Análise de Conjuntura
12 de maio de 2022
A guerra da Ucrânia no tabuleiro da geopolítica mundial
A verdade é sempre a primeira vítima fatal com a qual nos
deparamos ao acompanhar os acontecimentos de uma guerra. Longe de ser o
resultado da interpretação subjetiva dos eventos pelas partes envolvidas no
conflito, esta morte é fruto de estratégias que criam uma espessa cortina de
fumaça no qual é impossível distinguir o falso do verdadeiro.
Produzidos ora para efeitos propagandísticos, ora para
desacreditar o inimigo, ora para marcar posição, blefar, confundir, ameaçar,
amedrontar ou humilhar, os fatos e as narrativas que os acompanham escondem os
problemas e os interesses que caminham nos passos ocultos do momento histórico
em que a geopolítica mundial percorre as sendas de um enfrentamento armado
entre as nações.
Com a invasão da Ucrânia pela Rússia as coisas não são
diferentes. Os textos e as reportagens consultadas trazem dados contraditórios
e números diferentes para o mesmo aspecto da realidade; apelam à emoção e ao
medo para encobrir interesses e impedir o pensamento crítico; mascaram a
ineficácia de medidas anunciadas com discursos eloquentes; fazem coro a
declarações oficiais retumbantes negadas pela realidade econômica; buscam
convencer a população de que o inimigo é o único culpado pela devastação e as
carnificinas que marcam os campos de batalha.
As reflexões que seguem procuram reunir os fragmentos da
realidade econômica e militar que, ao responder algumas perguntas, permitem
vislumbrar as primeiras tímidas tendências no emaranhado gelatinoso e mutante
das posições dos países que protagonizam este conflito e do séquito de nações coadjuvantes
que buscam se beneficiar das contradições desta guerra.
Para dar conta desta tarefa, caminharemos inicialmente
pelas causas do conflito; andaremos pelas trilhas que permitem avaliar até que
ponto as sanções econômicas impostas à Rússia terão a eficácia desejada pelos
que armam a Ucrânia; seguiremos pelos objetivos que Washington e Moscou pretendem
alcançar e chegaremos a um primeiro balanço dos reflexos do conflito na
economia e na geopolítica mundial.1
Longe de conseguirmos abranger todos os elementos de que
precisaríamos para esboçar com maior precisão os cenários do futuro, o nosso
esforço visa tomar o pulso da realidade, registrar as mudanças em cursos e apontar
os elementos que elevam o rufar dos tambores da guerra na Europa.
1. Os antecedentes e as justificativas da invasão da
Ucrânia.
Não há dúvidas de que a ampliação da Organização do
Tratado do Atlântico Norte) OTAN depois do fim da União Soviética tem como
objetivo cercar militarmente a fronteira oeste da Rússia que, nos últimos dez
anos, reativou bases militares de onde podem ser lançados ataques atômicos,
produziu mísseis ultrassônicos capazes de driblar as defesas estadunidenses e
assinou acordos militares com a China, cujo conteúdo nunca foi totalmente revelado.
A Ucrânia solicitou a sua entrada na OTAN em 2008 e,
desde o início, sua admissão aos círculos da Aliança Atlântica foi considerada
inaceitável pelos russos. Os EUA guardaram o pedido de Kiev como uma espécie de
"carta na manga" para submeter o governo de Kiev aos seus interesses
e pressionar Moscou a fazer concessões. Oficialmente, Washington sempre
procurou convencer a Ucrânia de que a sua admissão na OTAN não aconteceria tão
cedo enquanto dizia à Rússia que a entrada do país na Aliança Atlântica era
apenas uma questão de tempo.
É neste contexto que encontramos a principal explicação
da Rússia para a guerra: deter o avanço da OTAN na Ucrânia, cuja posição
geográfica permitiria aproximar os sistemas de mísseis e antimísseis capazes de
atingir mais rapidamente pontos nevrálgicos do território russo e de servir
como barreira avançada para neutralizar eventuais ataques desferidos por
Moscou.
A China assumiu
publicamente esta mesma posição ao acusar a OTAN de ser diretamente responsável
pelo conflito, à medida que a admissão de 14 países desde o fim da Guerra Fria
e o desejo de incorporar a Ucrânia à Aliança Atlântica teriam encurralado a
Rússia a ponto de tornar inevitável uma ação militar. A sintonia entre a Rússia
e o gigante asiático no campo da defesa passa longe de ser obra do acaso e vem
sendo construída desde novembro de 2014, quando Pequim e Moscou deram os
primeiros passos para criar um sistema coletivo de segurança regional com
manobras conjuntas de suas forças armadas e aprofundaram o intercâmbio militar
com o objetivo de deter o aumento da influência dos EUA na Ásia.
Em novembro de 2021, num clima de tensões crescentes em
função das exercitações militares de Moscou nas fronteiras com a Ucrânia,
Rússia e China assinaram um acordo que ampliou a cooperação militar entre as
duas nações. Além de expandir os exercícios militares estratégicos e as
patrulhas aéreas a toda a região do Oceano Índico e do Pacífico, o acordo
renovou o compromisso da Rússia de auxiliar a China a monitorar eventuais
lançamentos de mísseis nucleares contra o seu território. E no dia 4 de
fevereiro deste ano, vinte dias antes da invasão da Ucrânia, os dois países
assinaram um pacto de unidade política e de segurança que não põe limites à sua
parceria. Na declaração conjunta, Vladimir Puttin e Xi Jinping anunciaram o
início de uma nova era nas relações internacionais e o fim da hegemonia
americana.
As bases militares dos EUA fora do seu território
como braço armado desta hegemonia
Fonte: Revista Superinteressante, em: https://super.abril.com.br/coluna/oraculo/quantas-bases-militares-os-estados-unidos-tem-fora-de-seu-territorio/
Diante dos impasses nas relações diplomáticas entre
Washington e Moscou em relação à inclusão da Ucrânia na OTAN, Putin se antecipou
aos acontecimentos para colocar a Rússia numa posição favorável nas negociações
futuras. Ainda que, até o momento, as explicações para a invasão da Ucrânia não
permitam pontuar claramente motivos alheios à defesa militar, as relações
pacientemente costuradas e amadurecidas com a China impedem que possamos
interpretar este fato como uma decisão precipitada de Putin ou como algo totalmente
inesperado.
