03 de outubro de 2022
Chile: por que a nova
Constituição foi rejeitada?1
No dia 4 de julho, a Assembleia Constituinte entregava ao
Chile o texto da nova Constituição que, três meses depois, seria submetido à
aprovação popular. O seu conteúdo progressista refletia a presença das forças
políticas comprometidas com as demandas apresentadas nas manifestações de
outubro de 2019. Contudo, no dia 4 de setembro, com 61,88% dos votos válidos a
favor da rejeição, a população dizia NÃO aos direitos que iriam beneficiá-la.
Como explicar um resultado aparentemente tão
contraditório?
Entre os materiais aos quais tivemos acesso, salta aos
olhos o fato de os setores progressistas acusarem o povo de não ter lido o
texto da Nova Constituição e ter se deixado levar pelas notícias falsas
alardeadas nas redes sociais. Os grupos conservadores, por sua vez, afirmavam
que os motivos da rejeição deviam ser procurados na ausência de diálogo no
interior da Assembleia Constituinte, cuja maioria não precisava dos seus votos
para produzir o texto, no desrespeito aos valores cristãos de uma parte significativa
dos chilenos e no fato de as mudanças radicais introduzidas no texto
desconsiderarem o necessário gradualismo do qual a sociedade precisa para
assimilá-las.
O material ao qual tivemos acesso surpreende pelo fato de
as declarações dos setores progressistas não citarem os interesses econômicos
dos grupos de poder que a nova Constituição estava ferindo, uma razão mais que
suficiente para esperar que os empresários apresentassem como ameaça para o
país aquilo que, na verdade, minava somente os seus lucros.
Estranhamente, estes elementos eram silenciados mesmo
após as reações do mercado financeiro na segunda-feira, dia 5 de setembro,
evidenciarem que os endinheirados estavam comemorando a vitória do NÃO no
plebiscito. Bastaram poucas horas para que os títulos negociados na Bolsa de
Valores registrassem uma valorização de 6,2% e o peso chileno começasse a
reverter a trajetória de desvalorização na qual se encontrava há pouco mais de
três meses ao avançar 4,2% em relação ao dólar.
Nas páginas que seguem, reunimos o que, a nosso ver, os
debates em volta dos aspectos mais polêmicos procuraram esconder, os elementos
das cotidianas preocupações dos chilenos que não encontravam respostas no texto
da nova Constituição, as incertezas com as quais a direita jogou para levar a
maioria da população a rejeitar o que, na verdade, feria mortalmente os
interesses de poucos.
1. Os pontos críticos da nova Constituição.
Iniciamos nossas reflexões resgatando os pontos em volta
dos quais sobraram polêmicas, dúvidas e notícias falsas:
1. O texto da nova
Constituição apresentava o Chile como Estado Plurinacional e Intercultural,
formado pelos onze povos e nações indígenas presentes no território nacional
(Mapuche, Aymara, Rapa Nui, Lickanantay, Quéchua, Colla, Diaguita, Chango,
Kawashkar, Yaghan e Selk'nam).
Além disso, a nova Carta
Magna previa a criação de Autonomias Regionais Indígenas, cujos poderes seriam
estabelecidos em lei complementar, mas proibia que sua atuação viesse a separar
estes povos do Estado do Chile. Do mesmo modo, reconhecia também os sistemas
jurídicos que os povos originários utilizam no interior de suas comunidades
para a administração da justiça. O texto especificava claramente que estes
sistemas deviam agir respeitando a Constituição e os tratados internacionais,
sendo que qualquer conflito com a legislação vigente seria dirimido pela
Suprema Corte do país.
Atenta aos abusos que, há
séculos, ferem a vida dos povos indígenas, a nova Carta Magna determinava
também que suas comunidades deviam ser consultadas e expressar o seu consenso
em aspectos que afetassem os seus direitos.
2. A proposta de
Constituição reconhecia também o exercício livre, autônomo e não
discriminatório dos direitos sexuais e reprodutivos e estabelecia que o Estado
devia garantir as condições necessárias para proteger tanto para a gravidez, o
parto e a maternidade, como a interrupção voluntária da gravidez. O direito ao
aborto, como os demais aspectos deste item, seria regulamentado por lei
complementar, onde os congressistas definiriam as formas que protegeriam a mãe
e o nascituro.
