domingo, 5 de agosto de 2018

Brasil: números e realidades do emprego






Emilio Gennari – Educador Popular

E-mail: epcursos@gmail.com









            As estatísticas sobre o desemprego costumam nos colocar diante de uma sopa de letras e números quase sempre indigesta e sem gosto. A dificuldade de ver a realidade nos dados levantados deita raízes na incompreensão do que eles expressam e dos cenários que projetam para o futuro. A reflexão que segue busca simplificar o entendimento da forma pela qual o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mede o emprego no país e traça uma ponte entre os relatórios e os desafios que os movimentos enfrentam.
        Para o senso comum, estar empregado é sinônimo de ter uma maneira estável de ganhar a vida, ainda que o salário não seja grande coisa. O resto é bico, quebra-galho, obrigação de dançar conforme a música para amenizar a penúria de quem se vê forçado a “viver ao Deus dará”. Segundo esta lógica um sujeito continua desempregado mesmo quando trabalha de servente de pedreiro durante uma semana ou consegue uma cesta básica em troca de um serviço qualquer. Mas não é assim que as coisas funcionam no mundo das estatísticas. Por isso, o primeiro passo é entender os critérios que orientam as pesquisas para, em seguida, começarmos a refletir sobre os números que apresentam.
        Para formar o conjunto de pessoas cujo trabalho, ou a falta dele, será registrado nas entrevistas, o IBGE considera apenas quem tem 14 anos ou mais.[1]
        Da população em idade de trabalhar são subtraídos os homens e as mulheres que não têm uma ocupação remunerada, quem desistiu de procurar emprego e não fez nenhum tipo de trabalho, quem até encontrou um, mas, por algum motivo, não pôde assumi-lo. Nesse grupo estão, por exemplo, as donas de casa, os aposentados que não têm outra atividade como fonte de renda, quem estuda em tempo integral e, em função disso, ou não está pensando em trabalhar ou está impedido de aceitar um emprego que venha a ser oferecido. O grupo que resta é dividido em ocupados e desocupados.
        E aqui começam as primeiras complicações.
O IBGE considera ocupado quem trabalha para um empregador, quer se trate de empresa, instituição pública, órgão governamental ou de uma pessoa qualquer, com ou sem carteira assinada, com uma jornada de trabalho definida em troca de um salário em dinheiro ou na forma de mercadorias, produtos ou benefícios (como comida, roupas, moradia, algum tipo de treinamento, etc.).
Neste grupo encontramos os empregados da iniciativa privada num amplo leque de profissões que inclui até sacerdotes, pastores e membros de congregações religiosas. Nele estão também as pessoas que trabalham no serviço doméstico com horário a ser cumprido e remuneração correspondente, militares do Exército, Marinha e Aeronáutica, quem presta o serviço militar obrigatório, policiais e bombeiros militares, servidores públicos celetistas e estatutários, policiais civis, os que ocupam cargos de confiança ou exercem um mandato eletivo como vereador, deputado, governador, etc.
Os trabalhadores por conta própria incorporam um universo de atividades nas quais atuam sozinhos ou com um sócio. Sem especificar quantos são e que atividades desenvolvem, o IBGE reúne aqui:
ü Profissionais liberais (como médicos, advogados e dentistas),
ü Microempreendedores individuais (MEIs) das mais diferentes áreas[2],
ü Trabalhadores informais (como vendedores ambulantes, ajudantes e profissionais de várias áreas da construção civil, etc.)
ü As pessoas sem vínculo empregatício e que realizam serviços esporádicos.
        Temos assim um grupo heterogêneo no qual não se leva em consideração a renda obtida com o trabalho, mas que, ao assumir as feições do empreendedorismo, dá a impressão de que seus membros encontraram o caminho da afirmação social. Na verdade, grande parte deles é constituída por desempregados que buscam reduzir as dificuldades em que se encontram graças a serviços precários e incertos e que, na semana da entrevista, trabalharam pelo menos uma hora em troca de algum tipo de pagamento.
O trabalhador auxiliar familiar constitui outra categoria que integra o bloco dos ocupados. Trata-se de quem está envolvido em atividades domiciliares sem receber uma remuneração específica. É o caso, por exemplo, de uma pessoa que, vivendo na mesma casa, ajuda a tomar conta da loja que pertence a um membro da família sem que haja nenhum horário ou salário estipulados e cuja remuneração se dá ao partilhar o mesmo teto, fazer as refeições, ganhar roupas ou ter algum benefício vindo da renda dos demais.
