, uma péssima idéia de si mesmos e de suas etnias,
além de estigmas associados á cor negra. As diferenças de pigmentação da pele
se tornam assim um elemento distintivo que dá origem a uma hierarquia pela qual
o mulato é melhor que o negro, o moreno melhor que o mulato e assim por diante.
Some a esta realidade as propriedades negativas atribuídas ao trabalho manual,
considerado digno de seres inferiores, e terá uma idéia do ambiente criado pela
classe dominante colonial para promover a destruição das culturas africanas e
desqualificar seus valores.
A prova da eficácia do conjunto
destas medidas está no isolamento social com o qual vai se defrontar a massa
escrava. Por mais de três séculos, não há nenhum setor da sociedade vitalmente
interessado em abolir o sistema escravista, pois, bem ou mal, todos acabam
vivendo à custa do trabalho escravo”.
- “Então, pelo visto, na senzala e
fora dela não há nada que ajude a organização dos cativos...”
- “Exatamente! – confirma a coruja
com uma frieza assustadora. A simples identidade de cor não basta para gerar a
solidariedade entre os negros. Além das pressões externas e da violenta
repressão a que estão submetidos, há outros elementos que dificultam a
possibilidade de uma resposta capaz de destruir a ordem existente.
Vale a pena lembrar, por exemplo, que
nem todos os cativos se encontram na mesma situação. Quando analisamos os mais
de três séculos de escravidão, nos deparamos com negros livres e escravos;
cativos submetidos ao terrível trabalho das plantações ou das minas ao lado de
outros que sofrem uma exploração mais branda; libertos e alforriados que passam
fome convivem com outros que já são donos de um certo número de escravos;
negros expropriados de todo o fruto do seu trabalho se deparam com os que têm
acesso a uma remuneração da sua labuta; cativos que se rebelam ou insurgem
acabam esmagados por regimentos formados por negros e pardos que buscam no
recrutamento militar a possibilidade de deixar para trás a condição de
escravos. Enfim, do mesmo modo em que, na África, a identidade de cor não consegue
impedir que as tribos desenvolvam formas de escravidão e alimentem o próprio
tráfico, no Brasil, esta não evita que, em graus diferentes, muitos cativos
colaborem com os brancos para subjugar os negros.
O simples fato de todos serem vítimas
da escravidão não basta para que teçam entre eles ações capazes de destruí-la.
No próprio ambiente rural, as diferenças entre os escravos empregados na
produção e os que se dedicam aos serviços domésticos da casa-grande confere aos
últimos uma posição ligeiramente mais elevada em relação aos demais, o que lhes
permite minorar seus próprios sofrimentos. Escolhidos por sua beleza,
inteligência, seus hábitos de asseio ou de higiene, sua aceitação aumenta na
medida em que assimilam os valores dominantes. Isso faz com que a perda da
identidade africana seja vista como um meio para ocupar os postos que
proporcionam um maior grau de liberdade, segurança e prestígio.
A todos estes fatores devemos
acrescentar as hostilidades e os conflitos que se instalam nas senzalas em função
das diferenças étnicas aí presentes. Os membros de várias nações africanas não
esquecem as rixas de suas tribos no país de origem e as rivalidades que delas
nascem acabam se somando às diferenças de língua, cultura e crença religiosa
fazendo com que, muitas vezes, a divisão prevaleça sobre a união.
As coisas se tornam difíceis também
em função da constante renovação do contingente de escravos que ocorre ora para
expandir as atividades produtivas, ora para substituir os que já não rendem o
desejado pelos senhores. O fato de não ter vínculos com os que se encontram no
plantel e, às vezes, de não falar, a mesma língua acaba dificultando as
relações, emperrando o desenvolvimento de ações coletivas e a transmissão da
experiência de luta acumulada.
Para entender o conjunto de
obstáculos que se impõe à organização dos escravos, há um último elemento que
nem sempre é levado em consideração. Estou me referindo á dispersão geográfica,
ou seja, às distâncias consideráveis que separam uma plantação da outra e que, associadas
ao rígido controle dos feitores, impedem a comunicação entre os cativos dos
vários engenhos”.
- “Puxa, mas, desse jeito, parece
impossível esboçar uma reação...”, concluem os lábios perplexos.
- “Eu não diria isso – afirma Nádia
ao sublinhar sua fala com o movimento ritmado da asa. De um lado, é preciso
reconhecer que a grande maioria dos escravos não foge, não participa de
levantes, nem atenta contra a vida de seus feitores ou senhores. À exceção da
geração que chega à abolição, a maior parte dos cativos vive a escravidão até a
morte. Isso não significa que aceitam pura e simplesmente este amargo destino,
mas tão somente que estes homens e mulheres se comportam como todos os seres
humanos em circunstâncias extremamente desfavoráveis, ou seja, tendem a se
adaptar para tentar sobreviver. Para eles, resistir à escravidão, via de regra,
é sinônimo de resistir ao trabalho. O cativo precisa ser mau trabalhador para
não ser um bom escravo. Daí o relaxamento, a incúria, a subserviência fingida,
o trato ruinoso dos animais e das ferramentas, a sabotagem, enfim, um processo
que leva quem está submetido à escravidão a estabelecer limites de tolerância
que não deixam de ser percebidos.
Outra forma de resistência amplamente
relatada pelos historiadores é o banzo. Definido como profunda saudade
da África, descreve a situação em que o negro cai em depressão, se recusa a
trabalhar e a comer, definhando muitas vezes até a morte. Mais do que expressão
de um sentimento para com a terra natal, esta situação se configura como uma
forte rejeição da condição estranha e hostil na qual o africano é mergulhado, a
tal ponto de não permitir ao escravo nenhuma identificação com o espaço físico,
com o grupo dos que partilham a sua sorte e, menos ainda, com o universo
opressor do branco.
Por sua vez, o suicídio, desconhecido
no continente africano, se torna comum em terras brasileiras como forma de
escapar a uma realidade odiosa e de grandes sofrimentos. Estimulado pela crença
de que seus espíritos voltariam para a África, o pôr fim à própria vida assume
as feições de um enfrentamento na medida em que priva o branco de seu capital
humano. Nesta mesma linha, encontramos também os abortos praticados pelas
negras nas plantações e nos engenhos. Muitas entre as poucas crianças que nascem
vivas são sacrificadas pelas mães com o propósito de impedir que os filhos de
suas entranhas tenham que passar pelos mesmos sofrimentos.
A fuga individual é, sem dúvida,
outra forma de resistência amplamente utilizada, apesar dos inúmeros perigos
que oferece. Chamados a escolher entre o cativeiro e a busca da liberdade,
muitos escravos enfrentam a severa vigilância dos feitores, as perseguições dos
capitães-do-mato, o desconhecimento do terreno e dos recursos que permitem
sobreviver em regiões hostis mesmo sabendo que, ao serem recapturados, poderiam
ser fustigados até a morte para servir de exemplo aos demais.
A violência individual contra
senhores e feitores é mais freqüente nos canaviais. Matar membros da
casa-grande é algo mais raro, que geralmente ocorre através da ação de pequenos
grupos ou em momentos de tensão excepcional. Mesmo assim, o desejo de destruir
os brancos é algo difundido e profundo e, em geral, se manifesta através de
símbolos e rituais.
As práticas religiosas realizadas nas
senzalas estão relacionadas a formas coletivas em que se manifesta a rebeldia
escrava. Nelas, as danças desempenham um papel relevante exacerbando os gestos,
exercitando a ginga, dotando o corpo de extraordinária mobilidade, destreza e
velocidade de movimentos. Aos poucos, os passos que na África eram utilizados
nos rituais ganham no Brasil as características de uma arte marcial. Os negros
criam e adaptam seus golpes à necessidade de enfrentar o corpo a corpo com os
capitães-do-mato, encarregados de capturá-los vivos para que possam ser
publicamente supliciados ou reconduzidos ao trabalho forçado.
Se as incertezas quanto à origem e ao
sentido da palavra capoeira estão longe de terminar, pesquisas recentes revelam
uma relação cada vez mais próxima entre danças, tradições marciais e lúdicas do
continente africano e as formas de autodefesa desenvolvidas pelos escravos no
Caribe e no Brasil. No arquivo histórico de Angola, em Luanda, há gravuras da
dança n’golo que confirmam a semelhança com os golpes da capoeira
antiga. O fato desta não ser a única expressão conhecida pelas etnias de
escravos aqui desembarcados pelos traficantes, leva a concluir que a capoeira
tem diversos pais espalhados por toda a África, mas só em nossas terras evolui
até se tornar uma arte marcial propriamente dita.[4] O
que aos olhos de amos e feitores parece não passar de uma dança ou de um
ritual, a avó da capoeira atual leva o negro a fazer com que o corpo duramente
submetido ao peso da escravidão possa vir a ser usado como arma, como
instrumento de luta pela liberdade.
É nesse emaranhado de recusas,
rejeições e formas de resistência que os negros dão origem a revoltas seguidas
de fugas das quais, via de regra, nascem os quilombos”.
- “Quilombos... Eu já ouvi falar,...
mas... será que você poderia tratar um pouco mais deste assunto?”, solicita o
secretário ao expressar uma curiosidade insólita.
- “A palavra quilombo – diz a ave
balançando o corpo – é a incorporação à língua portuguesa de um termo africano
que significa esconderijo. No Brasil, se torna sinônimo de núcleo de escravos
fugidos que procuram abrigo em locais de difícil acesso para neles construírem
padrões africanos de organização social.
Em geral, esta forma de enfrentar a
ordem escravista acaba predominando nas regiões rurais. É aí que, ao lado de
grandes concentrações de cativos nas senzalas, nos deparamos com um rigor
desenfreado na aplicação dos castigos, condições de trabalho desumanas, uma
maior possibilidade de encontrar facilmente esconderijos naturais e de dar vida
tanto a uma economia de subsistência como a ações que visam a defesa e a
ampliação do próprio quilombo em povoados chamados de mocambos.
Por ser uma crítica viva à
escravidão, os quilombolas são temidos pelos brancos a tal ponto que qualquer
ajuntamento de africanos fugidos do cativeiro já é considerado alvo de ataque e
eliminação independentemente do número de pessoas que nele se escondem.
Num dispositivo governamental de 6 de
março de 1741, por exemplo, é considerado quilombo o lugar onde encontram-se
reunidos cinco escravos. E, em 20 de agosto de 1847, a Assembléia Provincial do
Maranhão aprova a Lei N.º 236 que, no artigo 12 diz: Reputar-se-á escravo
quilombado, logo que esteja no interior das matas, vizinho ou distante de
qualquer estabelecimento, aquele que estiver em reunião de dois ou mais com
casa ou rancho. Para a elite maranhense, a reunião de dois negros em fuga
sob o teto da mesma choça já cheira a conspiração”.
- “A sua explicação deixa uma vontade
de conhecer um pouco mais a vida e as relações que são construídas no interior
destes refúgios onde os escravos fugidos buscam abrigo”, confessam os lábios
numa intervenção inesperada que surpreende o próprio faro da coruja.
- “É pra já! – responde a ave com um
brilho especial no olhar. Mas, como a explicação não é das breves, é bom você
levantar, tomar um café e dar uma boa espreguiçada porque vem aí o capítulo no
qual vou tratar de...”
2. O quilombo de Palmares.
Recuperadas as energias, o corpo
assume novamente o seu lugar na mesa. Esticados, os braços se alongam sobre as
folhas do relato enquanto o entrelaçar-se dos dedos parece prepará-los para a
etapa que está por vir.
Apóiando o queixo na ponta da asa
esquerda, Nádia retoma pensativa o caminho já percorrido. O silêncio de
reflexão só é rompido pelo rápido virar das folhas e pelos gestos com os quais
a direita parece desenhar no ar o que está preste a ser transformado em
palavras. Limpada a garganta, um “É isso!” pronunciado em alto e bom som
sinaliza que a ave já está pronta para iniciar os trabalhos.
- “Em primeiro lugar – diz a coruja
cadenciando as palavras – vale a pena lembrar que o quilombo de Palmares ganha
este nome porque na região onde serão construídas suas aldeias abundam várias
espécies de palmeiras. Estas, mescladas a espinhos, cipós e arbustos típicos da
floresta tropical, dão origem a uma mata fechada que, em muitos trechos, forma
uma barreira natural impenetrável.
Quase nada sabemos sobre os escravos
que dão origem a este quilombo, mas alguns relatos apontam o ano de 1597 como o
período provável de sua fundação. Durante uma noite, um grupo de,
aproximadamente, 40 cativos teria fugido de um engenho da capitania de
Pernambuco, atual estado de Alagoas, após massacrar a população livre que aí se
encontra. Sabendo que a notícia se espalharia rapidamente pelas áreas vizinhas
e que logo estariam sendo perseguidos, aos rebelados não resta outra saída a
não ser a fuga. Em sua peregrinação, chegam a um lugar áspero e montanhoso onde
de uma das serras, muito íngreme, se pode observar toda a região. No topo
desta, que, pela sua forma, ganha o nome de Serra da Barriga, vão abrir
clareiras e levantar choças cobertas de palha.
De início, o medo dos castigos, os
perigos e as dificuldades da vida na selva levam bem poucos negros a fugirem
para Palmares. Pressionados pelas necessidades, os quilombolas não demoram em
realizar incursões nas fazendas e engenhos mais próximos com o intuito de
seqüestrar escravos, raptar mulheres, se abastecer de armas, pólvora,
ferramentas de trabalho, além de, não poucas vezes, exercer sua vingança
ateando fogo nas plantações e matando os feitores.
Diante destes assaltos, os senhores
de engenho se defendem como podem. No início do século XVII, a gravidade do
problema atrai as atenções das autoridades coloniais. Em 1602, Diogo Botelho,
terceiro governador geral do Brasil, organiza a primeira expedição contra o
quilombo. Esta retorna dizendo ter desbaratado o refúgio dos negros, mas, seis
anos depois, a notícia de que Palmares continua dando muitas dores de cabeça é
levada ao rei de Portugal por Diogo de Menezes.
Sobrevividos aos primeiros ataques,
os rebeldes palmarinos vão intensificando suas ações. A fama de Palmares
aumenta e estimula novas fugas de
escravos que vão se somando à população quilombola”.
- “Bom, depois de falar da sua
origem, será que daria para dizer algo sobre como é a vida neste reduto de
negros fugidos?”, solicitam os lábios entre a curiosidade e o temor de que a
pergunta acabe aumentando o trabalho de redação.
Balançando a cabeça em sinal de
aprovação, a ave começa a organizar as idéias. Após um rápido bater de asas que
espalha pó e ferrugem sobre os papéis já escritos, Nádia fixa o olhar na caneta
ainda imóvel e diz:
- “Dos fragmentos de história que
falam deste momento, sabemos que, para poder matar a fome, os palmarinos se
dedicam inicialmente à caça, pesca, à coleta de frutas e raízes. Com o tempo,
criam instrumentos de madeira para lavrar a terra e, após encontrar minério de
ferro em seu território, começam a forjar armas de corte e ferramentas para o
trabalho agrícola.
Nas clareiras abertas na mata, as
terras recebem plantações de milho, feijão, mandioca, batata, cana-de-açúcar,
legumes, uma grande variedade de árvores frutíferas ao mesmo tempo em que nas
aldeias do quilombo se criam porcos e galinhas.
Os cativos que fogem para Palmares
são inicialmente submetidos a um período de prova durante o qual executam
vários trabalhos. Julgados merecedores de confiança, ingressam numa família e
começam a ter acesso à terra.
Pouco a pouco, a penúria dos
primeiros tempos é vencida graças a um trabalho coletivo que desenvolve uma
economia comunitária de auto-subsistência onde, fora os objetos de uso pessoal,
as terras, os instrumentos de trabalho, as casas e as oficinas pertencem ao
mocambo. Com base na propriedade coletiva de todos estes recursos, as famílias
cultivam a terra não só para o próprio sustento, mas também para produzir um
excedente a ser utilizado por toda a comunidade. Além de servir de provisão
para a ocorrência de períodos de seca, pragas ou ataques externos, esta parte da
produção é destinada à alimentação de guerreiros, idosos, doentes e artesãos
que não realizam trabalhos agrícolas.
Entre a população dos mocambos
palmarinos, os homens constituem a esmagadora maioria. Como nas fazendas e nos
engenhos a maior parte dos escravos é do sexo masculino, o número de mulheres
que fogem para o quilombo é, proporcionalmente, bem menor. A constante penúria
de representantes do gênero feminino dá origem à família poliândrica, na qual
uma mulher se relaciona com mais homens de uma mesma aldeia. Na divisão do
trabalho, a esmagadora maioria dos homens está empenhada nas atividades
produtivas ao passo que às mulheres, chefes dos núcleos familiares assim
constituídos, cabe a organização, a coordenação e a supervisão das várias
atividades produtivas.
Além disso, é importante lembrar que
os membros da comunidade palmarina têm origem étnica diferenciada e que a
presença de índios, pardos e brancos em seu meio acaba atenuando as
características das identidades tribais africanas. Desta mistura, nasce uma
língua na qual dominam as expressões dos idiomas falados pelos negros, mas que
incorpora elementos tanto do tupi como do português. Processo bem parecido
ocorre também com a religiosidade onde as imagens das divindades cultuadas na
África partilham altares com as de Jesus, Nossa Senhora da Conceição e São
Brás.
Pouco sabemos das instituições
políticas anteriores a 1630. Os documentos existentes revelam que todos os
moradores reunidos em assembléia escolhem os membros de um conselho. Este, por
sua vez, elege um chefe, cujos poderes, apesar de amplos, não dispensam a
consulta popular quando estão em jogo decisões cruciais para a vida do
quilombo. Nesta época, o número de negros congregados na Serra da Barriga não
passa de mil e seus esforços de ampliar a revolta entre a massa escrava
dificilmente seriam coroados de sucesso não fosse por uma ajuda tão inesperada
quanto decisiva: o ataque holandês a Pernambuco”.
- “Holandeses...?!? Na capitania de
Pernambuco...?!? Por que é que eles resolvem vir até aqui? E o que é que isso
tem a ver com Palmares?”, prorrompe a língua numa seqüência de perguntas.
Após um longo suspiro, a coruja
levanta as asas e fechando os olhos diz:
- “Calma! Uma coisa por vez! Pra
início de conversa, é bom lembrar que, até a segunda metade do século XVI, os
territórios dos atuais estados da Bélgica e da Holanda são parte do Reino da
Espanha. Com o progresso das cidades que neles se desenvolvem vai florescendo
também uma próspera burguesia de comerciantes e agiotas. A adesão desta à reforma
protestante fortalece o seu espírito nacionalista e acaba incentivando a luta
contra a dominação espanhola. A situação se torna cada vez mais tensa até que,
em 1567, os comerciantes holandeses organizam uma rebelião contra o rei da
Espanha que, há tempo, vem cobrando salgados impostos sobre suas atividades.
Em resposta, os ibéricos enviam uma
expedição punitiva que só consegue exacerbar os ânimos. Os enfrentamentos
continuam até 1609 quando a Espanha se vê obrigada a assinar uma trégua na qual
reconhece a separação dos territórios.
No início do século XVII, a República
das Províncias Unidas (Holanda e Bélgica) possui uma frota de navios mercantes
bem superior a de todos os países europeus juntos e suas principais cidades são
as maiores praças financeiras e mercantis do continente. Quanto ao Brasil, o
que você não sabe é que, até este momento, são os comerciantes daquelas terras
a financiar parte da instalação dos engenhos, além de controlar uma boa fatia
do transporte e da comercialização do açúcar.
O problema é que, após a guerra, o
trono português passa para as mãos da Espanha, e estes negócios extremamente
lucrativos correm o risco de ir por água abaixo na medida em que o rei espanhol
proíbe terminantemente que os holandeses comercializem os gêneros produzidos
nas colônias do seu reino. Diante desta realidade, a burguesia da República das
Províncias Unidas se vê obrigada a ir buscar tais produtos nos países de
origem, ou seja, a se instalar em territórios coloniais já ocupados por outras
nações européias.
O açúcar brasileiro está entre as
mercadorias mais cobiçadas. Por isso, após várias tentativas, em fevereiro de
1630, o litoral de Pernambuco é invadido pelas tropas holandesas na altura da
cidade de Olinda. Cinco anos depois, graças ao apoio de setores da elite local,
estas mesmas forças já detêm o controle das capitanias de Pernambuco,
Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte.
Silenciadas as armas, banqueiros e
companhias comerciais impulsionam a retomada da produção açucareira através de
empréstimos destinados à reconstrução dos engenhos destruídos ou depredados
durante a guerra enquanto a esquadra holandesa ajuda a superar a escassez de
escravos investindo pesado nas rotas do tráfico com a África.
Em 1644, porém, as relações entre os
novos colonizadores e os proprietários dos engenhos começam a se complicar na
medida em que os últimos não têm condições de pagar as altas taxas de juros que
pesam sobre os créditos obtidos. Diante de um possível calote, os credores
respondem ameaçando confiscar terras, bens, gado e escravos como forma de
saldar as dívidas. Esta medida alimenta o ódio dos senhores e a idéia de
expulsar os holandeses começa a ganhar consistência.
Os primeiros sinais de revolta
explodem no Recife em 13 de junho de 1645. Aos vários enfrentamentos que se sucedem, em 1652, acaba
se somando a declaração de guerra da Inglaterra que obriga a República das
Províncias Unidas a desviar amplos recursos para responder às investidas das
forças armadas inimigas. Ao mesmo tempo, Londres começa a abastecer de armas,
dinheiro e munições os revoltosos pernambucanos de cuja ação espera um ulterior
enfraquecimento da capacidade de resposta da Holanda, sua direta concorrente na
disputa pela hegemonia marítima e comercial.
No ano seguinte, a frota de guerra
portuguesa chega ao litoral de Pernambuco. Enfraquecidos pelas derrotas diante
dos ingleses e sem condições de sustentar seus domínios no Brasil, em 26 de
janeiro de 1654, aos holandeses não resta outra alternativa a não ser a de
assinar a rendição”.
- “E...o que é que isso tem a ver com
Palmares?”, questiona o secretário enquanto a coruja faz uma pausa para retomar
o fôlego.
- “Simples, meu querido bípede
apressado! – responde Nádia demonstrando não ter perdido o fio da meada. Se o
seu cérebro acompanhou o desenrolar dos acontecimentos, não vai ter dificuldade
em perceber que tempo de guerra é sinônimo não só de tensão, como de grande
confusão. A debandada das autoridades coloniais portuguesas, o êxodo de
senhores de engenho para o sul e a mobilização militar para enfrentar os
holandeses provocam a desorganização do sistema de vigilância e repressão da
qual se aproveitam tanto os índios quanto os negros.
Esta situação desencadeia uma
sucessão de fugas espontâneas e isoladas, desarticuladas entre si e sem um nível
de organização consciente. Em alguns casos, os escravos aproveitam para acertar
contas com amos e feitores, incendeiam os canaviais, destroem os engenhos e,
munidos de armas de fogo, facões e lanças, se dirigem para Palmares.
Após sua incorporação no quilombo, os
fugitivos são organizados em colunas cujas expedições vingadoras pelo litoral
da capitania apressam a derrota dos portugueses e assustam os próprios
holandeses sob cuja dominação as condições de vida e de trabalho da massa
escrava se tornam ainda mais amargas. O maior rigor na aplicação dos castigos
visa não só coibir as possibilidades de novas rebeliões como arrancar mais
trabalho dos africanos recém-chegados para pagar os juros extorsivos e
preservar o padrão de vida dos senhores de engenho.
Mesmo assim, a quantidade de escravos
que aproveita da invasão holandesa para fugir é tamanha que, em pouco tempo, o
quilombo fica superpovoado. Isso leva os negros a fundarem novos mocambos no
interior da Serra da Barriga e até longe dela, em lugares onde as terras são
férteis e podem ser facilmente defendidas. De acordo com uma crônica de 1678, a
população de Palmares chega a ser estimada em cerca de 20.000 pessoas.
Majoritariamente composto por negros
de origem africana, o quilombo abriga também um crescente número de índios,
mamelucos, pardos e brancos que, durante a invasão holandesa, aí se refugiam
para escapar de um conflito em cujo desfecho não têm o menor interesse. A
fartura que agora reina em território palmarino atrai tanto pequenos
proprietários das redondezas como até mesmo soldados das expedições organizadas
para destruir os mocambos.
A laboriosidade dos quilombolas,
reconhecida pelas próprias autoridades portuguesas, não deixa dúvidas quanto ao
fato de que é por ser escravo, e não por ser negro, que o africano trazido
pelos traficantes produz pouco e mal nas plantações e nos engenhos.
Em tempo de paz, o aumento da
população acompanhado pela expansão das roças e das atividades artesanais
produz excedentes que começam a ser trocados por armas, munições e sal em
vários pontos da capitania. Em muitos povoados, o intercâmbio pacífico cria uma
rede de interesses que se opõe aos que procuram destruir Palmares. Compostos
por camponeses que não se utilizam de trabalho escravo, seus moradores atuam no
sentido de conviver com os mocambos. Pois, caso estes venham a sucumbir, as
pastagens e as roças formadas para a própria subsistência acabariam nas mãos
dos grandes proprietários pernambucanos aos quais haviam sido legalmente
cedidas pela coroa ou pelos governantes locais. Por isso, além de servir de
base avançada para as incursões quilombolas, estes setores se preocupam em
fornecer-lhes informações sobre as posições do inimigo e em criar empecilhos às
expedições punitivas”.
