Paulo
Sergio Tumolo[1]
A guerra que a Rússia desencadeou na Ucrânia no início de 2022 é
um caso emblemático a ser decifrado no atual contexto do capitalismo. Sabemos,
com certeza, que o estado nacional russo entrou em guerra com o estado nacional
ucraniano, mas ficam muitas dúvidas, sendo que a principal é a seguinte: os estados
nacionais russo e ucraniano são a expressão política de que classes, ou
segmentos de classe, capitalistas?
Parece-me que o tratamento, mesmo que hipotético, dessa questão
poderia ser apresentado a partir de duas vertentes.
Supondo, primeiramente, que existam uma burguesia nacional capitalista russa e uma
burguesia nacional capitalista
ucraniana, que teriam nascido tardiamente
devido ao processo de desintegração da União Soviética e à decorrente formação
de alguns países que fizeram sua transição para o capitalismo, e os estados
nacionais russo e ucraniano seriam a expressão política de suas respectivas
burguesias nacionais. Por que a burguesia nacional
capitalista russa teria precisado abrir uma guerra militar contra a burguesia nacional capitalista ucraniana? Para
ocupar o território ucraniano, diriam alguns, e, dessa maneira, ter acesso a um
conjunto de riquezas. Parece-me uma hipótese plausível, uma vez que isso
poderia fortalecer a burguesia nacional
capitalista russa, em detrimento da burguesia nacional capitalista ucraniana e, dessa forma, contribuir em seu
afã de se projetar como uma burguesia capitalista transnacional, o que se impõe como necessidade de sobrevivência.
Em segundo lugar, poderíamos supor que os estados nacionais
russo e ucraniano não seriam a
expressão política de suas respectivas burguesias nacionais, mas sim,
determinantemente, de empresas capitalistas já devidamente transnacionalizadas
presentes em seus territórios. Neste caso, por que o estado nacional russo
precisou fazer uma guerra militar contra o estado nacional ucraniano? A
resposta seria a mesma, ou seja, para poder tomar suas riquezas e,
adicionalmente, ter acesso a um mercado consumidor de mercadorias? Penso que,
aqui, cabem algumas ponderações.
Riquezas naturais ou manufaturadas entram no processo de
produção de capital como meio de produção, ou, mais precisamente, como capital
constante. Como sabemos, o elemento primordial no processo de produção de
capital é a força de trabalho, que entra como capital variável e, sendo assim,
é a única fonte de produção de mais-valia e, portanto, de capital. Devemos
enfatizar que a finalidade de qualquer capitalista não é conseguir
matéria-prima, mas sim, acumular capital. Por isso, matéria prima é meio para se atingir o objetivo, que é
o capital, produzido pela força de trabalho com a utilização dos meios de
produção.
Durante o período que vai do final do século XVIII até a época
do imperialismo, era necessário que as burguesias nacionais entrassem em
confrontos militares entre si para disputar os mercados fornecedores de matéria
prima e consumidores de suas mercadorias porque era a única maneira de realizar
o ciclo completo de produção, circulação e acumulação de capital.
Explico melhor. A produção de capital era feita exclusivamente
nas nações nas quais a relação de produção capitalista era determinante. Para
que haja produção de capital, é preciso juntar dois elementos: capital
constante (meios de produção) e capital variável (força de trabalho). Ocorre
que o capital variável se encontrava quase que exclusivamente nas nações
capitalistas, mas parte considerável do capital constante se localizava fora
destas nações, em territórios nos quais a relação capitalista ainda não era
determinante. Para poder juntar esses dois elementos, que estavam separados em
lugares diferentes, e dessa maneira produzir capital, as burguesias nacionais
capitalistas precisavam ter o controle dos territórios fornecedores de capital
constante e, para isso, lançavam mão de todo tipo de expediente, inclusive do instrumental
militar.
Ao mesmo tempo, as burguesias nacionais capitalistas
necessitavam ter o controle dos territórios consumidores das mercadorias
produzidas em suas respectivas nações, grávidas de mais-valia, para
poderem realizar a circulação de capital, perfazendo, assim o ciclo de
acumulação de capital. Esse controle exigia, muitas vezes, confrontos
militares.
Grande parcela do processo de produção e circulação de capital
era feito de fora para dentro e de dentro para fora, respectivamente. Ou seja,
o processo de produção de capital
nas nações capitalistas era feito com o capital variável destas nações e, em
grande parte, com o capital constante que vinha de fora. Por sua vez, o processo de circulação de capital era
realizado com as mercadorias produzidas, de forma capitalista, dentro das
nações capitalistas, que eram exportadas para fora delas.
Sendo assim, as burguesias nacionais capitalistas tinham
necessidade de controle não apenas sobre sua força de trabalho nacional
(capital variável nacional), como também dos mercados fornecedores de
matéria-prima (capital constante) e consumidores de suas mercadorias
(circulação do capital). Esse controle era feito de dentro, quer dizer, das
nações capitalistas, ou melhor, dos estados nacionais das burguesias capitalistas
nacionais, para fora, ou seja, para o restante das nações nas quais a relação
capitalista ainda não era determinante. Os estados
nacionais eram, portanto, os agentes
centrais desse controle.
Por causa da necessidade dessas formas de controle para a
produção e circulação de capital, conflitos militares entre burguesias
nacionais capitalistas não apenas eram comuns, mas também necessários durante o
período que vai do final do século XVIII até a primeira metade do século XX,
protagonizados por seus respectivos estados nacionais.