Os empregadores fecham o grupo dos ocupados. São pessoas que trabalham no próprio negócio e têm pelo menos um empregado. Os dados mensais não fornecem números que possibilitem identificar o tamanho, o valor do empreendimento, a quantidade de funcionários e o faturamento.
        A percepção de que o desemprego é bem maior do que os dados revelam ganha consistência não só nos critérios que descrevem os ocupados, mas também naqueles que definem os desocupados. Para integrar este núcleo, não basta não ter realizado nenhum trabalho remunerado na semana da entrevista. È necessário que a pessoa venha procurando emprego nos últimos 30 dias. Caso não tenha feito isso, ela será considerada desempregada somente se for ocupar uma vaga já encontrada nos 4 meses seguintes. A título de exemplo, se um indivíduo, contatado no dia 15 de janeiro, disser que, naquela semana não realizou nenhum serviço remunerado e, nos 30 dias anteriores, não saiu à procura de trabalho em função das festas de final de ano e das férias de verão, ele estará fora do grupo dos desocupados.
        Basta isso para percebermos que os parâmetros utilizados distorcem a percepção da realidade ao restringir os critérios para alguém ser considerado desempregado e por incluir trabalhos precários e incertos em grupos de ocupados onde encontramos situações sociais muito diferentes.
        Dito isso, vamos passar aos números propriamente ditos.
        Nossa fonte de dados é o relatório de “Indicadores do IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua, principais destaques da evolução do mercado de trabalho no Brasil 2012-2017”, que, além das médias de 2017, traz os dados apurados desde 2012.[3] A comparação com os anos anteriores é essencial para visualizar a evolução do desemprego e de cada tipo de ocupação ao longo do tempo. A fim de simplificar as coisas, usaremos os números de 2017 para ilustrar as explicações que adiantamos nas páginas anteriores e, em seguida, vamos comparar os dados apresentados com os de 2014, o último ano de crescimento econômico.
        De acordo com as projeções oficiais, em 2017, a população do Brasil com 14 anos ou mais era de 168 milhões e 362 mil pessoas. Destas, 103 milhões e 881 mil entravam nos critérios que definem a força de trabalho.
        Os desocupados eram 13 milhões e 234 mil, quase 13 pessoas em cada 100.
        Os ocupados somavam 90 milhões e 647 mil, subdivididos nos grupos que seguem:
ü Empregados do setor privado com carteira assinada: 33 milhões e 340 mil
ü Empregados do setor privado sem carteira assinada: 10 milhões e 707 mil
ü Trabalhadores domésticos com ou sem carteira assinada: 6 milhões e 177 mil
ü Servidores públicos (celetistas, estatutários e militares): 11 milhões e 283 mil
ü Trabalhadores por conta própria: 22 milhões e 683 mil
ü Trabalhadores que auxiliam as famílias: 2 milhões e 214 mil.
ü Empregadores: 4 milhões e 243 mil
        Vistos desta forma, são apenas números que ilustram a realidade do emprego no país. Para termos uma ideia do que significam precisamos sempre compará-los com os que foram levantados em outros anos e refletir sobre as mudanças que apresentam.
        Entre 2014 e 2017, a população em idade de trabalho aumentou em 6 milhões e 333 mil pessoas. Este fenômeno ligado à natalidade traz implicações graves quando a economia mergulha num período de recessão. De fato, a relação entre o corte de vagas e o aumento das pessoas em idade de trabalho eleva o tempo para encontrar um emprego e a submeter os trabalhadores a dificuldades crescentes. Basta pensar que, em 2014, o tempo médio de desemprego era de 6,8 meses, enquanto em 2017 saltou para 14 meses, mais do que o dobro em relação a três anos antes.[4]
        Mas é entre os empregados da iniciativa privada com carteira assinada que a crise provocou o maior estrago ao encolher este grupo de 36 milhões e 610 mil em 2014, para 33 milhões e 340 mil em 2017. A diferença de 3 milhões e 270 mil postos nos dá uma ideia das vagas formais que precisam ser criadas apenas para voltarmos à situação de três anos atrás. Isso é importante para não nos deixarmos enganar pelos comentários que festejam a redução do desemprego a partir do segundo semestre de 2017. Por bem-vindos que sejam, os postos a mais devem ser vistos no interior da evolução do emprego e não apenas como um dado a ser comparado com o período que convém a fim de sustentar afirmações que, sem deixar de ser verdadeiras, ocultam a gravidade da situação.
