domingo, 19 de setembro de 2021

O Psicólogo, a Personalidade e o QI dos Bebês da pandemia

                                                                                                  Max Diógenes.

 

1- PERSONALIDADE


Ao dar um rápido Google, a fim de pesquisar a etimologia da palavra personalidade, constataremos que sua origem é grega; derivada do termo persona, que pode significar, literalmente, máscara. Diz respeito aquilo que em nós é externo; público. Em suma, ao que é, para os demais, aparente, em relação ao nosso modo de ser no mundo.

Na Psicologia experimental, apenas no fim da década de 1.930, o estudo da personalidade fora formalizado, nos Estados Unidos – o exacerbado pragmatismo americano – e, desde então, psicólogos de inúmeras correntes, no mundo todo, que fizeram da personalidade seu objeto de pesquisa, defendem a tese de que, ao falar do processo de desenvolvimento e constituição da personalidade, a coisa, em hipótese alguma – apesar da etimologia do termo – pode se resumir ao que é aparente; externo; público.

Entretanto, somos seres constituídos, na sociedade regida pela troca de mercadorias. E a troca constante, sistemática, funcional, dessas mercadorias, entre os seus diversos portadores, gera, óptica e, consequentemente, psicologicamente, a percepção de uma sociedade naturalmente organizada; e não política e historicamente desenvolvida. Tudo, em nossa vida, está dado; desde sempre; e nada pode ser modificado. Guy Debord, pensador francês, tendo o marxismo como base para a produção de sua obra, descreve tal sociedade, como sendo a “sociedade do espetáculo”. Nessa sociedade, pelo caráter fetichista da mercadoria, que se apresenta a nós, como se tivesse vida própria, nos tornamos meros espectadores dos acontecimentos. Não nos reconhecemos como produtores ativos da história; nossas relações, conduzidas apenas pelas sensações mais imediatamente detectadas, acabam por serem norteadas, nem mais pelo ser e, tampouco, pelo ter, mas pelo parecer. Poderia, numa sociedade assim formada, o pragmatismo da psicologia experimental, superar a camada da aparência, ao estudar a tal da personalidade?

 

*

 

Os estudiosos do tema creem que sim. E, para justificar tal possibilidade, muitos deles, não se constrangem em subverter os sentidos originais do termo “personalidade”, estendendo o estudo e as explicações para as “particularidades”; para o “íntimo”; para o subjetivo.

Óbvio, há as correntes que pretendem entender a personalidade, a partir da tal da óptica bio-psico-social, levando em conta os aspectos naturais, psicológicos e, sobretudo, o “contexto” sociocultural no qual se constitui cada uma das subjetividades. E “contexto” é aqui escrito entre aspas, mesmo, pois, essa contextualização, considera, geralmente, apenas o específico de cada caso, ou seja, via de regra, não há a pretensão de se compreender a constituição da personalidade, a partir daquilo que é universal, por ser hegemônico: a base material da sociedade.

Ao estudar a personalidade, a ciência burguesa, busca compreender a formação dos aspectos predominantes de uma subjetividade, ou pela ação autônoma do indivíduo no mundo ou pela relação desse indivíduo com um mundo muito particular; mas não com o mundo histórico e político. A ciência da burguesia, não consegue subverter a ideologia da burguesia.

 

2- INTELIGÊNCIA


Se ao estudar a personalidade, a ciência burguesa não consegue romper com os limites impostos pela ideologia, por que, no estudo da inteligência, a coisa seria diferente? Pois, como você, leitor inteligente, bem pôde deduzir, não é.

Quando o estudo universaliza as questões da inteligência, o faz apenas para naturalizar a condição do indivíduo; e quando contextualiza, contextualiza apenas o que é muito específico do sujeito. Não há história e nem política na produção dos estudos.

Ou, reformulando a afirmação e ampliando o seu sentido, há sim, história e política; são intrínsecas aos estudos e, raramente, percebidas por quem os realizam: há a reprodução do espírito dominante, constituído na, e mantenedor da base material da sociedade.

 

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3- DISSERTEMOS

 

Há um estudo específico com o qual tive contato e que me motivou a escrever esse breve texto.

Encontrei, sem querer, a notícia sobre o referido estudo, no site do MSN. A chamada para a matéria dizia: “Crianças nascidas na pandemia têm Q.I. menor, aponta estudo”.

Sou psicólogo de formação; bacharel, desde 2.014; nunca consegui levar a sério essas quantificações ou mensurações, normalmente, pautadas por testes que seguem os rigorosos padrões, exigidos pelo método científico. Sempre tive a sensação de que essas qualificações, promovidas por tais testagens – sei que o objetivo dos testes, aplicados como parte de uma bateria de ações do psicólogo em determinado atendimento, não é o de qualificação; mas essa consequência, dessa prática, acaba por ser inevitável – acabam por tornar aos profissionais envolvidos no trabalho, tudo mais fácil, “palpável”, afinal, serão os números, os resultados “empíricos” que trarão determinada referência para um possível diagnóstico e para o planejamento da sequência do atendimento.

 

Enfim...

 

Os pesquisadores são da Brow University, Estados Unidos – de novo –, do departamento de pediatria. Segue, uma citação da matéria:

 

“As análises afirmam que os primeiros anos de vida de uma criança são essencialmente importantes para o desenvolvimento cognitivo. Entretanto, com o fechamento de creches, colégios, parques e outros ambientes infantis, as crianças deixam de ter interações interpessoais e estímulos em casa. – quê? Com fechamento de espaços públicos, a criança deixa de ter estímulos em casa? – Durante a pandemia, muitas empresas adotaram o estilo home office, e os pais estão precisando se adaptar não só com o emprego à distância, como também, com filhos pequenos por perto o dia inteiro, elevando o nível de estresse”.

