A segregação silenciosa da desigualdade.
"Os políticos dizem
que os direitos são para todos, mas eu não acredito. O dinheiro dos ricos
compra tudo, manda em quem governa, faz eles deitarem e rolarem pra cima de nós
que não temos nada", dizia um morador do bairro ao comentar a diferença de
cuidados que a prefeitura distribui nas regiões da cidade. E não é para menos.
O descaso do poder público com a população da periferia pode ser constatado
transitando pelas ruas e vielas dos bairros mais distantes do centro. Basta um
olhar atento para perceber que aí ter direitos é um sonho sem prazo para se
tornar realidade.
Na base da pirâmide
social, a angústia diante da precariedade das escolas, dos serviços de saúde,
das condições de moradia e dos transportes, o medo da polícia e dos bandidos,
os buracos nas ruas e as humilhações vindas de quem vê o morar nas periferias
como sinônimo de ser mancomunado com o crime são alguns dos fatores que
alimentam nos pobres a percepção de que eles não têm direito a ter direitos.
Enquanto isso, o cotidiano
das classes médias e altas mostra que a sua renda permite ter moradias
luxuosas, proporciona conforto nos deslocamentos, garante um atendimento à
saúde e uma educação de qualidade, o respeito da polícia, o acesso a
sofisticados sistemas de segurança, as mais variadas opções de lazer e a
possibilidade de pressionar o poder público para que organize o espaço urbano
de acordo com os próprios interesses. Ter dinheiro faz toda a diferença,
inclusive na hora de criar direitos para poucos.
Diante dos contrastes entre
bairros nobres e periferias, surpreende a ausência de uma tensão permanente e
de conflitos que espelhem a desigualdade existente entre camadas sociais. O
medo de que a favela acerte as contas com quem produz a marginalização dos seus
moradores só está na cabeça de quem explora o trabalho deles. Entre os pobres,
assusta a resignação ao próprio destino e o sentimento de dívida de gratidão em
relação a quem oferece migalhas para seguir privando-os do essencial.
Diante deste cenário, duas
perguntas nascem espontaneamente: Que elementos da construção histórica da
cidade permitiram chegar a esta situação? Por que os sofrimentos experimentados
pelos pobres não levaram a posturas que questionassem os fundamentos desta
realidade?
Nas páginas que seguem,
procuramos responder a estas questões focando nossa análise nos processos
históricos que transformaram a desigualdade em artífice silencioso da
segregação dos pobres na cidade de São Paulo. Neste caminhar, destacaremos as
transformações do município que, ao estruturar as mudanças desejadas pelos grupos
de poder, lançaram as bases para que o apartheid social fosse absorvido com um
elevado grau de naturalidade.
Começaremos nossas
reflexões com as mudanças ocorridas a partir do início do século passado,
resgataremos os principais elementos que estiveram na base da expansão da
cidade a partir de então, mostraremos a relação entre moradia, renda e trabalho
na produção da segregação e finalizaremos apontando como a discriminação e os
preconceitos continuam cimentando o apartheid da maioria dos paulistanos no
cotidiano desta metrópole que não para de crescer e de marginalizar.1
1. A elite define onde
quer morar...e não quer pobres por perto.
No início do século
passado, a cidade de São Paulo tinha uma população estimada em 240.000 pessoas,
das quais cerca de 150.000 era de migrantes. Até 1885, a área que hoje
corresponde à subprefeitura da Sé não abrigava apenas a elite paulistana, mas
era também o local de moradia e trabalho de negros libertados da escravidão e
dos brancos pobres. Todos eles viviam em quartos apertados e ganhavam a vida se
dedicando a atividades manuais exercidas em pequenos espaços.
Na paisagem urbana da
época, os sobrados das moradias populares, as oficinas e os quartos de aluguel
se mesclavam aos prédios e aos palacetes das elites. As fronteiras entre pobres
e ricos eram delimitadas pela cor da pele, pela língua, pelo ofício e pelas
cercas em volta das mansões sem que houvesse um clima de conflito capaz de
tirar o sossego dos mais abastados.
Em 1890, o bairro de
Higienópolis concentrava os palacetes mais elegantes e ostentava os fundamentos
da ordem urbanística que moldava a cidade dos ricos. Tratava-se de uma região
central, urbanizada, com mansões cercadas de jardins e protegidas por muros
altos, onde avenidas largas e iluminadas ofereciam amplos espaços à vida social
de uma seleta parte da população.
Em 1891, iniciava a
ocupação da Avenida Paulista que, desde antes da construção dos palacetes,
contava com iluminação pública, um piso macadamizado com pedregulhos brancos,
redes de água e esgoto. Três anos depois, o incorporador da Paulista, Joaquim
Eugênio de Lima, conseguia aprovar na Câmara Municipal uma lei que definia as
regras para as futuras construções a serem levantadas em volta da avenida.
De acordo com as normas,
as casas deviam manter um recuo de dez metros em relação à rua, sendo que dois
metros de cada lado da área edificada deveriam ser obrigatoriamente ocupados
por jardins e arvoredos. Para tornar isso possível, os lotes eram grandes e seu
preço, obviamente, muito salgado. O caráter estritamente técnico das normas e o
rigor no seu cumprimento faziam com a que a lei encobrisse a discriminação de
uma elite que pensava a cidade para si própria, enquanto os elevados custos
para construir na Avenida Paulista, por si só, concretizavam o fato de que aí
não havia espaço para os pobres.
Anos depois, a Companhia
City abria os loteamentos dos Jardins e dos bairros adjacentes. Mansões,
apartamentos opulentos, lojas destinadas à classe alta e o que havia de melhor
em termos de serviços públicos aumentavam ainda mais o valor dos imóveis e recriavam
as mesmas condições de exclusão conhecidas na ocupação da Avenida Paulista.
Pouco a pouco, a São Paulo dos ricos se expandia do Centro rumo à região
sudoeste.
Mas isso ainda era pouco
para que a diferença de renda traçasse fronteiras claras entre o topo e a base
da pirâmide social. A demarcação dos territórios da elite demandava uma
verdadeira limpeza social do centro da cidade. Concretamente, tratava-se de
remover não só os sinais da escravização de indígenas e negros que geraram a
riqueza das camadas mais altas da sociedade paulistana, mas também a presença
física e as expressões culturais dos seus descendentes que, ao ocupar os mesmos
espaços dos brancos, impediam que São Paulo fosse a cidade europeizada que a elite
desejava para si.
Os primeiros passos deste
processo haviam sido dados em 1886 com a proibição de instalar curtiços no
centro da cidade e a determinação que a criação das vilas operárias ocorresse
fora da aglomeração urbana. A construção do Viaduto do Chá (em 1892), do Teatro
Municipal (iniciada em 1903) e a urbanização do Vale do Anhangabaú (em 1906),
deram as condições que faltavam para despachar os pobres para bem longe.