Do mesmo modo, devemos levar em consideração que, a partir da reforma trabalhista, o trabalho em tempo parcial e por contrato intermitente passa a ser considerado como um emprego formal pelos próprios empresários e deve marcar presença nos relatórios que enviam ao Cadastro Geral de Emprego e Desemprego do Ministério do Trabalho. Ou seja, as vagas que antes pertenciam ao âmbito da informalidade podem mudar de patamar graças ao reconhecimento legal das novas formas de contrato. Ainda que a rigor não tenham sido criados novos postos, a legalização dos que já existiam tende a distorcer a realidade pintada pelos números.
Em função disso, é possível que o próprio IBGE mude os parâmetros de suas pesquisas. Esta é uma questão que promete dar muito pano para a manga, à medida que o próprio governo, para mostrar o acerto de sua política econômica, tem grande interesse em chamar de “formal” tanto o trabalhador com registro em carteira como o que assinou um contrato intermitente.
Outro aspecto que não pode ser esquecido guarda relação com a arrecadação previdenciária. A redução do emprego formal na iniciativa privada explica também parte expressiva do déficit que, nas contas governamentais, somou 71 bilhões e 709 milhões de reais entre os trabalhadores urbanos inseridos no Regime Geral da Previdência Social. Pelos mesmos cálculos, em 2014, este grupo de contribuintes registrava um superávit de 31 bilhões e 340 milhões de reais (em valores atualizados pela inflação do período).[5] Ninguém nega que o aumento do número de beneficiários entre 2014 e 2017 tenha um impacto negativo no balanço final, mas perder mais de 3 milhões de contribuições pela política econômica adotada tem um peso que só o oportunismo faz questão de esquecer.
Situação parecida ocorre entre os funcionários públicos de todas as esferas. No mesmo intervalo de tempo, a arrecadação previdenciária deste grupo registrou uma diminuição de 155 mil vagas enquanto o número de benefícios pagos aumentava em proporção semelhante.
As notícias que anunciam o crescimento do emprego, após um período de recessão, sinalizam que a economia voltou a respirar. Contudo, antes de soltar rojões, quem busca entender a realidade precisa fazer uma pergunta essencial: de que ocupação se trata? De fato, pelos critérios do IBGE o desemprego pode estar caindo quando aumentam os empregados com carteira assinada, mas também quando a redução deste contingente é compensada com sobras pelo crescimento dos trabalhadores informais.
De fato, sempre na comparação com 2014, os magros resultados conseguidos em termos de criação de postos ao longo de 2017 ocorreram:
ü Entre os empregados sem carteira assinada, com 329 mil vagas a mais, a quase totalidade em funções de baixa qualificação e salários reduzidos;
ü No grupo dos trabalhadores domésticos que aumentou em 204 mil pessoas. Neste caso, ser diarista ou mensalista em casa de família é apenas uma forma de sair do aperto através de uma atividade que não demanda nenhuma qualificação especial, é de baixa remuneração e, em grande parte, não contribui para a previdência social;
ü Entre os trabalhadores por conta própria que aumentaram em um milhão e 378 mil.
        A elevação deste último contingente demanda uma reflexão um pouco mais detalhada à medida que inclui situações bem variadas e o IBGE não faz nenhuma diferenciação entre elas. Para uma visão mais próxima de uma parte desta realidade, recorremos a uma pesquisa sobre microempreendedores individuais (MEIs) do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), elaborada a partir dos dados da Receita Federal. Pelos números apurados, em 2016, o Brasil contava com 6 milhões 649 mil e 896 MEIs nas mais diversas profissões.[6]
        Deste contingente, 76 em cada 100 não tinham nenhuma atividade empreendedora antes de registrar o próprio negócio, não descobriram um nicho de mercado promissor, não têm vocação para o empreendedorismo[7] e somente 3% deles acredita na possibilidade de crescer mais como empresa.[8]
        Sempre pela pesquisa do SEBRAE, antes de se formalizarem como MEIs, 50% haviam sido funcionários com carteira assinada; 13% vinham de um emprego informal e 6% trabalhavam em serviços domésticos.[9] Ou seja, majoritariamente, a origem dos integrantes deste grupo guarda uma relação direta com a saída do trabalho assalariado, com o esforço de alcançar uma renda que se aproxime da que era recebida na fase anterior e com a necessidade de ampliar os meios para a sobrevivência.
Esta relação é visível tanto no tipo de negócio montado (revendas de roupas e acessórios, serviços de cabeleireiros, manicure, pedicure, pedreiros, encanadores, eletricistas, lanchonetes, cafeterias, preparo de alimentos para o consumo familiar, etc.,), como na faixa de renda per capita das famílias dos microempreendedores.