- “Sendo assim, podemos concluir que
Palmares tem um futuro promissor...”, conclui o humano sem esconder sua
intenção de reduzir o trabalho que lhe cabe.
Em resposta à tentativa de chegar
logo aos finalmentes, a ave deixa transparecer um sorriso maroto. O balançar da
cabeça sinaliza que o resgate deste capítulo da história ainda vai conhecer
novas etapas e, ao recostar o corpo na pilha de livros, não perde a chance de
repreender o seu ajudante:
- “A pressa é sempre uma péssima
conselheira, sobretudo quando se trata de analisar as lutas dos oprimidos. Por
isso, espante a preguiça e use as energias para entender as pegadas que o
passado faz chegar até nós!
Contrariando suas expectativas, o
quilombo começa a enfrentar problemas sérios justo após a derrota dos
holandeses, quando as autoridades coloniais portuguesas se voltam para a tarefa
de destruir o inimigo interno que se esconde nas matas. Além da urgência de
extinguir um perigoso foco de rebeldia escrava, outras três razões levam a
elite a investir contra os mocambos palmarinos.
A primeira delas deita raízes na
necessidade de envolver nestas campanhas militares a multidão de famintos e
belicosos ex-combatentes que, vencida a guerra contra a Holanda, reivindicam as
recompensas prometidas como pagamento dos sacrifícios suportados. Como as
terras arrebatadas já foram apropriadas pelos senhores de engenho, a única
maneira de reduzir o descontentamento deste contingente é envolvê-lo num novo
projeto de conquista como condição para ter acesso a um mais gordo botim.
Ao lado deste grupo, há outro formado
por negros que entre a escravidão e a promessa de deixar o cativeiro, caso
viessem a integrar as tropas portuguesas, haviam escolhido a segunda
possibilidade por acreditar que, em caso de vitória, conquistariam de vez a
própria liberdade. Desiludido com a não ratificação de suas alforrias, parte
deles se integra a Palmares enquanto os demais não hesitam em dar sinais claros
de insubordinação.
Última, mas não menos importante, é a
posição dos senhores de engenho em função dos prejuízos sofridos durante a guerra.
O desejo de recuperar os escravos fugidos é fartamente alimentado pela
prostração econômica da capitania onde a falta de recursos impede a importação
imediata de africanos em número suficiente para recuperar as lavouras. Sabendo
que, nesta época, 200 cativos têm o mesmo valor de um engenho de primeira
categoria, ninguém vai ter dificuldades em entender porque a perspectiva de
caçar negros em Palmares ganha um incentivo econômico que não pode ser
desconsiderado.
Impulsionadas por estas razões, no
segundo semestre de 1654, as autoridades coloniais iniciam uma série de
expedições militares que se estendem até 1659. Além de fracassarem ou
conseguirem resultados bem inferiores ao esperado, os palmarinos capturados não
se submetem ao trabalho escravo e, cedo ou tarde, acabam fugindo novamente para
o quilombo”.
- “Que mal lhe pergunte, por que
todas estas investidas armadas acabam sendo derrotadas?”.
- Como já disse nas páginas
anteriores, a região ocupada pelo quilombo é de mata fechada e de difícil
acesso. Além de impedir a localização exata dos mocambos e de ocultar os
guerreiros palmarinos, a própria selva impõe enormes dificuldades às expedições
que procuram destruir os redutos de resistência. Nesta época, entre o litoral e
a Serra da Barriga, não há nenhum caminho pelo qual possam transitar carros e
carruagens. Isso significa que, além da rede para dormir e das roupas, cada
soldado deve carregar nas costas uma pesada mochila com todos os mantimentos
aos quais se somam uma boa porção de pólvora, balas, espingarda, espada, facão
e cabaça de água.
Com a coluna marchando em fila
indiana entre despenhadeiros e áreas onde a vegetação dificulta o seu avançar,
os comandantes não só não podem contar com a vantagem tática da surpresa, como
são vítimas dos quilombolas que se ocultam na mata. As condições adversas do
clima, a fadiga, as doenças e a fome, via de regra, se encarregam sozinhas de
dobrar a resistência dos expedicionários. Quando as coisas se complicam, graças
à rede de informantes espalhados pelos povoados, os chefes conseguem evacuar os
mocambos abrangidos pelos planos inimigos e esconder suas populações selva
adentro.
Ao chegarem num destes, os
comandantes acampam suas colunas e, em seguida, enviam pequenos grupos de
soldados para vasculhar o mato. Contando com o conhecimento do terreno, os
palmarinos provocam os destacamentos a fim de afastá-los de suas bases para, em
seguida, desferir contra eles ataques que costumam ser mortais.
A aparente superioridade bélica das
forças oficias é neutralizada pelo peso excessivo do armamento e pela demora na
repetição dos tiros, o que permite aos negros usar com certa vantagem as armas
de que dispõem em ataques rápidos e desconcertantes seguidos de fugas para o
interior da selva.
Pouco a pouco, estes elementos criam
as condições para que o desespero e o pânico tomem conta das tropas oficiais e
levem muitos soldados a desertarem. Frente a esta realidade, as autoridades
coloniais se deparam com dois problemas essenciais: a exata localização das
povoações palmarinas e o desenvolvimento de uma tática militar adequada ao meio
geográfico.
Enquanto isso, entre 1667 e 1670, os
quilombolas multiplicam suas ofensivas nas redondezas de Serinhaém, Ipojuca,
Porto Calvo e Penedo com o objetivo de libertar os escravos das fazendas e dos
engenhos, justiçar amos e feitores, conseguir armas e munições, queimar os
canaviais e mergulhar o inimigo num clima de terror.
Nos anos seguintes, as coisas não são
muito diferentes e os governantes reagem preparando novas expedições e
prometendo a quem delas participasse a propriedade dos negros aprisionados, o
perdão dos crimes cometidos e, aos nobres, a nomeação para funções da vida
pública. Apesar das dificuldades, as tropas oficiais começam a lançar mão de
uma tática adotada com sucesso contra os índios na Bahia: construir casas
fortificadas e entrepostos que servem de bases avançadas às quais são remetidas
mensalmente determinadas quantidades de comida, armas, munições e demais
recursos necessários para prolongar os assaltos e destruir os meios de sobrevivência
dos adversários.
Além de reduzir a distância entre os
soldados e os centros de abastecimento, a presença de destacamentos fixos
permite oferecer um tratamento brando aos quilombolas que se rendem e uma ação
mais rigorosa contra os que, ao oferecer resistência, caem nas malhas da
repressão”.
- “Pelo que você acaba de dizer, as
forças coloniais começam a mudar sua forma de atuação. Mas, enquanto isso dá os
primeiros passos, o que está acontecendo em Palmares? Será que a organização do
quilombo permanece igual ao que era?”
- “Na verdade – responde Nádia ao
piscar os olhos -, a ampliação do número de escravos que aí se refugiam leva os
mocambos palmarinos a desenvolverem uma estrutura centralizada, e relativamente
complexa, que busca aperfeiçoar tanto os vínculos de cooperação recíproca como
os mecanismos de defesa militar propriamente ditos. Além de trocarem
informações, se ajudarem em tempos de seca e más colheitas ou abrigarem as
povoações atingidas pelas expedições coloniais, os quilombolas criam formas de
assistência militar para enviar comandantes e destacamentos de guerreiros a
defender as áreas ameaçadas pelo inimigo comum.
Ao que tudo indica, os moradores de
cada mocambo elegem em assembléia um grupo de autoridades chamadas Maiorais
às quais cabe exercer funções político-administrativas e que gozam de completa
autonomia para as questões locais. Ao lado delas, encontramos os Cabos-de-guerra,
comandantes militares designados pelo que podemos chamar de chefe de estado da
confederação palmarina e aprovados pelo seu conselho, composto por
representantes dos Maiorais.
Apesar de sua posição hierárquica,
este chefe não detém um poder absoluto sobre seus subordinados devendo observar
um complexo conjunto de normas que definem suas funções legais e militares.
Escolhido por sua coragem, força e capacidade de comando, o ocupante deste
posto pode ser destituído caso sua conduta não seja condizente com as normas do
quilombo. O seu governo efetivo é circunscrito à área de Macaco, o principal
povoado de Palmares, e não lhe é permitido tomar decisões que atingem os demais
mocambos sem ouvir o conselho dos Maiorais. Entre as personagens que
ocupam o cargo, encontramos Ganga-Zumba que chega na Serra da Barriga durante a
ocupação holandesa e se empenha a celebrar o pacto de ajuda militar recíproca
entre as povoações palmarinas.
No que diz respeito às instituições
militares, há uma milícia permanente de soldados profissionais distribuídos em
guarnições pelos mocambos ou organizados em destacamentos móveis para as operações
guerrilheiras. Nas situações de emergência, porém, todos os homens válidos são
convocados a pegarem em armas.
Apesar do crescente investimento no
treinamento de suas forças armadas e de sua estrutura administrativa, a
organização social de Palmares não nasce da necessidade de sufocar conflitos
que deitam raízes numa ordem de exploração ou de privilégios, mas sim da
urgência de assegurar a defesa e a sobrevivência do quilombo diante dos
desafios impostos pelo seu crescimento interno e pelas expedições cada vez mais
ameaçadoras organizadas pelas autoridades coloniais.
Mas a vida em Palmares não é um mar
de rosas – acrescenta a coruja preocupada em não mistificar um momento de luta.
A expedição de 1677, comandada por Fernão Carrilho, impõe derrotas que desencadeiam
um profundo descontentamento na massa palmarina. Esta acusa o seu chefe
supremo, Ganga-Zumba, de ter agido com inépcia e irresponsabilidade ao
comandar, bêbado, a principal operação de guerra contra as tropas coloniais que
conseguem destruir o mocambo de Amaro (com mais de mil casas) e capturar
dezenas de guerreiros, além de autoridades locais e de dois filhos de
Ganga-Zumba.
Em todos os vilarejos do quilombo,
com exceção de Macaco, a população realiza assembléias que pedem a deposição do
chefe palmarino. Levada ao conselho geral, esta proposta acaba sendo derrotada
pelas manobras internas de Ganga-Zumba.
Longe de diminuir, o descontentamento
em relação ao chefe supremo aumenta e Zumbi conspira para depô-lo pela força.
Sentindo-se ameaçado, Ganga-Zumba aceita iniciar as conversações de paz que as
autoridades coloniais vêm oferecendo após a expedição de Fernão Carrilho. Deste
processo nasce o Pacto de Recife, assinado em 5 de novembro de 1678. A paz com
os portugueses prevê a liberdade para os nascidos no interior do quilombo (o
que implica em reconduzir os demais ao cativeiro), a concessão de terras para
viverem e cultivarem, a garantia de poder comercializar os próprios produtos
com os povoados vizinhos e a outorga do título de vassalo da coroa a
Ganga-Zumba.
Os termos do acordo acirram a
oposição e as resistências internas, sobretudo pela cláusula que devolve à
senzala todos os fugitivos abrigados no quilombo. O número reduzido dos que
seguem o antigo chefe (de 300 a 400 pessoas) revela a falta de confiança dos
palmarinos nos compromissos assinados pelas autoridades coloniais.
Diante dos acontecimentos, Zumbi
reúne os guerreiros do seu mocambo e marcha contra os que ainda se mantêm fiéis
a Ganga-Zumba. Com as adesões conseguidas em sua jornada, o novo líder leva as
tropas rumo ao principal mocambo de Palmares. Percebendo a impossibilidade de
enfrentar seus adversários, Ganga-Zumba foge para Cacaú. Mas, após derrotar uma
frágil resistência armada, as forças leais a Zumbi ocupam Macaco e este assume o
cargo mais alto da confederação palmarina.
Apesar da vitória, os problemas estão
longe de terminar. De um lado, a deserção de importantes comandantes militares,
fugidos com Ganga-Zumba, leva a crer que, de agora em diante, os portugueses
contam com informações completas sobre a vida e a organização de Palmares. De
outro, nem toda a população e autoridades de Macaco se dispõem a serem fiéis ao
novo chefe.
Sem perder tempo, Zumbi subordina a
vida do quilombo às exigências da guerra contra as expedições oficiais. De um
lado, promove um sangrento expurgo dos partidários de Ganga-Zumba, e, de outro,
desloca mocambos para lugares estrategicamente mais seguros, acelera a busca de
armas e munições, intensifica o adestramento militar de todos os homens
válidos, multiplica os pontos de vigilância e observação nas orlas das matas,
reforça o sistema defensivo de Macaco e decreta uma lei pela qual toda
tentativa de deserção é punida com a morte”.
- “Pelo visto, isso altera vários
aspectos da sociedade palmarina. Mas será que antes de passar aos próximos
acontecimentos, você poderia dizer mais alguma coisa sobre Zumbi?”, pede o
secretário ao procurar entender melhor a figura deste homem que intervém de
forma decisiva num momento crítico da vida de Palmares.
Ouvida a solicitação, a ave começa a andar pensativa
de um lado a outro da mesa. Após instantes de silêncio nos quais a memória
tenta recuperar as informações disponíveis, o franzir das plumas da testa
anuncia que pode atender o novo pedido. Só mais um rápido piscar de olhos e...
- “Das poucas notícias que temos, parece que Zumbi
nasce em 1655 num dos vários mocambos palmarinos. Capturado naquele mesmo ano
pela expedição comandada por Brás da Rocha Cardoso, o menino é dado como
presente ao padre português Antonio Melo, do distrito de Porto Calvo, próximo à
região de Palmares. Nas cartas escritas pelo padre a um amigo da cidade do
Porto, em Portugal, consta que, após batizá-lo com o nome de Francisco, lhe
ensina a ler, o faz seu coroinha, mas nunca chega a tratá-lo como escravo.
Em 1670, porém, para surpresa do
próprio Antonio Melo, o adolescente de 15 anos foge para Palmares, onde assume
o nome de Zumbi. Anos depois, quando já é chefe do quilombo, Zumbi volta a
visitar o padre que o acolheu pelo menos três vezes e, sabendo da miséria em
que este se encontra, lhe leva alguns presentes.
Em 1672, é eleito Maioral e,
no ano seguinte, se torna Cabo-de-guerra após os combates que levam à
derrota da expedição de José Bezerra. Aos 22 anos, Zumbi comanda parte das
milícias palmarinas contra as investidas das tropas e Fernão Carrilho, ocasião
na qual a direção geral das operações militares está nas mãos de Ganga-Zumba.
Não existem relatos que comprovem o
seu casamento com uma mulher branca chamada Maria que o teria supostamente
acompanhado após uma incursão num engenho. Consta que deve ter tido, pelo
menos, cinco filhos e que durante uma batalha contra os homens de Manuel López
Galvão, recebe um ferimento que o deixa coxo.
A sua coragem e o seu espírito de
liderança impressionam também as autoridades coloniais. Numa crônica
encomendada pelo governador Pedro Almeida, Zumbi é descrito como negro de
singular valor, grande ânimo e constância rara cuja capacidade de ação juízo
e fortaleza aos nossos serve de embaraço e aos seus de exemplo”.[5]
Pronunciadas estas últimas palavras,
a coruja interrompe o relato. Seu rosto assume uma expressão séria e
compenetrada. Passo a passo, se aproxima do secretário e apóiando a asa
esquerda no ombro deste ordena:
- “Vamos voltar aos fatos que nos
levam ao desfecho deste capítulo da nossa história! Como estávamos dizendo, as
mudanças no interior do quilombo não procuram só consolidar a posição de Zumbi,
como preparam seus povoados para novos e mais duros enfrentamentos com as
forças coloniais.
Mas isso
não é tudo. Fortalecida a sua liderança, o novo chefe palmarino procura minar a
de Ganga-Zumba em Cacaú e recebe uma ajuda inesperada que facilita os seus
planos.
Usando como pretexto o fato de que a
concentração de negros livres em Cacaú representa um perigo para a manutenção
da ordem em suas propriedades, os senhores de engenho lançam mão de
contingentes armados para cercar os territórios entregues a Ganga-Zumba. Em
seguida, começam a realizar incursões para capturar escravos fugidos das
propriedades e, sem se deixar intimidar pelos protestos do próprio Ganga-Zumba,
começam a devastar as roças e a impedir o comércio entre Cacaú e as populações
vizinhas.
Os
quilombolas que haviam acompanhado o antigo líder se sentem ludibriados. Uns
voltam para Palmares, outros começam a contrabandear armas, a ajudar escravos
fugidos a chegarem no quilombo ou a transmitir informações. Este processo forja
novas lideranças que a história conhece pelos nomes de João Mulato, Canhongo,
Amaro e Gaspar. Ao permanecerem em Cacaú, os quatro conspiram ativamente contra
Ganga-Zumba. Sentindo-se descobertos, resolvem apressar os acontecimentos
envenenando o antigo chefe e matando seus homens de confiança.
Só
Gana-Zona, irmão de Ganga-Zumba, escapa do massacre e organiza a resistência em
Cacaú. A luta entre as duas facções degenera em carnificina e os combates
prosseguem mato adentro até que as tropas oficiais resolvem intervir.
Capturados e degolados os líderes, seus cerca de 200 seguidores são entregues
como escravos aos proprietários da região. A tentativa de esvaziar Palmares com
a criação de uma área onde parte dos antigos quilombolas poderia supostamente
viver em liberdade chega ao fim.
Diante
dos acontecimentos, os palmarinos multiplicam suas irrupções em diferentes
pontos do litoral. Grupos de até 50 homens entram de surpresa em povoados e
plantações para se apoderarem de escravos, armas e munições. Os senhores de
engenho que viajam pela capitania são freqüentemente assaltados e despojados de
todos os seus haveres. Um clima de medo e insegurança toma conta da região.
Em 16 de fevereiro de 1680, o
governador entrega ao capitão-mor, André Dias, o desafio de reprimir os
destacamentos armados do quilombo. Seguidos fracassos o obrigam a oferecer a
Zumbi o perdão e a liberdade caso este opte por depor as armas. Uma nova
seqüência de enfrentamentos e incursões marca a resposta negativa de Palmares e
sinaliza a intensificação dos conflitos.
Preocupada com a situação, a elite
local pressiona as autoridades para que organizem uma verdadeira cruzada contra
o quilombo. Em 1693, este anseio acaba se espalhando pela capitania na medida
em que os efeitos da queda do açúcar no mercado internacional são agravados
pela estiagem e pela inflação que espalham a fome entre a população. Sob a
pressão dos senhores de engenho, o fato dos palmarinos não conhecerem estes
males e manterem suas invasões leva pequenos proprietários, comerciantes,
assalariados rurais, ou seja, grande parte dos setores pobres da população
livre a verem no aniquilamento do quilombo a única possibilidade de pôr fim aos
seus sofrimentos.
Em dezembro do mesmo ano, cerca de
3.000 homens entre brancos, negros, índios e mamelucos começam a se concentrar
em Porto Calvo para a guerra contra Palmares. No início de janeiro de 1694, a
tropa comandada por Domingos Jorge Velho já soma cerca de 9.000 homens
(exército que supera em mais de 2.000 soldados aquele com o qual os holandeses
haviam conquistado Pernambuco) e inicia sua marcha em direção a Macaco”.[6]
- “As coisas estão ficando feias.
Resta saber se as dificuldades que ajudaram a destruir as expedições anteriores
vão dar mais uma mãozinha aos quilombolas...”, especulam os lábios intrigados
diante da demonstração de força colonial.
- “O problema, querido secretário, é
que, diante das mudanças que vão ocorrendo, a construção das vitórias
palmarinas do passado não garante a invencibilidade dos seus guerreiros –
comenta Nádia em tom nada animador.
As expedições que visam destruir o
quilombo após a derrota dos holandeses impõem uma guerra prolongada atenuada
apenas por breves intervalos de paz. Além dos problemas provocados pelos
seguidos deslocamentos das populações não-combatentes dos povoados ameaçados, e
da conseguinte perda de suas casas, lavouras e oficinas, a tática de guerra
que, durante anos, tem proporcionado as vitórias de Palmares começa a não ter o
efeito desejado diante das ações do poder colonial que a tornam inoperante.
Uma delas consiste na criação de
novos arraiais que ajudam a reduzir as distâncias entre os centros de
abastecimento e as tropas. Para você ter uma idéia, se até 1650, uma expedição
levava de 20 a 30 dias só para penetrar na região de Palmares, Domingos Jorge
Velho chega na Serra da Barriga em uma semana. Além de reduzir a carga a ser
levada por cada soldado, esta proximidade permite destruir sistematicamente as
plantações palmarinas das redondezas graças a destacamentos móveis que, com
base nestes povoados, têm melhores possibilidades de realizarem incursões mato
adentro.
A isso é necessário acrescentar que
Zumbi tem tamanha confiança nos recursos bélicos reunidos sob a sua liderança a
ponto de considerá-los suficientes para derrotar qualquer adversário. Os
armazéns de víveres, os cinco quilômetros de cerca, as defesas naturais, as
armas e o treinamento de seus guerreiros fariam com que, mesmo sitiadas, as
forças palmarinas pudessem resistir, esgotar seus agressores e impor-lhes novas
derrotas. O problema é que Zumbi não conta com uma vantagem técnica que agora
está ao alcance de seus inimigos: o canhão.
Contrariando as previsões
quilombolas, Domingos Jorge Velho usa os 22 dias de sitio a Macaco para
construir uma outra cerca que permita ao seu exército de se proteger dos
ataques palmarinos e cuja distância das fortificações inimigas deixa o
principal mocambo de Palmares na alça de tiro de suas 6 peças de artilharia
pesada.
Ciente da impossibilidade de vencer a
expedição usando as táticas costumeiras, Zumbi reúne o conselho de guerra que
opta pela única manobra militar capaz de oferecer resultados promissores. Na
noite entre o dia 5 e 6 de fevereiro, uma coluna de negros tenta aproveitar uma
brecha nas posições inimigas para descer da montanha e tentar desferir um
ataque pelas costas deixando os soldados coloniais entre dois fogos. Descoberta
por uma sentinela, a tentativa fracassa pela rápida resposta dos contingentes
da expedição.
Ao amanhecer, os canhões destroem as
defesas de Macaco e as tropas de Domingos Jorge Velho irrompem na cidadela
dando início a uma verdadeira carnificina. Apesar de sua resposta heróica, a
resistência palmarina é destroçada, as casas são queimadas e 510 quilombolas
são feitos prisioneiros.
Esmagado o principal reduto, a
matança se espalha pelos demais mocambos. Das mulheres e crianças poupadas para
serem vendidas como escravas, grande parte se deixa morrer de fome ou mata os
próprios filhos para não vê-los submetidos ao cativeiro.
Zumbi escapa com vida e, nos meses
seguintes, trata de reagrupar o que resta do seu exército. Em dezembro de 1694,
o pequeno contingente começa a realizar novas incursões. A notícia de que o
líder palmarino está vivo e à frente de um grupo armado chega logo aos ouvidos
do governador que não hesita em tomar medidas imediatas para detê-los.
Durante uma ação dos quilombolas para
se apoderarem de armas e munições, Antonio Soares, homem de confiança de Zumbi
é feito prisioneiro. Torturado, se recusa a falar até que seus algozes lhe
propõem trocar a garantia de vida e liberdade pela delação do esconderijo do
chefe guerreiro.
Na noite entre 19 e 20 de novembro de
1695, Soares guia as forças coloniais que tomam posição à espera do amanhecer.
Ao clarear do dia, o delator sai do mato para uma pequena clareira e começa a
chamar Zumbi que aparece pouco depois acolhendo-o sem desconfiar de nada. Em
resposta, Soares o apunhala no estômago e dá o sinal aos soldados que o
acompanham.
Gravemente ferido, o líder de
Palmares não se rende. Ajudado pelos companheiros que estão com ele, luta até a
morte contra o destacamento das tropas coloniais.
No dia seguinte, a cabeça de Zumbi é
cortada, salgada e enviada para Recife onde o governador manda que a mesma seja
espetada numa vara e colocada no lugar mais freqüentado da cidade, entre outras
coisas, para atemorizar os negros que o consideravam imortal.
Enquanto isso, a Antonio Soares são
concedidos o perdão e a liberdade. Ele vai viver longos anos e, após sua morte,
Frei Loreto Couto o incorpora na galeria dos
beneméritos da história pernambucana”.
- “Com um final deste, dá mesmo para
dizer que a luta de Palmares adiantou muito pouco...”, comenta a boca entre a
perplexidade e o desconcerto.
- “Eu não teria tanta certeza”,
rebate a coruja com firmeza.
- “Mas, Nádia, pensa bem, dos
mocambos não resta pedra sobre pedra... a derrota dos negros acaba de ser
selada por uma vara em cima da qual está espetada a cabeça de Zumbi... o
delator do líder palmarino é premiado com a liberdade e o reconhecimento
público, enfim, pior do que está é impossível!”
A ave sorri e, sem titubear, aponta a
asa para o secretário como quem está preste a disparar um tiro certeiro. Os
breves instantes de silêncio que se estabelecem entre os dois preparam o
terreno para que suas palavras sejam ouvidas e assimiladas.