3. A instituição do
"Estado de bem-estar social" abriria as portas para o Chile oferecer
bens e serviços públicos abrangentes. Os artigos correspondentes sublinhavam
que é dever do Estado zelar pela educação, moradia, saúde, previdência e
trabalho a fim de garantir esses direitos à população.
No campo da seguridade
social, enquanto a lei atual permite que as pessoas destinem 100% dos seus
recursos a operadoras privadas de saúde, a proposta dos Constituintes previa a
criação de um Sistema Nacional de Saúde que receberia todas as contribuições
obrigatórias destinadas a esta área, deixando em aberto a possibilidade de o
cidadão contratar um seguro de saúde privado. No caso das aposentadorias, o
Estado iria garantir benefícios básicos uniformes a serem concedidos por
instituições públicas ou privadas.
O caráter social do Estado
também se expressava através do direito à cidade e à moradia digna, do
reconhecimento do trabalho doméstico e da criação de um Sistema de Atenção
Integral às pessoas que fosse universal e solidário.
4. Ao definir que a água é
um bem inapropriável, o texto contraria frontalmente a Constituição em vigor,
pela qual os direitos privados sobre as águas, reconhecidos ou constituídos de
acordo com a lei, conferem aos seus titulares a propriedade privada desse bem.
Ou seja, a proposta estabelecia que a água não pode ser privatizada por quem
quer que seja e definia as necessidades básicas da população como prioritárias
em relação a outros usos.
Diante das mudanças
climáticas em curso, as preocupações com a ecologia e a diminuição dos gases do
"efeito estufa" levaram os Constituintes a afirmar que a natureza
também tem direitos e que o Estado e a sociedade tinham o dever de protegê-los
e respeitá-los.
5. A administração do
Estado continuaria nas mãos do Presidente da República e do seu governo. O
Senado seria extinto. A Câmara dos Deputados e das Deputadas permaneceria com
155 membros. Contudo, os mandatos destes parlamentares seriam reduzidos dos atuais
oito anos para apenas quatro e a reeleição consecutiva seria autorizada somente
uma vez. Previa-se também a criação de uma Câmara Regional dedicada a legislar
sobre questões de interesse local, respeitando, obviamente, os marcos legais da
nação.
A seguir, vamos apresentar como os grupos conservadores
usaram aspectos destes direitos para convencer a maioria da população a
rejeitar o texto da nova Constituição.
2. O que levou o povo a optar pelo NÃO
Para compreender a ação da direita, precisamos detalhar
alguns elementos e resgatar o contexto em que os setores conservadores
convenceram o povo a rejeitar a nova Constituição. Em algumas passagens,
teremos que demorar um pouco mais em relação a outras, mas a paciência que isso
demanda será compensada pela compreensão de como a direita conseguiu dialogar
com o senso comum e de quanto o distanciamento da realidade do povo impediu à
esquerda de neutralizar o poder de persuasão deste diálogo.
Começaremos com as posições relativas a cada um dos
pontos listados no capítulo anterior:
1. Povos originários e
comunidades indígenas: apesar de o reconhecimento dos sistemas jurídicos
próprios e das autonomias estar sempre vinculado ao respeito da legislação
vigente e não poder ser usado para sustentar movimentos separatistas, os
setores conservadores se aproveitaram da falta de compreensão das pessoas
simples para insuflar que o texto abria as portas à fragmentação do território
e do Estado e que a autonomia e a adoção de sistemas jurídicos próprios faziam
com que nem todos os chilenos fossem iguais perante a lei.
Desta forma, os indígenas,
que representam 13% da população, apareciam como privilegiados, quando,
historicamente, foram, e continuam sendo, marginalizados, espoliados e
excluídos do debate público. Ou seja, o que se destinava a superar algumas das
formas de discriminação e a preservar a cultura de suas comunidades foi
apresentado como caminho para que uma minoria da população tivesse um
tratamento privilegiado em relação aos demais.