De um lado, estas obras
expressavam as mudanças desejadas pelos cafeicultores e por industriais,
banqueiros e comerciantes que enriqueceram com as atividades proporcionadas
pelo crescimento da cidade. De outro, a construção dos bulevares, dos jardins
públicos, dos cafés e das lojas elegantes que completavam a reestruturação da
paisagem em volta dos novos marcos da cidade demandavam a demolição das
moradias populares e o despejo de seus moradores. Pouco a pouco, o Centro
deixava de ser o lugar onde os pobres moravam ao lado da oficina onde
trabalhavam, do quarto de aluguel e do sobrado próximos aos espaços onde a
movimentação de pessoas proporcionava os ganhos necessários para sobreviver,
para se tornar território exclusivo dos grupos de poder.
A legitimação das medidas
que discriminavam a maioria da população não encontrou resistências na gestão
municipal. Esta sintonia de interesses deitava raízes no fato de elites e
Estado funcionarem como unha e carne nas decisões que favoreciam a máxima expansão
dos ricos em todos os campos da vida em sociedade.2
Mandar os pobres para bem
longe demandava abrir as fronteiras à ampliação da cidade. Quanto mais
distantes do centro, mais os lotes tinham preços que cabiam nos seus minguados
salários, ainda que esta solução criasse sérios problemas futuros. De fato, na
maior parte das vezes, os loteamentos destinados às famílias operárias não eram
regularizados e, frequentemente, ocupavam as várzeas pantanosas e inundáveis no
entorno das ferrovias. Havia uma superocupação do território que dava vida a um
emaranhado de becos e vilas entremeados por oficinas, lojas, e pensões. Os
ambientes privados eram apertadíssimos, as ruas não tinham calçadas, o esgoto
era a céu aberto e o bonde para se dirigir ao trabalho costumava passar bem
longe do local de moradia.
Mas nem tudo na cidade dos
pobres fluía ao sabor do acaso. Até os anos de 1930, a companhia
anglo-canadense The São Paulo Railway, Light and Power Corporation era a única
concessionária dos serviços de bonde, energia e telefonia. O fato de poder
decidir onde instalar a infraestrutura necessária aos seus serviços dava à
empresa o poder de definir os rumos da expansão da cidade. A associação entre a
Light e os empreendedores imobiliários fazia com que a companhia participasse
dos negócios oriundos dos novos loteamentos urbanos, se beneficiasse da
valorização destes imóveis após implantar os seus serviços e definisse quem
mais se aproveitaria da especulação imobiliária. Desta forma, expulsar os
pobres do centro era também sinônimo de criar novos negócios para os ricos e os
setores médios da sociedade paulistana.
Em 1914, a eclosão da
Primeira Guerra Mundial criou um clima de tensão na cidade de São Paulo. De um
lado, a impossibilidade de cuidar da agricultura levava as potências europeias envolvidas
no conflito a importarem os alimentos de que precisavam. Os fazendeiros
brasileiros viram nestas vendas a chance de obter lucros sem precedentes. A
escassez provocada pelas exportações de alimentos elevou fortemente os seus
preços no mercado interno e corroeu rapidamente o poder de compra dos salários.
De outro, a guerra fez as
linhas do comércio internacional entrarem em colapso. Sem poder importar os
manufaturados de que precisava, o Brasil teve que produzir internamente parte
das mercadorias que costumava trazer de outros países. Isso fez com que, entre
1914 e 1920, São Paulo conhecesse uma forte expansão da indústria e uma grande
concentração demográfica nas regiões onde as empresas se instalavam. O aumento
da demanda de moradias elevou o valor dos aluguéis e, com o encarecimento dos
alimentos e do vestuário (antes importado da Inglaterra a preços menores),
alimentou a fogueira do descontentamento popular.
Enquanto o povo comia o
pão que o diabo amassou com o rabo, a ampliação das atividades econômicas na
cidade possibilitava a formação de novas fortunas e de uma classe média urbana
formada por pequenos comerciantes, proprietários de vilas e curtiços,
construtores, donos de pequenas indústrias ou negócios familiares e por
funcionários públicos mais graduados.
Diante das contradições
que marcavam a vida da cidade, a resposta mais contundente dos trabalhadores
ocorreu em julho de 1917, quando uma greve geral paralisou São Paulo e assustou
a elite pelo grau de organização e envolvimento dos trabalhadores. Desde o
início, o movimento foi tratado como "caso de polícia" e não como resposta
da população ao empobrecimento causado pelo custo de vida. A repressão agiu com
rigor desde o início e, algumas semanas depois, o Estado mandou o exército para
sufocar o movimento num banho de sangue. Diante da iminência do massacre, os
operários tiveram que encerrar a greve com ganhos bem inferiores ao esperado.3
O fim da primeira guerra
mundial e a progressiva regularização do abastecimento interno não alteraram
substancialmente a realidade dos bairros operários. O valor dos aluguéis seguia
alimentando a insatisfação popular que, por sua vez, fortalecia as ações dos
movimentos grevistas e preocupava os grupos de poder.
Enquanto isso, o ulterior crescimento
da indústria paulistana nos anos de 1920 ampliava fortemente a demanda de
energia elétrica e oferecia à Light a oportunidade de um investimento muito
rentável com a construção da usina Henry Borel, na baixada santista. A hidrelétrica
levou a empresa a concentrar suas atenções nas concessões que permitiam ter
água suficiente para mover as suas turbinas. As novas possibilidades de lucro
vindas da geração e da venda de energia fizeram com que a companhia deixasse de
investir no sistema de bondes. A qualidade do transporte piorava a olhos vistos
enquanto os preços das passagens continuavam nas alturas em função do monopólio
que a empresa tinha sobre o fornecimento deste serviço.
É neste cenário que, em
1924, apareceram os primeiros ônibus cujas linhas não eram reguladas e
reconhecidas pela prefeitura. Apesar de ser uma atividade informal, o
transporte de passageiros, realizado em veículos adaptados aos chassis dos caminhões
da Ford, se revelava bem mais versátil em relação à ferrovia e aos bondes. Sem
depender de trilhos e de rede elétrica, os ônibus a diesel encurtavam as
distâncias entre o local de moradia e os pontos de embarque e isso permitiu que
a cidade se expandisse em áreas ainda mais distantes.
Ainda em 1924, os projetos
de Francisco Prestes Maia, engenheiro de obras da prefeitura, previam uma
ampliação ilimitada do espaço urbano, tendo uma rede de grandes avenidas como elo
entre as várias regiões da cidade. Desta forma, seria possível reduzir a
densidade da população que vivia nos bairros populares em volta das indústrias,
dar vazão à demanda de moradia e esvaziar o descontentamento oriundo,
sobretudo, do alto valor dos aluguéis. A maior distância das periferias em
relação ao centro seria coberta por linhas de ônibus, bem mais ágeis,
acessíveis e baratas em relação ao transporte sobre trilhos.
Erra feio quem acha que,
ao fazer isso, a prefeitura de São Paulo estivesse pensando num plano de
construção de casas populares ou de financiamento para a compra de terrenos por
parte da população carente. Legalizar a ampliação do perímetro urbano
significava apenas dizer que, em algum momento, a administração da cidade
cuidaria também das áreas mais distantes, mas não que os trabalhadores podiam
contar com a prefeitura para comprar os terrenos, erguer suas moradias e ter
acesso imediato aos serviços públicos.