- “O que as grossas lentes de seus
óculos não lhe permitem ver é justamente o sentido mais profundo desta
história. A morte de Zumbi, apresentada como uma vitória, é também a maior das
derrotas. O poder colonial consegue a cabeça do líder palmarino, mas não o que
mais queria: a sua submissão. Por isso, enquanto os funcionários da coroa vêem
nesta morte o fim da rebelião escrava, o próprio Domingos Jorge Velho não
partilha do generalizado otimismo. Sua desconfiança se confirma tempos depois,
quando novos grupos armados começam a atacar os povoados do litoral.
Comandadas por Camoanga, as ações dos
quilombolas levam o governador de Pernambuco a realizar várias expedições para
destruir as forças do novo líder. Iniciadas em janeiro de 1700, as investidas
das tropas oficiais só conseguem encontrá-lo e matá-lo quatro anos depois.
As poucas notícias que temos narram
que um certo número de combatentes palmarinos consegue fugir para a Paraíba,
onde fundam o quilombo de Cumbe, cujas forças repelem vários ataques coloniais
e conseguem resistir até 1731. Há também indícios de que, entre 1696 e 1710,
grupos de escravos fugidos continuam procurando refúgio na região de Palmares e
dando várias dores de cabeça às autoridades.
Após enfrentar mais de 30 expedições
militares ao longo de quase um século de lutas em territórios palmarinos, os
escravos fugitivos continuam reafirmando com o seu sangue a incessante busca da
liberdade em meio a uma realidade disposta a sufocar qualquer sinal de
rebelião.
Por ironia da história, no mesmo ano
em que Macaco sucumbe às forças de Domingos Jorge Velho, em Minas Gerais são
descobertas as primeiras jazidas de ouro. Desde então e até o fim do século
XVIII, a mineração vai concentrar as atenções da elite colonial. Os escravos
desembarcados no Rio de Janeiro convergem quase totalmente para esta região e a
estes se juntam os negros que os contratadores mandam comprar nas capitanias em
que a atividade econômica apresenta menor rendimento.
Com a produção do açúcar em crise,
Pernambuco perde um grande número de cativos. A diminuição destes no conjunto
da população faz com que as fugas e as incursões se tornem raras e, em geral,
bem pouco expressivas. Ao concentrar as atenções e o tráfico de escravos nas
regiões auríferas, o poder desloca também os futuros cenários da resistência
escrava. É sobre isso que vou falar no próximo capítulo ao tratar de...
2. Os
quilombos em Minas Gerais e Mato Grosso.
Anunciado
o tema desta etapa, Nádia apóia o queixo na ponta da asa. Pensativa, alterna
olhares para o alto a gestos que tornam visível o esforço de resgatar as lutas
perdidas nas entranhas do tempo. Os movimentos ritmados da cabeça ainda
sinalizam o rápido costurar de idéias e situações, quando o secretário
interrompe bruscamente o silencioso meditar da coruja:
- “No
final do capitulo anterior, você acenou à descoberta do ouro em território
brasileiro, será que daria para tratar um pouco mais deste assunto?”
- “Pode
ser um bom começo...”, comenta satisfeita a ave ao vislumbrar um possível fio
da meada. “No período que vai de 1695 ao final do século seguinte, constatamos
a existência de duas formas de exploração do ouro que se utilizam do trabalho
escravo: o faiscamento e as lavras. O primeiro termo tem sua origem nos
depósitos que se encontram nos leitos dos rios e são chamados de faisqueiros
devido ao brilho, semelhante ao de uma faísca, que o metal produz um ao ser
atingido pelos raios do sol.
Apesar da facilidade de acesso, o
ouro encontrado garimpando o fundo dos cursos de água é pouco e acaba sendo
extraído por um punhado de pessoas. Os homens livres constituem a maior parte
dos que se dedicam a esta atividade e, ao lado deles, há escravos que ora
trabalham para seus senhores, ora fazem isso por conta própria com o propósito
de garantir o seu sustento e tentar comprar a tão sonhada liberdade.
Bem mais rentáveis, as lavras exigem
maiores investimentos e um grande número de cativos na medida em que se faz
necessário cavar galerias que acompanhem os veios nas profundezas do subsolo e
transportar o minério até a superfície.
Quanto às condições de trabalho, a
busca do ouro apresenta aspectos piores em relação àqueles que encontramos nos
canaviais. Praticado na estação seca, o faiscamento impõe ao escravo que exerça
suas atividades dentro da água, suportando neste meio as baixas temperaturas do
inverno por horas a fio. Por outro lado, os negros que trabalham enfurnados sob
a terra são obrigados a extrair o minério no interior de galerias inseguras
onde o ar é quase irrespirável. Como a prioridade é o ouro e não a vida de quem
se esfola, os escravos correm sempre o risco de serem vítimas de graves doenças
pulmonares, de morrerem afogados, soterrados ou asfixiados pelos gases dos
depósitos subterrâneos.
Se isso não bastasse, na pressa de
explorar as minas, há uma ocupação extremamente desordenada e desorganizada do
território. Nas regiões que hoje pertencem ao estado de Minas Gerais, por
exemplo, no lugar de desenvolver a agricultura e garantir uma rede de
abastecimento para depois dar início à mineração, ocorre exatamente o
contrário. A escassez que marca presença em vários pontos da capitania, eleva
os preços e faz com que uma grande quantidade de pessoas se depare com sérias
dificuldades de acesso aos gêneros de primeira necessidade. Até equilibrar a
relação entre oferta e procura, a fome vai reinar soberana e elevar
significativamente o número de mortos entre a massa escrava.
Para você ter uma idéia, no início de
1700, um boi é vendido em São Paulo por cerca de 2.000 Reis, mas, pelo mesmo
animal, pagam-se até 120.000 Reis em Minas Gerais. A galinha que custa aos
paulistas não mais de 160 Reis, chega entre os mineiros a 4.000 Reis e um
alqueire de farinha de mandioca comprado entre os primeiros por 640 Reis,
precisa de pelo menos 43.000 Reis para ser adquirido pelos segundos. As mesmas
razões que tornam mais caros os gêneros de primeira necessidade acabam
inflacionando também o preço dos escravos. O cativo vendido no litoral por
85.000 Reis chega a ser negociado entre o triplo e o sêxtuplo desta quantia nas
regiões de extração de ouro.[7]
Com tamanha diferença nas
possibilidades de lucro, o novo mercado acaba atraindo grande parte dos bens
disponíveis. Se, de um lado, a procura vinda das zonas auríferas mobiliza
correntes comerciais entre pontos do país que, até então, levavam uma
existência isolada, de outro, acaba provocando a escassez e a conseqüente alta
dos preços nas demais regiões. Em São Paulo, por exemplo, entre 1690 e 1709, o
feijão registra uma alta de 200%, o açúcar de 300%, o toucinho de 500% e o
milho de 1300%.[8] Estas
distorções diminuem na medida em que o comércio incentiva o povoamento de
várias áreas do interior que se dedicam à agricultura e à pecuária e que o
tráfico de escravos volta a satisfazer as necessidades dos senhores no país
inteiro.
As dificuldades de abastecimento
crescem também na medida em que as autoridades coloniais aproveitam as novas
redes de comércio para rechear os cofres com a cobrança de pesados impostos.
Até 1750, um alqueire de sal, por exemplo, é vendido no Rio de Janeiro por 720
Reis, mas, na hora de entrar em Minas Gerais, a coroa impõe uma taxa de 750
Reis que, somada aos problemas de conservação, às dificuldades do trajeto, à
distância a ser percorrida e aos ganhos de seus vendedores, eleva o preço deste
produto a não menos de 3.600 Reis o alqueire.
O mesmo processo se faz presente na
comercialização dos instrumentos de trabalho. Cem quilos de ferro manufaturado
em ferramentas valem no Rio entre 4.800 e 6.000 Reis. Ao serem enviados ao
mercado mineiro, as taxas, que são proporcionais ao peso e não ao valor das
mercadorias, elevam em 4.500 Reis o preço deste produto que acaba sendo
adquirido por não menos de 14.000 Reis”.[9]
- “Sendo assim, a fome e o duro
trabalho devem criar entre os escravos uma situação explosiva...”
- “Quanto a isso você pode estar
certo – confirma a coruja. Em Minas Gerais, as fugas são uma constante ao longo
de todo o século XVIII. Muitos também são os casos de cativos que matam seus
senhores e a história registra a ocorrência de, pelo menos, 4 conspirações (em
1711, 1719, 1728 e 1756) descobertas pelas autoridades antes de sua realização.
Os poucos dados disponíveis nos impedem de determinar a quantidade de escravos
envolvidos, suas reais chances de vitoria e até mesmo quando podemos falar de
verdadeiras conspirações ou de ações menores delatadas por cativos que tentam
se vingar dos seus desafetos ou ganhar a confiança dos senhores.
Por sua vez, os documentos oficiais
que se referem às expedições organizadas para destruir os quilombos revelam
que, de 1711 a 1798, o território mineiro abriga nada menos do que 127 refúgios
de escravos. Entre eles há os do Campo Grande, com mais de 20 anos de
existência, ou os que são destruídos e reconstruídos seguidas vezes. É o caso,
por exemplo, dos mocambos erguidos nas proximidades da cidade de Mariana contra
os quais o poder colonial se vê obrigado a organizar seis expedições (em 1711,
1733, 1760, 1770, 1772 e 1780) sem, contudo, conseguir sua total destruição.[10]
O fato da maioria dos quilombos
abrigarem pequenas comunidades e terem sido descobertos por acaso, leva a crer
que o número dos que não são conhecidos pelas autoridades deve ser bem maior”.
- “Será que todos eles se assemelham
a Palmares?”.
- “A impossibilidade de levantar a
organização de cada quilombo - diz Nádia ao se aproximar do secretário -, não
pode nos levar ao erro de atribuir a eles as características da sociedade
palmarina. A depender do número de fugitivos, da localização geográfica e das
necessidades impostas pelas ameaças das forças coloniais, a vida nestes
esconderijos revela alguns dos aspectos que vou listar.
Nas regiões auríferas de Minas
Gerais, a alimentação dos quilombolas tem como base ora a coleta de frutas e
raízes, ora os produtos cultivados em suas roças, ou, ainda, o resultado da
caça, da pesca, da criação de animais em cativeiro, do roubo e do comércio com
as vilas mais próximas. Aqui e acolá, algumas expedições punitivas encontram
armazéns e roças já formadas. Ao que tudo indica, a agricultura parece ter sido
praticada pelos maiores quilombos na medida em que as atividades de coleta e o
banditismo, por si só, não conseguem alimentar sua população e o grande número
de pessoas dificulta o deslocamento imposto pela necessidade de defender os
mocambos das ações do aparato repressivo.
Entre as atividades econômicas mais
importantes, está a mineração clandestina que abre aos quilombolas a
possibilidade de criar redes de comércio com a população local. O ouro extraído
com o trabalho coletivo é usado para comprar os gêneros alimentícios que não
são produzidos e para garantir o abastecimento regular de armas, pólvora e
chumbo. A maior parte destas trocas não percorre os caminhos legais e, apesar
do rígido controle fiscal praticado pelas autoridades, envolve amplos setores
das povoações mais próximas dos mocambos. Estas vêem nas necessidades dos
negros fugitivos uma boa fonte de lucro na medida em que trocam o ouro por um
valor menor do que é pago no mercado oficial e cobram deles um preço bem mais
elevado pelos produtos a serem adquiridos.
A escolha do lugar e a organização do
quilombo são determinadas tanto pelas atividades econômicas desenvolvidas por
seus moradores, como pelas necessidades de defesa e de abastecimento do próprio
reduto, inclusive através de saques e assaltos. Uma localização próxima das
rotas comerciais e do escoamento do ouro, por exemplo, garante que o
aprovisionamento seja feito, prioritariamente, através da troca ilegal dos
produtos furtados com os moradores dos povoados mais próximos. É o caso, de
Vila Rica, atual Ouro Preto, onde as montanhas que cercam a cidade permitem aos
quilombolas acompanhar as movimentações que ocorrem nas ruas, escolher o melhor
momento para suas incursões ou para a compra do que precisam e voltar a se
esconder na mata sem sofrer nenhuma baixa.
O fato de não contar com defesas
naturais consistentes, obriga alguns quilombos a cavar uma série de
trincheiras, como ocorre no Campo Grande, ou a cercar a área ocupada com um
valo cheio de estrepes, como em Pedra Menina, para tentar conter o avanço dos
soldados.
Boa parte dos fracassos das
investidas oficiais pode ser atribuída às informações que chegam nos mocambos
através de pessoas que têm no comércio com os quilombolas uma importante fonte
de renda. Esta rede de contatos não age só no sentido de possibilitar o rápido
deslocamento dos negros que aí se escondem como proporciona um elo de ligação
entre estes e os escravos urbanos, facilitando o aliciamento, a fuga e algumas
tentativas de sublevação. Se isso não bastasse, muitas vezes, os guias das
expedições punitivas são africanos capturados nos ataques das tropas oficiais
que, graças ao conhecimento do terreno, despistam os soldados ou levam os
destacamentos por caminhos que favorecem as emboscadas.
Vários elementos indicam que o
deslocamento dos quilombos se impõe tanto pela necessidade de garantir a
sobrevivência de seus integrantes quanto pela impossibilidade de fazer frente
às tropas repressoras. Para alguns historiadores seriam estas as razões que
explicam o baixo número de seus moradores nas regiões auríferas. Quanto menor a
população dos mocambos, maior seria a sua mobilidade e a possibilidade real de
satisfazer as necessidades vitais de seus membros. Esta constatação é
sustentada também pelo fato de que o esgotamento das velhas jazidas e a
descoberta das novas criam um incessante fluxo migratório. Na medida em que a
maior parte do trabalho é realizada por escravos e que os próprios quilombos
têm sua sobrevivência vinculada à mineração, não é de estranhar que a extração
do ouro acabe influenciando não só o tamanho como a própria transferência dos
mocambos”.
Escritas as últimas palavras, a mão
direita apóia a caneta na mesa. Os dedos do secretário procuram um momento de
descanso enquanto os olhos percorrem as principais ponderações do relato.
Num canto da mesa, Nádia aguarda que
dos breves instantes de reflexão nasça uma nova pergunta. Sem impacientar-se, a
ave cruza as asas na altura do peito, fixa o olhar no humano que está à sua
frente e marca com as batidas da pata o rápido passar do tempo. Mais alguns
segundos e seus ouvidos começam a captar uma pergunta já esperada:
- “Com tantas fugas e quilombos
pipocando em Minas Gerais, como é que as elites conseguem manter o controle
sobre a massa escrava?”
- “A ação das autoridades coloniais e
dos próprios senhores de escravos – diz a coruja ao recostar o corpo na pilha
de livros – revela medidas que buscam tanto a prevenção das fugas, a captura
dos fugitivos e a destruição dos quilombos por eles criados, como a adesão dos
cativos às regras e possibilidades do sistema.
Em 1710, por exemplo, os escravos são
proibidos de portar armas de qualquer natureza. Quatro anos depois, novas
regras não lhes permitem circular pelas vilas ou fora delas sem a autorização
de seus donos. No dia 15 de janeiro de 1718, é vetado aos negros andar pelas
ruas após às 21.00 hs., e, em 20 de dezembro daquele ano, um bando estabelece
as penalidades para aqueles que, sabendo da existência de um quilombo, não o
denunciam às autoridades.
Boa parte destas normas é reafirmada
nos meses seguintes, muitas vezes com punições mais severas. Em 1756, por
exemplo, o escravo que for preso portando uma faca de ponta é condenado a uma pena
de cem açoites diários durante dez dias.
A necessidade do sistema se preservar
através da repressão leva à criação de um grupo voltado para a recaptura dos
fugitivos e a destruição dos quilombos: os homens-do-mato. Para o exercício
desta profissão, o indivíduo deve conhecer bem tanto a área na qual vai atuar
como as artimanhas utilizadas pelos escravos. A atividade é regulamentada por
uma série de normas que, além do mais, fixam a quantia a ser paga quando da
devolução de um fugitivo e o número de dias em que este pode ficar a serviço do
seu captor antes de ser devolvido ao
antigo dono.
No combate aos quilombos, as ordens
régias obrigam os moradores dos povoados a acatarem os recrutamentos feitos por
estas milícias e a arcarem com boa parte dos custos das expedições. Via de
regra, quando a situação exige operações de maior envergadura, além de
organizar a tropa, o governo da capitania fornece armas, munições e
profissionais especializados. As Câmaras dos povoados afetados pela ação dos
quilombolas entram com o dinheiro e os equipamentos necessários, enquanto os
proprietários devem fornecer víveres para a tropa e escravos para o transporte
das cargas.
Ao longo do século XVIII, as
autoridades mineiras concedem 467 patentes de homem-do-mato. Entre os que estão
oficialmente habilitados para a função, encontramos 3 negros escravos e 67
forros.[11]
Apesar da quantidade de cativos confiáveis representarem quase uma exceção, a
presença de 14,5% de africanos que compraram a sua liberdade ilustra como o
sistema escravista incorpora parte dos ex-escravos em defesa de sua própria
ordem.
Com estas medidas, há outras que
buscam manter a rebeldia escrava no interior de limites considerados
suportáveis. Além de permitir o trabalho nos dias de descanso e de tolerar a
mineração clandestina, o furto do ouro torna-se um fato corriqueiro. Apesar da
estrita vigilância dos feitores, os africanos reduzidos ao cativeiro usam
destes meios para comprar comidas, bebidas, fumo, peças de roupa e para
adquirir a própria liberdade. Como, de início, o preço dos escravos é
extremamente elevado, são poucos os que conseguem a carta de alforria. De
acordo com as estatísticas do Códice Costa Matoso, entre 1735 e 1749, os
africanos alforriados representam, em média, 1,2% da massa escrava. Mas a possibilidade
do cativo obter a própria liberdade ganha fôlego a partir de 1750, quando a
quantia paga por cada escravo começa a cair significativamente. Dos poucos
dados disponíveis, sabemos que, em 1786, já temos 123.048 negros ou mulatos
forros, algo como 34% da população de Minas Gerais, sendo que, em 1808, este
número sobe para 177.593, 41% do total de moradores.[12]
Se a isso acrescentamos o fato de que
parte dos alforriados se torna senhor de escravos, não é difícil entender que a
possibilidade de passar da condição de cativo à de forro-proprietário não só
dilui o potencial de reação da massa escrava, como, ao materializar nestes
indivíduos uma chance de afirmação social, passa a funcionar como um mecanismo
de preservação do próprio sistema escravista.
Quando as terras de Minas Gerais não
oferecem mais tanto ouro, a agricultura e a pecuária vão se afirmando como
atividades lucrativas. De fonte de mantimentos para as lavras, a pecuária
cresce a tal ponto que, em 1765, está em condição de vender parte de sua produção
para o Rio de Janeiro.
Em 1808, a economia escravista
mineira ganha novo impulso na medida em que, com a transferência da Corte de
Lisboa, a cidade do Rio de Janeiro se torna o centro político do império
português e, desta forma, dá origem a um mercado urbano de alto nível de renda
e em constante expansão. No mesmo período, os cafezais que se espalham nas
áreas fluminenses e paulistas do vale do Paraíba encontram no sul de Minas
Gerais uma importante fonte de abastecimento de gado bovino, cavalos, mulas e
porcos.
Em faixas menores, prosperam o
cultivo do tabaco, da cana-de-açúcar e do algodão. Este último possibilita o
surgimento de uma indústria artesanal que, em 1828, chega a produzir 7 milhões
e 400 mil metros de tecido. Grosseiro e destinado ao consumo dos pobres, o pano
de Minas vai marcar presença em grande parte do Brasil até por volta de
1880”.[13]
- “Em Mato Grosso, a história da
resistência escrava deve percorrer os mesmos caminhos...”, afirma a boca na
tentativa de chegar logo aos finalmentes.
Indiferente à pressão do secretário,
a coruja não perde a pose. Vagarosamente, esboça um mapa e traça no papel
sinais incompreensíveis. Minutos depois, o seu rosto assume um ar severo e,
balançando a cauda com movimentos que acompanham o gesticular das asas, diz:
- “Ao estudar a formação e a vida dos
quilombos os humanos erram quando imaginam que todos estes esconderijos têm as
mesmas características. Agindo assim, os bípedes da sua espécie forjam modelos
que aplicam indistintamente a todas as situações. O resultado é uma visão
mistificada da história que oculta a realidade dos fatos. Apesar das
semelhanças, uma análise atenta permite entender não só as particularidades da
situação em que os negros dão vida a novas formas de luta e resistência como
desvenda a maneira pela qual o poder colonial age para esvaziar o seu potencial
e submeter os escravos às exigências de acumulação da época”.
Recebido como um balde de água fria,
o comentário da ave ganha um tom de suave reprovação e de sábio conselho. Entre
a tentativa de corrigir o erro e o desejo de conhecer mais algum caminho da
história, os lábios oferecem uma espécie de pedido de desculpas com um “E
então...” que faz a coruja retomar o relato no ponto em que havia sido deixado:
- “Apesar das poucas informações
disponíveis, vale a pena dedicar algumas páginas à resistência escrava na
região de fronteira entre o Brasil e os domínios da coroa espanhola.
No século XVII, os bandeirantes
paulistas já conhecem parte da área que hoje pertence ao estado de Mato Grosso.
Empurrados pela busca de índios a serem escravizados, seus contingentes
palmilham os territórios inexplorados do interior e, em 1719, encontram ouro
nas margens do Rio Coxipó, um afluente do Cuiabá. Três anos mais tarde, o
precioso metal é descoberto nas águas do córrego da Prainha, nas proximidades
da colônia do Rosário. A divulgação dessas notícias atrai um grande número de
aventureiros que, num curto espaço de tempo, esgotam as lavras a céu aberto. As
dificuldades que ameaçam a sobrevivência dos povoados recém-formados levam os
mineradores a organizarem expedições que marcham rumo ao interior na esperança
de encontrar jazidas mais ricas e duradouras.
O povoado de Cuiabá vai se formando
nestas constantes idas e vindas e, apesar dos problemas de acesso e dos
enfrentamentos com os indígenas, nesta época, constitui o ponto mais avançado
da ocupação portuguesa no oeste do país.
Em 1731, garimpeiros itinerantes
encontram o precioso metal na região do Rio Guaporé onde, em 19 de março de
1752, é fundada a Vila Bela da Santíssima Trindade que, em seguida, vai abrigar
a sede da capitania de Mato Grosso.
Desta forma, a ocupação portuguesa se
apodera de terras que, pelo Tratado de Tordesilhas, pertenceriam à Espanha. Ao
adentrar-se na floresta amazônica – território de mata fechada que, por isso
mesmo, ganha o nome de Mato Grosso – os novos povoados chegam a apenas 30
léguas das missões espanholas no continente. Por se tratar de uma região
ocupada violando um acordo com Madri, Portugal sabe que a única maneira de garantir
a sua posse é atraindo um grande número de pessoas para as vilas e arraiais já
existentes.
Os primeiros escravos chegam por
volta de 1752 e seu trabalho se destina, principalmente, à mineração do ouro.
Ao lado desta atividade, os cativos são usados também na agricultura, na
pecuária e nas obras públicas. Por ser uma região destinada a conter possíveis
avanços espanhóis, o governo da capitania manda construir fortalezas e núcleos
de povoamento fortificados. Seja as guarnições militares como os edifícios das
autoridades governamentais são levantados graças ao trabalho escravo.
A grande distância do litoral e o
esgotamento das minas de ouro levam a economia mato-grossense a se dedicar à
produção extensiva de gado, à agricultura, ao plantio da cana-de-açúcar. Os
escravos são progressivamente transferidos da mineração para estas atividades e
o tamanho dos plantéis vai caindo na medida em que as ligações da capitania com
o mercado externo se tornam muito tênues. Se na época do ouro encontramos até
200 cativos a serviço de um mesmo proprietário, em 1850 este número não passa
de 30.
As mudanças que se desenrolam no
interior das senzalas não reduzem o rigor da escravidão que continua tendo na
coerção a principal forma de garantir a submissão dos negros. Ao lado dos
castigos severos, porém, encontramos mecanismos sutis de dominação. Entre eles
se destaca a concessão de um pedaço de terra de onde, além do próprio sustento,
o escravo extrai um excedente graças ao qual pode juntar recursos para comprar
a sua liberdade. Longe de ser uma expressão de bondade dos senhores, esta
possibilidade se transforma em mais um mecanismo de espoliação. Além de abrir
caminhos à dedicação, submissão e fidelidade dos cativos, a luta pela alforria
leva o interessado a ampliar as horas de trabalho, a aprofundar a sua
exploração, a conter o seu potencial de revolta e, para sair da senzala, se
obriga a devolver ao dono uma polpuda quantia em dinheiro justo quando a sua
capacidade produtiva não compensa o investimento realizado.
Como nas demais regiões, também em
Mato Grosso os cativos resistem à escravidão com pequenos enfrentamentos
diários e com a criação de quilombos. As fugas são constantes e, por viverem
numa região de fronteira, os negros são estimulados pelas autoridades
espanholas a buscar a liberdade em seus territórios. Sabendo que esta postura
não passa de uma retaliação pela ocupação de uma área que deveria pertencer aos
domínios da Espanha, os portugueses, por sua vez, procuram sublevar e atrair os
índios submetidos à exploração dos espanhóis. As evasões de ambos os lados se
tornam tão preocupantes para a manutenção da ordem que as autoridades coloniais
dos dois países chegam a formular acordos de devolução. Todavia, a
possibilidade de atravessar a fronteira para se pôr a salvo continua sendo uma
alternativa tanto para índios e negros fugitivos, como para os colonos que não
têm condições de saldar suas dívidas.