Esta cortina de fumaça
visava esconder duas questões de fundo. A primeira delas deita raízes no fato
de que, para existirem, as autonomias econômicas, políticas, jurídicas,
administrativas e as próprias culturas das comunidades indígenas precisam que a
propriedade da terra seja um direito coletivo inviolável. Concretamente, isso
significa que, além de assegurar os territórios que continuam nas mãos dos
povos originários seria necessário reverter as desapropriações ilegais
ocorridas pelas incursões do agronegócio nas áreas indígenas, conforme
descrevemos em um texto anterior ao falar dos Mapuches.3
A prova de que os
empresários conseguiram fisgar o senso comum da população foi registrado nas
sondagens anteriores ao plebiscito. Os resultados aos quais tivemos acesso
mostram que 38% dos entrevistados afirmavam que, com o reconhecimento dos
sistemas jurídicos próprios, chilenos e povos originários não seriam iguais
perante a lei e 31% diziam que, com a plurinacionalidade e a autonomia, o país
corria o risco de se dividir. Uma porcentagem sem dúvida muito significativa
diante do resultado do plebiscito.
A possibilidade de a
autonomia ser um passo rumo à fragmentação do país e de o respeito dos sistemas
jurídicos próprios criarem uma desigualdade de tratamento perante a lei
simplesmente desconsideram a realidade. De um lado, o Chile não seria o
primeiro país do mundo a reconhecer a plurinacionalidade, a autonomia e os
sistemas jurídicos dos povos originários. Situações semelhantes integram as
relações com os povos originários em países como Bolívia, Equador, Canadá,
Estados Unidos, Nova Zelândia e Austrália sem que isso represente uma forma de
garantir privilégios, alimente separatismos ou crie injustiças em relação aos
demais cidadãos.
De outro, a prática da
justiça, segundo os usos e costumes das comunidades indígenas, é bem mais
criteriosa em punir, fazer cumprir as penas e viabilizar as devidas reparações
pelo mal cometido. Logo, o que era visto como uma forma vantajosa de driblar da
lei, na verdade submete os culpados a um rigor maior.
Concretamente, os ricos
arrastaram um número significativo de pessoas simples em nome de uma igualdade
perante a lei que a riqueza de poucos sempre violou e de uma suposta unidade
nacional que, na quase totalidade das vezes, colocou a maioria da população a
serviço dos interesses capitalistas.
2. A defesa da legalidade
do aborto caiu como uma bomba entre os setores vinculados ao catolicismo. A
falta de clareza em algumas formulações se somou à indignação da igreja e de
parte considerável dos fiéis que acusavam os Constituintes de permitir a
interrupção da gestação até o nono mês de gravidez.
De fato, o texto da nova
Carta Magna reconhece a interrupção da gravidez como direito, mas tirar esse
direito do papel depende de uma lei complementar na qual os parlamentares iriam
detalhar cada passo. Ou seja, a princípio, nada impede que a regulamentação do
direito ao aborto crie mecanismos para proteger os direitos da mãe e do
nascituro. Mas, em sã consciência, quem conseguiria a ponderação necessária para
perceber isso depois de se sentir profundamente ferido em seus valores e
convicções?
Temos aqui o exemplo de uma
situação em que, longe de abrir caminhos para a compreensão da amplitude dos
direitos que estavam sendo garantidos à maternidade, as reações emocionais
levaram a desconsiderar totalmente esses direitos para focar as atenções no
aborto legal que, em relação ao todo, era apenas a menor parte do que os
Constituintes procuravam garantir. Desta forma, a criança foi jogada fora com a
água do banho e a banheira vazia faz tudo voltar a estaca zero.
3. No interior das
propostas de construção do Chile como "Estado de bem-estar social",
duas questões deixaram a população ressabiada e temerosa. A primeira delas se
refere à definição da "educação como direito social". Apesar de o
texto garantir a existência e o desenvolvimento da educação particular
subvencionada pelo Estado, as pessoas desconfiaram que a escola pública seria
priorizada em detrimento da privada.
Esta preocupação guarda uma
relação direta com o fato de, atualmente, as famílias apostarem nas
instituições privadas de ensino devido à baixa qualidade das escolas públicas.
Concretamente as pessoas se perguntavam: depois que as medidas previstas pelos
Constituintes forem transformadas em políticas de Estado, vou ter que colocar
meu filho na escola pública? E a resposta era tão clara quanto a pergunta: se
for assim...vou votar contra.
A segunda questão dizia
respeito à propriedade dos Fundos de Pensão que hoje se encontram nas mãos das
seguradoras privadas. O texto da nova Constituição afirmava que todas as
pessoas têm direito à seguridade social e que o Estado criará um sistema
público destinado a este fim. Ao deixar que a lei complementar detalhe os
passos futuros deste item, a proposta dos Constituintes nada diz em relação ao
que aconteceria com as quantias depositadas nos atuais fundos de pensão em caso
de morte do seu titular.