Desde o início, apertar ao
máximo o orçamento familiar e envolver a família na construção foram as únicas
saídas acessíveis aos trabalhadores que quisessem ter uma casa para chamar de
sua. O uso do tempo de descanso para levantar a própria moradia e os
sacrifícios para comprar o terreno e os materiais seriam compensados pela
possibilidade de melhorar as condições de vida oriunda do fim dos aluguéis.
Contudo, o que se
apresentava como o único caminho para ter a propriedade de um imóvel trazia em
si uma série de problemas. Quanto mais longe do centro, mais os lotes não
tinham infraestrutura e, justamente por isso, eram mais baratos. As prestações
para comprá-los cabiam no orçamento familiar. Porém, no dia seguinte à mudança
para o novo imóvel, as famílias tinham que lidar com as agruras de quem não tem
água encanada, energia elétrica, transporte, calçamento, escola, postos de saúde
ou qualquer outro serviço fornecido pela administração municipal.
Do lado do poder público,
o fato de estes loteamentos não serem registrados na prefeitura, e, muitas
vezes, de os terrenos terem sido vendidos por alguém que não era o proprietário
dos mesmos, justificava o não atendimento das demandas populares. Afinal, a
administração municipal não podia levar serviços ou realizar obras em bairros
que, oficialmente, não existiam. Esta dificuldade seguidamente apresentada como
motivo pelo descaso do poder público deu aos grupos de poder o caminho para
criar fortes vínculos clientelistas com os moradores destas áreas que, a bem da
verdade, eram vítimas de sua política de segregação. Vejamos como isso ocorreu.
Em 1932, no código de obras
da prefeitura paulistana, foi introduzido um dispositivo que permitia
reconhecer os loteamentos e as construções irregulares da nova periferia. O
problema é que as normas nada diziam em relação aos procedimentos que seriam
utilizados para este fim, entregava aos técnicos da Diretoria de Obras a tarefa
de defini-los e ao prefeito de plantão a escolha das áreas que seriam
beneficiadas. Desta forma, longe de ser fruto do reconhecimento do direito à
moradia, a legalização dos lotes irregulares e a chegada dos serviços públicos
ocorreriam por meio de uma concessão seletiva do Estado que despertava nos
moradores das periferias a obrigação de retribuir os favores recebidos.
A força desta obrigação
nascia da percepção de que, em outras áreas que apresentavam os mesmos
problemas legais, a administração municipal tinha mandado derrubar todas as
construções, acabando em poucos minutos com anos de trabalho duro e de sacrifícios.
O reconhecimento legal por parte da prefeitura fazia com que o medo do despejo
cedesse o lugar ao alívio de estar entre os que, a partir daquele momento,
teriam uma chance de melhorar de vida com os serviços públicos que seriam
oferecidos, daí que votar nos políticos indicados pelos governantes se
apresentava como uma forma justa de retribuir os favores recebidos. A gratidão
pelo fornecimento a conta-gotas de eletricidade, água encanada, calçamento,
transporte, escola, posto de saúde, etc. criava uma obrigação permanente com a
prefeitura e o clientelismo assim fortalecido fazia as vítimas da segregação continuarem
votando em seus algozes.
A partir de 1934, a
intermediação entre os políticos que comandavam a prefeitura e os moradores das
periferias seria realizada pelas Associações Amigos de Bairro e pelos
vereadores por elas eleitos. Desta forma, os grupos de poder garantiam uma
presença constante no meio popular com a qual controlavam de perto a vontade
dos habitantes, passavam a agir sem se exporem diretamente à população e
aumentavam suas cobranças de apoio como condição para obter os serviços
públicos que faltavam. Por incrível que pareça, a elite que produzia e
alimentava a segregação aprimorava a organização que lhe permitia se apresentar
como salvadora dos pobres e lançava sólidas bases para que a prática do
clientelismo, em maior ou menor grau, chegasse até os dias atuais.
Do lado dos moradores,
prevalecia a percepção de que todos os problemas com os quais se deparavam
nasciam da sua decisão de ir morar longe do centro, numa região sem
infraestrutura urbana, espremida entre áreas de várzea e linhas férreas ou localizada
em morros com elevados riscos de deslizamento e sem o devido reconhecimento
legal. Ou seja, os sofrimentos pelos quais passavam e as obrigações às quais se
submetiam para se livrarem dos aluguéis não nasciam do fato de que esta era a
única opção deixada pelos baixos salários recebidos, em cujo cálculo nunca
entraram os custos de moradia, mas sim por uma escolha inteiramente pessoal em
relação à qual nem o poder público nem qualquer outro membro da elite
paulistana, aparentemente, podiam ser responsabilizados.
Desta forma, a
desigualdade como produto das relações econômicas e fator de segregação
simplesmente desaparecia atrás do biombo de uma responsabilidade que a família
operária tendia a assumir exclusivamente para si. E, como desgraça pouca é bobagem,
o fato de uma porcentagem expressiva dos trabalhadores ter se livrado do
aluguel ampliava a possibilidade de os empresários pagarem salários ainda mais
baixos.
Passo a passo, a população
da cidade de São Paulo saiu de 240.000 moradores, em 1900, para cerca de 2
milhões, em 1950. Na metade do século, os bairros do centro já conheciam um
processo de verticalização e a região centro-sudoeste concentrava as áreas
residenciais das famílias de alta renda, as lojas mais chiques e o que havia de
melhor em termos de serviços públicos.
Em 1970, o município
chegava aos 6 milhões de habitantes e o crescimento demográfico estimulado pelo
milagre econômico da época dos militares elevaria fortemente a produção da
riqueza e o arrocho salarial. Nas periferias, o aumento da desigualdade fazia
os problemas se multiplicarem na exata proporção do crescimento vertiginoso da
população da cidade. Trataremos disso no próximo capítulo.
2. Da São Paulo dos
sonhos, ao pesadelo da vida cotidiana.
Entre 1968 e 1973, a
economia do Brasil crescia a uma média de 10% ao ano. As indústrias instaladas
na Grande São Paulo contratavam operários em ritmo acelerado e isso estimulava
um enorme contingente humano a desembarcar na cidade atrás do sonho de uma vida
melhor. A grande disponibilidade de força de trabalho, os preços em alta e uma
política de reajuste dos salários que perdia feio pela inflação faziam os
ordenados caírem enquanto a produção da riqueza crescia sem parar. 4
Algumas famílias vindas de
outros estados recebiam o apoio inicial de parentes e conhecidos, mas uma parte
considerável dos recém-chegados contava apenas com os parcos recursos trazidos
do local de origem e vivia a urgência de encontrar um emprego e um lugar onde
morar. Nenhuma das três esferas de governo havia se preocupado em construir alojamentos
para acolher os migrantes que chegavam de todos os estados do país. Imóveis
prontos para morar não faltavam, mas o preço dos aluguéis estava fora do
alcance da maioria dos salários pagos na cidade e do dinheiro com o qual os
migrantes podiam contar para começar uma nova vida.