Entretanto, tudo isso se alterou com a transnacionalização da
exploração capitalista da força de trabalho, que se consolida a partir da
segunda metade do século XX. Com isso, determinada burguesia capitalista
nacional não precisa mais buscar capital constante na forma de matéria-prima em
territórios distantes para juntar com o capital variável de sua nação, para que
haja produção de capital. Basta instalar uma empresa capitalista nos lugares
onde está o capital constante e comprar, ali mesmo, a força de trabalho que,
explorada como capital variável, irá produzir capital. Da mesma maneira, essa
burguesia capitalista nacional não precisa mais exportar as mercadorias
produzidas para outros territórios porque as mercadorias, prenhas de mais-valia, que foram produzidas naqueles mesmos
lugares, serão ali consumidas, realizando, assim, a circulação de capital.
O que passa a ocorrer, com a transnacionalização da exploração
capitalista da força de trabalho, por meio da ação das empresas capitalistas
transnacionais, é que a junção do capital constante com o capital variável, que
antes era feita, em grande medida, de fora para dentro, agora é realizada de
dentro para dentro. Em outras palavras, a produção de capital, que antes era
feita, em grande parte, de fora para dentro, agora é realizada de dentro para
dentro.
Da mesma forma, a circulação de capital, que antes era feita, em
grande medida, de dentro para fora, agora é realizada de dentro para dentro.
Resumidamente, a produção e circulação de capital, que antes
eram feitas, em grande parte, de fora para dentro e de dentro para fora, agora
são realizadas de dentro para dentro. Na verdade, deixa de existir fora, porque produção e circulação de
capital passam a se realizar dentro
de um único mercado mundial de produção
e circulação de capital, e não mais em mercados nacionais. As burguesias
capitalistas nacionais cedem lugar às empresas capitalistas transnacionais,
porque os capitais nacionais vão se convertendo em capital transnacional ou capital
mundial ou, apenas, capital. Dessa maneira, com a transnacionalização da
exploração capitalista da força de trabalho e a decorrente formação de um mercado
mundial de produção e circulação de
capital, o capital matou vários coelhos
com um só tiro, e, como não sobrou nenhum coelho, o que sai da cartola
é o capital de puro sangue.
Sendo assim, o controle sobre as fontes de fornecimento de
matéria prima (capital constante) e sobre a força de trabalho (capital
variável), quer dizer, o controle sobre todo o processo de produção de capital
e também sobre a circulação de capital passa a ser feito de dentro para dentro,
ou melhor, dentro de um único mercado mundial de produção e circulação de
capital, principalmente, pelas próprias empresas capitalistas transnacionais. Os estados nacionais, que
eram os guardiões desse processo até meados do século XX, vão transferindo o
papel de controle da produção e circulação de capital para as empresas
capitalistas transnacionais.
Por isso, conflitos militares protagonizados por estados
nacionais, resultantes da necessidade de controle sobre a produção e circulação
de capital tendem a se arrefecer. Isso quereria dizer que não existiriam mais
guerras? Ora, não existe capital sem guerras. As empresas capitalistas
transnacionais travam, cotidiana e diuturnamente, uma guerra sangrenta sem
tréguas, que se acirra na mesma medida do desenvolvimento e consolidação do mercado
mundial de produção e circulação de capital. O que desencadeia essa guerra não
é o assassinato do príncipe de Sarajevo e, tampouco, a necessidade de saquear
um poço de petróleo, mas, sim, a lei do
valor, porque neste mercado mundial de produção e circulação de capital,
que se assemelha a uma piscina gigante, do tamanho dos três oceanos juntos,
cheia de um líquido quente e viscoso, de coloração avermelhada, só sobrevivem
as empresas que conseguem diminuir o valor de suas mercadorias e, dessa
maneira, esquartejar seus concorrentes. Vários mecanismos são utilizados para
atingir esse macabro objetivo — espionagem industrial, sabotagem, corrupção,
etc. —, mas a arma mais eficaz é o aumento da força produtiva do trabalho, ou,
se se quiser, incremento de produtividade. Dessa forma, nessa guerra, cada vez
mais truculenta, existiria uma tendência de que os artefatos militares usados
pelos estados nacionais cedam lugar à arma mais poderosa nas mãos das empresas
transnacionais, imposta pela lei do valor.
Aqui cabe uma observação complementar. Se as considerações
anteriores têm fundamento de verdade, então os estados capitalistas nacionais e
o possível futuro estado mundial do capital não precisariam mais usar artefatos
militares contra burguesias capitalistas nacionais e, por isso, poderiam
transformá-los em instrumentos de repressão e utilizá-los contra outro alvo: o
proletariado, também transnacionalizado pelo capital.
No caso tratado por último, se o estado nacional russo fosse a
expressão de organicidade política de empresas capitalistas transnacionalizadas,
parece-me que ficaria questionada a necessidade de travar um conflito militar
com o estado nacional ucraniano, uma vez que bastaria que essas empresas se
instalassem pacificamente na Ucrânia
para explorar tanto as riquezas (capital constante), como, principalmente, a
força de trabalho (capital variável), com o escopo de produzir capital; ou
então comprassem ações de uma empresa já implantada naquele país.
Durante o momento em que escrevo este texto, a guerra do estado
russo na Ucrânia está acontecendo e confesso que não tenho nenhuma clareza a
respeito das razões que a motivaram e também acerca de seus desdobramentos.
Contudo, prefiro ficar com várias dúvidas e perguntas que com respostas sobre
as quais pairam muitas incertezas.
[1] Professor
titular da Universidade Federal de Santa Catarina e vinculado ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da UFSC, linha de pesquisa Trabalho e Educação. É coordenador
do Grupo de estudos Capital, trabalho e educação (GECATE) e membro do 13 de
Maio - Núcleo de Educação Popular (NEP).
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