A dúvida de um número
considerável de pessoas pode ser traduzida nesta pergunta: se tudo será
direcionado para o bem-estar social e o caráter solidário do sistema de
seguridade vai prevalecer sobre o atual, quem vai herdar o valor acumulado no
fundo de pensão quando da morte do titular? O Estado vai usar esse dinheiro
para alimentar a nova seguridade social? Ou, sendo uma propriedade pessoal, os
valores depositados serão herdados pelos descendentes?
Estas breves colocações nos
ajudam a perceber como as pessoas estavam interessadas em respostas concretas
para questões que marcam o cotidiano e o futuro de suas famílias, cuja importância
ganha destaque em relação ao reconhecimento de um direito coletivo maior pelo
qual o Estado se compromete a não deixar ninguém desamparado.
4. Para entender como o fim
da propriedade privada da água pudesse alimentar a rejeição à nova Constituição,
precisamos resgatar a situação atual e seus reflexos na vida das pessoas. Pelas
leis vigentes, a Direção Geral da Água (DGA), que funciona como uma espécie de
agência reguladora, entrega gratuitamente o direito de uso da água
(estabelecido em litros por segundo) às pessoas e empresas que o solicitam. A
concessão certifica que uma pessoa física e/ou jurídica é proprietária de uma
determinada quantidade de água (superficial e/ou subterrânea) e registra este
direito em cadastros específicos.
A realidade do Chile revela
que 80% dos recursos hídricos são explorados por empresas privadas,
principalmente do setor agrícola, da mineração e da geração de energia. A legislação prevê a possibilidade de limitar
a entrega da água em situações de escassez, mas até para fazer isso é
necessário enfrentar os interesses e as ações dos grupos de poder.
Desde o fim da ditadura
militar, em 1990, os governos tentaram reformar o Código das Águas em 8
ocasiões, sendo que nenhuma delas vingou. Entre os principais opositores, encontramos
a Sociedade Nacional da Agricultura que reúne as principais empresas do setor
agrícola do país.
Em 2017, foi aprovada uma
lei que regula os serviços sanitários locais e cujos artigos poderiam trazer
algum alívio à população atingida pela escassez de água. Contudo, nenhum
direito previsto por esta norma conseguiu ser aplicado à medida que ela ainda
não foi regulamentada.
Diante deste cenário, você
acha mesmo que a agroindústria aceitaria o fim da privatização da água? Mas,
sabendo que o povo seria beneficiado pela “desprivatização” ampla geral e
irrestrita, como é que os empresários conseguiram convencer quem sofre pela
escassez da água a votar NÃO no plebiscito?
Vamos responder a estas
duas questões usando como exemplo a realidade em que se encontra a comunidade
Petorca, situada a 220 km a noroeste de Santiago, onde o rechaço ao texto da
nova Constituição ganhou 56% dos votos válidos. Nesta localidade, os
fazendeiros que cultivam abacates para exportação usaram a água disponível para
garantir a qualidade dos seus produtos em prejuízo dos cultivos que
proporcionavam a sobrevivência dos camponeses da região. Pouco a pouco, a
escassez agravada pelos períodos de seca inviabilizou os plantios dos pequenos
proprietários, forçando-os a se tornarem assalariados dos fazendeiros.
Sabendo que Petorca
concentra mais da metade da produção nacional de abacates e que para ter um kg
deste produto são necessários cerca de 600 litros de água, não é difícil
perceber que manter esta cultura é privar as pessoas da água de que precisam.
O problema é que, sem este
cultivo, quase metade dos trabalhadores ficaria sem saber onde arranjar
condições para sustentar as próprias famílias e a outra metade, que vive do
comércio informal, veria aumentar significativamente as dificuldades para
vender os seus produtos. Concretamente, para a quase totalidade dos moradores
de Petorca, acabar com a privatização da água seria sinônimo de passar fome
durante períodos longos demais para apostar na mudança sugerida pela nova
Constituição.
5. Em relação à reforma
administrativa, o texto procurava equilibrar a centralização típica do
presidencialismo, com a descentralização das decisões relativas às questões
regionais. Por outro lado, a extinção do Senado, a redução do mandato
parlamentar e da possibilidade de reeleição se apresentavam como temas
intragáveis aos políticos de plantão.