A fuga do cativeiro, porém, ainda
está longe de ser uma garantia de liberdade. De fato, além da ação das
autoridades coloniais e das dificuldades de organizar a vida na mata, os negros
penetram em áreas densamente povoadas por tribos indígenas. Se, em alguns
casos, estas se tornam aliadas dos fugitivos ao transmitir-lhes técnicas de
sobrevivência, em outros representam um perigo a mais a ser enfrentado na
medida em que vêem neles os possíveis invasores de suas terras”.
- “Com todos estes problemas, será
que vamos encontrar quilombos expressivos nesta região?”, indaga o ajudante da
coruja ao revelar uma certa decepção.
- “Com certeza!” – responde a ave
desconfiada. “De sua chegada nestas terras até a abolição, não são poucos os
agrupamentos de escravos que tratam de construir as condições materiais de sua
liberdade. Alguns mocambos vão ter uma vida tão curta que não deixam registros,
mas há pelo menos três quilombos sobre os quais temos informações mais
consistentes: Quariterê, Sepotuba e Rio Manso.
Situado nas imediações do Rio Galera,
o Quariterê é derrotado pela primeira vez em 1770 por uma expedição que parte
de Vila Bela e é comandada por João Leme do Prado. Ao falar sobre a organização
dos negros, o provedor da Fazenda Real e Intendência do Ouro, Felipe José
Nogueira Coelho, diz que este quilombo existe desde o tempo da mineração de
ouro na região do Rio Guaporé. Portanto, na hora de enfrentar as forças
coloniais, já tem cerca de três décadas de vida.
De acordo com o mesmo relato, a
população do Quariterê é composta por 79 negros e cerca de 30 índios,
governados por uma rainha de nome Thereza que apóia o exercício de suas funções
numa espécie de Parlamento. Os esforços para defender o quilombo e manter o
sigilo sobre sua localização ocupam um lugar central entre as preocupações de
seus moradores e são garantidos por uma disciplina férrea. Por isso, a depender
da gravidade de seus atos, insubordinados e desertores podem ser enforcados,
enterrados vivos ou terem as pernas quebradas.
Os quilombolas se dedicam à
agricultura (que cobre com fartura as necessidades de alimentação), ao cultivo
do fumo e do algodão, à forja dos metais para a fabricação de armas e
ferramentas. Além das atividades econômicas destinadas a garantir o próprio
sustento, os habitantes do Quariterê estabelecem contatos com os povoados
portugueses das redondezas. Graças à sua habilidade em desenvolver esta rede de
relações, o quilombo consegue se abastecer dos produtos essenciais que não
produz e recebe preciosas informações sobre as ações de seus perseguidores.
Apesar da destruição provocada em
1770, os negros que escapam ao ataque embrenhando-se na mata retornam ao antigo
mocambo. Durante a expedição de 1795, organizada com o objetivo de encontrar
novas jazidas de ouro e caçar escravos fugitivos, o Quariterê é, mais uma vez,
encontrado e destruído. Os 45 membros que compõem a tropa se impressionam não
só com a beleza natural, a fertilidade da terra, a abundância de caça e pesca,
mas também com as grandes plantações de milho, feijão, mandioca, amendoim,
batata, fumo, algodão, banana, ananás e com a criação de galinhas que garantem
aos quilombolas uma fartura fora do comum.
Nesta época, as funções de comando no
interior do quilombo são exercidas por idosos que sobreviveram à primeira
investida armada. São eles a se responsabilizar também pelos cuidados dos
doentes, pela orientação religiosa e pela reestruturação da base econômica do
mocambo.
Impressionados com a capacidade
organizativa e produtiva do Quariterê numa época em que Vila Bela, Cuiabá e os
demais povoados enfrentam constantes quebras da produção e uma fome crônica que
gera um perigoso descontentamento entre a população, as autoridades decidem
colocar a seu serviço as habilidades desenvolvidas pelos quilombolas
aprisionados durante a expedição.
É assim que, no dia 7 de outubro de
1795, os 54 presos partem para fundar a Nova Aldeia Carlota (nome escolhido em
homenagem à princesa do Brasil). Transformados à força em súditos da coroa, os
antigos quilombolas recebem mantimentos para muitos meses, uma grande variedade
de sementes, as ferramentas necessárias, além de porcos, patos e galinhas para
iniciar a criação. As autoridades esperam dar vida a um núcleo populacional
cuja prosperidade futura possa ser colocada a serviço de seus interesses, a
exemplo do que vinha acontecendo com a Vila Maria (hoje cidade de Cáceres),
para onde haviam sido levadas algumas dezenas de índios fugidos da Missão de
Chiquitos.
Mas, apesar do investimento
realizado, a aldeia Carlota não se torna um povoado dinâmico e produtivo. A
razão do fracasso deve ser procurada num elemento bem simples, mas que as
autoridades dificilmente podem compreender: a sua população não é mais de
pessoas livres e responsáveis por sua liberdade, mas de quilombolas derrotados,
chamados a agirem a serviço do rei”.
- “Nádia, se a memória não me engana,
você citou outros dois quilombos. Será que estes têm sorte melhor que a do
Quariterê? Vai falar sobre eles agora ou mais tarde?”, indaga a boca em tom
frio e distante.
- “Isso é pra já!”, exclama a coruja
com uma prontidão que ignora as expressões de desencanto presentes nos gestos e
nas palavras do secretário. “O quilombo do Sepotuba, localizado nas imediações
da Vila Maria, a um passo da fronteira com a Bolívia, é, sem dúvida, o de vida
mais longa. Ao falar sobre ele, em 1863, o presidente da província, Herculano
Ferreira Pena, lhe atribui mais de cem anos de existência. Tamanha longevidade
leva a supor que os quilombolas são muito hábeis tanto na organização de sua
defesa e na construção de relações que permitem conhecer de antemão as
investidas armadas das autoridades, como na estruturação de sua vida econômica
e política.
Bem pouco se sabe das relações que os
negros desenvolvem no interior do Sepotuba e menos ainda sobre as reais
dimensões de sua população. A única certeza é que sua maior expansão ocorre
entre 1865 e 1870 quando as tropas do Paraguai invadem o Brasil dando início ao
conflito armado entre os dois países. A guerra faz com que as autoridades se
vejam obrigadas a ampliar o recrutamento de soldados entre os homens livres da
população. Diante do alistamento obrigatório, a fuga para o quilombo passa a
ser a única alternativa viável para um grande número de pessoas.
Cientes do descontentamento provocado
pelo conflito, os quilombolas se aproveitam da situação não só para dar abrigo
aos que não querem ser recrutados como para atrair os desertores. De fato, os
ex-soldados, além de trazer armas de fogo, chegam no Sepotuba com informações
preciosas sobre as operações militares em curso e a exata localização das
tropas. Com estes elementos, os guerreiros do quilombo começam a realizar
ataques mais ousados, até mesmo contra propriedades bem próximas dos grandes
centros.
Apesar de conhecerem o medo que estas
incursões espalham por toda a região, as autoridades temem que o deslocamento
de parte dos soldados para enfrentar os negros acabe enfraquecendo suas
posições contra o inimigo externo. O máximo que conseguem fazer é armar
pequenos destacamentos não para enfrentar o quilombo, mas sim para caçar os
desertores que nele procuram abrigo. Em 1865, um destes grupos consegue
capturar um quilombola, mas, no dia seguinte, é atacado por mais de cem homens
armados de espingardas e facas que lhe impõem uma derrota humilhante.
Situação bem parecida é vivenciada
pelos quatro mocambos que formam o quilombo localizado nas cabeceiras do Rio
Manso, entre a freguesia da Chapada dos Guimarães e a Vila do Rosário. Pouco se
sabe sobre a sua origem, mas as informações de um espião de nome Manuel, um
crioulo que se faz passar por quilombola e chega a morar no Rio Manso, revelam
que, em 1868, o quilombo é habitado por 293 pessoas. Destas, 260 são homens,
maiores de 16 anos, bem armados, que, além de marcar presença nos povoados mais
próximos, contam com o apoio de informantes em Cuiabá.[14]
Terminada a guerra do Paraguai, a
Assembléia Legislativa da província cria um fundo destinado a equipar uma força
capaz de destruir o esconderijo dos negros. Os proprietários da Chapada,
constantemente ameaçados pelas incursões dos mocambeiros, participam dos custos
fornecendo os víveres necessários ao aprovisionamento dos soldados. No dia 5 de
agosto de 1871, 80 homens deixam Cuiabá sob o comando do capitão Luciano
Pereira de Souza. Durante três meses, a expedição perambula sem sucesso na área
que vai das cabeceiras dos rios Jangada e Roncador até as margens do rio Manso
seguindo pistas que se revelam falsas.
Graças à ação dos informantes e de
parte dos soldados que se solidarizam com os quilombolas, os mocambos são
sistematicamente esvaziados antes da chegada da tropa. Sem ter sequer a chance
de experimentar um enfrentamento direto, o destacamento acaba desacreditado
pelos proprietários e pelas próprias autoridades. Ao seu retorno, os soldados
levam como prisioneiros para Cuiabá apenas 7 escravos, 3 mulheres livres, e 8
crianças. Apesar dos esforços empreendidos, os quilombolas conseguem driblar os
planos que pretendem devolvê-los à escravidão”.
- “Para ser sincero, esperava algo
mais...” - comenta o secretário ao deitar a caneta nas folhas do relato. “Neste
capítulo não aparecem grandes líderes, ações heróicas, enfim nada empolgante
...”, continuam os lábios sem esconder a decepção.
Passo a passo, a ave se aproxima e
apóia suavemente a asa esquerda no ombro do humano que permanece imóvel ao seu
lado. Um sorriso maroto delata que a coruja não só não se surpreendeu com os
comentários, como era exatamente esta a reação que esperava suscitar com seu
jeito despojado de resgatar a história. Um longo suspiro... Um rápido piscar de
olhos... E...
- “Apesar do cérebro avantajado, os
bípede da sua espécie têm a estranha capacidade de enfiar o pé na jaca toda vez
que substituem o raciocínio pela empolgação, a razão pelo sentimento. Quando
isso acontece, a lenda expulsa a pesquisa histórica e a mistificação das
personagens impede a necessária analise das contradições presentes na realidade
e das possibilidades que estas abrem ao processo de luta. Desta forma, os olhos
humanos se tornam incapazes de perceber que o quotidiano enfrentamento dos que
vivem à custa do nosso suor só é possível graças à teimosa e silenciosa ação de
homens e mulheres comuns cujos nomes a história não registra.
A imensa maioria dos quilombos que
marca presença ao longo de séculos de escravidão é o resultado do esforço
diário de pessoas simples cuja liberdade, conquistada a duras penas, está quase
sempre por um fio. São elas que possibilitam a existência destas comunidades,
às vezes pequenas e aparentemente insignificantes, onde uma organização
política e militar hierárquica, apoiada numa disciplina rígida, convive com a
solidariedade e o compromisso coletivo de usar todos os meios disponíveis para
enfrentar a ordem escravista. Vitoriosos ou derrotados, grandes ou pequenos,
famosos ou desconhecidos, os quilombos são o testemunho vivo de quem aceita
correr o risco de desafiar uma ordem aparentemente invencível”.
Pronunciadas as últimas palavras,
Nádia se afasta e deixa que um silêncio de reflexão tome conta da sala. De
costas para o secretário que procura se refazer da inesperada lição, a ave, sem
pressa, reúne as idéias que, ao concluir esta parte do relato, abrem as portas
das próximas etapas. Mais alguns instantes e, sem olhar para trás, diz:
- “Num rápido balanço do século
XVIII, podemos afirmar que a irrupção da mineração do ouro cria, de um lado,
vários problemas econômicos e sociais, mas, de outro, é justamente a descoberta
do precioso metal a salvar e fortalecer o escravismo colonial num momento em
que a queda dos preços do açúcar põe em cheque os interesses dominantes. Uma
vez reequilibrado o valor pago pelos escravos e com o açúcar novamente em alta,
as plantações de cana se recuperam, mantêm uma participação substancial entre
os produtos exportados e, por volta de 1795, conhecem uma nova fase de
prosperidade.
A esta altura, também os territórios
que hoje pertencem ao Maranhão se incorporam à produção das fazendas voltadas
ao mercado externo fornecendo algodão e arroz com base no trabalho escravo. É
para estas regiões que vamos dirigir agora o nosso olhar, pois o tema do
próximo capítulo é...”
4. A
Balaiada e a insurreição dos escravos no Maranhão.
Ainda
atordoado, o secretário coça a cabeça e após uma longa espreguiçada, levanta da
mesa na tentativa de ganhar tempo. Diante do cansaço e das duras respostas da
coruja, o cérebro trama um pequeno atraso como forma de devolver à ave o doce
gostinho da vingança.
Mas enquanto as pernas ensaiam uma
saída estratégica, Nádia senta no dicionário e acompanha cada gesto do seu
ajudante. Entendida a razão de ser daquela movimentação, espeta o humano com um
“Parece criança...!” que faz os pés voltarem sobre os próprios passos.
Sem pronunciar palavra, o corpo
retoma o seu lugar. Com a caneta firme entre os dedos, um gesto discreto da mão
direita sinaliza que já está pronta para continuar os trabalhos.
- “No início desta etapa – diz a
coruja ao limpar a garganta –, é necessário esboçar a situação econômica e
política em que se dá o desenvolvimento dos quilombos nas áreas que hoje
pertencem ao Maranhão. O impulso inicial para o povoamento das regiões mais
próximas ao litoral é vinculado à fase de prosperidade da produção açucareira
nordestina, mas, por surpresa dos colonizadores, as terras arenosas e pouco
férteis não oferecem as mesmas condições favoráveis encontradas em outras
capitanias. Às dificuldades geográficas, se somam a escassez de força de
trabalho e a presença ameaçadora de grupos indígenas. O resultado final é o
surgimento de pequenas vilas cuja economia mal consegue dar conta do consumo
interno.
A própria situação dos engenhos é tão
grave que, em 21 de abril de 1688, as autoridades se vêem obrigadas a isentar
por seis anos a execução das dívidas dos proprietários e, em 1694, a Câmara de
São Luís proíbe a fabricação de doces, pois, ao controlar a comercialização do
pouco açúcar disponível, as confeitarias tornam o produto inacessível à maioria
dos habitantes.
Situação semelhante é vivida pelas
demais culturas agrícolas, entre elas o algodão que, junto aos rolos de pano
grosseiro e às drogas do sertão (cacau, cravo, salsaparrilha), são usadas como
moeda de troca até por volta de 1750.
Além dos plantios de cana e algodão,
da coleta dos produtos da floresta, da caça e da pesca, a pequena lavoura e a
pecuária são atividades importantes para a economia da região. Diante da
reduzida oferta de cativos africanos, grande parte dos trabalhos é realizada
por indígenas escravizados e por colonos pobres vindos de outras regiões do
litoral nordestino. A penúria é tamanha que a miséria marca presença constante
em amplos setores da população.
As coisas começam a mudar em 1755,
quando a Companhia de Comércio do Grão Pará e Maranhão introduz medidas
destinadas a desenvolver a lavoura”.
- “Quer dizer que a partir de agora
as coisas vão melhorar!”, prorrompem os lábios numa afirmação que faz a coruja
balançar a cabeça para negar as expectativas do secretário.
- “Resta saber para quem... – retoma
Nádia ao confirmar com a voz o que os gestos haviam anunciado. Na verdade, esta
empresa vai fornecer ferramentas, mantimentos e escravos africanos através de
créditos a serem pagos com os produtos da terra, mais especificamente com a
ampliação das lavouras de arroz e algodão destinadas ao mercado internacional.
Desta forma, a Companhia mantém por 20 anos o monopólio da navegação, do
tráfico de africanos, da venda de mercadorias trazidas da Europa e da compra
dos produtos da colônia a serem levados para o velho continente.
Pouco a pouco, a economia de
subsistência é trocada pelas lavouras de exportação, o escravo negro substitui
o indígena como força de trabalho a ser explorada, as terras destinadas à
expansão das culturas de arroz e algodão desalojam as fazendas de gado que se
instalam em novas áreas do interior. Se a economia como um todo se transforma e
passa a gerar mais riquezas, a apropriação destas continua nas mãos de um
punhado de proprietários de terras e de comerciantes.
A sobrevivência do povo simples corre
no fio da navalha. As fontes de renda para os pobres são escassas e a penúria
tem presença garantida à sua mesa. Os sobrados e demais sinais de ostentação
que aparecem em setores limitados da sociedade maranhense revelam que as elites
estão mais preocupadas em garantir luxo e conforto para si próprias do que em
desenvolver a produção”.
- “E... quanto aos escravos
africanos?!?”, pergunta o secretário com a prudência de quem busca encaixar uma
peça solta do quebra-cabeça da história.
- “O primeiro contingente desembarca
em território maranhense no final do século XVII, mas é só entre 1755 e 1777
que seu número começa a aumentar, pois, neste período, a Companhia do Grão Pará
e Maranhão traz cerca de 12.000 africanos. Com os novos investimentos, o
tráfico de escravos vai se intensificando e, de 1812 a 1820, registra a chegada
de 41.000 cativos.[15]
As fugas e a construção de quilombos
marcam presença desde os primórdios de 1700. Ainda que seja difícil estabelecer
o seu número, suas dimensões reais, formas de organização e capacidade de
resistência, os registros históricos mencionam freqüentemente a formação de
mocambos em áreas próximas das fazendas ou no interior das matas. Via de regra,
tanto para satisfazer suas necessidades, como para produzir algum excedente
destinado às trocas, os negros abrem clareiras na mata para plantar milho,
arroz, mandioca e algodão. Parte dos quilombos combina a agricultura de
subsistência com a mineração do ouro, o que proporciona maiores recursos para o
comércio com a população local.
Apesar de várias fontes usarem a
palavra rei para apontar os chefes quilombolas, os próprios relatos
nelas contidos mostram que se trata de líderes escolhidos por consenso e que
podem ser destituídos quando deixam de merecer a confiança coletiva. Há
descrições que revelam também a presença de uma estrutura militar hierárquica e
uma rede de contatos entre os próprios quilombos tanto para a troca de
informações como para o planejamento de ações conjuntas. Em alguns casos, os
dados deixam transparecer a existência de mocambos menores, localizados nas
proximidades das fazendas, que servem de postos avançados tanto para as funções
de vigilância, como para a realização de ataques e incursões armadas.
No Maranhão, as possibilidades de
fuga e sobrevivência dos africanos são ampliadas por algumas características
que não encontramos em outras regiões. A primeira delas está no fato de que,
muitas vezes, as propriedades que usam a força de trabalho escrava estão perto
de áreas incultas, despovoadas ou habitadas por populações indígenas hostis, que
escapam ao controle do estado e nas quais os quilombolas podem se sentir
relativamente seguros.
A este elemento é necessário
acrescentar a fraqueza e ineficiência que, durante décadas, caracterizaram as
forças destinadas à repressão. Os batalhões de elite do exército, em 1810,
contam com pouco mais de 2.000 soldados, a maior parte dos quais não sai da
capital. As tropas de segunda linha são mais numerosas, porém bem menos
equipadas e pouco confiáveis. Capitães-do-mato existem, mas, por sua vida
errante, sua origem social baixa e sua autonomia diante das autoridades são
vistos com extrema desconfiança. Acrescente a isso as dificuldades trazidas
pela estação das chuvas, a extensão do território, as intermináveis discussões
sobre os custos das expedições, a inexperiência dos militares, os
desentendimentos entre os comandantes das várias forças e as relações entre
livres e quilombolas e não terá dificuldades em entender porque os mocambeiros
passam longos períodos sem enfrentar as forças do estado ou conseguem derrotar
facilmente muitas missões punitivas.
Outro fator que contribui para
enfraquecer a capacidade de resposta dos senhores maranhenses é a distância que
separa a elite da população livre e pobre. O número de brancos que defendem os
interesses portugueses é extremamente reduzido sendo que grande parte destes se
concentra nas cidades e povoados do litoral.
A ampla maioria das camadas mais
baixa é de origem negra, indígena ou nordestina. Ao mesmo tempo em que um setor
deste contingente busca preservar o sistema escravista (na medida em que suas
atividades econômicas dependem dele) uma outra grande fatia mal sobrevive à
margem das fazendas e se recusa a integrar as tropas oficiais destinadas à
perseguição dos quilombolas. Submetidas às arbitrariedades, facilmente
colocadas sob suspeita pelas autoridades e com graus diferenciados de
convivência com os quilombos, estas pessoas tendem a se identificar mais com os
escravos fugidos do que com a ordem dominante.
Se as condições econômicas são muito
duras para a maior parte da população livre, os escravos encontram nestas
terras um verdadeiro inferno. A alta mortalidade e as constantes situações de
insubordinação no interior das fazendas são um indicativo do grau de penúria e
opressão a que os negros são submetidos. Não tendo nada a perder e aproveitando
da fragilidade dos aparatos repressivos, a resistência dos africanos se
manifesta freqüentemente no assassinato de feitores e fazendeiros. Diante do
medo e da falta de proteção das autoridades, não são poucos os proprietários
das regiões mais distantes do litoral que optam por estabelecer acordos de
convivência com escravos e quilombolas a fim de evitar possíveis vinganças”.
- “Bom, Nádia, agora já conhecemos um
pouco da economia do Maranhão e como os quilombos vão ganhando espaço nestas
terras. Mas o que gostaria de saber é justamente o que vai acontecer entre os
moradores dos mocambos e o povo simples...”, diz a boca ao expressar em
palavras a ânsia delatada pelo menear da cabeça.
- “Para entender a história temos que
dar um passo de cada vez!” – afirma a ave num convite a afugentar a pressa. “Ao
tratar de enxergar logo os finalmentes, você perde de vista o processo que
explica a razão de ser dos fatos e como estes amadurecem no interior das
relações e das contradições da época. Sem esta análise paciente, os
acontecimentos parecem mais obra do acaso do que o resultado de ações humanas
destinadas a manter, fazer avançar ou superar a ordem existente.
Voltando às terras maranhenses,
constatamos que a capacidade da elite controlar o descontentamento das massas
populares começa a fazer água a partir de 1819 quando, após atingir o seu auge,
em poucos meses, os preços do algodão caem pela metade. Com o fim da relativa
prosperidade trazida pela exportação deste produto, a sociedade local mergulha
numa fase de escassez de gêneros de primeira necessidade que vai se prolongar
por mais de duas décadas levando a pobreza do povo a níveis insuportáveis.
Em contrapartida, o estímulo
comercial à produção do açúcar volta a se manifestar. A passos lentos, o centro
da produção maranhense se desloca do vale do rio Itapecurú e da margem
ocidental do Parnaíba para as comarcas de Viana, Guimarães e Alcântara onde se
abrem novas frentes agrícolas. O ritmo das mudanças na base econômica, porém, está
longe de acompanhar o das demandas básicas da população que procura os meios
para garantir sua sobrevivência física.
Na medida em que a lavoura
tradicional se desagrega, a vigilância dos senhores se enfraquece. Fugas e
motins aumentam a olhos vistos e, com estes, cresce também o medo das elites
quanto à possível generalização da revolta dos negros.
No cenário
político, a Guerra de Independência inaugura no Maranhão um período de
instabilidade que vai até o início da década de 1840. Entre 1822 e 1824, 1831 e
1832, 1838 e 1840, ocorrem várias rebeliões, sublevações e outros movimentos
armados fruto das disputas pelo poder entre setores da elite da província que
levam o governo central a intervir.
Nas facções
liberais encontramos tanto agricultores pobres, vaqueiros, empregados de
fazendas e os marginalizados da população urbana, como latifundiários e
profissionais liberais que passam longe de se identificar com as chamadas
classes inferiores. Esta aliança entre grupos de interesses tão diferenciados
explica porque as idéias de igualdade social e governo do povo somem dos
documentos na medida em que os setores mais abastados impõem progressivos
distanciamentos dos movimentos sociais, seguidas aproximações ao governo
conservador e novas mediações entre os rebeldes e a legalidade para esvaziar as
lutas e restabelecer a ordem.
Em 1838, o descontentamento popular
diante do caos em que se encontra a economia maranhense e dos abusos das elites
é acirrado pelo recrutamento maciço das tropas do império. Praticado de forma
indiscriminada pelos conservadores com o objetivo de enfraquecer e perseguir os
proprietários do interior, associados aos liberais, o alistamento obrigatório
leva pra cadeia os que se recusam a integrar as forças armadas oficias.
No dia 13 de dezembro, um grupo de
sertanejos, liderados pelo vaqueiro Raimundo Gomes Vieira, ataca a prisão de
Vila da Manga para libertar vários homens aí detidos e dirige às autoridades um
proclama no qual reivindica o fim das arbitrariedades. Um mês depois, os
rebeldes recebem o apoio de Manuel Francisco dos Anjos Ferreira, o Balaio, que
já havia libertado numa ação semelhante o próprio filho, preso pelas mesmas
razões.