Entregues à própria sorte,
os trabalhadores tinham que se virar como podiam, ora ocupando terrenos
públicos para erguer um barraco; ora comprando lotes que, muitas vezes, eram
irregulares e sem escritura; ora adquirindo um "pedacinho de chão" em
áreas de risco ou de proteção ambiental; e quase sempre tendo a autoconstrução
como o meio mais utilizado para ter "um lugar onde se esconder",
segundo uma das expressões corriqueiras da época. Todas estas possibilidades
demandavam morar em regiões bem distantes do atual centro expandido de São
Paulo onde se localizavam 70% dos empregos que a cidade oferecia.
É importante destacar que,
em muitos casos, a ocupação ilegal das áreas era informalmente consentida e,
por vezes, incentivada pela própria prefeitura nas regiões que atendiam os mais
variados interesses empresariais. É o caso, por exemplo, da construção do
conjunto Bororé, da COHAB, no Grajau, iniciado em 1976.
Neste mesmo ano, estava
sendo discutida uma lei estadual que definia aquela região como área de
proteção dos mananciais, ou seja, um lugar onde era necessário evitar que a
ocupação urbana contaminasse as bacias que abasteciam de água a Grande São Paulo.
Destinadas a abrigar 13.000 pessoas, as obras da prefeitura marcaram o início
de um processo de ocupação irregular do solo que, nos 40 anos seguintes, levou
cerca de um milhão de moradores para um lugar onde, no máximo, deveriam existir
apenas algumas chácaras e um punhado de clubes de lazer.
Mais que uma prova de
descaso com a natureza, a escolha da administração municipal estava dando o
tiro de largada à construção dos bairros que, em alguns anos, atenderiam com
sobras a demanda de trabalhadores criada pelo polo industrial da zona sul de São
Paulo. Ou seja, além de o poder público violar uma recomendação que estava
prestes a se tornar lei estadual, a prefeitura forjava as condições necessárias
para oferecer um excedente de força de trabalho destinado a manter os salários
das novas indústrias em patamares bem reduzidos.
Como dissemos no capítulo
anterior, para as famílias operárias, comprar um lote onde Judas perdeu as
botas era a única opção diante da renda disponível. Contudo, quem começava a
construir não demorava a perceber que o barato sairia mais caro do que podia
imaginar. O material de construção vendido nos depósitos dos loteamentos mais
distantes, por exemplo, tinha preços bem mais elevados em relação aos
praticados nas lojas próximas ao centro. Comprar nelas não era impossível, mas
o valor do frete fazia com que acabasse não valendo a pena adquirir aí o
necessário para a nova casa. Além disso, a ausência ou a extrema precariedade
dos serviços públicos elevavam fortemente os sofrimentos das famílias, enquanto
as longas distâncias até os locais de trabalho obrigavam as pessoas a acordarem
muito cedo e faziam com que os custos das passagens pesassem muito no orçamento
doméstico.5
O crescimento das favelas
nos anos de 1970 e 1980 refletia a situação de penúria vivida por muitas
famílias cuja renda, apesar de terem seus membros envolvidos em alguma ocupação,
acabava antes do recebimento do próximo ordenado. Ainda que os dados
disponíveis sobre estes aglomerados populacionais não traduzam o quadro de
submoradias que proliferavam na metrópole, ajudam a ter uma ideia da velocidade
com a qual os baixos salários ampliavam as áreas de segregação da população
mais pobre.
O levantamento da
Confederação das Famílias Cristãs para a Solução das Favelas em parceria com a
Prefeitura de São Paulo mostra que, em 1957, havia um total de 141 núcleos de
favelas, com 8.488 barracos e uma população estimada em 50.000 pessoas. Em
1973, o Cadastro das Favelas apresentava a existência de 542 núcleos, 14.650
barracos e 71.740 moradores. Dois anos depois, quando o Milagre Econômico dava
sinais de esgotamento, um novo levantamento do município revelava que os
núcleos haviam subido para 919, com 23.926 barracos e 117.237 moradores.
Com o país enfrentando uma
grave crise econômica na primeira metade da década de 80, em 1987, a prefeitura
de São Paulo calculava que o município abrigava 1.749 núcleos de favelas com
142.674 barracos e 779.000 moradores. Se, em 1973, a população favelada
representava 1,05% dos habitantes da cidade, em 1987, esta porcentagem havia
alcançado os 7,53%.
Diante de tamanha expansão
da marginalização social, por que as pessoas demoravam tanto a reivindicar os
direitos sociais que a desigualdade lhes negava?
Além do peso da resignação
que dificultava a organização de um movimento, a consciência de estar ocupando
ilegalmente um terreno que pertencia à Prefeitura acabava freando os processos
reivindicatórios. Protestar junto ao poder público era sinônimo de chamar a
atenção das autoridades para uma determinada área que não era dos moradores, o
que, justamente por isso, aumentaria o risco de despejo. Daí que a prudência
nas relações com a administração municipal afastava a possibilidade de ver os
tratores derrubando em poucos minutos o que as famílias haviam levantado em
anos de sacrifícios.
Diante das agruras do
cotidiano, o jeito era se virar entre vizinhos para dar conta do imediato,
pisar miudinho nas relações com as autoridades, sondar os projetos para a
região com a mediação de algum político que tivesse trânsito na administração
municipal e, mais uma vez, aceitar as relações clientelistas que os vereadores
impunham em troca do seu apoio.6
Paralelamente a este processo,
o Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e o Banco Nacional da Habitação (BNH),
criados pelo regime militar, usavam os recursos do Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço (FGTS) e do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo para
construir casas populares em áreas muito afastadas do centro. Erguer conjuntos
habitacionais ajudava a estruturar e consolidar o mercado imobiliário, criava e
fortalecia grandes empresas de edificação, contribuía para diversificar a
indústria de materiais de construção, possibilitava a imediata valorização dos
terrenos situados nas áreas entre os novos bairros e o perímetro urbano
anterior, dava asas à especulação imobiliária, além de mostrar que o Estado
estava fazendo a sua parte para ir ao encontro dos assalariados.
Na esteira do SFH e do
BNH, na cidade de São Paulo, em 1964, era criada a COHAB-SP (Companhia
Metropolitana da Habitação de São Paulo) que, durante as décadas de 1970 e
1980, levantou imensos conjuntos habitacionais exclusivamente residenciais nas
que eram as áreas rurais do município. As famílias com uma renda entre três e
cinco salários mínimos poderiam ter a "sorte" de morar em conjuntos
como Itaquera 1, 2, 3 e 4 ou na Cidade Tiradentes onde poderiam viver,
respectivamente, 165.000 e 160.000 habitantes.