Se, de um lado, é
impossível avaliar de antemão as vantagens e os problemas reais das futuras
Câmaras Regionais, as chacotas e ataques lançados contra elas soaram a vingança
dos parlamentares que viram suas chances de permanecerem no cargo reduzidas e
ameaçadas de extinção.
O fim do Senado concentrou
os maiores ataques dos partidos conservadores. E não é para menos. Nas eleições
de 2021, direita e esquerda tiveram o mesmo número de senadores, o que ofereceu
à primeira a chance de, nesta legislatura, barrar com certa facilidade as
propostas que remam contra os seus interesses. Ou seja, o Senado é hoje o
espaço onde a direita tem um poder de barganha suficiente para arrancar
concessões e impor derrotas aos projetos de lei da atual coalizão de governo.
Por isso, longe de ser
fruto de sérias preocupações com o futuro do Legislativo, a bandeira do NÃO
levantada nesta questão visava apenas garantir os espaços conquistados e,
obviamente, a possibilidade de aumentá-los nos próximos pleitos.
Diante deste quadro, percebemos que os ataques dos
setores mais conservadores ocorreram em várias frentes, o que permitiu
consolidar uma progressiva expansão do clima de rejeição ao texto da nova
Constituição frente ao qual a manifestação multitudinária de apoio ao SIM,
realizada em 1 de setembro nas ruas da capital, não teve nenhum efeito.
Encerrada esta parte, vamos refletir sobre os comentários
que apontam a não leitura da nova Constituição por parte do povo como uma das
principais explicações pela vitória do NÃO no plebiscito.
3. Os problemas de a esquerda ficar longe do povo
O resumo dos principais avanços da nova Constituição
deixa a impressão errônea de estarmos diante de um texto que definia os
direitos e os deveres de forma simples e acessível às pessoas com os mais
diferentes níveis de escolaridade. Infelizmente, não é assim.
Com seus 11 capítulos, 388 artigos e 57 normas
transitórias, a redação da nova Carta Magna era árida e não cativava o leitor a
buscar nela as respostas de que precisava. O uso de termos jurídicos, de
palavras oriundas das ciências sociais e de conceitos complexos apenas
aumentava o número de chilenos que, mesmo lendo seus enunciados, não poderiam
compreender o significado, o alcance e os limites que estabeleciam.
Durante a sua formulação e após a divulgação no início de
julho deste ano, as polêmicas entre advogados constitucionalistas em relação a
alguns artigos revelavam que havia pontos obscuros que davam margem a
interpretações divergentes. O debate nos meios jurídicos ganhou tons
preocupantes quando alguns integrantes da Assembleia Constituinte que ajudaram
a redigir os artigos em questão afirmaram que tampouco poderiam sanar as
dúvidas dos juristas.
Quando somamos a isso o fato de o texto não responder às
preocupações reais das pessoas comuns e passar longe da capacidade de
entendimento da maioria dos votantes, resta a impressão de que, durante os 12
meses de trabalho dos Constituintes, sobrou zelo na escolha dos termos e
faltaram contatos com a população que, teoricamente, era o principal
destinatário da nova Carta Magna.
Esta realidade foi constatada nas visitas que os próprios
membros da comissão pela aprovação, vinculados ao governo de Gabriel Boric,
realizaram em inúmeras regiões do país. Em suas viagens e reuniões, se depararam
com a necessidade de ter que explicar do início ao fim as peças-chave da nova
Constituição que, na maioria das vezes, eram rejeitadas pelo simples fato de
não serem entendidas.
Do mesmo modo, ter perdido o contato com o povo alimentou
nos defensores do SIM a confiança cega de que, por conter direitos que o
beneficiariam, o texto ganharia facilmente o apoio de que precisava para ser
aprovado. Infelizmente, a realidade mostrou exatamente o contrário. A não
compreensão dos artigos da Constituição despertou dúvidas em volta de questões
extremamente sensíveis para as pessoas comuns que, ao não serem sanadas, deram
origem a temores que a direita alimentou, insuflou e explorou como quis.