Durante o primeiro semestre de 1839,
o movimento se estende até o Piauí e os enfrentamentos com o poder local
atingem o ponto mais alto com a tomada da cidade de Caxias, o maior centro
comercial do sertão maranhense, em julho do mesmo ano. Em suas ações, os
balaios, nome com o qual os rebeldes passam a ser chamados, chegam até as
margens do Rio Parnaíba usando táticas que procuram desorientar as tropas
oficiais. Após os ataques, seus contingentes não enfrentam os soldados em campo
aberto, mas, divididos em pequenos grupos, fogem da perseguição percorrendo
rapidamente grandes extensões de mata para, em seguida, se reagrupar e
consolidar novamente as posições conquistadas.
As coisas começam a mudar em função
de dois processos quase simultâneos. De um lado, após ocupar Caxias e
apoderar-se de farto material bélico, os cerca de 11.000 balaios tomam
consciência de sua força. Diante das novas possibilidades de luta, as
discussões sobre a natureza e o caráter do movimento fazem aparecer as
primeiras divergências internas. O sucesso alcançado leva alguns setores a
radicalizarem suas posições e rejeitarem os antigos vínculos com o grupo
liberal, que, até então, havia sido o mentor teórico da luta.
Por outro lado, reconhecendo a
necessidade de abafar a Balaiada, a elite de Alcântara reúne lavradores,
agregados e feitores em batalhões provisórios para garantir a defesa de suas
propriedades e frear a ampliação do movimento. Ao mesmo tempo, com o apoio de
liberais e conservadores, Luís Alves de Lima, futuro Duque de Caxias, é
empossado governador da província em 7 de fevereiro de 1840.
Além de reorganizar as forças locais,
solicitar reforços em Pernambuco, regularizar o pagamento dos soldados e
introduzir uma rigorosa prestação de contas dos gastos com o abastecimento e a
manutenção das tropas, Luís Alves divide seus 8.000 homens em três colunas que
atacam os rebeldes em pontos estratégicos: Caxias, Pastos Bons, Vargem Grande,
Brejo, Icatú e Miritiba. Impedidos de realizar sua estratégia, os balaios
começam a sofrer seguidas e pesadas derrotas”.
- “E... como é que os negros entram
nesta história?”, pergunta a curiosidade ao perceber que os quilombos estão
fora deste cenário.
- “Tenha calma que já vamos tratar
disso – diz a coruja ao tranqüilizar o secretário. Ainda que seja difícil
estabelecer um vínculo direto entre os mocambos do Codó e os quilombolas que
lutam na Balaiada, liderados por Cosme Bento das Chagas, sabemos que, em
novembro de 1839, este inicia uma rebelião simultânea em várias fazendas da
região de Itapecurú Mirim.
Com a fuga dos
lavradores e aproveitando da confusão reinante, Cosme reúne cerca de 3.000
negros e estabelece uma base de operações na fazenda da Lagoa Amarela, nas
proximidades do Rio Preto, onde a população pobre e livre é mais numerosa. Ao
proclamar-se tutor da liberdade e partidário dos liberais, o líder de pouco
mais de 40 anos de idade procura se aliar aos balaios ao ver na expansão do
movimento rebelde a oportunidade de libertar do cativeiro os escravos
maranhenses.
Na fase ascendente de suas lutas, os
chefes da Balaiada não se preocupam com os negros insurretos e, apesar dos
apelos contra as arbitrariedades e dos discursos inflamados em favor da
igualdade, em nenhum momento se atrevem a reivindicar a libertação dos cativos,
mesmo porque não são poucos os liberais que vivem à custa do trabalho destes.
Mas, diante das derrotas, não resta a eles outra opção a não ser a de
radicalizar os objetivos da luta para procurar a união com os quilombolas de
Cosme. É assim que, em meados de 1840, o líder dos negros se torna a figura que
mais assusta os fazendeiros.
Diante do novo ciclo de
enfrentamentos, a estratégia de Luís Alves de Lima busca impedir a qualquer
custo a união entre homens livres e escravos e entre os próprios escravos.
Neste sentido, além de aprimorar o treinamento e a estratégia de atuação de
suas tropas, em 22 de agosto de 1840, publica um decreto de anistia. Aos
rebeldes que se entregam e passam a colaborar com as forças oficiais, o
governador não só garante o perdão de seus atos, como oferece em prêmio os bens
confiscados aos que teimam em continuar a luta. Entre os primeiros a aceitar a oferta,
encontramos o chefe balaio, Francisco Ferreira Pedrosa que, acompanhado por
1700 homens, se integra ao exército para destruir o quilombo da Lagoa Amarela.
Se isso não bastasse, em janeiro de
1841, Raimundo Gomes se afasta de Cosme e, com o apoio de um grupo de rebeldes
e de índios da aldeia São Miguel, tenta cercar a Vila do Rosário. Encurralado,
com o seu contingente faminto e sem munição, depõe as armas com cerca de 700
combatentes. A Balaiada está no fim.
Enquanto os setores populares se
retiram do campo de luta ou passam a apoiar as forças oficiais, os quilombolas
de Cosme não se entregam. Após a derrota da Lagoa Amarela, o líder negro
reorganiza o quilombo em Guadalupe, um lugar situado entre o antigo esconderijo
e a Vila do Brejo, com cerca de 200 homens, numa última tentativa de salvar a
rebelião que definha.
O problema é que agora os negros
estão sob fogo cruzado. De um lado, os soldados não cessam seus ataques e, de
outro, os rebeldes que debandaram conhecem o terreno tão bem quanto os quilombolas
e não param de persegui-los. Vendo seu grupo dizimado, Cosme leva os
remanescentes em direção ao Rio Itapecurú, além do qual seria mais fácil
encontrar abrigo seguro. Mas, em fevereiro de 1841, todo o seu contingente é
cercado e exterminado. Preso, o líder negro é condenado a morte e executado em
setembro de 1842”.
- “O que não consigo entender – diz,
espantado, o ajudante da coruja – é porque os setores marginalizados da
sociedade acabam se voltando com tanta crueldade contra os guerreiros do
quilombo que tinham sido seus aliados na tentativa de dar continuidade ao
movimento balaio...”
- “Não é difícil encontrar uma
resposta a esta indagação – responde a ave ao apóiar o queixo na ponta da asa
esquerda. Em primeiro lugar, quando analisamos os setores envolvidos na
Balaiada, percebemos que entre eles predominam, sem sombra de dúvida, os que
ocupam as camadas mais baixas da sociedade. Trata-se de gente simples do campo
e da cidade, das casas de farinha e dos canaviais, das chapadas e dos currais.
Pessoas, enfim, para as quais a anistia e a possibilidade de se apossar das
terras e dos bens dos rebeldes não é uma chance a ser desperdiçada no cenário
de miséria presente em território maranhense.
Além disso, do início ao fim do
movimento, os líderes não colocam em discussão a questão do trabalho escravo e,
apesar da radicalidade demonstrada após a conquista de Caxias, não se afastam
das teses defendidas pelo Partido Liberal. Embora permeados por reivindicações
sociais que refletem as expectativas de pobres, mestiços, caboclos e até mesmo
de indígenas, os documentos balaios não revelam qualquer identidade com a luta
dos escravos. A aliança com os negros de Cosme Bento das Chagas se dá mais em
função das derrotas amargadas do que por um aprofundamento da consciência
social de suas lideranças.
Ao mesmo tempo, com as rebeliões
escravas se espalhando por toda a província, o envolvimento dos quilombolas na
Balaiada provoca nas elites um pânico maior do que a própria Balaiada, uma vez
que este ameaça as bases do sistema escravista. Consciente da distância que
separa os balaios dos escravos rebelados, a cúpula da pirâmide social não tem
grandes dificuldades em ganhar o apoio dos primeiros para esmagar os que
atentam contra as bases do seu poder”.
- “Mas, não são todos pobres?!?”,
insiste a boca ao não se dar por vencida.
A ave sorri e, balançando a cabeça,
responde:
- “O fato da grande maioria dos
rebeldes ter condições de vida que não se afastam muito das que são impostas
aos escravos das plantações maranhenses, não significa que as pessoas livres e
marginalizadas se dispõem a lutar pelo fim da escravidão. Seus valores e suas
idéias são permeadas pela visão de mundo das elites que leva a maior parte
desta camada a aceitar o trabalho escravo como um elemento normal e natural da
sociedade daquele tempo.
Se isso não bastasse, quando as
necessidades coloniais desembarcam nestas terras grandes contingentes de negros
escravos, há um choque de interesses com as camadas que formam a base da
pirâmide social. A quase totalidade da população pobre ligada à pecuária ou que
exerce atividades de subsistência nas cidades e no campo vê a chegada dos
africanos como uma ameaça direta à manutenção de suas já precárias condições de
vida. Ao representar a perda de oportunidades de trabalho para milhares de
pessoas, a presença dos cativos reduz ainda mais as poucas possibilidades de
afirmação social e transforma os negros em concorrentes indesejados da
população marginalizada.
Se você somar todos os elementos
listados até agora, vai entender porque, apesar da miséria comum, o povo
simples continua arredio a uma aliança com os escravos.
- “Sendo assim, então devemos esperar
que, com a derrota da Balaiada e dos quilombolas de Cosme Bento das Chagas as
revoltas escravas do Maranhão chegam ao fim...”.
- “As coisas não são tão simples como
parecem. O fato de um determinado movimento ter sido derrotado não significa
que já foram superadas as contradições que lhe deram origem. Se o quilombo do
Cosme, ao ter sua ação ampliada pelas condições excepcionais criadas pela
Balaiada, impressiona pelo tamanho e pelo medo que desperta nos proprietários
de escravos, os mocambos da região entre os rios Turiaçu e Gurupí conseguem ter
uma vida bem mais longa e, no século XIX, cada um deles chega a reunir entre
200 e 600 pessoas. Sua longevidade se deve não só à distância em que se
encontram dos principais povoados como à habilidade dos negros em desenvolver
uma ampla base econômica.
Além da caça, pesca, coleta de frutas
e raízes ou da agricultura de subsistência, os quilombolas se dedicam à criação
de gado, ao plantio e à comercialização de fumo e algodão bem como à extração
do ouro. Estas atividades possibilitam a formação de uma rede de contatos e de
convivência com a população livre que supera o nível das trocas ocasionais e
chegam a estabelecer linhas de comércio regular com regatões, fazendeiros e até
negociantes de vilas como Santa Helena, Carutapera e Turiaçu. Em outras
palavras, o interesse de um segmento da população, e até da elite, em manter
relações pacíficas com estes mocambos acaba dificultando a ação repressiva, já
emperrada por questões de ordem administrativa. De fato, até 1852, parte deste
território pertence ao Pará e, apesar das autoridades maranhenses reconhecerem
a gravidade da situação criada pelos escravos fugitivos, poucas vezes conseguem
coordenar seus esforços com os governantes paraenses, o que facilita tanto a
atuação defensiva dos quilombolas, como suas incursões nas propriedades da
região.
Em 1834, as duas províncias articulam
uma expedição na área da Vila do Turiaçu. As tropas conseguem encontrar o
mocambo do Maracassumé e prender certo número de seus integrantes. O aparente
sucesso da expedição leva as autoridades a anunciar a extinção dos quilombos do
Turiaçu, mas, alguns anos depois, os documentos encontrados relatam novas
queixas sobre as ações dos negros fugidos que se abrigam na região. Em 1853,
uma tropa sai de São Luís em direção ao mesmo distrito. Os soldados matam 20
quilombolas e aprisionam outros 46. Apesar de ser grande o número dos que
conseguem fugir, as autoridades não titubeiam em proclamar sua vitória.
A notícia da existência de minas de
ouro no Maracassumé atrai vários grupos interessados na sua extração. Após as
fracassadas tentativas de assentar colonos chineses e japoneses nesta área, a
Goldmining Company arrenda por sete anos a região dos Montes Áureos e importa
da Inglaterra toda a maquinaria necessária para dar início à lavra. Por razões
ainda inexplicadas, as autoridades maranhenses
não renovam a concessão. Pouco a pouco, a região volta a ser controlada
pelos quilombolas que, de 1860 a 1870, fazem do garimpo a principal fonte de
sustentação econômica”.
- “Ao que tudo indica, os governantes
desta província não têm vida fácil em sua luta contra os quilombos...”, comenta
o secretário ao visualizar o vaivém dos enfrentamentos.
- “Não mesmo! – arremata a ave. Além
da Balaiada, há um segundo momento da história do Maranhão que deixa os
senhores de cabelos em pé. Durante a Guerra do Paraguai, a demanda de soldados
obriga todas as províncias a darem sua contribuição enviando para os campos de
batalha tanto os recrutas como parte de seus batalhões da Guarda Nacional. O
encolhimento dos contingentes locais gera uma redução drástica do policiamento
e dos mecanismos de controle da massa escrava. Estes elementos, somados aos
rumores sobre a possível abolição da escravatura, levam os quilombolas da
região de Viana a aumentarem suas incursões e ameaças.
É assim que, nos dias 8 e 9 de julho
de 1867, cerca de 400 homens do quilombo São Benedito do Céu saqueiam a fazenda
Santa Bárbara, ocupam o engenho Timbó e, após se apoderarem de suas armas e
munições, invadem Vila Nova Anadia. Tamanha ousadia deita raízes tanto no fato
de alguns negros terem fugido daqueles lugares (o que acrescenta o desejo de
vingança ao conhecimento detalhado do campo de luta), como na possibilidade de
usar as antigas relações de amizade para obter o apoio dos demais escravos e
garantir assim o sucesso do ataque.
Mas, após a vitória inicial, em 10 de
julho, chega uma tropa de 120 soldados que desaloja os quilombolas. Dois dias
depois, graças aos reforços vindos em sua ajuda, os negros são obrigados a se
retirar das matas circunstantes e vários deles são feitos prisioneiros.
As notícias se espalham como um
rastilho de pólvora. Aterrorizada, a população da vizinha São Vicente Ferrer
quer abandonar a vila e a polícia mal consegue impedir que isso aconteça.
Problemas semelhantes ocorrem em outros municípios e, diante do pânico que toma
conta das pessoas livres, os escravos de várias regiões do Maranhão se mostram
insubordinados e audaciosos em desafiar seus feitores, como se estivessem à
espera do resultado dos enfrentamentos para engrossar as fileiras dos
quilombolas.
Temendo o pior, o presidente da
província, Menezes Doria, envia uma expedição com a ordem de destruir São
Benedito do Céu ao mesmo tempo em que usa os órgãos de governo para
tranqüilizar a população ao divulgar notícias segundo as quais a situação já
teria sido controlada.
No dia 17, com as informações
extraídas dos prisioneiros, os soldados chegam no quilombo onde só encontram um
homem e um menino de dois anos. Destruídas e queimadas as casas, já sem víveres
e em meio às desavenças dos comandantes, os contingentes oficiais se retiram do
local.
Mas os enfrentamentos ainda estão
longe do fim. Em 27 de agosto, um novo contingente armado marcha em direção do
reduto quilombola. Duas semanas depois, atacada pelos mocambeiros, a expedição
sofre várias perdas, mas consegue capturar um número significativo de pessoas. Ao
sair da região após três dias de combates, podemos dizer que as forças oficiais
abandonam o terreno de operações numa situação de empate. Derrotados ao saírem
das matas, os negros deixam de empreender ações semelhantes ao mesmo tempo em
que as batidas realizadas pelos soldados não conseguem erradicar os quilombos
que nelas encontram abrigo.
Paralelamente a isso, o governo da
província envia a todas as Câmaras Municipais um questionário detalhado no qual
pede informações sobre a quantidade de escravos e de mocambos presentes no
município, a localização exata destes esconderijos, suas relações comerciais e
o armamento com o qual poderiam estar contando. Com base nos dados obtidos, dá
início a uma ação seletiva que visa o desarmamento dos escravos de várias fazendas
com o intuito de inviabilizar qualquer possibilidade de insurreição.
A relativa tranqüilidade das elites
volta a ser assegurada não só graças à repressão, mas também pelas mudanças que
começam a ganhar terreno na economia da província. O fim do tráfico com a
África e a venda dos escravos para as lavouras de café do sul do país, pouco a
pouco, transformam os cativos numa parcela bem pequena da população. De 1870 em
diante, a falta de braços para as lavouras locais começa a ser suprida por
colonos nordestinos. A seca de 1877 leva ao Maranhão um grande contingente de
cearenses que as autoridades assentam em lugares estratégicos, nas áreas mais
afastadas das fazendas já constituídas e, algumas vezes, nas de alguns
quilombos.
É o caso, por exemplo, da colônia
Prado que vai aproveitar em benefício próprio o trabalho de desmatamento e as
roças do quilombo do Limoeiro. Ou seja, a partir deste momento, as ações
armadas contra os mocambos não visam mais a destruição dos trabalhos aí
realizados. Uma vez conquistada a área, esta é entregue aos nordestinos que
fogem da seca e passa a ser defendida pelas forças de elite do exército que, ao
garantir a ocupação do território, impedem o avanço das atividades
quilombolas”.
- “Bom, Nádia, pelo visto o seu
relato caminha rumo à abolição!”, diz a boca enquanto o estalar dos dedos
parece comemorar antecipadamente o fim dos trabalhos.
- “Nada disso! – responde prontamente
a ave jogando um balde de água fria nas ilusões que assanham o corpo cansado do
secretário. Antes de enfrentar o processo histórico que leva ao fim da
escravidão em nossas terras, vamos nos deter sobre um momento das lutas
escravas na Bahia. Por isso, sossegue o seu facho porque vem aí o capítulo onde
vou analisar...
5. A Bahia do século XIX e a Revolta
dos Malês.
Firme em seu
propósito de resgatar mais um período histórico, a coruja dá um rápido passar
de olhos nas últimas páginas do relato. Emitindo sons incompreensíveis, o bico
parece costurar os dados que permitem delinear o ambiente no qual se desenvolvem
as ações da resistência escrava. Instantes depois, Nádia estufa o peito e, ao
levantar a ponta da asa, sinaliza que vai dar início ao relato.
- “Após muitos anos de marasmo – diz
ao desenhar círculos no ar –, a economia baiana começa a conhecer uma nova fase
de prosperidade entre 1788 e 1789. Os plantios de algodão e tabaco se expandem
em várias regiões, enquanto os engenhos aumentam na medida em que o preço do
açúcar volta a subir no mercado internacional.
A retomada dos investimentos nos
produtos de exportação eleva o tráfico de escravos para a província, mas a
produção de alimentos para o consumo local não acompanha o crescimento das
cidades e dos povoados”.
- “Em outras palavras, deve ter um
bocado de gente passando necessidade...”, irrompe o secretário sem fazer
cerimônias.
- “E põe bocado nisso! De acordo com
alguns estudos, em Salvador, 90% da população livre atravessa o século XIX no
limiar da pobreza. E não é pra menos. Acontece que, além da escassez de
produtos de primeira necessidade, na capital da Bahia temos uma elevadíssima
concentração de renda. Os 10% mais ricos detêm nada menos do que 67% da
riqueza, ao passo que os 60% mais pobres disputam não mais do que 6,7% da
mesma.[16]
Apesar da distância entre o topo e a
base da pirâmide social, só os miseráveis não dispõem de escravos a seu
serviço. Ter um cativo trabalhando para si é algo tão corriqueiro que constitui
uma aspiração comum a todas as pessoas livres e aos próprios alforriados.
Nas cidades e povoados do interior, a
situação não é muito diferente a não ser pelo fato de que aqui a população
escrava representa 60% do total e tende a crescer ainda mais na medida em que a
expansão agrícola demanda maiores quantidades desta força de trabalho. Após a
rebelião ocorrida no Haiti, em 1792, basta a simples presença de tamanho
contingente de cativos para elevar a preocupação dos senhores com uma possível
sublevação local sobretudo quando, na virada do século, as incursões dos negros
fugidos tornam inseguras as principais vias de comunicação.
Embora a presença dos quilombos na
Bahia coincida com a chegada dos primeiros africanos em seus territórios, é a
onda de revoltas que se espalha após 1807 a fazer com que o medo tome conta das
elites. O problema é que parte considerável dos mocambos está bem próxima dos
centros habitados e dos engenhos e sobrevive tanto graças ao comércio com
setores da população como dos ataques às fazendas e povoados das redondezas.
Entre os mocambos que se desenvolvem
nas imediações de Salvador, encontramos uma economia cada vez mais integrada à
vida da escravidão urbana. Ao mesmo tempo em que servem de refúgio ou simples
ponto de passagem dos cativos em fuga, é a partir deles que os quilombolas
entram na cidade para vender seus produtos confundindo-se com os moradores
locais.
Facilmente destruídos pelas ações
policiais, estes quilombos são invariavelmente reconstruídos pelos que escapam
da repressão e, em pouco tempo, voltam a atrair novos fugitivos.
Como já
dissemos, no início do século XIX, o número de escravos na Bahia cresce,
impulsionado pela expansão dos cultivos destinados à exportação. Entre os
africanos trazidos pelo tráfico, o grupo daqueles que as autoridades coloniais
chamam de huassás começa a criar problemas entre 1806 e 1807, período em
que é descoberta uma tentativa de conspiração por eles organizada. Ao que tudo
indica, a rede de contatos entre os huassás em Salvador e os que vivem nos
engenhos do Recôncavo havia reunido armas e munições para um levante a ser
realizado durante a festa de Corpus Christi, dia em que a vigilância seria
relaxada em função das celebrações religiosas.
Descoberta
a ameaça, as autoridades agem com extrema rapidez: prendem e executam os
líderes do movimento, açoitam publicamente dez escravos que integram o grupo,
restringem a circulação de cativos e livres, impõem o toque de recolher e
mandam vigiar as fontes públicas, tanto por estas serem um ponto de encontro
diário dos cativos como por temer um possível envenenamento da água.
Sabendo
que qualquer esperança de sucesso depende da possibilidade de vincular a
iniciativa urbana a um levante geral no campo, em abril de 1807, o governador
planeja a destruição sistemática dos quilombos que se escondem nas matas em
volta da cidade e a repressão das manifestações culturais de origem africana, como
os batuques, por suspeitar que estas fortalecem a união entre os escravos de
vários grupos étnicos e fomentam a rebelião.
Mas,
apesar dos esforços das autoridades, as fugas continuam a acontecer e o perigo
potencial dos quilombos não demora em se transformar em ameaça real. No início
de 1808, a Vila de Nazaré das Farinhas é atacada por cerca de 300 quilombolas.
A ação conta com o apoio de centenas de rebeldes em Salvador que procuram se
unir ao levante. A intervenção imediata das tropas oficiais intercepta os
revoltosos que se dirigem a Nazaré e, dois dias depois, vence os negros armados
impondo muitas baixas e punindo exemplarmente os 95 rebeldes capturados.
Apesar
do rigor das medidas impostas nos meses seguintes, em 1810, o governo da Bahia
é chamado a suprimir mais uma rebelião e, quatro anos depois, una nova grande
revolta explode a norte dos limites urbanos de Salvador.
Em fevereiro de 1814, aos gritos de «Liberdade!»
e «Morte aos Brancos!», cerca de 250 quilombolas atacam e incendeiam as
armações de pesca da baleia de Itapoã e sublevam os escravos aí empregados
matando entre 50 e 100 pessoas. Na tentativa de ampliar o levante, os
revoltosos marcham em direção do Recôncavo. No trajeto, queimam dois engenhos,
tomam armas e cavalos, eliminam quem tenta detê-los. Chamados a intervir, os
soldados interceptam a coluna quilombola em Santo Amaro de Ipitanga, impõem 50
baixas às forças rebeldes e submetem um grande número de prisioneiros a
castigos brutais. Vendo que a derrota é inevitável, parte dos negros sublevados
se enforca para não cair nas garras dos militares enquanto outros conseguem se
adentrar na mata onde dão vida a um novo mocambo.
Um mês
depois, os inquéritos que apuram os fatos de Itapoã ainda não estão concluídos
quando chegam em Salvador as notícias de um novo levante. Em 20 de março, os
quilombolas atacam um engenho nas proximidades da cidade de Cachoeira e tentam
tomar de assalto a Vila de Maragogipe. No desenrolar dos acontecimentos, os
três libertos que servem de elo de ligação entre os revoltosos são presos e a
insurreição é dissipada.
Apesar
de seu alcance limitado, estas ações são uma amostra do clima de instabilidade
e incerteza que força tanto os senhores de escravos como as autoridades
governamentais a atuarem no sentido de dificultar a organização étnica e de
impedir as tentativas de fortalecer os vínculos entre os cativos das áreas
urbanas e os mocambos construídos nas redondezas”.
- “Na
cidade de Salvador, vamos ter outras tentativas?”, cutuca a boca levada pela
curiosidade.
- “É o
que vamos ver após resgatar alguns elementos que permitem entender o ambiente
em que estas se desenvolvem – responde a coruja alimentando as expectativas. O
crescimento da economia baseado nas mercadorias destinadas à exportação começa
a dar sinais de cansaço por volta de 1820. O grande volume de açúcar que sai
dos engenhos, aliado à sua extração da beterraba nos países europeus, faz cair
os preços no mercado internacional e atinge duramente a economia baiana. Por
sua vez, o plantio do algodão, realizado a muitos quilômetros da costa encontra
no elevado custo do transporte o obstáculo que lhe impede de competir com o
produto estadunidense nas praças da Europa. Ao mesmo tempo, os donos das
plantações de fumo vêem seus lucros encolherem na medida em que as linhas
comerciais com a África são dificultadas por leis e tratados internacionais que
procuram pôr fim ao tráfico de escravos.