A resposta imediata da União Européia (UE) e dos Estados
Unidos foi uma escalada de duras sanções econômicas destinadas a sufocar a
economia russa e a despertar um descontentamento popular capaz de derrubar o
governo de Vladimir Putin.
2. Mas...será que é realmente possível estrangular a
Rússia com sanções econômicas?
A nosso ver, não. A seguir, vamos pontuar os elementos que,
pela nossa interpretação das leituras realizadas e dos dados disponíveis
comprovam esta afirmação.
1. Em primeiro lugar, é necessário lembrar que, a partir
de 2008, a Rússia investiu muito na autossuficiência alimentar em parceria com
parte das repúblicas da antiga União Soviética. O fornecimento de tecnologia e
os créditos concedidos elevaram a produtividade da agricultura da região,
expandiram as culturas e impulsionaram a integração dos mercados e da
infraestrutura de transporte. Aos poucos, a Rússia não só deixou de importar
metade da comida consumida pela sua população como se tornou um exportador
líquido de alimentos (entre os quais se destacam o trigo e o óleo de girassol
que atendem, respectivamente, 18% e 23% da demanda mundial). À medida que a estrutura
produtiva do país não é devastada pela guerra, podemos dizer que Moscou tem
todas as condições para evitar que uma situação de penúria generalizada
desperte a revolta esperada por EUA e UE.
2. Além de o fornecimento de gás aos países da Europa
aumentar de um ano para outro, ampliando cada vez mais a dependência do
abastecimento proporcionado pela Gazprom, em 2021, o inverno mais rigoroso e o
calor do verão acima da média elevaram a demanda da UE muito acima das
quantidades fixadas nos acordos de longo prazo. Ao extrapolar os níveis
contratados a preços fixos, o fornecimento excedente passou a ser realizado
pelos valores vigentes no momento em que os novos pedidos eram encaminhados. O
cumprimento dos acordos e a demanda inesperada elevaram em quase 500% o preço
internacional do gás e, de consequência, a quantidade de euros e dólares que
entraram nos cofres de Moscou.
3. Graças aos investimentos estrangeiros no país e aos
superávits obtidos com as exportações de hidrocarbonetos e outras matérias-primas,
em janeiro de 2022, o Banco Central russo contava com uma quantidade de ouro e
de moedas usadas no comércio internacional correspondente a 640 bilhões de
dólares, uma soma considerável para uma economia que, em 2021, registrou um
Produto Interno Bruto (PIB) de um trilhão e 610 bilhões de dólares.
Parte deste dinheiro e do
ouro da Rússia foi aplicada em instituições financeiras internacionais sediadas
em países que aderiram às sanções econômicas. Não há estimativas confiáveis em
relação aos valores bloqueados, mas, para atenuar o processo de desvalorização
do rublo originado pela indisponibilidade destes recursos e pela saída dos
investidores, o banco central do país elevou a taxa de juros a 20% ao ano,
promulgou restrições às remessas de capital em dólares e proibiu os cidadãos de
saírem do país com mais de 10.000 rublos em moedas estrangeiras.
A imposição de que, a
partir de 1 de abril, o fornecimento de hidrocarbonetos aos países europeus
seja pago somente em rublos tem o mesmo objetivo. Mas há uma particularidade
que não pode ser desconsiderada. De fato, além de frear a desvalorização da
moeda russa (que, do início da guerra em 24 de fevereiro ao final de março,
perdeu 40% do seu valor frente ao dólar estadunidense), uma maior cotação da moeda
nacional permite adquirir uma quantidade mais elevada de criptomoedas com as
quais é possível driblar mais facilmente as sanções financeiras impostas ao
país. E aqui não se trata de suposições vagas e sim de um processo que, em
Dubai, capital dos Emirados Árabes Unidos (EAU), se tornou corriqueiro diante da
chegada de uma verdadeira enxurrada de milionários russos.
O país, que se absteve de
condenar a Rússia na votação da ONU e não impôs sanções comerciais e
financeiras a Moscou, vem recebendo de braços abertos empreendedores e
especuladores russos que procuram nele proteção para os seus capitais,
condições para implantar setores estratégicos de empresas cujo funcionamento
seria submetido a graves riscos se permanecessem no país de origem e mansões nos
quais alojarem suas famílias. Todas as transações financeiras que acompanham
estas transferências estão sendo realizadas em criptomoedas através de
intermediários locais, num claro sinal de que, por este caminho, é possível
driblar parte significativa dos bloqueios internacionais.
4. Até o dia 4 de maio, o maior banco da Rússia (o SBERBANK)
ainda não havia sido desconectado da Sociedade de Telecomunicações Financeiras
Interbancárias Mundiais (SWIFT, pela sigla em inglês) à medida que a sua
intermediação foi considerada necessária para pagar o fornecimento dos
hidrocarbonetos russos. Esta instituição financeira representa mais de um terço
do setor bancário da Rússia e ainda não há previsões em relação a quando a sua
desconexão será efetivada.
Enquanto isso não ocorre,
Moscou aprimora os mecanismos que permitem fazer transações financeiras
internacionais através do Sistema de Pagamento Interbancário Transfronteiriço
(CIPS) criado e administrado pela China. Desenvolvido em 2015, o CIPS é usado
principalmente para liquidar créditos internacionais em yaun, efetuar os
pagamentos das importações e exportações entre os países que integram a
Iniciativa do Cinturão do Comércio e a Nova Rota da Seda (inauguradas em 2013)
e fazer com que, a exemplo do dólar e do euro, a moeda chinesa ganhe cada vez
mais espaço nas transações comerciais e financeiras globais.