O primeiro passo nesta direção colocava o centro do
debate no "como eu serei pessoalmente atingido pelas mudanças que serão
introduzidas na vida do país" após a aprovação da nova Carta Magna. À
medida que o apelo a votar pela “mudança” tinha presença assegurada entre os
defensores da aprovação, não foi difícil para a direita alimentar os temores de
que a dita “mudança” poderia não ser na direção esperada. Desta forma, as
pessoas passavam da esperança em um futuro melhor à incerteza que nascia da
possibilidade de os direitos coletivos implicarem em perdas individuais. E foi
justamente nesta passagem que a direita agigantou o medo para impedir qualquer
reflexão crítica.
Um exemplo vai ajudar a entender esta dinâmica. Entre as
frases mais usadas no período anterior ao plebiscito estavam as que acusavam a
nova Constituição de não proteger a propriedade privada. O conteúdo e a forma
como eram veiculadas provocava no receptor da mensagem uma reação emocional que
levava a repassar o mesmo conteúdo dizendo: "Você viu? Se não protege a
propriedade...vão poder tomar o que é teu!".
O governo ser de esquerda e
o texto da nova Constituição trazer o fim da propriedade privada da água,
apresentar vários bens como "impropriáveis" e reafirmar o direito de
o Estado expropriar bens de particulares em benefício da coletividade (um
conceito que, por sinal, já estava presente na Constituição de 1980 e no Código
Civil chileno) faziam soar o alarme de que, por exemplo, a casa dos pais
poderia não ser herdada pelos filhos.
Quem estava interessado em espalhar notícias falsas não
apostava na comprovação jurídica da veridicidade de suas palavras. Bastava a
ele plantar dúvidas que estimulassem uma rejeição imediata e, com base neste
sentimento, ia adubando com novas dúvidas as incertezas por elas produzidas. À
medida que o centro das preocupações se deslocava dos direitos e dos benefícios
coletivos para o âmbito estritamente individual, as pessoas não trocariam o
certo, ainda que limitado e sofrido, pelo incerto que prometia um bem maior,
mas que se trazia uma ameaça velada ao que possuíam.
Fazer as pessoas voltarem à lógica do texto, acalmar seus
temores e manter a objetividade, seria, por si só, uma tarefa difícil à medida
que, por seu caráter necessariamente abrangente, uma Constituição se detém nos
direitos gerais e não envereda em seus desdobramentos com exemplos e descrições
pormenorizadas. Agora, sabendo que a maioria dos eleitores, ainda que lessem o
texto preparado pelos Constituintes, esbarrariam nas dificuldades que impediam
a sua compreensão profunda, podemos concluir que os defensores do SIM estavam
diante de uma missão quase impossível.
O aumento das preocupações em relação ao futuro é outro
elemento que eleva a propensão da população a não enveredar em caminhos
incertos. O Chile vive um clima bem diferente tanto em relação ao dos protestos
sociais do último trimestre de 2019, quanto diante do desempenho econômico de
2021, ano em que o PIB cresceu 11,7%. A sensação de incerteza aumentou muito em
2022 com a perspectiva de o país encerrar o ano com um crescimento de 1,9% e
enfrentar uma retração de 0,5% do PIB em 2023.
Além disso, os chilenos foram às urnas sentindo o peso de
uma inflação anual que fechou agosto em 13%, o desgaste no poder de compra dos
salários e a diminuição das vendas do comércio, de cujas atividades muitos
trabalhadores informais extraem o sustento de suas famílias. Por sua vez, o
déficit de 8,5% do PIB nas contas públicas e uma arrecadação insuficiente
impedem de satisfazer as crescentes demandas sociais e de manter o investimento
público na infraestrutura, na saúde e na educação.3 Ou seja, uma
situação que, ao prometer mais desemprego e dificuldades, por si só, aconselha
o povo a garantir o que tem e a não dar sopa ao azar.
Estas constatações permitem afirmar que os chilenos
preferem a Constituição de Pinochet aos avanços introduzidos pelos
Constituintes?