 

Incrível, não? – e aqui, eu começo a deixar de lado o tom empolado da academia, para gozar com a ironia; meu forte literário.

 

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O professor Mauro Iasi, em seu artigo OS INTELECTUAIS E A DECADÊNCIA IDEOLÓGICA, publicado no blog da Boitempo, nos ensina que...

 

“Marx estava convencido de que existe um nexo entre as ideias dominantes e as relações sociais dominantes – ou, mais precisamente, as relações ‘que fazem de uma classe a classe dominante’. O movimento histórico, no entanto, caminha por contradições de forma que as relações sociais dentro das quais as forças produtivas se desenvolveram podem se converter em obstáculos. No momento em que isso ocorre, estabelece-se uma contradição e as ideias que antes correspondiam se tornam inautênticas, não correspondentes”.

 

Façamos, então, a partir desse ensinamento do professor, uma análise da análise feita pela equipe da reportagem, em relação ao artigo que “comprova” o baixo Q.I. de crianças nascidas na pandemia. Elucidemos as contradições.

 

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Provavelmente, qualquer um que esteja lendo esse texto, conhece uma criança, nascida entre fevereiro de 2020 e o presente momento, certo? E é possível que, inclusive, essa criança que você conheça, por milhões de motivos, mas, sobretudo, por não ter idade nem para saber respirar direito – obviamente, uma brincadeira exagerada – não frequente uma creche e que, portanto, não receba estímulos para além daqueles que são emitidos por seus entes mais próximos. Por incrível que pareça, muitos pais, ainda se sentem receosos em deixar um filho na tenra idade, em mãos de desconhecidos, mesmo que tais desconhecidos sejam profissionais. E aí perguntamos: tal realidade era imensamente diferente dessa, antes da pandemia? Quantos de vocês, adultos leitores, ficaram em creches, com um ano e meio de idade, para que papai e mamãe pudessem trabalhar? Creio que o número de frequentadores de escolinhas, com um ano e meio de idade, aqui entre nós, se aproxime do zero.

 

“Ah, mas a matéria e o artigo deixam claro que não se trata só de creches, mas também de praças, parques, shoppings, etc. Nesse período a socialização da criança se tornou mais difícil, pois a maior parte dos locais que, normalmente, estão abertos ao público, não estavam em funcionamento... Oh...”.

 

Oh... E tanto nos States, quanto no Brasil e em quase todos os outros países, o cidadão médio, em sua maioria, se esforçou por se isolar por completo, né?

Mas não sejamos hipócritas. É sim, possível, que todos nós conheçamos pessoas que sejam, por inúmeros determinantes, capazes de deixarem seus frágeis filhinhos, sob os cuidados de desconhecidos, por muitas horas em um dia. Muitos trabalhadores/trabalhadoras têm tal necessidade; mas, raramente, encontram vagas em creches e pagar pelo serviço, não é algo barato e, portanto, simples. Em geral, apelam para vizinhos, amigos e parentes, ou seja, para conhecidos. A que classe pertencem essas pessoas que você conhece e que conseguem deixar o filho em uma creche? De qual realidade – americana ou brasileira, não importa – o estudo, de fato fala? De uma maioria?

 

“...e os pais estão precisando se adaptar não só com o emprego à distância, como também, com filhos pequenos por perto o dia inteiro, elevando o nível de estresse”.

 

Insisto: de qual realidade – americana ou brasileira, não importa – o estudo, de fato fala? De uma maioria?

E olha que somos uma sociedade conservadora, que valoriza a constituição da família; rs... Na aparência...

 

4- FINALIZEMOS

 

Ao esmiuçar o principal item analisado pela matéria em relação ao estudo, podemos constatar facilmente, que a realidade caga para o controle do método e para o recorte feito pelos pesquisadores.

Tanto para os pesquisadores, quanto para os leitores e analistas da pesquisa, o que vale, é um padrão de vida, no qual haja home-office, creches acessíveis, obediência geral às políticas de isolamento, “inevitável” falta de estímulos caseiros...

Os números foram obtidos por meio de testes e, como a realidade por si, não justifica os números, eles criam uma realidade que possa ser condizente com as mensurações apresentadas pelos testes.

É como o professor Iasi, utilizando-se de Marx, Engels e a Ideologia Alemã, diz e nos ajuda no complemento do raciocínio: o desmentir dos conceitos, pelo mundo real, em nada abala as convicções da consciência burguesa.

Os cientistas dessa história continuarão a estudar a personalidade partindo do movimento autônomo do indivíduo e das especificidades de sua microssociedade; continuarão a querer mensurar a inteligência de bebês de um ano e meio; continuarão a produzirem mundos que justifiquem os resultados obtidos por sua ciência e que permitam a continuidade da reprodução do espírito dominante...

 

Em suma...

 

Continuarão brincando de serem cientistas... Ou... De PARECEREM cientistas...

 

https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/crian%c3%a7as-nascidas-na-pandemia-t%c3%aam-qi-menor-aponta-estudo/ar-AANyjLa?ocid=mailsignout&li=AAggXC1&fbclid=IwAR0SgqwURz8PZGCHA8CXJpUdg21n798M3b_XHCLgZlkaJJZpgIJ8kWtVVpE

 

https://blogdaboitempo.com.br/2020/09/14/os-intelectuais-e-a-decadencia-ideologica/


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