Nestes
"bairros dormitórios", as famílias encontravam o "lugar para se
esconder" que procuravam, mas pouquíssimas chances de emprego. Esta
situação perdura até hoje e podemos verificá-la a partir dos dados publicados
no Mapa da Desigualdade de 2021 com base nos quais comparamos o número de
habitantes e de empregos formais nas áreas centrais da cidade de São Paulo e na
periferia:
Quadro 1 - Oferta de empregos formais para cada
grupo de 10 pessoas da População Economicamente Ativa no Centro e na Periferia
de São Paulo.
Centro da cidade |
Nº total de Moradores |
Nº de Empregos |
Sé |
26.693 |
112,0 |
Barra Funda |
16.115 |
65,1 |
Itaim Bibi |
97.229 |
39,5 |
Santo Amaro |
74.447 |
37,1 |
Bela Vista |
73.235 |
23,4 |
República |
61.832 |
23,2 |
Bom Retiro |
38.877 |
22,5 |
Pinheiros |
65.909 |
21,8 |
Brás |
33.045 |
19,8 |
Consolação |
57.405 |
18,9 |
Periferia |
Nº total de Moradores |
Nº de Empregos |
São Miguel Paulista |
89.173 |
1,6 |
Campo Limpo |
228.893 |
1,1 |
Sapopemba |
289.759 |
1,1 |
Guaianazes |
109.730 |
1,0 |
Cidade
Tiradentes |
235.630 |
0,8 |
Vila Curuçá |
153.500 |
0,7 |
Capão
Redondo |
296.378 |
0,6 |
Grajau |
390.096 |
0,6 |
Parelheiros |
153.598 |
0,5 |
Iguatemi |
149.739 |
0,4 |
Fonte: Elaboração própria a partir do Mapa
da Desigualdade de 2021.
Os dados do Quadro 1
evidenciam o abismo de possibilidades de conseguir um emprego com carteira
assinada no Centro expandido de São Paulo e em alguns dos bairros mais
populosos da periferia. Basta pouco para percebermos que, por exemplo, alguém
que mora na área da Sé, marco zero do município de São Paulo, tem 140 mais
chances de encontrar um emprego formal em relação a quem vive na Cidade
Tiradentes e 187 mais chances quando a comparação é com um morador do Capão
Redondo ou do Grajau.
Mas há outro aspecto que
não podemos esquecer. A partir de 1981, a construção dos bairros dormitórios
mais afastados do centro de São Paulo ocupava a primeira franja de terra que,
na época, pertencia à zona rural da cidade, onde os terrenos eram muito
baratos. As edificações erguidas nestas áreas afastavam o cinturão verde onde
se produziam os alimentos que chegavam às feiras e aos mercados. Desta forma,
além dos problemas criados pela segregação espacial, pela inflação e pelos
baixos salários, as famílias dos trabalhadores tinham suas condições de vida
afetadas pelo ulterior encarecimento da comida destinada ao consumo diário.
Paralelamente à expansão
das periferias, a partir de meados dos anos 60, a cidade viu as sedes das
empresas e dos bancos instaladas no Centro histórico começarem a migrar para a
Avenida Paulista e, a partir dos anos de 1990, o fechamento da maioria das
indústrias nas zonas sul e leste da cidade fez com que seus espaços começassem
a ser ocupados por núcleos residenciais e comerciais de alto padrão. Aos poucos,
a São Paulo dos negócios, dos Shoppings e dos condomínios fechados avançava
sobre a antiga periferia e, sempre que necessário, a justificativa do combate à
violência e ao narcotráfico era usada para "limpar" rapidamente as
áreas que interessavam ao mercado imobiliário.
A remoção das favelas na
margem direita do Rio Pinheiros no início dos anos 90 oferece um exemplo deste
processo. As grandes corporações estavam de olho naquela área que desejavam
transformar num novo centro de negócios. Com o apoio de um grupo de empresas, a
prefeitura ofereceu três alternativas aos moradores: 1. Uma passagem de volta
para a terra natal; 2. Um valor pelos terrenos entre R$ 1.500,00 e R$ 11.000
por família e o caminhão para fazer a mudança; 3. Um apartamento, a ser pago em
prestações, localizado em um conjunto habitacional nos bairros do Jaguaré, do
Jardim Educandário ou da Cidade Tiradentes e um alojamento provisório até que
os novos blocos de apartamentos fossem construídos. Cerca de 20% das famílias
acabaram aderindo à ideia de morar nos conjuntos residenciais que estavam de 15
a 30 km de distância das margens do Rio Pinheiros. Sem condições para pagar as
prestações, a ampla maioria dos demais aceitou o dinheiro e o caminhão para se
instalar nas favelas existentes ou nas novas ocupações que estavam se formando,
mas sempre em lugares mais afastados da região onde moravam.
Neste processo, os
distritos do Centro expandido começaram a perder moradores e assistiram à
progressiva degradação das antigas construções, muitas das quais permaneciam
desabitadas. As classes média e alta ampliavam sua presença em Moema, no Jardim
Paulista e no Alto de Pinheiros, onde mansões e condomínios fechados com serviços
de segurança privada e circuitos de TV transformavam, frequentemente, o espaço
público em área exclusiva de acesso controlado.
Na esteira destas
mudanças, o Estado passava a ser visto como um indutor de negócios da
iniciativa privada. Entre os caminhos mais promissores, as parcerias
público-privadas assinadas entre a prefeitura e os grupos empresariais
permitiam driblar os limites impostos pela lei de zoneamento da cidade,
ampliando os ganhos das empreiteiras e do próprio mercado imobiliário.
As transformações que
marcavam o cotidiano da cidade faziam com que, entre 1980 e 2000, a área do
centro histórico que corresponde hoje à subprefeitura da Sé perdesse quase 30%
dos moradores. Enquanto isso, as regiões periféricas como as do distrito de Anhanguera,
na região noroeste, e da Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo, viam
sua população aumentar, respectivamente, a uma média de 12,4% e de 6% ao ano.
Enquanto isso, as lutas
populares nos setores onde predominou a autoconstrução das casas nos anos de
1960 e 1970, levavam a melhorar a infraestrutura local, ganhavam escolas, creches,
postos de saúde e, em alguns casos, até o hospital. A melhora da renda dos
moradores possibilitava ampliar a oferta de serviços e de lojas, valorizando o
bairro e contribuindo para aumentar os preços dos imóveis e dos aluguéis.
Aos poucos, aquele que, inicialmente,
havia sido um refúgio dos pobres acabou se transformando numa área onde a renda
de muitas famílias não permitia cobrir os reajustes dos aluguéis. Do mesmo
modo, as agruras do trabalho informal e de uma vida sofrida obrigavam várias
famílias a venderem o imóvel que possuíam naqueles bairros e a retomar o
processo de autoconstrução numa região mais distante. Ao resgatarmos o conteúdo
de algumas entrevistas com moradores da área em volta da estação Grajau, aberta
pela FEPASA em 1992, nos deparamos com um relato que permite visualizar em que
medida ganhar pouco é sempre sinônimo de fazer a segregação dar novos passos.