Se isso
não bastasse, na Bahia de 1822 e 1823, a Guerra de Independência leva à
destruição de muitos engenhos, ao desvio de recursos e à paralisação das
exportações através do porto de Salvador. Com a fuga dos comerciantes
portugueses no final dos enfrentamentos, saem de cena exatamente os atores que
alimentavam os financiamentos, forneciam escravos, mercadorias, peças de reposição
para os engenhos e compravam o açúcar para vendê-lo no mercado europeu. O vazio
deixado é agravado pela grande demanda de cativos das plantações de café que se
desenvolvem no Vale do Paraíba paulista e fluminense. O preço de um escravo
que, em 1819, era, em média, de 214.000 Reis, passa a 266.000 em 1830 e atinge
a marca dos 483.000 Reis dez anos depois. Mas, com o açúcar no topo das
exportações baianas, as tentativas de driblar as dificuldades levam a expandir
o plantio da cana nas áreas antes destinadas à produção de alimentos e a
compensar a escassez de escravos com o aprofundamento da exploração da força de
trabalho existente.[17]
A lista
das desgraças se completa com a epidemia que atinge o gado da região (reduzindo
tanto o número de animais de carga nos engenhos como a oferta de carne), a seca
que castiga o nordeste entre 1824 e 1825 e de 1830 a 1833 (elevando
sobremaneira os preços dos produtos básicos), o aumento da população e as
crescentes dificuldades dos trabalhadores livres encontrarem emprego. Some tudo
isso e não terá dificuldades em visualizar a piora das condições de vida da
imensa maioria do povo e o clima de agitação social que marca presença tanto
através de manifestações pacíficas e relativamente organizadas para pedir
aumentos salariais, como dos saques aos armazéns.
A Bahia
só não explode porque a elite reprime duramente livres e escravos, canaliza o
descontentamento popular para sentimentos antiportugueses, protege a ordem
escravista mantendo a discriminação racial e isola as lutas dos negros das que
ganham corpo nas camadas pobres da população.
É neste
clima de revolta contra a degradação das condições de vida que, em 10 de abril
de 1830, cerca de 20 africanos atacam três lojas de ferragens e conseguem
retirar delas 15 espadas e vários facões de açougueiro. Com estas armas, se
dirigem ao mercado de escravos do traficante Wenceslau Miguel de Almeida, onde
libertam os cativos que aí se encontram e matam 18 negros que se recusam a
participar do inesperado levante. O grupo rebelde ganha a adesão de uma centena
de pessoas, mas, após deixar o depósito negreiro, é atacado pelas forças
policiais que, contando com melhores armas, conseguem conter os africanos até a
chegada dos reforços. Na luta inglória de um contingente que tenta uma rebelião
espontânea com espadas e facões contra soldados treinados e munidos de armas de
fogo, os negros são cruelmente derrotados e perseguidos. Entre os presos, 50
são publicamente espancados até a morte.
Ao
atingir pela primeira vez o coração de Salvador, é possível que os rebeldes
estivessem tentando uma nova estratégia para vencer as forças do poder. A falta
de dados para um estudo mais rigoroso deste levante impede chegar a conclusões
definitivas, mas, ao que tudo indica, se, até 1830, são os ataques fora da cidade
a marcar presença constantes nas tentativas de rebelião, agora é uma vanguarda
que procura sublevar africanos recém-chegados para, com eles, tentar mobilizar
e atrair para a luta os demais escravos da capital. Apesar de contar com o
efeito surpresa e conseguir certo número de adesões, ruas e praças acabam
formando uma arapuca que se fecha em volta dos rebelados. Sem as matas para
oferecer abrigo, o centro de Salvador, onde se concentram as forças armadas
oficiais, é facilmente selado pela ação dos militares cujo maior poder de fogo
transforma em carnificina mais uma tentativa de revolta.
Sufocada
a rebelião, o governo da província endurece suas ações: mantém na prisão os
acusados de participar da revolta (mesmo quando inocentados por falta de
provas) e só permite que deixem a cadeia ao serem vendidos fora da província,
obriga os escravos a cumprir rigorosamente o toque de recolher às 9.00 hs. da
noite e aumenta as rondas que vasculham a cidade. O rigor destas medidas
consegue impedir por algum tempo ações insurrecionais significativas. Isso,
pelo menos, até a revolta que os malês preparam na sombra e cuja ameaça vai se
tornar pública no início de 1835”.
-
“Malês...?!? Que diabo é isso?!?”
A coruja
emite um longo suspiro e, recostado o corpo na pilha de livros, com expressão
séria diz:
- “Malês
é o nome pelo qual são conhecidos os africanos muçulmanos que vivem na Bahia.
Ainda que a origem desta palavra seja objeto de controvérsias, parece que ela
vem do termo imale que, na língua iorubá, significa islã ou muçulmano. É só na
Bahia que vamos encontrar a palavra malê e isso se deve justamente à maior
presença iorubá. Ao usar este nome, portanto, não falamos de uma etnia, mas sim
de qualquer escravo ou liberto de origem africana que adote o islamismo como sua
religião”.
- “E...
como é que uma fé religiosa põe em movimento uma rebelião escrava?!?”,
questiona o secretário desconfiado.
- “Como
todas as crenças, o islã tem um papel ambíguo na história da época. Na África
ocidental da primeira metade do século XIX, governantes muçulmanos se baseiam
em sua religião para promover a expansão militar e a transformam em fiel aliada
do poder a serviço de senhores tribais e até mesmo de traficantes de escravos.
Em
terras baianas, o islamismo se torna uma espécie de refúgio dos humildes, um
elemento que dá força moral, espiritual, organizativa, que mantém viva a
esperança de libertação de milhares de africanos e no qual cativos e
alforriados encontram uma de identidade coletiva.
A
dificuldade em apontar o momento exato em que o islã começa a incentivar a
rebelião não pode fazer cair no esquecimento os aspectos que, direta ou
indiretamente, contribuem para isso. O simples fato de negros africanos
manterem intactos os rituais muçulmanos representa um afastamento da própria
ordem escravista que, de acordo com a constituição de 1824, elege o catolicismo
como religião de Estado, a única com direito a cerimônias públicas. Em outras
palavras, professar o islã em grupo já é uma ilegalidade candidata a se tornar
caso de polícia.
Além de
apagar a divisão étnica usada pelos escravistas como uma das formas de
dominação, os laços religiosos construídos pelo islã facilitam a consolidação
de canais de solidariedade e encontram em Salvador as condições favoráveis à
sua ampliação. A relativa independência dos escravos urbanos (que precisam sair
às ruas para ganhar as quantias exigidas por seus senhores), a presença de
numerosos libertos e as relações que se estabelecem entre estes dois grupos
fazem com que a penetração muçulmana na comunidade escrava se realize em
diferentes níveis de profundidade e envolvimento. Enquanto o número de pessoas
que se convertem ao islamismo vai aumentando, os líderes religiosos avaliam
seus fiéis, estudam as condições políticas, orientam os discípulos mais
próximos a transformarem o compromisso com a religião numa adesão a um processo
de transformação social e começam a refletir sobre o melhor momento de fazer
eclodir a rebelião, cuja hora é mantida em segredo pelos mestres muçulmanos.
O fato
de saberem ler e escrever em árabe proporciona aos malês mais um caminho para
facilitar os contatos pessoais e repassar seus conhecimentos numa língua que
não é compreendida pelas autoridades e pelos senhores de engenho.
Conscientes de que um levante
estritamente urbano não teria futuro, na medida em que deixaria de fora o
grosso da população escrava rural e das vilas do Recôncavo, os libertos malês
cuidam de ter adeptos e lideranças no interior. A possibilidade de se deslocar
com maior facilidade e de cobrir distâncias mais longas faz com que as
atividades profissionais por eles exercidas sejam usadas tanto para o
proselitismo religioso como para ampliar a base da revolta. É assim que
mascates e artesãos de origem africana usam suas profissões para estabelecer
novos contatos, costurar relações mais sólidas e, obviamente, para encobrir o
trabalho destinado a garantir o sucesso da rebelião.
Reunidos nas esquinas de cidades e
vilarejos, nas casas ou oficinas de alforriados, os malês se encontram, trocam
idéias, rezam, tomam refeições, cumprem seus rituais e, no clima de agitação da
época, passam do imaginar um mundo melhor, a conspirar e planejar os passos que
visam destruir o poder dos brancos. Ou seja, longe de ser uma explosão
espontânea ou o fruto de uma decisão apressada, a rebelião de 1835 é o
resultado de um longo período de gestação”.
- “Bom, se as coisas estão assim,
qual é o plano e quando começa a ser colocado em prática?”, pede a boca entre a
curiosidade e a desconfiança.
- “Vários elementos apontam que a
rebelião propriamente dita começa a ser planejada em dezembro de 1834. Durante
a festa de encerramento do Ramadã, o período de jejum dos muçulmanos, a polícia
intervém e destrói o lugar que servia para as celebrações da comunidade. O fato
alimenta entre os malês um sentimento de discórdia e de frustração na medida em
que, além de ferir o seu orgulho, espalha pela cidade a idéia de fragilidade do
seu grupo. Ao temer que uma crise de confiança na causa do islã leve a
comunidade a debandar, as lideranças do movimento sinalizam a necessidade de
realizar uma ação contundente.
A data escolhida para o levante é o
domingo 25 de janeiro, festa de Nossa Senhora da Guia. Naquele final de semana,
um grande número de pessoas sairia rumo à então distante localidade do Bonfim.
Para o mesmo local se dirigiria também boa parte da polícia com o objetivo de
conter os excessos do povo durante os festejos.
Com a cidade esvaziada de homens
livres e policiais, os conspiradores poderiam deixar mais facilmente seus
esconderijos para percorrer os bairros na tentativa de ganhar a adesão dos
escravos que, na manhã do dia 25, iriam buscar água nas fontes públicas ao
romper do dia. Com as armas de fogo e as espadas compradas com o dinheiro de um
caixa comum, os membros do movimento, divididos em cinco grupos, insurgiriam em
vários pontos da cidade.
De início, parte dos rebeldes
provocaria incêndios com a finalidade de desviar a atenção da polícia e de
levar as tropas a saírem dos quartéis. Com a confusão reinando soberana e na
impossibilidade de obter reforços imediatos, os insurretos teriam vida fácil na
hora de realizar suas incursões. Feito isso, o grupo que deveria atacar o
centro de Salvador se dirigiria ao quartel de São Bento e, após vencer uma
possível resistência, se uniria a outro para dar conta da fonte de São Pedro.
Em seguida, ambos desceriam rapidamente em direção ao Taboão e à Conceição da
Praia, onde, somando forças com outros grupos, enfrentariam o quartel da
cavalaria, o mais sério baluarte a ser vencido. Libertados os escravos, trucidados
os brancos, mulatos e crioulos encontrados pelo caminho, parte dos revoltosos
se manteria nas posições conquistadas, enquanto outros convergiriam para o
Cabrito, atrás de Itapagipe, onde, com o apoio dos cativos do Recôncavo,
lançariam a batalha final para apoderar-se da cidade”.
- “Você falou em trucidar brancos,
mulatos e crioulos...?!?”
- “Exatamente, querido secretário! Em
caso de vitória, os malês prevêem uma Bahia só de africanos”.
- “Olha, eu até consigo compreender a
razão de ser do ódio em relação aos brancos. Mas pegar de jeito também crioulos
e mulatos... me parece demais...”.
- “O problema é que, por sua posição
social, estes últimos são vistos como cúmplices da dominação branca e não como
suas vítimas. Além de não participarem de nenhuma das mais de 20 revoltas
escravas que a Bahia conhece antes de 1835, os afro-brasileiros, nascidos num
ambiente em que a escravidão é tida como natural, não têm nenhum outro
referencial. Isso não quer dizer que eles sejam escravos felizes e ajustados ao
sistema, mas que, ao vivenciar a escravidão, expressam as contradições próprias
do seu grupo.
No plano cultural, por exemplo, falam
a mesma língua dos brancos, assimilam seus valores e práticas, podem constituir
mais facilmente uma família, muitas vezes têm os senhores como padrinhos de
batizado e chegam a estabelecer com estes certo grau de cumplicidade. Além
disso, mulatos, cabras e crioulos formam o grosso dos contingentes empregados
no controle e na repressão dos africanos, são encarregados de manter a ordem
nas fontes, praças e ruas de Salvador, de invadir e destruir terreiros
religiosos nos subúrbios, de perseguir escravos fugidos e combater as
rebeliões.
Apesar de terem suas próprias formas
de defesa diante do sistema, as linhas de separação do poder branco que estas
criam no interior da ordem escravista são tão tênues que, muitas vezes, nada
impede que sejam confundidas com a acomodação pura e simples. Sua resistência
quotidiana inclui atitudes de insubordinação, a lentidão na execução dos
trabalhos, a destruição de ferramentas, a simulação de doenças, pequenos furtos
e certa habilidade para aproveitar-se de sentimentos paternalistas. Por menos
conflituosas que sejam suas relações com os senhores, as fugas são freqüentes,
mas sua mobilização política se dá mais nos protestos dos pobres livres da
cidade do que nas revoltas organizadas por negros escravos e libertos,
considerados seres inferiores.
Dadas estas condições, não é difícil
entender porque a rebelião consegue apontar, no máximo, para uma aliança entre
malês e integrantes das demais etnias africanas. Sabendo que sozinhos não
conseguiriam grande coisa, a necessidade de arrastar os escravos para o
movimento insurrecional impõe que a identidade religiosa não seja o critério
que leva a somar forças. Mas, quanto ao futuro a ser construído, nem esta nem o
desejo de reverter a ordem são suficientes para dar vida a um projeto
igualitário. Ambos os elementos chegam, no máximo, a vislumbrar uma realidade
na qual os senhores de hoje são os escravos de amanhã. A escravidão, que os
próprios africanos vêem como algo natural, é mantida só que agora o topo da
pirâmide social é ocupado pelas antigas vítimas desta mesma ordem”.
- “Até agora, Nádia, você apresentou
vários elementos anteriores ao levante. Será que dá para descrever o que, de
fato, acontece naquele 25 de janeiro de 1835?”, solicitam os lábios
interessados no desfecho de uma ação tão cuidadosamente preparada.
Passo a passo, a coruja se aproxima,
pisca os olhos e, ao apontar a asa esquerda para a caneta, diz:
- “No dia que antecede o levante, as
coisas não procedem conforme o planejado. Os últimos preparativos, as
informações que correm de boca em boca e os contatos necessários para o
desfecho da rebelião não conseguem impedir que o segredo guardado por tanto
tempo chegue ao ouvido das pessoas erradas.
No início da noite de sábado, 24 de
janeiro, o liberto Domingos Fortunato transmite à mulher Gulhermina Rosa de
Souza os comentários ouvidos nas ruas. Pelas conversas dos negros, o intenso
movimento de escravos chegados de Santo Amaro, no Recôncavo, seria parte das
ações de um levante que tomaria conta de Salvador na manhã do dia seguinte.
Momentos depois, a própria Guilhermina confirma as palavras do marido ao
escutar de alguns deles que, ao toque da alvorada, os cativos que se dirigem às
fontes para apanhar água seriam convocados para uma revolta.
Querendo mostrar sua lealdade, a
mulher relata o que sabe ao seu antigo senhor, Souza Velho, e a um vizinho
branco. As pessoas que se encontram na casa deste informam o juiz de paz que,
por sua vez, denuncia os fatos ao presidente da Bahia, Francisco de Souza
Martins.
Ciente da gravidade dos
acontecimentos, Francisco toma medidas de emergência: reforça a guarda do
palácio, avisa o chefe de polícia, coloca em alerta os quartéis da cidade,
manda dobrar as rondas noturnas, envia uma fragata para vigiar o mar de
Salvador e encarrega os juizes de paz de organizarem patrulhas extras para
revistar as casas de africanos localizadas nas ruas indicadas pelas informações
dos delatores.
Por volta de uma hora da manhã, uma
destas patrulhas está preste a entrar na loja de Manuel Calafate onde um grupo
de 50 a 60 pessoas dá os últimos retoques ao plano de ataque. Recebidos à bala,
os soldados são surpreendidos pela reação inesperada dos negros que, após
escapar do cerco, se dividem em pequenos grupos. Ao se dispersar pelas ruas da
cidade, os revoltosos gritam e batem nas portas de seus parceiros convocando-os
a unir-se a eles diante da inesperada mudança de planos.
Em suas primeiras ações, parte dos
insurretos ataca a cadeia da cidade com o propósito de libertar Pacífico
Licután (um mestre muçulmano muito estimado), os demais presos africanos e se
apoderar das armas dos guardas. Apanhados entre dois fogos, são obrigados a
desistir.
Com o grupo ampliado por novas
adesões, os rebeldes tentam tomar o quartel, mas os soldados de prontidão
começam a atirar e frustram a ação cujo objetivo era justamente de conseguir o
armamento necessário para sustentar e ampliar a revolta.
Entre às 5 e às 6 da manhã, pelo
menos dois novos grupos de africanos vão às ruas, conforme o plano
originalmente estabelecido. Nas horas que seguem, enfrentamentos e ataques se
sucedem em vários pontos da cidade. A intervenção da cavalaria, porém, dispersa
os revoltosos e dá início a uma verdadeira caçada humana.
Muitos africanos conseguem se
refugiar nas matas e nos montes das redondezas. Outros tentam fugir a nado e os
que não morrem afogados são capturados e fuzilados pelos marinheiros da
fragata. O plano de repressão das elites funciona com a precisão de um relógio
e, além de derrotar os rebeldes, impede que a insurreição alcance as áreas
rurais.
Após quase dois séculos, é difícil
calcular o número de africanos que realmente saem às ruas para lutar. O
presidente da província declara que este contingente não passa de 200
indivíduos. Os estudos realizados por João José Reis apontam um número ao redor
de 600. O fato é que poucos dos cerca de 22.000 africanos que vivem em Salvador
entram nas fileiras da insurreição.[18]
Numa rápida avaliação do desenrolar
dos fatos, podemos dizer que a frustração do fator surpresa na loja de Manuel
Calafate, um dos núcleos centrais da revolta, desestrutura a tática preparada
pelos malês e desfere um golpe mortal ao levante armado. Embora os africanos
tenham reagido à investida da patrulha e tentem seguir o que havia sido
originalmente planejado, a antecipação forçada da revolta e a ação certeira da
repressão impedem a concretização de suas esperanças”.
- “Meu Deus! Que desastre!”, comenta
a boca entre a perplexidade e o desconcerto.
- “O problema é que as coisas não
param por aqui – continua a coruja em tom nada animador. Derrotada a rebelião,
os vencedores têm sede de vingança. Um clima de histeria, perseguição e
violência contra os africanos toma conta de Salvador e de seus arredores. A
menor desconfiança de que algo pode estar sendo tramado leva tanto os soldados
como boa parte da população civil a se envolverem em espancamentos e
assassinatos de negros pacíficos e inocentes.
As autoridades baianas não descansam.
Só nos dias 25 e 26 de janeiro, são presos 45 escravos e 50 libertos. A cidade
conhece uma coordenação nunca vista de todos os contingentes armados das forças
oficiais que cercam ruas inteiras para invadir as residências de africanos e
impedir qualquer tentativa de fuga. Cada quarto é cuidadosamente revistado,
seus moradores são interrogados e qualquer objeto suspeito (como amuletos,
roupas malês, papéis escritos em árabe) condena seus donos à prisão.
A polícia só respeita as casas dos senhores.
Estes, em geral, cooperam com a repressão ainda que, mais tarde, defendam seus
escravos no tribunal por temer a perda do capital neles investido. Os cativos
acobertados não escapam à delação dos vizinhos. O mesmo acontece com os
libertos. Muitos negros são denunciados por ensinarem árabe, distribuir
literatura muçulmana, ou, simplesmente, por receber amigos africanos na própria
casa. Durante todo o primeiro semestre de 1835, as batidas policiais prendem
centenas de suspeitos. Os presídios ficam tão abarrotados que seus
administradores não têm recursos para alimentar os prisioneiros.
A vida da comunidade negra é virada
pelo avesso. Qualquer elemento que lembre ou recupere a identidade africana e
suas expressões de resistência é tido como perigoso, merecedor de investigação,
nocivo à ordem social e suficiente para condenar seus portadores.
O próprio trabalho dos advogados de
defesa é prejudicado pela multidão que os cerca e insulta com palavrões e
ameaças. No clima de caça aos negros que toma conta dos julgamentos, não são
poucos os libertos indiciados que se vêem obrigados a apresentar suas defesas
por escrito porque não há quem se dispõe a enfrentar a fúria da multidão para
assumir suas causas nos tribunais. Centenas deles, presos como suspeitos, mas
contra os quais as autoridades não conseguem qualquer prova incriminadora, são
deportados para as regiões da África de onde vieram.
Ao todo, dos 16 acusados,
inicialmente condenados à morte, onze são escravos. Para as centenas de
africanos presos por sua suposta participação no levante, as penas variam em
número de açoites e anos de prisão.
Na prática, a rebelião de 1835
encerra o ciclo de revoltas africanas na Bahia. A violenta repressão desatada
pelas elites e a atuação permanente de suas forças armadas têm um papel de
primeira ordem na tarefa de intimidar possíveis rebeldes. De agora em diante, a
história só vai registrar uma suspeita infundada de conspiração malê em 1844.
Longe de representar a aceitação
pacífica da escravidão, a rebeldia escrava deixa de se expressar em tentativas
insurrecionais, mas continua marcando presença nas relações entre senhores e
cativos, na cultura e no dia-a-dia da vida africana na Bahia. Se 1835 marca o
fim de um período, a derrota dos malês não é o fim da resistência”.
- “Ainda falta muito?”, pergunta o
secretário em voz baixa.
- “O nosso breve passeio pela
história está próximo do fim - responde Nádia como quem prepara uma despedida.
Mas, para tratar dos últimos momentos das lutas escravas, precisamos delinear
com precisão os..."
6. Os tortuosos caminhos da abolição.
Forrada de papéis,
a mesa é um tapete de palavras sobre o qual o passado caminha, passo a passo,
em direção ao presente. Acompanhando o tiquetaquear do relógio de parede, Nádia
bate levemente a pata direita na mesa enquanto espera que o secretário se
decida a pegar a caneta que repousa entre as folhas brancas. Sem dar sinais de
vida, os dedos permanecem imóveis enquanto os olhos do humano percorrem as
reflexões já redigidas. De repente, o silêncio é rompido por uma pergunta que
os lábios não conseguem deter:
- “Pelo que vimos até agora, o
escravismo colonial se sustenta, prioritariamente, graças à repressão e, em
menor grau, através do envolvimento de escravos e forros na defesa de sua
ordem. Sendo assim, quais são as principais razões que levam à abolição da
escravatura no Brasil?”.
Cutucada pela curiosidade, a ave
aponta a asa para o peito do secretário e, após um rápido piscar de olhos,
responde:
- “Se tudo dependesse só da vontade
dos traficantes e dos senhores, você pode ter certeza de que a escravidão
continuaria por longos anos. O processo que leva a pôr um ponto final nesta
forma de exploração tem como base os interesses econômicos que ganham corpo
dentro e fora do Brasil, e vão moldando as condições que tornam possível a
passagem para o trabalho assalariado.
- “Você não está querendo dizer que,
mais uma vez, a lógica do lucro ganha dos sentimentos de humanidade que
deveriam desabrochar após séculos de tamanhos sofrimentos?!? Está...?”
- “Exatamente!”, afirma a coruja ao
menear a cabeça para que não reste dúvida em relação às suas palavras. “Pelos
meus estudos, as principais causas da abolição da escravatura devem ser
procuradas em cinco aspectos fundamentais:
1. Nos interesses econômicos das
principais potências capitalistas da época, com ênfase especial para a
Inglaterra;
2. Nas novas possibilidades de
investimento, perante as quais as quantias empatadas na compra e manutenção dos
escravos começam a ganhar as cores do desperdício;
3. Na política migratória dos países
europeus interessados em se livrar dos grandes excedentes de desempregados e
desocupados cujo descontentamento eleva as tensões sociais;
4. Na campanha abolicionista que passa a
contar com o apoio de setores da elite, da intelectualidade, das classes médias,
dos trabalhadores estrangeiros e de parte das forças antes destinadas à
repressão das rebeliões escravas;
5. No vertiginoso aumento das fugas dos
escravos que dá o tiro de misericórdia no combalido sistema escravista”.
- “Bom, Nádia, será que dá para ter uma idéia mais
precisa disso tudo?”.
- “Com certeza!”, atende prontamente
a coruja. “Em primeiro lugar, é necessário sublinhar que a extinção do
escravismo no Brasil depende em grande parte das pressões exercidas pela
Inglaterra. Apesar de nenhum outro país ter ganhado tanto dinheiro com o
tráfico de carne humana ao longo dos séculos XVII e XVIII, é no início de 1800
que o governo de Londres começa a desfraldar a bandeira da abolição.
Acontece que, após constituir parte
substancial dos recursos necessários para financiar a revolução industrial,
setores da burguesia inglesa começam a ver no sistema escravista um sério
empecilho à expansão dos seus negócios.
- “Mas como isso é possível se a rota
com a África permite escoar parte das manufaturas deste país?”, pergunta
intrigado o secretário.
- “O problema está exatamente aí, ou
seja, as relações criadas pelo tráfico viabilizam um mercado só para uma parte
pequena da que é agora a produção industrial britânica.