Certamente não. De um lado, é importante lembrar que a
Constituição de Pinochet foi redigida em 1980 e, desde então, passou por várias
reformas. O texto vigente leva a assinatura do ex-presidente da República Ricardo
Lagos que, em 2005, retirou da Constituição de Pinochet uma parte significativa
dos marcos que refletiam o autoritarismo da ditadura militar. Apesar deste
esforço, a Carta Magna atual ignora, por exemplo, a existência dos povos
indígenas e inúmeros direitos sociais. Por isso, a construção de um Chile mais
democrático e igualitário demanda, necessariamente, ir além das importantes,
porém limitadas, reformas introduzidas por Ricardo Lagos.4
Não foram poucos os defensores da aprovação que, para
influenciarem as pessoas a votarem no SIM, afirmavam que o plebiscito colocava
os chilenos diante de uma escolha histórica entre a Constituição para o Chile
do século XXI e a de Pinochet. Diante da derrota, os setores mais conservadores
que, na eleição para a Presidência de 2021, apoiaram o ultradireitista José
Antonio Kast, do Partido Republicano, se apropriaram deste discurso para
afirmar que a maioria da população se reconhecia nos fundamentos
constitucionais lançados por Pinochet. Sendo assim, o próximo passo seria a
convocação de um plebiscito para que a população decidisse se desejava
realmente avançar rumo a uma nova Carta Magna ou se queriam uma atualização do
texto vigente.
A direita tradicional, composta por Renovação Nacional,
União Democrática Independente e Evolución Politica (com 18 dos 50 senadores
eleitos e 52 dos 155 deputados), apoia uma nova Constituinte, mas vai negociar
cada detalhe do processo a ser iniciado. Este agrupamento defende que o Chile
seja um Estado social de direito, com ênfase no fortalecimento dos direitos
sociais, mas sempre num contexto de igualdade perante a lei e de respeito à
liberdade das pessoas, o que implica em manterem intactas todas as estruturas e
instituições privadas; fecha questão em volta da unidade da nação chilena; da
existência de um Congresso formado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado;
exige a proteção do direito à vida, do meio-ambiente e da propriedade privada
(ampliando-a aos Fundos de Pensão e ao aproveitamento das águas); quer a
promoção da igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres;
demanda a consagração expressa dos Carabineros (uma força policial que
corresponde à nossa tropa de choque) e das forças da ordem em geral num
capítulo específico da nova Carta Magna; defende o direito de escolha no campo
da educação, da saúde e da previdência; e a manutenção de um Banco Central
autônomo. Ou seja, uma Constituição que exclui justamente os principais avanços
da proposta derrotada e confirma a defesa disfarçada dos interesses que
levantamos no capítulo anterior.
Concretamente, além da vitória do NÃO dar novo alento à
direita, as discussões relativas à retomada do processo Constituinte elevam as
forças conservadoras a protagonistas do cenário político por incorporar as
preocupações populares implícitas no voto pela rejeição. O aumento do poder de
barganha deste setor está no fato de o governo depender estruturalmente dos
seus votos para ter os 4/7 necessários para definir o que irá acontecer de
agora em diante.
Em sentido oposto, está mais do que claro que o
Presidente da República, Gabriel Boric, errou ao vincular a aprovação da nova
Constituição ao apoio popular ao seu governo. Para ele, o sucesso do SIM
coroaria o processo Constituinte no qual se envolveu pessoalmente desde
novembro de 2019, quando era deputado. Seu crescimento no campo da política
institucional chilena e sua liderança estiveram associados, desde o início, à
elaboração de uma nova Constituição.
Aprovar a nova Carta Magna seria dar um empurrão ao
governo que andava mal das pernas. Basta pensar que a pesquisa CADEM, realizada
em agosto, mostrava que 56% dos entrevistados reprovavam o governo Boric e
somente 39% diziam que o novo Presidente estava no caminho certo (uma perda de
20 pontos percentuais em relação à popularidade de Boric em março deste ano,
quando assumiu o governo do país).
Neste cenário, o NÃO à nova Constituição foi recebido
como um balde de água fria que impõe mudanças de rumo imediatas. Não por acaso,
dois dias após o plebiscito, ocorreu a troca de dois ministros por duas
personagens da antiga política de “Concertación” realizada pela coalizão de
centro-esquerda que conduziu a primeira etapa da transição democrática a partir
de 1990. Apesar das fortes críticas que Boric e a geração que o acompanha
fizeram aos trabalhos desses governos durante os protestos estudantis, o NÃO à
nova Constituição impôs a necessidade de colocar pessoas que têm trânsito em
vários partidos políticos a fim de negociar um entendimento que permita dar
início a uma nova Constituinte.
Com a faca e o queijo na mão, a direita não se deixará
pressionar pelo governo em termos de prazos e condições para que este possa
aliviar rapidamente o peso da derrota no plebiscito e a perda do capital
político que Boric havia investido na aprovação.