Quando a estação entrou em
operação, os imóveis das proximidades se valorizaram. Ao falar de sua condição
econômica, uma senhora agradecia o Estado pelo fato de que, agora, a sua casa
valia 30% mais em relação à época em que o trem era apenas um projeto sem data
para se materializar. Apertada pelas dificuldades da vida, ela venderia o
imóvel, compraria um terreno barato em alguma região distante, construiria uma
casa modesta e usaria a diferença para sobreviver. Ou seja, ainda que não haja
nenhuma ação direta das elites no sentido de desalojar os pobres do lugar onde
moram, a falta de renda, por si só, se encarrega de produzir o mesmo movimento
de expulsão que, nas décadas anteriores, havia sido provocado intencionalmente
pelos setores abastados da população.
Após perder moradores
durante muitos anos, entre 2000 e 2010, o centro de São Paulo ganhou quase
60.000 habitantes. Este incremento populacional se deve, fundamentalmente, à
combinação de três fatores: a ação dos movimentos de moradores sem teto cujas
lutas passaram a ocupar edifícios abandonados no centro expandido da cidade; ao
aumento de pensões e curtiços na área correspondente à subprefeitura da Sé; e
às novas opções de moradia para os setores médios da sociedade oriundas da
construção de apartamentos de um dormitório e de estúdios, graças aos quais se
reduzia substancialmente a distância entre a casa e o trabalho.
A parceria com a
Prefeitura fez as construtoras contarem com recursos públicos para baratear as
obras e permitiu erguer edifícios mais altos em relação ao que é determinado
pela legislação. Contudo, os novos empreendimentos imobiliários passaram bem
longe de atender a população cuja renda familiar é de até 3 salários mínimos,
grupo no qual encontramos o maior número de pessoas que precisam de casa, mas
que não tem condições de pagar as prestações dos imóveis a juros de mercado.
Fazemos questão de resgatar
esta realidade à medida que as muitas ofertas de apartamentos na planta com as
quais o paulistano se depara ao deslocar pela cidade levam-no a acreditar que a
cidade, finalmente, vai resolver o seu histórico déficit habitacional, algo que
passa longe de ser verdade. Além disso, as aparências alimentadas pela
propaganda em volta dos lançamentos que prometem prestações inferiores aos
aluguéis ocultam que o número de prédios inteiramente desocupados no centro
expandido da capital é a garantia de que a especulação imobiliária seguirá
derrotando o direito à moradia de quem é vítima da desigualdade.
À medida que não há uma
política habitacional para o enorme contingente das famílias de baixa renda,
basta uma crise econômica para que a cidade se depare com situações
inesperadas. Foi o que aconteceu durante a pandemia do coronavírus, quando as
ruas, praças e avenidas do Centro expandido de São Paulo se encheram de
barracas e lonas onde famílias inteiras ainda buscam abrigo.
A visão desta realidade
chocou uma parte dos paulistanos, fez outra ver nos sem teto a projeção
possível do seu próprio futuro, enquanto um setor da população condenou quem
levava algum alívio aos necessitados.7 Ao defender a
"higienização" da cidade, e até a esterilização dos moradores de rua,
este último grupo fortaleceu o preconceito que consolida a segregação de quem
está na base da pirâmide social e encobre a desigualdade que a alimenta. Longe
de ser algo novo, São Paulo estava apenas diante de uma das tantas faces do processo
que justifica a adoção de medidas desumanas para manter a segregação dos pobres.
3. O preconceito que
cimenta a segregação.
As palavras e atitudes com
as quais os preconceitos marcam a leitura de alguns acontecimentos mostram a
força com a qual a segregação é reafirmada no cotidiano da cidade. A irrupção
destas manifestações permite enxergar o papel da desigualdade na divisão dos
espaços a serem ocupados pelas classes sociais, revela o verdadeiro rosto das
"pessoas de bem" e traz à luz do dia a discriminação que se esconde
nas dobras de uma rotina onde tudo parece se movimentar com a naturalidade
típica da paz social.
Mas este ambiente pode ser
alterado por acontecimentos cuja banalidade mostra quão superficial e frágil é
o equilíbrio de forças que mantém a ordem pela qual tudo vai bem, desde que os
pobres respeitem as distâncias definidas pelos ricos. A reação descomunal aos
"rolezinhos" que começaram a aparecer em dezembro de 2013, quando
cerca de 6.000 jovens negros marcaram um encontro no Shopping Metrô Itaquera
foi um desses eventos que, ao exaltar os ânimos das classes médias e altas, as
fez dizerem o que realmente pensavam dos moradores das periferias.
Longe de serem ações que
visavam depredar lojas ou furtar algum bem dos que passeavam pelos corredores,
os rolezinhos eram apenas reuniões convocadas por adolescentes dos bairros
periféricos de São Paulo que, no dia e hora combinada, se encontravam em um
Centro Comercial para passear, namorar e cantar funk. O problema é que esta
iniciativa feria a segregação pela qual os jovens da periferia, negros e pobres
em sua maioria, não deveriam se reunir no ambiente que havia exorcizado o medo
da violência urbana ao qual costumam ser associados.
Na tentativa de evitar
acusações de racismo e segregação, os centros comerciais obtiveram liminares
que impediam os rolezinhos alegando que seus espaços não haviam sido projetados
para este fim. Ainda que extremamente cuidadosas, as expressões contidas nos processos
judiciais admitiam que os Shoppings Centers se destinavam a "certos"
tipos de público e a "certas formas" de encontro e de lazer. Ou seja,
o status de templo do consumo para poucos era suficiente para dizer
"rolezinho aqui, nem pensar".
É importante resgatar que
a ocupação destes ambientes também não era um meio para apresentar algum tipo
de reivindicação e, muito menos, para transformar ou remodelar o sentido e a
razão de ser de um centro comercial. Via de regra, estes encontros não passavam
de um momento em que os jovens da periferia diziam "existimos",
"estamos aqui", queremos usar estes espaços para nos divertir e encontrar
pessoas que partilham a nossa mesma realidade, do nosso jeito, ainda que não
tenhamos dinheiro para gastar. Claro que, para uma parte deles, estar no
Shopping com a turma era sinônimo de incomodar quem despreza os moradores das
periferias e uma forma de furar a barreira da invisibilidade à qual esses
jovens eram e continuam sendo diariamente submetidos, mas esta não era a lógica
dominante nas convocações realizadas pelas redes sociais.
De fato, antes mesmo de os
rolezinhos se espalharem pela cidade, os centros comerciais eram considerados
como espaços daquele consumo que, apesar de muito desejado pelos garotos e
garotas da periferia, era vetado ou extremamente limitado pela falta de renda.
Passear pelos corredores e “babar nas vitrines” era sinônimo de caminhar numa
espécie de passarela onde o sujeito podia ser visto com aquela peça de roupa
comprada a duras penas para dar um upgrade à própria imagem, para se destacar
em meio ao grupo dos pares ou, ainda, para ser aceito sem cara feia nos ambientes
onde a cidadania do consumidor reinava soberana.