Você deve estar lembrado que, por
mais de trezentos anos, a presença européia no continente africano se limita
aos entrepostos do litoral onde é realizada a troca de cativos por bugigangas.
Na medida em que o interior da África é palmilhado por exploradores e
missionários, começam a aparecer novas e surpreendentes possibilidades de
comércio. As matérias-primas encontradas neste vaivém de gente, por exemplo,
podem ser trocadas por mais tecidos e roupas das fábricas inglesas que, na
época, já enfrentam problemas de superprodução.
Para ampliar as vendas, os negros não
só devem permanecer na África, como precisam ser estimulados a não andarem nus
ou seminus. Não é por acaso que, a partir do final do século XVIII, agentes
ingleses começam a fomentar a resistência de líderes tribais contra a ação dos
traficantes e, em nome do mesmo inferno prometido aos escravos rebeldes, os
missionários tratam de convencer os africanos a abandonarem o hábito de andarem
pelados.
Ao mesmo tempo, a campanha pelo fim
do tráfico tem mais um objetivo a ser alcançado. Neste período as terras das
Antilhas Inglesas já estão esgotadas e produzem bem menos açúcar do que o
território excepcionalmente fértil de Santo Domingo, dominado pela França. A
produção por escravo da ilha colonizada pelos franceses chega a ser cinco vezes
maior do que a de um cativo da Jamaica. Graças a este desnível, o produto de
Santo Domingo é vendido pela metade do preço praticado pela Inglaterra, o que
leva o governo de Londres a perder progressivamente o controle da
comercialização desta preciosa mercadoria.
Diante dos fatos, o governo de sua
majestade começa a agir em várias frentes. De um lado, trata de suprimir o
tráfico de escravos para a ilha francesa, de insuflar a revolta dos negros que
aí se encontram e de usar a esquadra britânica para impossibilitar a importação
de açúcar pela França. De outro, Londres começa a repassar fundos para os
setores radicais da revolução francesa a fim de incentivar uma campanha
abolicionista interna que perde sua razão de ser quando os escravos de Santo
Domingo expulsam os franceses e arruínam os canaviais.
A eliminação de um concorrente
incômodo, porém, mantém elevado o preço do açúcar e acaba desagradando
consumidores, refinadores e armadores de navios. Em função do monopólio
comercial que Londres impõe às suas colônias, o fato de pagar mais caro pelo
mesmo produto faz com que a quantidade de manufaturas embarcadas na Inglaterra
compre nas Antilhas apenas metade do açúcar que poderia adquirir no Brasil. Se
isso não bastasse, as embarcações que transportam mercadorias para o nosso país
são obrigadas a voltarem praticamente vazias em função das mesmas regras. Vendo
seus interesses diminuídos pela rigidez das normas comerciais, setores da elite
começam a alimentar um movimento que, em 1807, leva à supressão do tráfico de
escravos com as Antilhas e, em 1833, a abolição da escravidão naquelas ilhas
torna-se fato consumado.
A implementação destas mudanças leva
também à quebra do monopólio comercial mantido até então. Livres das amarras,
as companhias inglesas começam a importar diretamente do Brasil açúcar, algodão
e outros produtos tropicais a preços bem mais baixos dos que são praticados nos
domínios britânicos. Atribuindo esta concorrência desleal ao trabalho escravo,
os plantadores das colônias inglesas desencadeiam uma campanha pela abolição do
tráfico de cativos. Entre as vitórias conseguidas por este movimento, está o
fato de Londres condicionar a aceitação da independência do Brasil ao
compromisso de abolir a importação de escravos africanos. O acordo, assinado em
23 de novembro de 1826, prevê a extinção do tráfico no prazo de três anos”.
- “Sendo assim, por que a chegada de
negros da África vai cessar bem depois?”
- “O fato é que entre a conveniência
política e os interesses econômicos em jogo há um grande abismo a ser colmado -
rebate a coruja ao abrir as asas para visualizar a distância entre o dizer e o
fazer. Pra início de conversa, do lado inglês, há importantes grupos
empresariais para os quais a escravidão brasileira é ainda uma fonte
insubstituível de lucros. Cerca de 70% das manufaturas consumidas pelo sistema
escravista do Brasil tem como origem as fábricas de Manchester e Liverpool ao
passo que as instituições financeiras aqui instaladas garantem o financiamento
dos traficantes e ganham polpudas quantias com os seguros dos navios negreiros.
Some a isso o fato de que agora as
embarcações britânicas saem dos portos brasileiros abarrotadas de
matérias-primas e não terá dificuldades em perceber a falta de razões pelas
quais sua majestade deveria boicotar as autoridades locais caso estas não
acabem com a escravidão. Ironicamente, grande parte dos capitalistas que
sustentou o fim do sistema escravista nas Antilhas se apresenta em terras
brasileiras como adversária do abolicionismo.
A partir de 1845, a ampliação dos
interesses de um maior número de grupos empresariais começa a pressionar o
governo inglês para uma intervenção mais efetiva de sua marinha de guerra que,
em 1849 e 1850, chega a pôr em cheque a soberania brasileira. O seqüestro de
vários navios negreiros nos portos e nas águas territoriais do Brasil força as
elites locais a levar a sério a interrupção deste comércio desumano com a
promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, em 4 de setembro de 1850. Mesmo assim, o
desembarque de africanos no litoral brasileiro só vai se interromper seis anos
depois.
Na época dos primeiros tratados
internacionais, há outros fatores que garantem a continuidade dos negócios dos
traficantes. Na costa da África, a abolição da escravatura nas Antilhas, os
acordos que estabelecem o fim do tráfico com o Brasil e a proibição do trabalho
escravo em outros países fazem despencar o preço médio de um cativo a um quarto
da quantia paga nas décadas anteriores. Mas, do outro lado do oceano, a grande
demanda dos cafeicultores brasileiros eleva o valor médio de um africano dos
200.000 a 250.000 Reis, em 1825, para algo entre 700.000 a 990.000 Reis vinte
anos depois, diferença que acaba compensando a eventual perda total de algumas
cargas humanas e os gastos necessários para driblar as disposições legais.
Assim, os negros que desembarcam no
porto do Rio de Janeiro saltam de 25.000, em 1825, para 44.205, em 1829, e,
seis anos depois, o número de escravos que chega no litoral brasileiro já é
igual ao das épocas anteriores. [19]
Para fugir das perseguições, os desembarques são efetuados em baías pouco
freqüentadas, fora dos portos principais e mobilizam um verdadeiro exército de
pessoas. Entre elas encontramos proprietários de pequenos barcos costeiros,
guias para levar os africanos aos pontos de venda e até professores de
português que ensinam aos recém-chegados a falarem como veteranos moradores
destas terras para, em caso de fiscalização, mostrar que sua vinda é anterior a
1831, ano em que o Brasil reafirma com a Inglaterra o seu compromisso com o fim
do tráfico.
Envolvidos nestes negócios estão
também os comerciantes ingleses do Rio e de outras cidades litorâneas. Cabe a
eles organizar não só os embarques de café e demais mercadorias destinadas aos
mercados da Europa e dos Estados Unidos, como fornecer produtos britânicos a
serem trocados por escravos na África. Entre os que lucram com a continuidade
do negócio encontramos os construtores navais estadunidenses sempre pródigos em
oferecer aos traficantes navios velozes e navegadores experientes.
Se isso não bastasse, o comércio de
cativos conta também com a cooperação e a cumplicidade das autoridades
brasileiras. Além da burocracia dos escalões mais baixos, freqüentemente
recrutada entre as famílias da elite de plantadores ou a elas vinculada,
oficiais de alta patente do exército e da marinha chegam a usar as instalações
governamentais como ponto de apoio dos navios negreiros.
Em 1836, por exemplo, o Coronel
Vasques transforma a fortaleza de São João, na entrada do porto do Rio de
Janeiro, em depósito de escravos. Em sociedade com o Coronel Tota que controla
outra instalação desse tipo na Baia de Botafogo, entre 1838 e 1839, os homens
que trabalham para os dois graduados desembarcam nada menos do que 12.570
africanos sem nenhuma interferência oficial. Por volta de 1845, será o próprio
Ministro da Guerra a fazer da fortaleza de Santa Cruz, estrategicamente
localizada na entrada da Baia de Guanabara, um entreposto receptor de novos
escravos.
A coisa é tão escancarada que, entre
1846 e 1848, devem ter sido desembarcados no litoral brasileiro pelo menos
220.000 escravos.[20]
Depois de 1850, as crescentes
dificuldades para manter o tráfico com a África aumentam a disputa pelos
cativos que já estão em território nacional. As regiões do país com menor
participação nas exportações passam a fornecer esta força de trabalho para as
fazendas de café, produto cujo volume conhece seguidas altas no comércio
exterior. De acordo com algumas estimativas, da Lei Eusébio de Queiroz a 1885,
os municípios cafeeiros das províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São
Paulo absorvem cerca de 300.000 escravos vindos do norte, nordeste e, em menor
número, do sul do país”.
- “Com tanto dinheiro e tamanhos
interesses em jogo, é difícil pensar em abolir a escravidão...”, comenta a
língua perplexa.
- “Você não deixa de ter razão, mas,
a bem da verdade, quando falta menos de um século para o fim da escravidão, já
encontramos setores que começam a questionar os gastos necessários para
sustentar o escravismo colonial. Na última década do século XVIII, um economista
anônimo coloca no papel a lista das perdas e ganhos dos senhores. Pelos seus
cálculos, a manutenção de um plantel de 100 escravos, necessário para tocar um
engenho de açúcar de tamanho médio, teria um custo anual de 1.440.000 Reis.
Esta quantia inclui gastos com vestuário, eventuais curativos, uma taxa de
juros de 5% sobre o capital empatado na compra dos cativos, 2% de seguro de
vida, mas não as despesas com a alimentação, na medida em que estas são
supridas com a produção do próprio engenho. Por outro lado, a contratação, por
um salário fixo, de 100 negros alforriados custaria não mais de 1.200.000 Reis.
Diante dos números, o nosso
economista chega à conclusão de que o proprietário do engenho, além de não
desembolsar 10.000.000 de Reis para a compra dos cativos, capital que poderia
ser arranhado de uma hora pra outra em função das fugas ou das mortes, pouparia
240.000 Reis se resolvesse empregar trabalhadores assalariados.[21]
Em 1837, num escrito a favor do fim
do tráfico, Bulamarque retoma o argumento anterior e faz reparar que, ao
contrário dos escravos, uma vez acabados os trabalhos para que foram
chamados, os obreiros são despedidos e eis um objeto de grande economia; o que
não pode acontecer com os escravos, haja ou não trabalhos que ocupem a todos.[22]
A esta observação devemos acrescentar
as considerações do professor Louis Couty que, por volta de 1875, afirma serem
necessários mais feitores para vigiar 300 escravos de uma fazenda de café do
que contramestres para tomar conta de 1200 operários livres. Ou seja, quando se
trata de assalariados, o custo da vigilância é, no mínimo, reduzido a um quarto
do total gasto para fazer os cativos trabalharem.[23]
Estas ponderações somadas à ampliação
das oportunidades de investimento trazidas pela expansão da economia dão vida a
mais um elemento que pinta como racional o fim do trabalho escravo. De fato,
sobretudo na segunda metade do século XIX, a crescente presença de bancos,
companhias de seguro, estradas de ferro, fábricas de tecidos e outras empresas,
ao lado das atraentes oportunidades de ganho oferecidas pelos títulos da dívida
pública, criam chances de investimento mais seguras e rentáveis para as
quantias antes imobilizadas na compra de escravos.
É assim que grandes fazendeiros do
oeste paulista, como Antonio Prado, se associam a vários empreendimentos,
investem em aplicações financeiras, ferrovias e imóveis ao mesmo tempo em que
procuram explorar até o fim os cativos que já estão em seus plantéis. Para
eles, a questão-chave é como substituir a força de trabalho escrava que, na
época da abolição do tráfico, é ainda a coluna mestra da cafeicultura”.
- “Bom, pelo que você disse no começo
do capítulo, o jeito é colocar imigrantes em seu lugar...”, conclui a boca ao
apontar uma saída aparentemente óbvia.
- “Ainda que seja este o caminho pelo
qual envereda a história da escravidão, as coisas não são tão simples como você
imagina. Na segunda metade do século XIX, milhões de europeus deixam seus
países em função dos conflitos e das crises que atingem as nações daquele
continente. Grande parte deste contingente se dirige para os Estados Unidos e a
Argentina atrás do sonho de Fazer a América, ou seja, de poder
enriquecer com o próprio trabalho.
Os fazendeiros paulistas e de outras
regiões do país entram na disputa destes braços a partir de 1847 assinando
contratos de parceria com os imigrantes. De acordo com os textos de alguns
destes, os colonos são obrigados a servir os fazendeiros durante um período que
varia de 5 a 6 anos, prazo que pode ser prolongado na medida em que as famílias
não conseguem saldar as dívidas contraídas para pagar a viagem e a sua
manutenção no Brasil. O que deveria ser exceção, porém, costuma se tornar regra
na medida em que, sobre o valor das passagens, os fazendeiros impõem juros
extorsivos a cujo montante se soma a obrigatoriedade dos colonos efetuarem as
compras nos armazéns da fazenda que cobram preços absurdamente altos para os
gêneros de primeira necessidade.
Além disso, os ganhos dos imigrantes
são reduzidos também por outro fator. Como força de trabalho inicialmente
suplementar da escravidão, recebem a responsabilidade de cuidar dos cafezais em
formação. Na medida em que a retribuição corresponde à metade do produto
colhido e estas lavouras oferecem resultados bem inferiores em relação às que
estão sendo tratadas pelos cativos, os colonos não demoram em perceber que o
peso das dívidas e dos juros cobrados sobre elas transforma os contratos de
parceria numa forma disfarçada de escravidão branca com a vantagem de que o
investimento inicial para trazer uma família alemã ou portuguesa é bem menor do
que seria despendido na compra de um único africano.
Diante dos protestos, os fazendeiros
reduzem os processos de imigração que ganham novo alento quando, com o avanço
da campanha abolicionista, o decreto governamental publicado em 15 de março de
1879, limita a 5 anos a prestação obrigatória de serviços dos trabalhadores
estrangeiros, reduz à metade a divida inicial dos imigrantes, proíbe a cobrança
de juros sobre a mesma e elimina uma série de abusos presentes nos contratos
anteriores, como a chamada dívida solidária que rateava entre uma turma
de colonos o que uma de suas famílias não teria condições de pagar. A parceria
é substituída por salários que oscilam em torno da quantia desembolsada pelo
aluguel e a sustentação de um escravo.
A leve melhora nas perspectivas de
vida dos imigrantes não consegue atrair os contingentes esperados. Os números
oficiais revelam que a chegada de europeus no Estado de São Paulo é de 10.455
pessoas, entre 1875 e 1879; passa para 15.852, de 1880 a 1884; e atinge 16.036
nos dois anos seguintes.
A imigração só ganha consistência em
1887 quando, sob o impacto do movimento abolicionista, o Estado assume os
custos da viagem. Naquele ano, 32.112 trabalhadores estrangeiros desembarcam
nos portos brasileiros e em 1888, este contingente pula para 92.086.[24] A
frustração das expectativas de enriquecimento e os sacrifícios impostos nos
cafezais, levam muitas famílias de colonos a deixarem as fazendas do oeste
paulista uma vez cumprido o prazo fixado no contrato e a se transferirem para a
capital do Estado onde as indústrias também precisam de sua força de trabalho.
O fluxo ininterrupto de imigrantes assim criado garante a empresários da
indústria e cafeicultores tanto a força de trabalho necessária a seus
empreendimentos como a formação de um exército de desempregados que fixa os
salários nos baixos patamares por eles almejados.
Estas mudanças não só reduzem a
porcentagem de escravos presente na população urbana e rural como introduzem elementos
que contribuem para acelerar a desagregação da ordem escravista. Além de
fortalecer a presença das formas de trabalho assalariado no interior da
sociedade, os imigrantes ajudam a disseminar idéias contrárias à escravidão.
Durante a campanha da abolição, os mascates italianos, por exemplo, penetram
nos mais longínquos recantos do estado de São Paulo e, ao atravessar as
plantações, entram em contato com os escravos das fazendas, contam-lhes o que
está acontecendo em outras regiões e passam a estimular a fuga e a rebelião
contra os senhores. Do mesmo modo, milhares de outros imigrantes anônimos das
mais diversas profissões aderem em formas e graus diferenciados ao movimento
que pede o fim da escravatura”.
- “Isso significa que já estamos a um
passo da liberdade!”, afirmam os lábios categóricos.
- “Eu, no seu lugar, não teria tanta
certeza”, retoma a ave em tom de dúvida.
- “Como assim?!?”, insiste o
secretário ao não se dar por vencido.
- “Acontece que o fim da escravidão
não implica no fim da exploração do trabalho humano e, muito menos, na
realização da liberdade, já que o lucro, e não a vida dos seres da sua espécie,
continuam ocupando o centro da organização da sociedade. O que sua cabecinha
precisa entender é que o próprio movimento abolicionista traz em seu bojo as
condições que permitem à elite a reorganização de suas forças nos centros de
poder e de governo da sociedade”.
- “Daria para ser um pouco mais
clara?”
- “Olhe, em grandes linhas, podemos
dizer que o abolicionismo passa por duas fases bem distintas sendo que na
primeira, até 1885, ganha ênfase a atuação parlamentar.
A bem da verdade, este movimento
começa a ganhar corpo por volta de 1860. As pressões dos setores sociais
contrários à escravatura se somam a acontecimentos internacionais que levam as
classes dominantes a reconhecerem a escravidão como um regime transitório,
diante de cujo fim se faz necessário preparar a substituição de um trabalho
compulsório por outro que continue garantindo os lucros almejados.
A resposta aos abolicionistas é dada
pelo gabinete conservador chefiado por José Maria da Silva Paranhos, Visconde
do Rio Branco, que, em 28 de setembro de 1871, aprova a que conhecemos como a
Lei do Ventre Livre. Por esta norma, os filhos das mulheres escravas são
considerados livres e os senhores de suas respectivas mães obrigados a cuidar
deles até a idade de 8 anos. Passado esse tempo, o proprietário pode optar
entre entregar a criança à tutela do Estado (recebendo deste uma indenização de
600.000 Reis em títulos públicos) ou utilizar-se dos serviços do menor até que
complete os 21 anos. Além disso, a lei cria um fundo de emancipação pelo qual
cada província pode libertar tantos escravos quantos correspondem à quota de
recursos anualmente disponível para este fim e formaliza a possibilidade do
cativo reunir dinheiro suficiente para comprar sua própria liberdade, ainda que
subordinando a legalização da alforria ao consentimento do senhor.
A aprovação deste conjunto de normas
corta o impulso e o impacto das idéias abolicionistas e, na prática, garante
que a escravidão possa subsistir por, pelo menos, mais duas gerações. De fato,
os senhores se dedicam a fraudar os dispositivos legais não só dando tratamento
de escravo às crianças nascidas em suas fazendas, como vendendo-as nestas condições
antes que se cumpra o tempo no qual seriam obrigados a libertá-las. Isso sem
contar aqueles proprietários que preferem arrancar os recém-nascidos das mães
escravas para colocá-los na roda dos expostos, onde são recolhidas as crianças
rejeitadas. Nas instituições de caridade que mantêm este serviço, não são
poucas as enfermeiras que registram falsamente o falecimento dos pequenos a
elas confiados para, em seguida, vender estas criaturas como escravas enquanto
as mães das mesmas são alugadas pelo proprietário como amas-de-leite. Não por
acaso, após a aprovação da Lei do Ventre Livre, o número dos negros
recém-nascidos que são deixados na roda dos expostos do Rio de Janeiro chega a
triplicar e a dos pardos a dobrar.
Quanto ao Fundo de Emancipação, as
primeiras quotas são distribuídas em maio de 1876 e, até agosto de 1885, só
24.165 cativos (2,1% do total de 1.333.228 pessoas que compõem a população
escrava oficialmente registrada como tal) são libertados graças aos recursos
disponibilizados por este meio.[25]
Em 1880, o fracasso da lei em produzir resultados emancipatórios consistentes
dá novo alento aos abolicionistas, liderados por intelectuais que representam
os interesses da nascente burguesia empresarial brasileira. Personalidades como
Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Bernardino de Campos e Quintino Bocaiúva tentam
fazer progredir a via parlamentar da abolição através de propostas tímidas que
poderiam ser aceitas pelos escravocratas.
Obedecendo a esta tática de
viabilizar mudanças graduais e ordenadas, em 26 e agosto de 1880, Joaquim
Nabuco apresenta um projeto de lei pelo qual a escravidão terminaria em 1890 e,
naquele ano, os senhores que ainda possuíssem escravos receberiam uma
indenização pela libertação compulsória dos mesmos. A preocupação com a manutenção
da ordem é tamanha que o artigo 36 deste projeto estabelece punições para os
cativos que usam a força como meio para sair do cativeiro.
Apesar das concessões feitas aos
escravistas, o projeto é bloqueado e nem chega a ser discutido no plenário. Em
1881, Nabuco não consegue se reeleger e viaja para Londres onde escreve O
Abolicionismo. Desta que é considerada uma obra-prima da propaganda
política emerge de forma clara um aspecto central do movimento: o escravo não
deve passar de um figurante mudo do processo que leva ao fim da escravatura.
Para este representante da elite intelectual, a emancipação há de ser feita,
entre nós, por uma lei que tenha os requisitos externos e internos de todas as
outras. É assim, no Parlamento e não nas fazendas ou quilombos do interior, nem
nas ruas e praças da cidade, que se há de ganhar, ou perder, a causa da
liberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o desencadeamento de ódios
acalentados, só pode ser prejudicial ao lado que tem por si o direito, a
justiça, a procuração dos oprimidos e os votos da humanidade toda”.[26]
- “Isso quer dizer que os escravos
não devem passar de espectadores?”
- “Sim, querido secretário. Apesar de
O Abolicionismo defender o fim imediato da escravidão sem direito à
indenização, a voz das vítimas deve ser a dos abolicionistas que, na busca do
progresso da nação, arrogam para si o mandato de representantes deste setor dos
oprimidos. Nada de convulsões, agitações em praça pública ou, muito menos, de
agressões contra os senhores. O fim do sistema escravista e a passagem para a
nova ordem deve se dar pela conciliação dos interesses da nação que, neste
caso, se confundem com os dos setores progressistas das elites. Apesar disso, o
projeto da facção moderada do abolicionismo esbarra na oposição sistemática dos
grupos mais conservadores que apontam a lei de 1871 como caminho único para o
fim da escravidão no Brasil.
As coisas parecem avançar em 15 de
julho de 1884, dia em que na Câmara dos Deputados é apresentado o projeto do
presidente do Conselho de Ministros, Manuel Pinto de Souza Dantas, que concede
a emancipação, sem indenização, aos escravos com 60 ou mais anos e aos demais
mediante pagamento de uma quantia proporcional à idade legalmente declarada.
Esta proposta atinge profundamente os fazendeiros das províncias cafeeiras nas
quais se encontram cerca de 500.000 escravos importados entre 1831 e 1851. O
problema é que a lei de 7 de novembro de 1831 declara que todos os africanos
entrados no Brasil a partir desta data são considerados livres. Para driblar
esta norma, os proprietários haviam registrado os escravos com idade maior à
real para comprovar que sua chegada ocorrera antes da proibição. Isso significa
que um grande número de cativos nas lavouras de café seria libertado sem
indenização ou em troca de quantias bem inferiores.
Pressionada pelos latifundiários, a
Câmara rejeita o projeto, vota uma moção de desconfiança e derruba o gabinete
chefiado por Dantas. Nas eleições realizadas em dezembro de 1884, Dantas é
reconduzido à liderança do governo, mas os escravocratas tornam a derrubá-lo em
maio de 1885 e, em 28 de setembro do mesmo ano, aprovam a Lei N.º 3.270 que,
assumindo o nome de seus autores, passa a ser conhecida como Lei
Saraiva-Cotegipe. De acordo com esta norma, os sexagenários são obrigados a
prestarem serviços gratuitos a seus senhores por mais três anos a título de
indenização pela alforria ao passo que o valor a ser recebido do Fundo de
Emancipação é aumentado em cerca de 20%, o que, em alguns casos, corresponde ao
dobro ou ao triplo dos preços de mercado pagos pelos cativos das faixas etárias
a serem beneficiadas. Enfim, um verdadeiro negócio da China”.
Terminadas as últimas palavras, a
coruja deixa que o silêncio estimule a curiosidade e leve o cérebro humano do
secretário a formular novas perguntas. Passo a passo, a ave percorre a breve
distância que separa a pilha de livros das folhas do relato. Com as asas
cruzadas atrás das costas, seus olhos piscam no ritmo instigante de uma espera
onde cada instante carrega o peso das reflexões apresentadas. Mais alguns
momentos e a boca cumpre religiosamente as expectativas nela depositadas.
- “E os escravos... ficam esperando
sentados?!?”, questiona a língua entre a dúvida e a indagação.
- “Como já vimos – diz a ave com a
asa direita apontada para as folhas do relato -, não há momento na história da
escravidão brasileira em que suas vítimas não viabilizem alguma forma de luta
ou de resistência. Por isso, basta afrouxar um pouco as medidas repressivas
para que os cativos possam desferir o golpe que desintegra o já combalido
sistema escravista. Em 16 de outubro de 1886, as pressões abolicionistas levam
a Câmara a aprovar a lei que proíbe o uso do açoite para punir os cativos. Após
promulgar esta norma que bane um dos mais temidos instrumentos de tortura, os
escravos começam a fugir em massa das fazendas.