Ainda que os recursos não venham só do seu trabalho, apenas 5% dos MEIs, estão em núcleos familiares com uma renda per capita acima de R$ 3550,00. Os grupos restantes se dividem da forma que seguem: 25% em famílias com renda per capita entre R$ 1444,01 e R$ 3550,00; 27% entre R$ 908,01 e R$ 1444,00; 17% na faixa que vai de R$ 625,01 a R$ 908,00; 15% na de R$ 412,01 a R$ 625; 9% entre R$ 230,01 e R$ 412,00; 2% situam-se em famílias com renda per capita entre R$ 115,01 e R$ 230,00; e 0,1% na faixa até R$ 115,00.[10] Lembrando que, em 2016, o salário mínimo era de R$ 880,00 e que a família média é 4 pessoas, podemos dizer que cerca de 40% dos MEIs está em núcleos familiares que, pelos critérios do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), situam-se abaixo da linha da pobreza, que é, justamente, de até um salário mínimo per capita.
Com a reforma trabalhista possibilitando demitir o funcionário com carteira assinada para recontratá-lo como pessoa jurídica, tudo leva a crer que o número de MEIs deve aumentar significativamente ao longo dos próximos anos. Em termos de arrecadação das contribuições previdenciárias, a troca de postos com carteira assinada por prestação de serviços de microempreendedores individuais contradiz frontalmente as preocupações governamentais de redução do déficit que são o motivo principal da reforma da previdência. De fato, a contribuição de um MEI tem como base o valor de um salário mínimo nacional que, em geral, é menor do total sobre o qual eram calculadas as contribuições sobre a folha de pagamento. Segundo os estudos disponíveis, num cenário em que 10% dos trabalhadores com carteira assinada e 10% dos informais se tornam MEIs, a arrecadação do Regime Geral da Previdência perderia 13 bilhões e 500 milhões de reais ao ano.[11]
   Seguindo o relatório comparativo do IBGE, vemos que as pessoas envolvidas em auxiliar o trabalho de algum de seus familiares passaram de 2 milhões e 623 mil em 2014 para 2 milhões e 214 mil em 2017. A redução de 409 mil trabalhadores e trabalhadoras mostra outro reflexo da recessão. À medida que a crise econômica e o desemprego foram deteriorando os recursos disponíveis, a possibilidade de viver da renda familiar diminuiu e levou parte deste grupo a procurar emprego.
Por sua vez, nos três anos do período considerado, o número de empregadores passou de 3 milhões 787 mil para 4 milhões e 243 mil. O aumento de 456 mil pessoas incorpora tanto as microempresas criadas (que, pelos critérios do IBGE, têm no mínimo, um empregado) como o desdobramento de uma empresa maior em várias subsidiárias para reduzir o pagamento de impostos ou em prestadoras de serviços terceirizados a fim de proporcionar uma força de trabalho barata e mais confiável.
É preciso lembrar que nem sempre ser um pequeno ou médio empresário significa ganhar pouco ou passar por uma situação que se aproxima da que é vivida pelos microempreendedores individuais. Apesar do tamanho reduzido, a depender do ramo de atuação, do grau de inovação tecnológica e do volume de negócios, o faturamento pode alcançar patamares invejáveis. Para termos uma ideia do que isso significa, nos valemos da edição de 2017 da pesquisa realizada pela consultora Deloitte em parceria com a revista Exame. Somando o desempenho das 100 pequenas e médias empresas que mais cresceram no Brasil ao longo de 2016, temos que, apesar de a economia ter recuado 3,5%, o faturamento delas aumentou 21% em relação a 2015, alcançando a quantia invejável de 7 bilhões e 300 milhões de reais.[12]
Contudo, os dados sobre o emprego não se limitam a medir a situação do país num determinado momento histórico, mas colocam reflexões intrigantes à ação do movimento sindical. Excluídos os números dos empresários e dos efetivos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, o total da força de trabalho no Brasil soma 99 milhões e 279 mil pessoas.[13] Para quantas delas os sindicatos conseguem falar?