Longe de qualquer postura
revolucionária, a maioria da garotada acreditava, e ainda acredita, que você é
o que veste, que roupas de grifes e acessórios servem para ganhar instantes de
fama que, apesar de fugazes, transformam o consumo em elemento de
(auto)inclusão social. É verdade que o preço salgado de uma roupa ou de um
tênis pode aprisionar estes jovens em dívidas que a falta de renda faz pesar
longamente no orçamento familiar ou pode levar a algum expediente perigoso a
fim de conseguir o dinheiro para realizar aquela compra. Mas a visibilidade
proporcionada por alguns símbolos de status permite dizer "estou
podendo" e, pelo menos hoje, não serei sufocado no anonimato da
marginalização social. Neste sentido, marcar um rolezinho no Shopping era
também uma espécie de retomada simbólica e coletiva de um espaço onde se vende
o que acirra um desejo que a realidade econômica iria frustrar na quase
totalidade dos casos.
Lojistas e consumidores
nunca se sentiram desconfortáveis quando, individualmente, alguns desses adolescentes
faziam suas compras nas lojas dos mesmos Shoppings Centers e pagavam usando o
número máximo de prestações para adquirir a mercadoria dos sonhos. Mas quando a
periferia saiu do gueto para se afirmar coletivamente num espaço que não foi
criado para ela, as "pessoas de bem" não titubearam em determinar que
os pobres tinham que voltar ao seu lugar...do contrário...o pau iria comer.
E foi justamente isso que
aconteceu em dezembro de 2013, quando a ação da Polícia Militar para dispersar
os 6.000 participantes concentrados no Shopping Metrô Itaquera fez com que o
assunto fosse publicamente debatido pela mídia e nas redes sociais. Uma
pesquisa divulgada pelo Datafolha em 23 de janeiro de 2014 mostrava que 80% dos
paulistanos desaprovavam os rolezinhos e 72% entendiam que a polícia devia agir
com firmeza para reprimi-los. As porcentagens assustavam a medida que a
condenação do ato envolvia também parte significativa do contingente
populacional que sofria da mesma marginalização, evidenciando assim que aceitar
a segregação e adotar as formas de comportamento definidas pelos grupos de poder
já integravam a visão de mundo das pessoas simples.
Chama a atenção que vários
comentários se destacavam pelas expressões racistas e preconceituosas com as
quais tratavam o assunto sem sequer perguntar as razões pelas quais os
adolescentes marcavam os rolezinhos. Por exemplo, apesar de estes encontros
ocorrerem nos finais de semana, muitos relacionavam a ocupação dos Shoppings à
falta de vontade de trabalhar, à preguiça que explicava tanto a pobreza como a
condição de moradores das periferias. Inúmeras pessoas se referiam a estes
jovens dizendo: "Vão trabalhar seus vagabundos!"; "Por que não
fazem rolezinhos nas agências de emprego?"; "Chega de rolezinhos,
vamos trabalhar negrada!", ou, ainda, "esses caras têm que pegar na
enxada", numa alusão direta ao símbolo do trabalho escravo no Brasil.
Outro tema recorrente era
a violência à qual a garotada deveria ser submetida através da ação policial:
"Esses favelados vagabundos têm mais é que levar porrada da polícia para
aprender a ter jeito na vida"; "Essa negrada que apanhou da polícia
foi pouco. Devia ter apanhado mais". Reprimir a garotada se apresentava
assim como uma reparação à afronta sofrida pelos Centros Comerciais e uma forma
de fechar as brechas que seus atos haviam aberto nos muros da segregação.
Em 14 de janeiro de 2014,
a edição da revista Veja chegou a apresentar o rolezinho como um ato de
delinquência, fruto da inveja dos pobres, de selvagens que cobiçam o consumo da
civilização. Um dos colunistas afirmou que "os jovens dos rolezinhos são
bárbaros incapazes de reconhecer sua própria inferioridade e têm inveja da
juventude rica, da riqueza alheia e das pessoas educadas".8
Estas reações apenas refletem o apartheid que separa os brasileiros
"europeizados", pertencentes às classes superiores, da realidade dos
pobres, cuja falta de recursos, produzida pela violenta exploração do trabalho,
impede, obviamente, que tenham acesso ao que seus exploradores podem ter.
Por outro lado, é
engraçado perceber que o autor sequer percebe que a foi a própria elite a
transformar shoppings, roupas e outras mercadorias em símbolos de afirmação
social a serem cobiçados. Na esteira que leva a buscar instantes de
visibilidade, o ter para ser, tão forte no cotidiano da sociedade de consumo,
marca a vida da grande maioria das pessoas a ponto de transformar a dignidade
em sinônimo de posse de determinados bens. Ou seja, do que é que os grupos de
poder se queixam...se foram seus hábitos e suas formas de aparecer a alimentar o
consumo como uma maneira de mostrar o sucesso alcançado e se elevar entre os
próprios pares? Não são justamente os interesses empresariais a acirrarem o
desejo de consumir, enquanto os baixos salários privam a maioria da população
das condições de satisfazê-lo? Novamente, o problema não é a inveja que, por
sinal, é amplamente estimulada pelo padrão de vida das classes média e alta, e
sim o fato de que os pobres saíram do lugar em que a desigualdade os segregou
para dizer viemos nos divertir na sua praia.
Ao encerrarmos as nossas
reflexões esperamos que você tenha percebido que não há nada natural ou casual
no processo pelo qual a desigualdade constrói silenciosa e constantemente as
distâncias que separam a cidade dos ricos das periferias dos pobres. A
segregação destes últimos é planejada e executada de forma a fazer com que
apontem suas próprias escolhas como responsáveis pela realidade em que se
encontram, apesar de sua renda não oferecer, objetivamente, alternativas
viáveis.
Como dizia o morador da
periferia que citamos no início deste texto, os pobres não têm direitos. A
desigualdade que obriga a construir a própria casa em condições desfavoráveis é
a mesma que impede de ver a moradia como um direito de todos os seres humanos. Cria-se,
assim, uma situação que silencia o descontentamento, dobra as costas sob o peso
do trabalho e busca aniquilar as possibilidades de mudança.
Felizmente, quando o peso
da vida se torna insustentável e as contradições sociais desfilam sem pudores
sob os olhos de todos, a esperança que aparece quando a realidade nega qualquer
perspectiva de futuro é a mesma a animar os primeiros tímidos passos que
transformam o sofrer calados em caminhos de luta e resistência no interior dos
movimentos.
Emilio Gennari, Brasil, 14
de setembro de 2022.
_________________________________________________________________________
(1)
As reflexões deste texto foram elaboradas seguindo, sobretudo, as análises
contidas no estudo de Raquel Rolnik, São Paulo: o planejamento da
desigualdade. Ed. Fósforo, São Paulo, 2022.
Parte
dos dados apresentados foi extraída dos materiais que seguem:
- Ermínia Maricato, Informalidade urbana no
Brasil - a lógica da cidade fraturada. Em: Luiz Eduardo Wanderley e Raquel
Raicheles (Org.), A cidade de São Paulo: relações internacionais e gestão
pública. Ed. CAPES/EDUC/NEPLAM, São Paulo, 2009, pg. 269-292. Disponível
em: https://erminiamaricato.files.wordpress.com/2012/09/a-cidade-de-sc3a3o-paulo_relac3a7c3b5es-internacionais-e-gestc3a3o-pc3bablica.pdf
- Ermínia Maricato, Metrópole na periferia do
capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência. São Paulo, julho de
1995.