De acordo com o jornal
estatal chinês Jiefang Daily, em 2021, o CIPS processou cerca de 80 trilhões de
yaun (12,68 trilhões de dólares) um aumento de 75% em relação ao ano anterior.
E, em janeiro deste ano, a empresa que opera a plataforma do sistema afirmou
que dele participavam 1.230 instituições financeiras de 103 países, entre as
quais estavam 30 bancos sediados no Japão, 23 na Rússia e 31 em países africanos
(que recebem fundos em yuan para projetos de infraestrutura), além de grandes
bancos ocidentais como HSBC, Citigroup, PNB Paribas. Antes do início da guerra
na Ucrânia, 17,5% da relação comercial entre Rússia e China era realizada em yuan
e tudo indica que a corrida dos bancos russos a esse sistema vai aumentar
fortemente esta porcentagem a fim de reduzir as perdas oriundas da exclusão do
SWIFT.
5. Os problemas para estrangular a Rússia com sanções
econômicas se ampliam quando começamos a colocar na mesa tanto a importância de
alguns de seus produtos para o mercado mundial, como as relações comerciais com
a China, através da qual seria possível fazer com que parte da produção russa
chegasse aos mercados dos países que impuseram as sanções econômicas. Longe de
ser uma prática desconhecida, é justamente graças a ela que, por exemplo, o
carvão da Coréia do Norte manteve sua presença nos mercados mundiais ao ser
transportado pelos navios e trens da Rússia e da China que vendiam como próprio
o produto norte-coreano.
5.1 Vamos começar pela questão dos hidrocarbonetos. O
país é o terceiro maior exportador mundial de petróleo (com 11% do total das
vendas mundiais) e o maior exportador de gás. A proximidade geográfica e a
estrutura de oleodutos e gasodutos estão entre as principais razões pelas quais
o gás e o petróleo comprados da Rússia cobrem, respectivamente, 41% e 27% das
necessidades de abastecimento da União Européia com vendas que, em 2021, quando
os preços estavam longe dos níveis atuais, somaram 98 bilhões e 600 milhões de
dólares.
As incertezas da guerra
fizeram com que os países da UE adiantassem contratos futuros de compra ao
mesmo tempo em que pregavam a desconexão do abastecimento russo. A razão de ser
desta medida está na perspectiva pela qual, em algum momento, a Rússia suspenderá
o abastecimento como forma de retaliar o envio de armas das nações Europeias
para a Ucrânia.
Ao que tudo indica, o
governo de Kiev pode estar fornecendo a Moscou as razões de que precisa para
apressar este passo sem assumir o ônus da ruptura dos contratos. Alegando que
as tropas russas danificaram a estrutura de transporte de gás, no dia 10 de
maio, a Ucrânia reduziu a passagem do produto pela estação de Sokhranovka por
onde trafega um terço do hidrocarboneto russo que chega a Europa através do
país. Alguns analistas veem na medida uma forma de Kiev pressionar os membros
da UE que seguem reticentes em relação à suspensão da compra dos combustíveis
fósseis da Rússia. Contudo, o tiro pode sair pela culatra à medida que a
Gazprom, com base nas mesmas preocupações técnicas de segurança do gasoduto, decidiu
reduzir ainda mais a quantidade do produto na mesma rede e advertiu que não há
como compensar a quantidade não entregue através de outros ramais. A notícia
despertou apreensões em vários países europeus que, imediatamente, levantaram a
voz para defender a continuidade deste abastecimento, num claro recado a Kiev de
que não aceitarão esse tipo de pressões.
Até o final de 2022, os EUA
entregarão à Europa uma quantidade adicional de gás liquefeito que corresponde
a cerca de 10% do que é habitualmente fornecido pela Gazprom. Longe de eliminar
a dependência do produto escoado por Moscou, o gás estadunidense precisa passar
pelo processo de gaseificação para poder ser utilizado. Os custos desta fase e
dos elevados preços dos fretes marítimos se somam ao fato de que muitos países
da UE ou não dispõem de estruturas adequadas ou a capacidade instalada está
aquém do necessário. Concretamente, além de este gás sair bem mais caro, é
necessário que as nações importadoras invistam na gaseificação, um processo com
o qual nunca tiveram que se preocupar à medida que os gasodutos da Gazprom
traziam o produto pronto para o uso.
Outra parte bem pequena das
necessidades de abastecimento poderá ser suprida pela Noruega até o final de
2022. O país é o terceiro maior exportador mundial de gás depois da Rússia e do
Qatar e, atualmente, cobre 20% da demanda européia. Com os equipamentos
existentes, a Noruega consegue aumentar a extração de gás em um milhão e 400
mil metros cúbicos diários. Parte desta quantidade está destinada à Polônia que
viu seu fornecimento cortado pela Rússia após se recusar a pagar o produto em
rublos. O gasoduto do Báltico, entre Noruega e Polônia via Dinamarca, deve
ficar pronto em novembro deste ano. Somando as quantidades fornecidas pela
Noruega com o gás que virá da Lituânia (a primeira nação européia a atingir a
autossuficiência na produção do gás) a partir do final de maio, Varsóvia terá a
mesma quantidade que era fornecida pela Rússia. Apesar disso, o país espera
momentos críticos a partir de outubro quando a calefação aumenta drasticamente
a demanda de gás e as perspectivas de uma oferta à altura das necessidades deve
atrasar de 45 a 60 dias.
A África proporciona 18% do
gás comprado pela Europa ao longo da última década. Aumentar esta fatia já está
nos projeto que as multinacionais do setor colocaram na ordem do dia a partir
dos desdobramentos da guerra na Ucrânia. Contudo, não há como fazer isso com as
atuais instalações e uma maior extração de gás demanda novos investimentos cuja
entrada em operação precisa de um tempo considerável.