Preocupados com a possibilidade de
perderem suas colheitas, os cafeicultores se apressam a chegar a acordos pelos
quais a concessão da liberdade é vinculada à obrigação da massa escrava
trabalhar como assalariada nas mesmas propriedades por um período que varia
entre 2 e 5 anos. Trata-se de oferecer concessões imediatas não para fazer
reviver o sistema escravista, mas para garantir a progressiva substituição da
força de trabalho empregada nas lavouras.
Esta atitude divide os escravocratas,
e, diante do crescimento do abolicionismo radical, centenas de fazendeiros se
erguem em defesa da propriedade de seus escravos. Em São Paulo, Rio de Janeiro
e Minas Gerais, bandos de capangas organizados em milícias privadas agridem e
assassinam até mesmo advogados, juizes, promotores e delegados de polícia
empenhados em fazer cumprir a lei contra os interesses dos fazendeiros.
Militantes das organizações abolicionistas radicais são caçados como feras e
massacrados. Escravos processados por crimes contra seus senhores são
arrancados das mãos do Estado e linchados em praça pública. Os representantes
do sistema escravista jogam assim suas últimas cartas para restabelecer o clima
de terror que, durante séculos, havia garantido a sua dominação.
Estes esforços, porém, são destinados
ao fracasso na medida em que as ações dos escravos contam agora com o apoio de
grupos crescentes de homens livres dos mais variados setores da sociedade. Se,
nas décadas anteriores, a ação destes havia condenado ao fracasso inúmeras
rebeliões escravas, as mudanças que se afirmam na sociedade alimentam as
facções radicais do abolicionismo cujas organizações secretas se articulam para
estimular as fugas e dar abrigo aos cativos que abandonam as fazendas.
Na província do Rio de Janeiro, por
exemplo, o grupo dirigido por Luís Carlos Lacerda apóia os levantes dos
escravos e chega a invadir uma senzala para libertar um negro que está sendo
torturado.
Em São Paulo, Antonio Bento dá vida a
uma ramificada e complexa organização subversiva cujos núcleos se irradiam da
capital em direção ao interior incitando as fugas e providenciando as condições
necessárias para que os cativos cheguem em segurança até o quilombo do
Jabaquara, nas proximidades da cidade de Santos. Não são os caifazes – como são
chamados os membros deste grupo – a dar início ao movimento das fugas em massa,
mas o impulsionam a tal ponto que, em 1887-1888, este ganha proporções
devastadoras para a organização produtiva das fazendas cafeeiras”.
- “Caifazes...?!? Homens livres
organizando um quilombo...?!? Confesso que agora fiquei confuso...”, reconhece
o secretário sem disfarçar a cara de espanto.
- “Não assuste por tão pouco - diz
Nádia ao abrir as asas. Vou tratar disso tudo na última etapa da nossa viagem
pela historia ao resgatar a passagem...
7. Do quilombo do Jabaquara à
liberdade das elites.
Ainda sem entender
o que as entranhas do tempo lhes reservam, os neurônios humanos buscam nas
folhas do relato os elementos que ajudam a compreender um desfecho tão
inesperado.
Atenta a cada detalhe, a coruja
observa os movimentos do seu ajudante. Paciente, a ave recosta o corpo na pilha
de livros e apóia a ponta da asa na cintura com a disposição de quem não se
importa em dar tempo ao tempo. Mais alguns instantes, e os lábios começam a
expressar as dúvidas anunciadas no final do capítulo anterior:
- “Sabe, Nádia, o que não consigo
entender é porque as lutas das senzalas parecem sair das mãos dos cativos justo
no âmbito de um movimento que vem facilitar o que sempre quiseram: o fim de sua
condição de escravos...”
- “Se você prestou atenção aos
elementos apresentados até agora – diz a coruja ao piscar os olhos – não vai
ter dificuldade em visualizar a resposta à sua indagação. Em primeiro lugar,
nós já vimos como vários fatores presentes na realidade da época impedem que o
projeto dos escravos não vá além da conquista de espaços de liberdade. Via de
regra, a construção dos quilombos e a preparação das revoltas não estão
orientadas para a reorganização geral da sociedade, mas sim para a
sobrevivência dos escravos fugitivos ou rebelados em condições que tendem a
reproduzir as relações presentes em terras africanas.
Some a isso o fato de que, no final
do século XIX, o número de cativos no Brasil é bem menor do que nas décadas
anteriores e representa uma porcentagem cada vez mais reduzida da população e
não terá dificuldades em entender porque são os abolicionistas a direcionar e
controlar as derradeiras manifestações da rebeldia escrava.[27] A
aceitação desta situação por parte dos fugitivos tem como base o fato destes
perceberem que a atuação dos setores radicais do abolicionismo não tolhe sua
ação autônoma, ao contrário, a deseja e cria as condições para que esta possa
se realizar de forma ampliada.
O nome do grupo vem de Caifáz, o sumo
sacerdote dos judeus que condena Cristo sob a alegação de que é melhor um homem
só morrer pelo povo. Para Antonio Bento, assim como os escravocratas têm a seu
serviço os capitães do mato, que são os judeus, os abolicionistas contam com os
caifazes, os soberanos sacrificadores dos judeus. Ou seja, diante do necessário
enfrentamento para pôr fim à escravidão, este setor do abolicionismo atribui a
si próprio o papel de lutar para neutralizar parte dos instrumentos de
repressão necessários à manutenção do sistema escravista.
A atuação deste movimento conhece
duas fases bem distintas. Na primeira, que vai de 1882 a 1887, predominam os
procedimentos legais que incluem a coleta de fundos para a compra das cartas de
alforria e a defesa dos escravos nos tribunais. Neste momento, os seus
integrantes dão vida a uma rede de contatos com os abolicionistas de outros
centros urbanos, e até mesmo de outras províncias, que vai criando as condições
para proteger e transferir os escravos fugitivos. Além de São Paulo, desde
1882, a cidade de Santos se torna uma das bases mais importantes do movimento.
A necessidade de abrigar um número
crescente de pessoas leva à construção do quilombo do Jabaquara. Erguido em
lugar de difícil acesso, próximo a Vila Matias, em Santos, este esconderijo
mantém boas relações com o quilombo do Pai Felipe, que, desde 1850, ocupa uma
área próxima. Os vínculos que se estabelecem entre ambos ajudam os fundadores
do Jabaquara a aprimorar suas ações clandestinas, a se familiarizar com as
trilhas da Serra do Mar, a defender seu reduto da repressão policial, a
conhecer a arte de sobreviver na selva e a maneira de estabelecer relações com
a população local. Estes elementos são de extrema importância para a atuação
dos caifazes que, no auge das fugas, chegam a reunir no Jabaquara cerca de
10.000 escravos.
Neste período, o grupo conta com
pessoas das mais variadas profissões entre as quais se destacam os cocheiros e
os ferroviários encarregados de transportar os cativos em fuga e de garantir a
transmissão de mensagens entre as regiões onde atuam os núcleos do movimento.
De início, o recrutamento de novos membros é controlado por Antonio Bento, mas,
com a expansão do grupo, esta tarefa passa a ser realizada pelos próprios
caifazes que se encarregam de selecionar e instruir os novos adeptos.
A necessidade de escapar das garras
da repressão leva este setor do abolicionismo a desenvolver uma linguagem
codificada na qual, por exemplo, as palavras fardo e rolo de fumo
são usadas para designar os escravos fugitivos. A organização clandestina
atinge tal grau de sofisticação que muitos integrantes só se conhecem depois da
abolição.
Alguns elementos levam a supor que o
sistema de sinais e códigos, bem como a habilidade em manter o sigilo ao costurar
ações e relações tenham sua origem na maçonaria, da qual participa o próprio
Antonio Bento, e que, em alguns casos, fornece ajuda financeira ao movimento.
Seja como for, o fato é que os caifazes vão construindo uma rede de contatos,
tanto visível como secreta, que possibilita a ampliação do trabalho de
aliciamento e subversão.
De 1887 em diante, os membros do
grupo cessam a prática de atividades legais e, graças aos vínculos já
estabelecidos, se dedicam a estimular as fugas nas fazendas do interior. A
penetração nos cafezais e nas senzalas ocorre tanto de dia como de noite, ora
através de disfarces ora graças às profissões exercidas pelos membros de cada
núcleo. É assim que mascates, cobradores, mendigos, viajantes ou até mesmo
profissionais contratados para realizar um determinado trabalho dedicam seus
esforços a planejar incentivar e realizar as fugas de grandes contingentes de
escravos. Cidades do interior como Taubaté, São José dos Campos, Jacareí, Mogí
das Cruzes, Guaratinguetá, Caçapava, Santa Isabel, Pindamonhangaba, Piracicaba,
Jundiaí, Itatiba, Capivarí, Tatuí, Itú, Campinas, Atibaia, Serra Negra,
Itapira, Mogí-Mirim, Amparo, Botucatú, Rio Claro, Limeira e Araras se tornam
centros a partir dos quais se desenvolve e se articula a ação do movimento.
Em resposta, as milícias privadas dos
cafeicultores mudam de tática. No lugar de capturar os fugitivos para
devolvê-los ao cativeiro, os capitães do mato atacam os negros em fuga e não
hesitam em matá-los para servirem de exemplo aos demais. Durante algum tempo,
sua atuação conta com o apoio das forças policiais e dos corpos do exército,
mas, ao longo de 1887, se multiplicam os contingentes armados oficiais que se
recusam a aprisionar escravos em fuga e a prender os caifazes. O fim da
escravidão passa a ser só uma questão de tempo”.
- “O que não entendo é como estes
abolicionistas conseguem organizar a sobrevivência do quilombo do Jabaquara
diante do crescente número de fugitivos que nele se abrigam”.
- “Simples!”, responde Nádia sem
titubear. “Transformando o antigo escravo em trabalhador assalariado a ser
empregado tanto no campo, como na cidade. As fugas em massa deixam propriedades
inteiras completamente desprovidas de força de trabalho. A escassez chega a tal
ponto que a alguns fazendeiros não resta outra escolha a não ser a de aceitar
de volta os fugitivos ou os ex-cativos de outros proprietários como
assalariados que vão prestar serviços em troca de, em média, 400 Reis diários.
Por sua vez, a introdução de parte deste contingente no trabalho urbano se deve
ao aumento da procura de força de trabalho em Santos e ao empenho dos caifazes
em vencer a resistência dos contratadores. Isso faz com que a desagregação da
ordem escravista não leve ao descontrole das relações sociais, mas seja apenas
um momento de transição no qual se afirmam novas relações de trabalho e se
fortalecem os setores progressistas da elite que vêem no assalariamento o passo
necessário para garantir os seus interesses.
Neste sentido, a organização da vida
no Jabaquara contraria as práticas típicas dos demais quilombos. Não são os
negros a decidirem suas próprias formas de sobrevivência econômica, os
processos de consulta pelos quais são tomadas as decisões internas e nem mesmo
os instrumentos necessários para defender este espaço de liberdade. O quilombo
do Jabaquara é organizado para eles pelos caifazes e nele a liberdade passa
pela aceitação de regras que acabam fortalecendo a passagem para a nova ordem
social.
Ao introduzir os fugitivos nesta nova
ótica, os membros da organização de Antonio Bento garantem não só a
sobrevivência imediata do quilombo, como contribuem para fazer avançar a
transição do agonizante sistema escravista para a nova realidade na qual os
setores progressistas da elite rural vão continuar segurando as rédeas do poder”.
- “Como isso se torna possível?”,
perguntam os lábios intrigados.
- “Ao mesmo tempo em que as fugas
aceleram o fim da escravidão pelas vias de fato, fazem progredir a passos
largos a ação dos abolicionistas moderados para os quais a ordem deveria ser
mantida seja durante como após o processo que levaria as autoridades a decretar
o fim da escravatura. Para este grupo, as fugas e as posições radicais dos
caifazes se, de um lado, ameaçam a transição pacífica para o trabalho
assalariado, de outro, aceleram os tempos da abolição pela via parlamentar.
Extinta
na maior parte das províncias do Brasil, em 1888, a escravidão atinge pouco
mais de 600.000 pessoas, cerca de 4% da população do país. O seu atestado de
óbito é assinado pela Princesa Isabel, em 13 de maio do mesmo ano, no Paço
Imperial do Rio de Janeiro. A lei N.º 3.353 que declara o fim da escravidão e
revoga todas as disposições em contrário é assinada com uma pena de ouro doada
por subscrição pública e passa a ser lembrada como Lei Áurea.
Graças a
este gesto, a Princesa não ratifica apenas um fato praticamente já consumado.
Ao colocar a extinção da escravatura sob a égide do abolicionismo legalista e
parlamentar salva a dominação de classe dos setores progressistas da elite
rural e veicula entre os dominados a idéia de que sua liberdade não depende das
lutas, mas sim das concessões que, das esferas do poder, são oferecidas às
camadas que estão na base da pirâmide social.
Para os
parlamentares e para os senhores, a questão da escravidão está oficialmente
encerrada. Os ex-escravos são abandonados à própria sorte e, daí em diante, em
condições extremamente difíceis, cabe a eles transformar a emancipação legal em
realidade material. A lei que garante o status jurídico de homens e mulheres
livres não fornece meio algum para tornar efetiva esta liberdade. A igualdade
jurídica, por si só, não melhora suas condições de vida e nem elimina os
preconceitos alimentados durante mais de três séculos de escravidão”.
- “Se as
coisas estão assim, qual o destino dos escravocratas e dos demais
cafeicultores?”.
- “Para
uma parte significativa dos primeiros – responde a coruja ao abrir as asas num
gesto que sublinha o triste fim dos que perdem o trem da história – a abolição
traz a ruína imediata ou o começo dela. Despojados dos escravos e sem direito à
indenização, os escravistas endividados, ou cujas terras têm baixa fertilidade,
não dispõem de recursos para pagar salários ou continuar produzindo de forma
competitiva e acabam não resistindo aos novos tempos. Seus descendentes diretos
conseguem manter o status vendendo os bens dos antepassados ou procurando
abrigo à sombra clientelista do Estado.
Por
outro lado, nas áreas mais produtivas do oeste paulista, onde as terras são
muito férteis, os fazendeiros que se adaptam às mudanças passam a integrar o
núcleo dos mais influentes proprietários rurais do regime capitalista que, aos
poucos, vai ganhando consistência. Os anos imediatamente anteriores ao fim da
escravidão já haviam despertado entre eles acirradas discussões sobre o tipo, a
quantidade e o custo da força de trabalho a ser empregada para substituir os
escravos. Os debates que ainda ocorrem no Parlamento e na imprensa revelam o
desejo de uma abundante quantidade de braços a serem pagos com salários
baratos, pois a eventual escassez de trabalhadores elevaria os ordenados
afetando os lucros e a expansão da cafeicultura.
Após a
promulgação da Lei Áurea, a grande maioria das pessoas consideradas desocupadas
(algo em torno de 3 milhões), sobrevive graças a uma agricultura de
subsistência, tem relações extremamente precárias com o mercado e aceita de
forma eventual, como diarista, a execução de tarefas no interior das fazendas.
Por ter como ganhar o pão de cada dia, não se submete à disciplina de trabalho
exaustiva e embrutecedora que os latifundiários impõem a quem vai substituir a
labuta dos escravos.
Quanto
aos negros livres, os fazendeiros sabem que não podem extrair deles o mesmo
rendimento dos tempos da escravatura e temem que, diante de qualquer cobrança
excessiva, estes podem vir a abandonar as fazendas ou fazer exigências
exorbitantes para continuar nelas a fim de garantir as colheitas. Ao contrário
do que é seguidamente alardeado pela propaganda da época, a recusa dos
proprietários em lançar mão da força de trabalho local (na qual se incluem
negros livres, posseiros, caboclos e caipiras) como fator determinante da
produção assalariada, não se deve à inferioridade racial ou a uma suposta
propensão inata à vadiagem, mas sim às dificuldades objetivas de garantir a submissão
a uma disciplina que assegure a sua exploração.
Nestas
condições, o café, produto de ponta do oeste paulista e da economia nacional,
precisa de uma grande massa de lavradores desocupados e sem recursos para
assegurar que os lucros possam jorrar abundantes nos cofres dos fazendeiros.
Com os nordestinos expulsos pela seca e pela estagnação econômica das regiões
em que vivem sendo atraídos para os seringais da Amazônia ou os cacauais da
Bahia, o jeito é recorrer à maciça imigração de trabalhadores europeus cujos
contratos se encarregam de garantir as condições almejadas pelos
cafeicultores”.
- “E...
o que vai ser dos ex-escravos que, na época da abolição, já estão trabalhando
como assalariados?”
- “A
cafeicultura decadente do Vale do Paraíba enfrenta os três anos anteriores à
abolição substituindo o escravo pelo posseiro, em geral, um ex-escravos vindo
de outras fazendas. Mas, na medida em que os cafezais vão se extinguindo, parte
dos negros se torna pequeno sitiante, parceiro e jornaleiro nas lavouras de
subsistência ou no trato do gado.
No oeste
paulista, os anos após a abolição conhecem um progressivo e constante processo
de afastamento do ex-escravo das fazendas de café e de substituição de sua
força de trabalho pela dos europeus recém-chegados. Parte deste contingente das
antigas senzalas se dirige ao Vale do Paraíba onde a decadência econômica da
região não abre boas perspectivas de futuro. Uma outra fatia considerável do
mesmo se soma aos negros da capital e das demais cidades da província já condenados
a uma situação de subemprego ou de marginalidade.
Os dados mostram que não há espaço
para eles na indústria e nos serviços urbanos. Em 1893, por exemplo, os
trabalhadores estrangeiros representam pouco mais da metade dos moradores da
cidade de São Paulo. Apesar disso, ocupam 84% das vagas oferecidas pela
indústria, 81% das disponibilizadas pelo setor de transportes e 72% das que
existem no comércio. Oito anos depois, os imigrantes constituem 92% do
proletariado industrial de São Paulo. Nas demais províncias do sul e sudeste,
as coisas não são muito diferentes.[28]
A
procura de trabalhadores nacionais por parte de empresários urbanos e
fazendeiros paulistas vai começar por volta de 1920. A partir deste momento, os
interesses patronais começam a incentivar a migração interna. Antes desprezada
por pertencer a uma raça considerada incapaz de concorrer com os brancos
europeus, esta força de trabalho aumenta sua presença nos centros mais
dinâmicos da economia e passa ser vista como uma necessidade imperiosa para
manter elevados os lucros capitalistas. Neste processo que, em épocas e formas
diferentes, busca criar e alimentar contingentes consideráveis de
desempregados, a discriminação racial coloca os negros numa posição de
inferioridade no interior desta grande reserva de força de trabalho. Ao
classificar as pessoas segundo a cor da pele e ao justificar um tratamento
discriminatório com base numa suposta inferioridade a ela vinculada, o
capitalismo consegue tornar disponível para o trabalho um número elevado de
pessoas que podem ser contratadas em troca de salários ainda mais baixos”.
- “Bom
isso é lá no passado, porque agora...”
-
“Continua do mesmo jeitinho!”, intervém Nádia com voz firme e clara. “A verdade
nua e crua é que os afro-descendentes ainda enfrentam grandes barreiras para
ter acesso ao mercado de trabalho e, quando conseguem, os salários são, em
média, bem menores daqueles pagos aos brancos. De acordo com os dados
divulgados pelo Fórum de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher e pelo
Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, em 2003, o ordenado médio de um
homem branco é de R$ 931,00, ao passo que o de um negro é de R$ 428,30. Entre
as mulheres as coisas não são diferentes. Enquanto as brancas ganham, em média,
R$ 554,60, as negras não passam de R$ 279,70.[29]
Trocado
em miúdos, o ordenado de um branquelo equivale a mais de dois salários pagos a
um negro enquanto uma mulher negra precisa trabalhar, em média, três meses e
dez dias para ter a mesma renda do primeiro e quase dois meses para igualar a
de uma mulher branca. Para bom entendedor... meia palavra basta”.
De
queixo caído, o secretário termina de escrever as últimas palavras do relato.
Enquanto os olhos se detêm nos números recém-revelados, o cérebro parece
percorrer a história apresentada nas páginas anteriores. Um misto de amargura e
inconformidade toma conta da sala ao constatar que, apesar destas situações se
desenrolarem sob os nossos olhos, freqüentemente, a indiferença acaba sendo a
única resposta. Tudo parece tão natural que somos incapazes de perceber os
interesses em jogo e a necessidade de conhecer mais a realidade para poder
mudá-la.
Enquanto
a cabeça não consegue domar os pensamentos, a coruja ganha os céus em busca de
novos estudos que ajudem os de baixo a serem sujeitos que pensam e preparam a
construção de uma sociedade onde haja tudo para todos. Em sua ausência, a sala
parece voltar ao que era a não ser por um pequeno sinal avermelhado que marca
no calendário o dia 20 de novembro. Mais do que a simples lembrança dos feitos
de Zumbi dos Palmares, o pequeno círculo que destaca os dois números parece
abraçar os oprimidos de todas as cores para convidá-los a continuar no presente
a longa luta pela liberdade.
Emilio
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abolição da escravidão, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1987, 4ª edição.
50. _____________ Escravidão negra em
São Paulo (um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX),
Ed. José Olympio, Rio de Janeiro, 1977.
51. REIS, João José. Rebelião escrava
no Brasil – a história do levante dos malês (1835), Ed. Brasiliense, São
Paulo, 1986.
52. REIS, João José (Org.). Escravidão
e invenção da liberdade – Estudos sobre o negro no Brasil, Ed.
Brasiliense/CNPQ, São Paulo, 1988.
53. REIS, João José e GOMES, Flávio dos
Santos (Org.). Liberdade por um fio – História dos quilombos no Brasil,
Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 2000.
54. REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação
e conflito: a resistência negra no Brasil escravista, Ed. Companhia das
Letras, São Paulo, 1989.
55. RODRIGUES, José Honório. A rebeldia
negra e a abolição, em História e Historiografia, Ed. Vozes, Petrópolis,
1970.
56. SANTOS, Joel Rufino dos. Zumbi,
Ed. Moderna, 1985.
57. SANTOS, Maria Januária Vilela. A
Balaiada e a insurreição de escravos no Maranhão, Ed. Ática, São Paulo,
1983.
58. SILVA, Gladson de Oliveira. Capoeira
– do engenho à universidade, CEPEUSP, São Paulo, 2002, 3ª edição.
59. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A
capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850),
Ed. Unicamp, Campinas, 2002, 2ª edição.
60. WEIMER, Günter. O trabalho escravo
no Rio Grande do Sul, Ed. UFRGS/Sagra, Porto Alegre, 1991.
[1] Dados
publicados em Goulart Maurício (31), pg. 26.
[2] As
citações completas podem ser encontradas em Jacob Gorender (28), pg. 350.
[3] Texto citado
em João José Reis e Flávio dos Santos Jonas (53), pg. 71.
[4] Dados
mais detalhados sobre este processo são discutidos em Carlos Eugênio Líbano
Soares (59), pg. 125-150.
[5] Trecho
publicado em Décio Freitas (25), pg. 113.
[6] Os
dados e a cronologia que vamos seguir a partir deste momento têm como base o
estudo de Décio Freitas (25).
[7]
Dados publicados em Antonio Mendes Jr. e Ricardo Maranhão (42), pg. 246.
[8]
Dados publicados em Maurício Goulart (31), pg. 136.
[9] Dados
publicados em Antonio Mendes Jr. e Ricardo Maranhão (42), pg. 251.
[10] Dados
publicados em Carlos Magno Guimarães (32), pg. 142.
[11] Dados
publicados em Carlos Magno Guimarães (32), pg. 73.
[12] Dados
publicados em Jacob Gorender (29), pg. 458.
[13] Idem,
pg. 466.
[14]
Dados publicados em João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (53), pg. 233.
[15]
Idem, pg. 434.
[16] Dados
publicados em João José Reis (51), pg. 22-23.
[17] Dados
publicados em João José Reis (52), pg. 66.
[18] Dados
publicados em João José Reis (51), pg. 107.
[19] Dados
publicados em Robert Edgar Conrad (13), pg. 77.
[20] Dados
publicados em Jacob Gorender (29), pg. 326.
[21] Idem,
pg. 169-170.
[22] Idem,
Ibidem, pg. 169.
[23] Idem,
ibidem, pg. 62.
[24] Idem,
pg. 594.
[25] Dados
publicados em Vilma Paraiso Ferreira de Almada (3), pg. 192.
[26] Trecho
extraído de Joaquim Nabuco (46), pg. 26.
[27]
Segundo as estatísticas oficiais, em 1817-1818, o contingente escravo é de
1.930.000 numa população total de 3.818.000 pessoas. Em 1872, temos cerca de um
milhão e meio de cativos, número que, quinze anos depois, cai para pouco mais
de 700.000. No mesmo período, os habitantes das províncias brasileiras passam
de 8.500.000 para cerca de 13.000.000.
[28] Dados
publicados em Jacob Gorender (28), pg.199.
[29] Dados
divulgados em Kelly Oliveira, Mulheres brancas recebem o dobro do salário
pago às negras, em Gazeta Mercantil, 18/11/2005.
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