- Ermínia Maricato. Para entender a crise
urbana. Em: CaderNAU-Cadernos do Núcleo de Análises Urbanas, v.8, n.
1, 2015, p. 11-22. Em: https://periodicos.furg.br/cnau/article/viewFile/5518/3425
- Ermínia Maricato, Urbanismo na periferia do
mundo globalizado - metrópoles brasileiras. Em: São Paulo em Perspectiva,
nº 14, abril de 2000.
- Ferreira, F. S., & Secundini, L. dos S.
(2021). Planejamento urbano e segregação sócioespacial nas cidades. Em: Zeiki
- Revista Interdisciplinar Da Unemat Barra Do Bugres, 2021, 2(1), 113–123.
Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/zeiki/article/view/4896
- Francisco de Oliveira. A economia brasileira:
crítica à razão dualista. Ed. Boitempo, São Paulo, 2003.
- Luiz Gonzaga de Souza. A formação das
sociedades Amigos de Bairro. Em: Luiz Gonzaga de Souza, Economia, Política
e Sociedade, Ed. Eumed.net, 2006, pg. 101-105. Disponível em: https://www.eumed.net/libros-gratis/2006a/lgs-eps/2n.htn
- Rede Nossa são Paulo, Mapa da Desigualdade
2021. Disponível em: https://www.nossasaopaulo.org.br/wp-content/uploads/2021/10/Mapa-Da-Desigualdade-2021_Tabelas.pdf
- Susana Pasternak, Favelas em São Paulo -
censos, consensos e contrassensos. Disponível em: http://www.anpocs.org/index.php/encontros/papers/24-encontro-anual-da-anpocs/gt-22/gt07-7/4781-spasternak-favelas/file
- Susana Pasternak, São Paulo e suas favelas. São
Paulo, junho de 2006. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/269625168_Sao_Paulo_e_suas_favelas/link/59d5ae9caca2725954c45e96/download
- Vídeo: Fim de Semana. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gDm-vajAtrM
- Vídeo: Loteamento Clandestino. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=FKZY5yDyWS4
(2)
A título de exemplo, basta pensar que, na Primeira República (1889-1930), o
voto não era secreto e, de consequência, os eleitores eram forçados a seguirem os
interesse das elites. Diante da possibilidade de grupos de moradores votarem em
candidatos que representavam o povo simples, as instituições se encarregavam de
impedir o funcionamento das seções eleitorais onde isso perigava ocorrer. Se,
ainda assim, alguma coisa fugia do controle, os livros e as atas de votação
ficavam nas mãos de juízes que se encarregavam de alterar esses documentos para
assegurar que os políticos indicados pelos poderosos ocupassem as vagas do
poder legislativo. Ou seja, tudo estava armado para assegurar os interesses da
minoria em todos os âmbitos da estrutura do Estado e, obviamente, na definição
das políticas adotadas pela administração local.
(3)
Maiores informações sobre a greve geral de julho de 1917 podem ser obtidas no
texto de Emilio Gennari, Sindicato e organização de base: história, dilemas
e desafios, disponível através do link: https://drive.google.com/file/d/1sYXt_TkSg84qb_2P8QQEAMDM7cKFx658/view?usp=drivesdk
(4)
Para termos uma ideia deste processo, basta pensar que, em 1965, o primeiro ano da ditadura militar, um
trabalhador que ganhasse um salário mínimo podia comprar 90% dos produtos que o
seu congênere adquiria em 1940, ano em que o salário mínimo foi criado tendo
como única base de cálculo o valor de uma cesta de alimentos. A partir de 1966,
esta porcentagem entrava em queda livre até 1974, quando atingia apenas 55% do
poder de compra inicial, uma realidade que se manteria inalterada até mesmo
entre 1968 e 1973, quando a economia do país crescia a uma média de 10% ao ano.
Entre 1975 e 1982, as
lutas dos trabalhadores recuperaram uma pequena parte das perdas salariais
sofridas no período anterior e o poder de compra do salário mínimo fechou o
período podendo adquirir 68% da cesta que um operário podia comprar em 1940. Os dados citados foram extraídos do gráfico
publicado na página 28 do estudo de Jorge Eduardo L. Mattoso,
com a colaboração de Fábia Tuma e Nádia Pinheiros Dini, O mínimo salário
mínimo, e publicado pela Fundação SEADE em colaboração com o DIEESE. Disponível em: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v02n03/v02n03_05.pdf Acesso em 09/09/2022.
(5)
É importante lembrar que, nesta época, não existia nem o vale transporte (que limita
o peso dos deslocamentos da casa ao trabalho a 6% do salário do trabalhador),
nem o Bilhete Único (com o qual atualmente é possível embarcar em mais de um
ônibus sem pagar uma nova passagem durante certo período de tempo), nem o
bilhete do desempregado (que garante a gratuidade do transporte metropolitano
durante um determinado número de semanas), mas, para cada trecho percorrido num
ônibus, trem ou metrô qualquer passageiro precisava desembolsar o valor de uma
passagem.
(6)
Durante os anos de 1980, as organizações de defesa dos direitos humanos tinham
um papel bastante limitado quando eram chamadas a defender os moradores de
situações de despejo. Será somente em 1999, na favela Cidade de Deus, no Rio de
Janeiro, que nascerá a primeira Central Única das Favelas, dando origem a um
processo de representação que, aos poucos, chegaria a São Paulo e a outros
estados do país. Ou seja, ainda levaria muitos anos para que as demandas dos
moradores tivessem a voz coletiva dos movimentos organizados.
(7)
As posições mais gritantes ocorreram no início de agosto de 2021, com as
declarações da Deputada Estadual Janaína Paschoal, do PSL de São Paulo. Ela
chegou a apontar o Padre Júlio Lancelotti como incentivador do crime e promotor
da acomodação que faz as pessoas não quererem sair das ruas. Parte dos
acontecimentos e do debate da mídia sobre o tema pode ser resgatada através dos
links que seguem:
- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58153736
- https://esportes.yahoo.com/noticias/se-%C3%A9-religioso-n%C3%A3o-deveria-000600059.html
- https://theintercept.com/2021/08/10/janaina-paschoal-crack-superioridade-moral-jesus-coach/
Todos os
acessos foram realizados em 26 de agosto de 2022.
(8)
As citações constam da coluna de Rodrigo Constantino, O rolezinho da inveja.
Em: Revista Veja, edição impressa de 14 de janeiro de 2014. As frases
constam do estudo de Rosana Pinheiro Machado e Lúcia Mury Scalco, Rolezinhos:
marcas, consumo e segregação no Brasil. Em: Revista de Estudos Culturais,
disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistaec/article/download/98372/97108/170763
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