O caso da Bulgária é ainda
mais grave, à medida que pouco menos de 90% das necessidades do país são
cobertas pelo gás russo. Apesar de pagar pelo produto em euros, Sófia viu seu
abastecimento completamente interrompido. Remanejar para a Bulgária parte do
gás que ainda chega à Europa é uma possibilidade real, mas que não é vista com
bons olhos pelos países que, em função disso, teriam que abrir mão de parte do
seu abastecimento e ampliar a utilização de suas reservas.
As empresas distribuidoras
de gás sediadas na UE que recebem e pagam em rublos não estão isentas de
pressões. O fornecimento de armas à Ucrânia dos países nos quais atuam vem
sendo punido com a redução do abastecimento às quantidades contratadas pelos
acordos de longo prazo. Ao não cobrir os excessos de demanda oriundos das
condições climáticas, estas nações veem seus estoques encolherem enquanto a
busca frenética no mercado mundial eleva ainda mais os preços do produto. Basta
pensar que, no dia 12 de maio, o preço internacional do gás registrava um
aumento de 73,8% em relação ao patamar imediatamente anterior à invasão da
Ucrânia.
A elevação dos preços mundiais
dos hidrocarbonetos faz os olhos do mundo se voltarem para os países da OPEP
que contam com uma capacidade ociosa considerável. Mas o cartel que perdeu
recursos com a forte queda dos preços do petróleo durante a crise desencadeada
pelo coronavírus está decidido a recuperar os lucros que não conseguiu consolidar
durante a pandemia e optou por aumentar a sua produção a um ritmo tão vagaroso
que em não proporciona uma redução dos preços internacionais do barril.
Contudo, este não é o único
fator que explica os ouvidos moucos dos 13 membros da OPEP e dos 10 países
exportadores que integram a chamada OPEP+ cuja produção abastece 40% da demanda
mundial de petróleo. De fato, a Rússia é uma das nações do grupo do
"+" e o maior produtor dos 23 países do cartel à medida que a sua
produção diária supera em cerca de 100.000 barris de petróleo a quantidade
extraída pela Arábia Saudita, país com o qual negociou a implantação de uma
fábrica de fuzis de assalto Kalishnikov e de centrais nucleares durante a
gestão de Donald Trump. Mantidas as condições atuais do conflito, a relação
entre o reino saudita e o governo Putin cuida de garantir as relações que
levaram a OPEP+ a níveis invejáveis de lucratividade e busca assegurar as
oportunidades de negócios que constituem um diferencial tecnológico e militar
importante em relação aos demais países da região.
Esta situação é parte dos
motivos pelos quais Hungria e Eslováquia rejeitam frontalmente a ideia de
romper as amarras com o petróleo russo e preferem acatar as exigências de
Moscou, apesar de integrarem a União Européia. A proximidade geográfica, a
ausência de acesso marítimo e o fornecimento através de oleodutos administrados
por empresas russas completam o quadro de motivos pelos quais estas nações
ficariam sem abastecimento de petróleo da noite para o dia, caso se recusassem
a usar o rublo para pagar seu abastecimento. Fortes resistências surgem também
da Itália, da Áustria, da Bulgária e da República Tcheca que, com o fechamento
dos campos da Líbia após a intervenção militar estadunidense, elevaram a sua
dependência da Rússia.
Além disso, parte das
estruturas de refino existentes na Europa está voltada exclusivamente para o
beneficiamento de petróleo russo. A refinaria de Schwed de propriedade da
Rosneft, é um desses casos. Sediada na Alemanha, suas instalações só funcionam
com o tipo de petróleo fornecido pela Rússia e delas saem os combustíveis que
alimentam Berlim e parte significativa dos territórios da antiga Alemanha
Oriental.
Num primeira balanço da
Comissão Europeia encarregada de tratar da desconexão do bloco dos combustíveis
fósseis vindos da Rússia, Bruxelas estima que a substituição deste
abastecimento demanda investimentos da ordem de 205 bilhões de dólares. Mais um
elemento que tende a encarecer os preços da energia no velho continente e
mostra a impossibilidade de uma desconexão imediata.
5.2 Além do petróleo e do gás, Moscou é um dos maiores
exportadores de trigo (com mais de 35 milhões de toneladas anuais) e de
fertilizantes. Não é preciso ser agrônomos para entender que reduzir o uso de
fertilizantes equivale a encolher a produção de alimentos e a pressionar ainda
mais os preços que já conheceram altas significativas desde o início da guerra.
Neste sentido, o Banco Mundial estima que, em 2022, o preço médio dos
fertilizantes deve sofrer um aumento de 69,0% e o dos alimentos de 37,0%, atingindo,
principalmente, as nações mais pobres.
A situação é
particularmente grave nos países do Norte da África e do Oriente Próximo que
importam 50% dos cereais de que precisam da Ucrânia e da Rússia. Por sua vez, a
redução do uso de fertilizantes tende a reduzir a produção local de alimentos e
a agravar a insegurança alimentar de suas populações. O resultado final é um
forte aumento da possibilidade de situações de descontentamento social levarem
à desestabilização dos governantes desses países que, cientes desta ameaça,
consideram a adesão às sanções econômicas contra Moscou um verdadeiro tiro no
pé.
O Equador oferece um
pequeno exemplo de como punir a Rússia é sinônimo de sufocar alguns setores da
própria economia. Em menos de dois meses de conflito, os produtores de banana
deixaram de vender o equivalente a 30 milhões de dólares, uma quantia
considerável para o país. Além de não encontrar comprador, a produção sofre com
a elevação dos preços dos fertilizantes e dos transportes, o que encolhe
drasticamente as perspectivas de lucro e a manutenção dos empregos existentes.
5.3 As sanções contra a Rússia também fizeram disparar os
preços de várias commodities utilizadas na produção do aço e na transição
energética para uma economia de baixo carbono. O país, de fato, é o segundo
maior exportador mundial de níquel e o terceiro de cobalto, metais
indispensáveis para a fabricação das baterias usadas em todos os dispositivos
móveis e nos veículos elétricos. Em algumas delas, o níquel representa 80% da
mescla utilizada, além de ser imprescindível na fabricação de aços inoxidáveis
e de componentes das turbinas eólicas.