Ao encerrar estas reflexões, é impossível não lembrar de
uma frase que um dos meus mestres, o professor da Unicamp Edmundo Fernandez
Dias, repetia quando algum aluno culpava o povo pelo desfecho indesejado de um
determinado acontecimento histórico. Sorrindo, ele sempre lembrava que, ao
apontar o indicador contra as pessoas simples...nunca vemos que há três dedos
olhando para nós a fim de cobrar as nossas responsabilidades pelos erros
cometidos na condução dos movimentos.
A derrota amargada pela esquerda chilena no plebiscito de
4 de setembro exige que esta avaliação seja profunda e alerta os grupos irmãos
do continente quanto aos riscos de uma falta de inserção no meio popular que
impede de ouvir suas preocupações, dificulta o trabalho de conquistar corações
e mentes e transforma os militantes em vanguardas de si mesmos.
Emilio Gennari, Brasil, 03 de outubro de 2022.
_____________________________________________________________________
(1) Os dados que serviram de base à
elaboração das nossas reflexões e parte dos elementos para aprofunda-las foram
divulgados em:
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-62245073
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-62600803
- https://elpais.com/chile/2022-08-24/un-nuevo-camino-para-chile.html
- https://elpais.com/chile/2022-08-27/el-gobierno-feminista-de-gabriel-boric.html
- https://elpais.com/chile/2022-08-27/el-proceso-constituyente-chileno-en-su-hora-final.html
- https://elpais.com/chile/2022-09-02/chile-y-su-porfia-constitucional.html
- https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62772664
- https://elpais.com/chile/2022-09-04/chile-vota-dividido-el-destino-de-la-nueva-constitucion.html
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-62790749
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-62791126
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-62791747
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-62792215
- https://elpais.com/opinion/2022-09-05/chile-abre-una-nueva-etapa.html
- https://elpais.com/chile/2022-09-05/en-chile-fracaso-el-maximalismo-progresista.html
- https://elpais.com/elpais/2019/03/21/planeta_futuro/1553160674_048784.html#?rel=mas
Todos os
acessos foram realizados entre os dias 04 de julho e 29 de setembro de 2022.
(2)
Estamos nos referindo ao texto Notas sobre as eleições no Chile,
disponível em: https://drive.google.com/file/d/14iqzeoKchDswTxBtXfzeNg_mSLEql6Au/view?usp=drivesdk
(3) A proposta de Reforma
Tributária, entregue pelo governo ao Congresso Nacional no dia 1º de julho,
promete aumentar a arrecadação em 3,6% do PIB (cerca de 10,5 bilhões de
dólares) nos próximos quatro anos. O governo propõe a instalação de um royalty
sobre a atividade mineradora das empresas que produzem anualmente mais de
50.000 toneladas de cobre refinados, uma elevação dos impostos sobre as pessoas
físicas com uma renda anual superior a quatro milhões de pesos (cerca de 3% dos
assalariados do país), enquanto os tributos corporativos cairiam de 27% para
25% a fim de incentivar ações e investimentos que elevam a produtividade das
empresas e da economia. O projeto de lei propõe também: um imposto sobre o
patrimônio de 1% destinado a tributar os ativos que variam de 6 mil unidades
fiscais anuais (UTA) a 18 mil UTA (entre US$ 4,9 milhões e US$ 14,7 milhões) e
uma alíquota de 1,8% para ativos acima de 18 mil UTA; o fim de algumas isenções
fiscais; e planos para melhorar a fiscalização e impedir a evasão e a elisão
fiscal.
Maiores
informações em: https://www.bnamericas.com/pt/analise/impactos-da-reforma-tributaria-para-o-setor-empresarial-e-mineracao-no-chile e em: https://istoe.com.br/governo-reduz-projecao-com-arrecadacao-da-reforma-tributaria-no-chile/ Acessos em: 29/09/2022.
(4)
Esta percepção se fazia presente desde a campanha presidencial de 2009, quando
a necessidade de uma nova Carta Magna voltou a aparecer. Entre 2014 e 2018, o
governo de Michelle Bachelet se realizou um processo de envolvimento cidadão
para formular a proposta de uma nova Constituição. O projeto final foi
apresentado nos últimos dias do seu mandato e, na administração de Sebastián
Piñera, presidente do Chile entre 2019 e março de 2022, simplesmente não
avançou.
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