Quando reunimos num único bloco os trabalhadores com carteira assinada, o funcionalismo público (sem os efetivos de Exército, Marinha e Aeronáutica) e as pessoas envolvidas no trabalho doméstico que têm acesso aos direitos previstos pela legislação, percebemos que este conjunto soma 47 milhões e 441 mil pessoas, ou seja, 47,8% da força de trabalho do país. Por outro lado, no caso dos trabalhadores por conta própria, dos que não têm carteira assinada, dos desempregados, dos empregados em serviços domésticos que não contam com os direitos legais e dos que trabalham auxiliando os familiares, temos 52,2% do total com 51 milhões e 838 mil pessoas.[14]
A constatação de que os sindicatos estão falando para a minoria da classe trabalhadora deveria nos levar a algumas reflexões. A primeira dela diz respeito aos limites que a estrutura sindical segue impondo à sua ação. Apesar da criação das centrais sindicais, as preocupações se dirigem quase exclusivamente à realidade de categorias que vêm encolhendo ao longo do tempo (e, de consequência, perdendo poder de barganha) e não da classe, cujo cotidiano é diariamente moldado pelas necessidades do capital. Quando muito, alguns setores chegam a ter pautas unificadas, mas nunca reivindicações e ações que dialogam com as realidades do trabalho da maioria, em relação à qual a mídia e as condições impostas pelas elites são os únicos interlocutores que ela conhece.
A distância que separa os sindicatos da classe aparece na incapacidade de ver a realidade em que ela vive e de penetrar na sua compreensão dos acontecimentos. Ninguém duvida, por exemplo, que a reforma trabalhista veio para acabar com os poucos direitos que restam e para abrir um crescente processo de precarização frente ao qual é imprescindível continuar a lutar. Contudo, limitar as reivindicações à preservação dos direitos faz sentido para quem tem carteira assinada ou é servidor público, mas não para a maioria da classe trabalhadora que não direito algum.
Por outro lado, há pouco e nada nas práticas sindicais que sirva para construir uma ponte com parte desta maioria até quando ela atua, lado a lado, com os trabalhadores formais. O foco na categoria faz com que os eventos que vitimam, adoecem ou amputam os que não são parte dela raramente sejam objeto de denúncias pelos sindicatos ou se ofereça a eles condições para que possam registrar uma simples comunicação de acidentes de trabalho e pleitear justiça.
Do mesmo modo, vale lembrar que a informalidade não é um problema novo, mas nas três últimas décadas não houve uma luta efetiva para combatê-la. A ação do movimento sindical não ocorreu sequer para evidenciar que o abismo entre a ampliação do número dos ocupados e a redução do contingente de fiscais do trabalho inviabilizava qualquer atividade capaz de inibir o avanço da precarização.[15]
Processo semelhante vem ocorrendo na luta contra a reforma da previdência. Para quem vive da informalidade, a chance de vir a se aposentar não passa de uma miragem. Para termos uma ideia do que isso significa, basta pensar que somente 26% dos MEIs pesquisados em 2016 pelo SEBRAE veem a obtenção de benefícios previdenciários como motivo para formalizar suas atividades.[16]
Concretamente, para a maioria da classe trabalhadora, a piora das condições de aposentadoria não é suficiente para mobilizá-la, por importante que seja esta luta. Provavelmente, registraríamos um envolvimento maior se os sindicatos tivessem elaborado um projeto de seguridade social que incorporasse as diversas realidades do trabalho presentes no território nacional. Nas condições em que nos encontramos, dizer “não à reforma da previdência” é sem dúvida um passo essencial. Mas ele não substitui a necessidade de um projeto de previdência para todos que, ao desmascarar os interesses das elites, dialogue com o conjunto da classe trabalhadora.
        Enquanto a falta de inserção dos sindicatos e as visões restritas ao âmbito econômico-corporativo impedem de perceber o que se vê pelo olhar da maioria, a elite não titubeou em aproveitar a crise por ela criada para viabilizar o seu projeto de país. A busca da competitividade através de um funcionário barato, superexplorado e sem direitos teve no desemprego um aliado de primeira ordem para esvaziar qualquer resposta significativa aos seus planos e dar passos consistentes na tarefa de moldar trabalhadores e trabalhadoras de acordo com as necessidades do capital.
        Os dados preocupam. As adesões e o conformismo da classe jogam água no moinho da direita. As tempestades anunciadas pelos números se aproximam. A necessidade de construir novas formas e âmbitos de ação coletiva é cada vez mais gritante. A chance de os sindicatos perderem o trem da história aumenta com o passar das horas.
        A fria lógica dos números costuma ser implacável quando não conseguimos entendê-la e interpretá-la.

        Brasil, 31 de março de 2018.