O impacto das sanções já é
visível nos preços destas commodities e atinge indistintamente as empresas de
todos os países que dependem delas para produzir. Entre janeiro e março deste
ano, o preço do níquel aumentou 52,0% e o do cobalto 18,0%. Os contratos
futuros assinados no dia 6 de maio deste ano mostram que o abastecimento destas
matérias-primas sofreu um reajuste de 67,66%, no caso do níquel, e de 81,56%,
no do cobalto, em relação ao mesmo dia de 2021. Esta situação está levando
algumas fábricas europeias de aços inoxidáveis a cortarem a produção diante da
perspectiva de uma queda significativa da demanda em função do repasse dos
custos da energia e da matéria-prima para o produto final.
As dificuldades no
abastecimento contam também com o fato de que a China, aliada da Rússia,
processa 37,5% do níquel, 63% do cobalto e 58% do lítio (cujo preço em 6 de
maio estava 413,89% maior em relação ao mesmo dia de 2021) vendidos mundo
afora. De um lado, a elevação dos preços destas commodities permite compensar o
aumento dos gastos na compra de petróleo e gás russos de Pequim. De outro, esta
condição particularmente favorável melhora significativamente a possibilidade
de a China oferecer ajuda econômica à Rússia sem sofrer ameaças de retaliações
significativas.
Ao que tudo indica esta
condição parece assegurada por outro fator fundamental num mundo cada vez mais
dependente da eletrônica para uso civil e militar. Precisamos lembrar que a
China produz 60% das terras raras e processa 88% deste material em nível
mundial. Trata-se de um insumo essencial para a fabricação de componentes dos
armamentos mais modernos e dos equipamentos tecnologicamente mais avançados. A
depender dos desdobramentos do conflito Pequim pode reduzir o fornecimento
deste insumo às grandes potências, conforme já ameaçou fazer quando da ingerência
dos Estados Unidos na questão da independência de Taiwan.
5.4 As relações comerciais no grupo dos BRICS (Brasil,
Rússia, Índia, China e África do Sul) permitem constatar como o impacto das
sanções impostas à Moscou pode ser amenizado de várias formas.
Desde 2014, a Rússia mantém
com a China um acordo para o fornecimento de gás natural que, em 30 anos,
atingirá 400 bilhões de dólares. Na cúpula entre os dois países, realizadas no
dia 4 de fevereiro deste ano, Putin anunciou a construção de um novo gasoduto
que, no mesmo período, aumentará em um terço o atual abastecimento de gás. Na
mesma ocasião, as duas nações assinaram um acordo para o fornecimento de 100
milhões de toneladas de petróleo bruto russo para a China, via Cazaquistão, nos
próximos 10 anos. A cooperação entre Moscou e Pequim cresceu ininterruptamente
desde 2014. Hoje a China vende à Rússia infraestruturas de alta tecnologia e
semicondutores, enquanto Moscou abastece Pequim de produtos agrícolas,
armamento moderno, gás e petróleo.
A China é também um dos
maiores parceiros comerciais da África de Sul e faz coro com ela, junto a
Rússia e Índia, na demanda por reformas das instituições multilaterais. Pequim
sabe que o país atua como porta de entrada na maioria dos países africanos e,
graças a esta mediação, o gigante asiático controla estradas e ferrovias,
centros de mineração e extração de petróleo, e parte considerável da política
econômica destes países através dos financiamentos outorgados para viabilizar
projetos governamentais.
Por sua vez, Moscou vem
usando a venda de armas, a presença de assessores militares e o fornecimento de
mercenários para ampliar a sua influência no continente africano. Não por
acaso, os governos de Pretória e de um terço dos países africanos se abstiveram
da votação da ONU que condenava a Rússia pela invasão da Ucrânia. Entre os
elementos que mais pesaram na decisão dos que agiram em sentido oposto está o
medo de perder as doações dos países ricos das quais são fortemente dependentes
para sustentar suas economias.
O encontro de Bolsonaro com
Putin e a não imposição das sanções econômicas ao país serviram para mostrar
que a Rússia não está política e economicamente isolada e que o Brasil vai
manter as importações de fertilizantes a qualquer custo. O recente pedido da
Organização Mundial do Comércio para que o país produza uma maior quantidade de
alimentos foi saudada como uma forma de justificar as compras da Rússia, conter
as pressões internacionais contra o aumento do desmatamento e assegurar lucros
polpudos ao agronegócio.
Para termos uma ideia das
possibilidades que a guerra abre aos latifundiários brasileiros, basta pensar
que, em 2022, a Ucrânia não terá condições de fornecer 80,0% do total do milho
comprado pela China no ano passado e nem os 52,0% da necessidade total da UE.
Neste cenário, os latifundiários venderão safras inteiras a preços
internacionais excepcionalmente elevados dentro e fora do país o que, por sua
vez, deve encarecer todos os produtos que tem o milho em sua cadeia produtiva.
Além de se recusar a
condenar a Rússia na ONU, a Índia declarou abertamente que não só continuará
comprando o petróleo russo (cujo preço, em função das sanções, está 30% mais
barato em relação aos patamares do mercado mundial) como aumentou as
importações deste hidrocarboneto em 730.000 barris diários, compensando com
folga os 705.000 barris diários que a União Européia e o Reino Unido deixaram
de comprar após a imposição das sanções. Se isso não bastasse para explicar o
comportamento do país, precisamos lembrar que Nova Delhi obtém da Rússia parte
considerável do seu armamento, aposta na mediação de Moscou para conter as
tensões com a China na fronteira do Himalaia e trabalhará para aumentar o
comércio bilateral em moedas locais.
A nosso ver, o conjunto
destes elementos mostra que, apesar dos efeitos negativos sobre a sua economia,
as sanções impostas a Moscou serão incapazes de sufocar o país a fim de
privá-lo das condições que permitem sustentar o esforço bélico em território
ucraniano. Para que isso seja possível, se fazem necessárias medidas bem mais
contundentes, conforme mostraremos no próximo capítulo.
3. Resultados e tendências da guerra na Ucrânia.
A invasão da Ucrânia permitiu que a Rússia testasse o
desempenho dos seus mísseis hipersônicos num cenário de guerra real com
resultados que, até o momento, se revelaram excelentes. As possibilidades de
utilização e a eficácia deste artefato bélico, ainda indisponível nos países da
OTAN, assustam os especialistas do setor. Além poderem carregar ogivas
nucleares a uma distância maior e a uma velocidade muito superior em relação
aos mísseis balísticos convencionais, de os mísseis hipersônicos têm mais
chances de não serem interceptados pelas defesas terrestres.
Fracassado o plano inicial de um ataque em várias frentes
que levasse o exército à rendição e o
governo ucraniano a capitular, a Rússia se depara com uma guerra que o seu
Ministro das Relações Exteriores, Serguei Lavrov, apelidou de “guerra por
procuração”, ou seja, de um conflito no qual os países da OTAN enfrentam as
tropas de Moscou por intermédio do exército ucraniano. Repelida a tentativa de
ataque a Kiev com armamentos bem superiores aos que a Rússia esperava
encontrar, Moscou optou por concentrar seus ataques nas regiões separatistas a
leste da Ucrânia e na faixa litorânea a sul do país.
No momento em que escrevemos, a posição das tropas russas
e a necessidade de fazer desta guerra um evento que melhore a correlação de
forças da Rússia diante da OTAN sugerem que Moscou pretende criar um corredor
entre a fronteira com a Ucrânia e o território da Transnistria, uma região que conquistou
a sua independência da Moldávia em 1992 e, desde então, estabeleceu relações
amigáveis com a Rússia.
O mapa que segue ajuda a
melhor localizar estes territórios.
Figura 2: a posição das
tropas russas no sul da Ucrânia rumo à Transnistria
Fonte: BBC
Situada entre a Moldávia e a fronteira oeste da Ucrânia,
a Transnistria é conhecida por guardar o maior arsenal dos tempos da Guerra
Fria com uma quantidade de armas e munições que as estimativas correntes situam
entre as 20.000 e as 40.000 toneladas. Ainda que parte destes equipamentos
esteja obsoleta ou sem condições de uso, é fato que ninguém sabe ao certo o que
é guardado nos seus paióis e que tipo de poder ofensivo estes armamentos
oferecem.
Os principais motivos para a criação deste corredor por
parte da Rússia parecem ser dois: 1. A possibilidade de impedir qualquer acesso
de Kiev ao Mar Negro e ao Mar de Azov, o que anularia toda a estrutura
portuária da Ucrânia e a anexação à Rússia da região mais industrializada do
país, o que representaria um duro golpe à economia ucraniana; 2. A
possibilidade de instalar nesta faixa de terra bases militares russas cuja
maior proximidade com os países da Europa Ocidental traria sérias preocupações
à Aliança Atlântica.
Diante dos planos de Moscou e da reduzida eficácia das
sanções impostas ao país, a aposta principal dos EUA está em reunir os recursos
necessários para sustentar uma guerra que sufoque a economia russa com os
dispêndios que a manutenção das tropas de ocupação impõem ao país. Em breves
palavras, os EUA querem uma Rússia debilitada por um conflito de longa duração
e que cesse somente quando a Ucrânia recuperar os territórios ocupados pelos
exércitos de Moscou.
É à luz desta perspectiva que entendemos porque o
Presidente dos EUA, Joe Biden, pediu ao Congresso a liberação de um
financiamento de 33 bilhões de dólares para colocar a Ucrânia em condições de
tocar a guerra, dos quais 20 bilhões seriam de ajuda militar propriamente dita.
Ao analisar o pedido, a Câmara dos Deputados estadunidense foi mais longe e ampliou
o valor total para 40 bilhões de dólares, a fim de garantir uma maior segurança
alimentar da população e apoiar as atividades econômicas locais enquanto
perduram os enfrentamentos. A liberação deste montante de recursos depende agora
da anuência do Senado.
Vale lembrar que, sem
contar os armamentos fornecidos logo após o início das hostilidades e os treinamentos
de tropas ucranianas para operá-los, os 20 bilhões de dólares em armas a serem
enviados correspondem a cinco vezes o orçamento que, em 2021, o governo de Kiev
destinou à Defesa do país (incluindo gastos com pensões e salários dos
militares) e a pouco menos de um terço dos investimentos bélicos da Rússia em
2020 (U$ 61,7 bilhões, de acordo com o último levantamento disponível).
Desta forma, os EUA enviam a Putin uma mensagem muito clara:
o fim da guerra está vinculado à sua percepção de que não poderá obter nenhuma
vitória em território ucraniano. Esta postura aumenta as possibilidades de o
conflito ganhar contornos incontroláveis. À medida que a Rússia se depara com
forças armadas "ucranianas" dotadas de armamento farto e sofisticado;
cujos soldados podem tranquilamente incluir tropas de mercenários treinadas no
exterior, pilotos de caça e especialistas de outros países na operação de equipamentos
destinados a inutilizar as armas convencionais adotadas até esse momento; e
sabendo que a retirada das tropas sem ganho algum representaria o fim da carreira
política de Putin, a opção pelo tudo ou nada inclui sim a utilização de armas
de destruição em massa, entre elas as que são típicas da guerra química e
nuclear.
4. Os reflexos imediatos da guerra no cenário mundial.
Derrotada a perspectiva de uma guerra curta, as
preocupações das instituições financeiras e dos investidores se voltam ao
impacto do conflito na economia mundial. Vamos listar alguns dos elementos que
estão na ordem do dia:
1. A Rússia é o 5º maior importador de produtos da União
Européia. Apesar de não ser o principal parceiro comercial das economias do
bloco, as sanções acabam resvalando nas empresas sediadas no território destes
países que, a partir de março, não podem contar com o mercado russo para escoar
parte da sua produção.