[1] Os dados relativos ao emprego-desemprego no país são coletados no interior da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio (PNAD) e são os únicos a serem divulgados mensalmente. A pesquisa é realizada através de uma amostra de 211.344 domicílios particulares permanentes distribuídos em cerca de 3500 municípios. Esse número inclui as regiões metropolitanas de Manaus, Belém, Macapá, São Luís, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Aracaju, Salvador, Belo Horizonte, Vitória, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vale do Rio Cuiabá, Goiânia e Teresina. Com base nesta amostra, são projetados os dados do país inteiro. Maiores detalhes podem ser encontrados na página eletrônica: https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/trabalho/9173-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-trimestral.html?&t=o-que-e  acesso em 04/03/2018.
Vale lembrar que a base de coleta dos dados ganha esta abrangência apenas a partir marco de 2016. Até então a pesquisa mensal de emprego, que se ocupava deste levantamento, abrangia apenas as regiões metropolitanas de Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador e Recife, conforme mostra o próprio comunicado que o IBGE lançou na época (em: https://ww2.ibge.gov.br/home/disseminacao/destaques/2016_03_09_pme.shtm). Basta isso para termos uma ideia dos limites e dificuldades que as estatísticas nacionais relativas ao mercado de trabalho criam em termos de abrangência e compreensão do presente num Brasil de proporções continentais e realidades sociais tão diferentes.
[2] Pelas estimativas, em 2017, o Brasil tinha em torno de 7 milhões e 800 mil micro empreendedores individuais cadastrados, mas ninguém sabe ao certo quantos deles estão ativos. O número estimado de MEIs foi publicado em: https://g1.globo.com/economia/noticia/trabalho-sem-carteira-assinada-e-por-conta-propria-supera-pela-1-vez-emprego-formal-em-2017-aponta-ibge.ghtml  acesso em 11/03/2018
[3] O acesso à nota “PNAD contínua: Retrospectiva 2012-2017”, atualizada em 09/03/2018 encontra-se disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-detalhe-de-midia.html?view=mediaibge&catid=2103&id=1728 acesso em 27/03/2017.
[6] Dado publicado em SEBRAE, Perfil do Micro Empreendedor Individual 2017, Brasília, 2017, pg.12
[7] Idem. Pg. 48.
[8] Idem. Pg. 59.
[9] Idem. Pg. 47.
[10] Idem. Pg. 43.
[11] A projeção tem como base a arrecadação previdenciária de 2015 e foi publicada no estudo de Arthur Welle, Flavio Arante, Guilherme Mello, Juliana Moreira e Pedro Rossi, Reforma trabalhista e financiamento da Previdência Social: simulação dos impactos da pejotização e da formalização, texto de discussão nº 7 do CESIT da Unicamp, Campinas, 2017. Disponível na página eletrônica: http://portal.mpt.mp.br/wps/wcm/connect/portal_mpt/3d19e5a3-0f81-4be6-aaf7-95e39015a34f/Texto+de+discuss%C3%A3o+7+-+Financiamento+da+Previdencia+e+Reforma+Trabalhista.pdf?MOD=AJPERES  acesso em 13/03/2017
[13] Por falta de dados atualizados, lançamos mão do número do efetivo militar de 2013, de 359 mil e 386 pessoas entre cabos, soldados e os graduados de todos os níveis da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. A tabela detalhada encontra-se no site do Ministério da Defesa em: http://www.defesa.gov.br/servico-de-informacoes-ao-cidadao/111-lei-de-acesso-a-informacao/perguntas-frequentes/remuneracao-dos-militares-das-forcas-armadas-no-brasil-e-no-exterior/8637-efetivos   acesso em 30/03/2018.
[14] Em termos de alcance do discurso sindical, as coisas só pioram quando levamos em consideração apenas o número de filiados e quantos se associam aos sindicatos para atuarem nas lutas e não apenas para usufruírem de alguns benefícios ou terem um escudo protetor caso sofram injustiças, acidentes ou doenças vinculadas ao exercício da profissão. Mas esta é uma discussão que não é parte do objetivo deste texto.
[15] De acordo com a nota técnica número 4 do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas de 2012, no ano 2000, havia 3131 auditores para 65 milhões de trabalhadores, número que, em 2012, havia caído para 2741 para mais de 90 milhões de trabalhadores. No mesmo estudo, o IPEA apontava a necessidade de aumentar em 5800 a quantidade de auditores para que houvesse uma fiscalização real das condições de trabalho no Brasil. Algo que, obviamente, não ocorreu.
[16] Em SEBRAE, texto citado, pg. 49.

Nenhum comentário:

Postar um comentário