2. Em 2022, o preço do petróleo tende a se manter acima
dos U$ 100 o barril e os do gás devem continuar com uma tendência de alta pelas
razões que apresentamos nas páginas anteriores. Em função disso, o Banco Mundial
projeta uma elevação média de 50% nos custos da energia que se soma ao
encarecimento dos preços dos transportes, dos derivados largamente utilizados
pela indústria química e de plásticos do mundo inteiro. Diante desta
perspectiva, o relatório que o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou no
dia 19 de abril deste ano aponta uma inflação média de 5,7% nos países avançados
e de 8,7% nos emergentes. A alta dos preços vai corroer o poder de compra de
salários que ainda não voltaram ao patamar anterior à pandemia, reduzir o
consumo das famílias e frear a retomada dos investimentos em função da
necessidade de os bancos centrais elevarem as taxas de juros para conter uma
inflação. Segundo a entidade, este cenário vai desacelerar o crescimento
econômico mundial conforme aponta a comparação entre as estimativas divulgadas
em janeiro e abril deste ano.
Quadro 1- FMI: projeções de
crescimento econômico em janeiro e abril de 2022.
Países |
Projeção de crescimento em janeiro 2022 |
Projeção de crescimento em abril de 2022 |
Variação em pontos percentuais abril/janeiro |
Mundo |
4,4% |
3,6% |
- 0,8 |
Estados Unidos |
4,0% |
3,7% |
- 0,3 |
Zona Euro |
3,9% |
2,8% |
- 1,1 |
Alemanha |
3,8% |
2,1% |
- 1,7 |
Itália |
3,8% |
2,3% |
- 1,5 |
China |
4,8% |
4,4% |
- 0,4 |
Índia |
9,0% |
8,2% |
- 0,8 |
Rússia |
2,8% |
- 8,5% |
- 11,3 |
África do Sul |
1,9% |
1,9% |
0 |
Brasil |
0,3% |
0,8% |
0,5 |
Fonte: Fundo Monetário Internacional
Os números indicam que o
ritmo de crescimento da economia mundial deve perder quase um ponto percentual
em relação às perspectivas anteriores à guerra com Alemanha, Itália e Rússia
apresentando uma redução mais acentuada entre os países citados no quadro 1. A
economia da África do Sul mantém a mesma projeção de crescimento enquanto o
Brasil melhora a sua perspectiva em meio ponto percentual em função, sobretudo,
do desempenho do agronegócio.
3. A guerra na Ucrânia torna mais gelatinosa a relação de
muitos países com as grandes potências e abre caminhos a novos posicionamentos
no tabuleiro da geopolítica mundial. Alguns exemplos ajudam a visualizar esta
situação:
3.1 A Turquia, por exemplo,
integra a OTAN desde 1952, vende drones militares e blindados à Ucrânia desde
2019, condenou a agressão da Rússia na ONU, mas não aderiu às sanções contra
Moscou e elevou em 180.000 barris as suas importações de petróleo russo. Com
esta posição, Ancara busca não irritar Putin com o qual o governo de Recep
Erdogan teceu relações amigáveis quando do combate aos grupos separatistas curdos
do PKK que, armados pelos EUA na guerra contra Bashar Al-Assad, da Síria,
haviam fortalecido a sua atuação no país.
Por outro lado, o país não
pode contrariar os planos da OTAN. Neste sentido, suspendeu a passagem dos
navios de guerra russos pelos estreitos que conectam o Mar Negro com o Mar
Mediterrâneo. Esta medida visa impedir que um número maior de embarcações de
guerra apoie pelo mar tanto as operações terrestres em andamento como a
possível expansão da invasão no sul da Ucrânia. Difícil saber onde levará a
relação ambígua pela qual Rússia e Turquia são ora amigos, ora inimigos.
3.2 No final de março, a
Alemanha revogou repentinamente a sua proibição de exportar armas letais para
zonas de conflitos e entregou à Ucrânia 1.000 armas antitanque e 500 mísseis
terra-ar. Esta medida foi vista como uma forma de Berlim se desfazer de um
estoque de armas consideradas ultrapassadas e de abrir espaço para uma nova geração
de artefatos bélicos que colocariam a Alemanha em condições de enfrentar uma
guerra com inimigos poderosos.
Neste sentido, é importante assinalar que,
algumas horas após o anúncio da revogação, o chanceler Olaf Scholz revelou que,
em 2022, o seu país ajudará as tropas da OTAN no flanco leste da Europa (o que
inclui enviar mais soldados para a Eslováquia), integrará a defesa do espaço
aéreo aliado e investirá US$ 113 bilhões em gastos bélicos, mais que o dobro em
relação aos U$ 52,8 bilhões de 2020. Pelo visto, a invasão da Ucrânia forneceu
a ocasião que a Alemanha esperava para justificar a participação direta em
conflitos armados e a ampliação do seu poder ofensivo.
3.3 No dia 27 de fevereiro,
três dias após o início das hostilidades na Ucrânia, o governo da Bielorrússia,
aliado de Moscou, promoveu uma reforma constitucional que prevê a presença de
armas de destruição em massa russas em seu território e na fronteira com
Polônia, Lituânia e Letônia, países que integram a OTAN. Com a efetivação da
reforma e o posicionamento das armas russas, o equilíbrio nuclear da região vai
sofrer tensões consideráveis. Os passos da guerra na Ucrânia definirão os
ritmos deste projeto.
3.4 A Finlândia anunciou
sua firme intenção de entrar na OTAN. O fato de deixar para trás sua histórica
posição de neutralidade é relativizado na medida em que o país integra a UE e
outros acordos de cooperação militar. Por exemplo, o artigo 42 do tratado de
Lisboa reza que as nações do bloco devem ajudar militarmente o Estado membro
cujo território tenha sido invadido por um país fora da União Européia. A
Finlândia também integra a Força Expedicionária Conjunta do Reino Unido, cujo
acordo de envolvimento recíproco na defesa militar inclui vários países da
OTAN.
A ideia de aderir à Aliança
Atlântica não é nova e já havia sido sondada em 2021, quando uma pesquisa de
opinião mostrou que ela contava com 30,0% de aprovação e era rejeitada por 40,0%
dos entrevistados. A incursão da Rússia em território ucraniano e a atuação da
mídia criaram o ambiente ideal para que 62,0% dos finlandeses aprovem a ideia e
somente 16,0% a rejeitem.
3.5 Na Ásia, o Vietnã não
tem um bom histórico de relações com os EUA, mas está preocupado com o
crescente poder do gigante asiático, com o qual disputa o controle do Mar do
Sul da China. Washington vinha aproveitando o clima de tensão do país com
Pequim para fortalecer as relações econômicas com Hanói. À medida que a guerra
deve ampliar a influência da China na região, o Vietnã fica literalmente entre
o prego e o martelo: costurar uma aliança com o antigo invasor parece absurdo e
se submeter à apropriação das águas internacionais que a China deseja impor é
uma ameaça à soberania nacional.
3.6 O Paquistão foi aliado
dos EUA durante a Guerra Fria, mas, atualmente, está cada vez mais ligado à
China. O país recebe armas da Rússia e precisa das bênçãos de Moscou para
garantir as rotas comerciais rumo ao interior da região norte da Ásia Central.
Impossível dizer agora que riscos o governo de Islamabad está disposto a
assumir ao aderir à estratégia em volta da qual Rússia e China ampliam seu
papel na geopolítica mundial em oposição à hegemonia estadunidense.
4. Em 2021, a OTAN viveu o momento
mais delicado da sua história à medida que os países da União Européia buscavam
construir uma posição autônoma em relação às estratégias militares traçadas
pelos EUA. A invasão da Ucrânia transformou a Rússia em "inimigo
comum" e devolveu à Aliança Atlântica o papel de coração da defesa da
Europa. Mas isso não é tudo.
O estreitamento das
relações entre Rússia e China e a postura do gigante asiático diante da invasão
da Ucrânia fortalecem a posição pela qual o país é considerado uma "ameaça
potencial". À medida que esta postura reflete em grande parte as decisões
e os interesses dos EUA no interior da OTAN, a China teme que Washington se
aproveite do conflito na Ucrânia para fortalecer e ampliar suas alianças
militares na região dos Oceanos Índico e Pacífico.
A aliança entre EUA, Reino
Unido e Austrália no final de 2021, conhecida como Plano AUKUS, foi um dos
passos desse processo. Mas, neste momento, o que mais preocupa Pequim é o
protagonismo das ações do Diálogo de Segurança Quadrilateral, mais conhecido
como QUAD. Trata-se de um acordo de cooperação militar que promove exercícios
de defesa conjunta entre as forças armadas de EUA, Austrália, Índia e Japão.
Desta forma, o QUAD não
representaria apenas um desafio crescente à influência chinesa na região, mas
se tornaria uma ameaça direta à sua segurança à medida que os contingentes
armados destes países poderiam ser integrados à que a Secretária de Relações
Exteriores do Reino Unido chamou recentemente de "OTAN Global".
No final de junho deste
ano, os Estados membros da Aliança Atlântica se reunirão em Madri, na Espanha,
para definir a missão da OTAN para a próxima década. Espera-se que o documento
final do encontro defina o papel e o peso da China em termos de ameaça à
segurança global e a posição da Aliança Atlântica com Pequim.
Nossas reflexões chegaram
ao fim. A ideia de coletar dados e acontecimentos para esboçar as poucas e
assustadoras tendências que apresentamos nasceu da necessidade de detectarmos os
elementos que permitem tomar o pulso da realidade e acompanhar os
desdobramentos desta guerra. Esperamos ter conseguido mapear ao menos parte dos
aspectos centrais de um momento histórico em que a disputa pela hegemonia no
interior da geopolítica mundial ganha novos passos. Lembrar deles ajudará a
jogar alguma luz nos interesses capitalistas que as trevas da incerteza procuram
ocultar.
Emilio Gennari, Brasil, 12
de maio de 2022.
_____________________________________________________
Em função do acúmulo de trabalho no qual estivemos
envolvidos, faltaram tempo e condições materiais para que pudéssemos citar
devidamente a fonte de cada um dos dados e dos acontecimentos analisados neste
texto. Apesar disso, o leitor terá condição de encontrá-los e de aprodundar
alguns dos temas tratados nas matéria utilizadas para a elaboração das nossas
reflexões através dos links que seguem:
- https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60488813
- https://www.focus.jor.br/russia-tem-um-pib-menor-que-o-da-california-nos-eua/
- Os dados referentes aos gastos bélicos de
2021 ainda não estão disponíveis. As comparações foram feitas com base nos
cálculos do SIPRI, divulgados no anoa passo e disponíveis em: https://www.defesanet.com.br/tt/noticia/40451/SIPRI---Gastos-militares-mundiais-sobem-para-quase-US-%24-2-trilhoes-em-2020/
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-61108454
- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60991122
- https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60866401
- https://pt.tradingeconomics.com/commodity/cobalt
- https://www.indexmundi.com/pt/pre%E7os-de-mercado/?mercadoria=n%C3%ADquel
- https://pt.tradingeconomics.com/commodity/lithium
- https://m.br.investing.com/commodities/natural-gas-advanced-chart
- https://www.istoedinheiro.com.br/india-e-russia-firmam/
- https://www.scielo.br/j/cint/a/FdC8BWPWfwwbzq5Zc7LqBQd/?lang=pt
- https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61238851
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-61144362
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-59570814
- https://brasil.elpais.com/brasil/2014/11/19/internacional/1416421925_750344.html
- https://brasil.elpais.com/brasil/2014/11/15/internacional/1416088304_442188.html#?rel=mas
- https://br.noticias.yahoo.com/ucr%C3%A2nia-corta-g%C3%A1s-russo-para-191000496.html
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-61311006
Os acessos foram realizados entre os dias 01 de
fevereiro e 11 de maio de 2022.
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