"A floresta ia encolhendo, mas as
árvores seguiam votando
no machado que, por causa do seu cabo de
madeira,
conseguiu convencê-las de que era uma
delas".
Provérbio da Turquia.
As eleições de 25 de setembro viram o partido neofascista Irmãos da
Itália (IdI) pular de 4% para 26% das preferências dos eleitores. Como
agremiação mais votada, foi encarregada de formar um governo cuja maioria conta
com os deputados e senadores eleitos em coalizão com outros dois partidos de
direita, a Liga Norte e Força Itália.
Longe de ser um
resultado inesperado, a ascensão dos neofascistas se deve a um trabalho
meticuloso e paciente que iniciou na primeira metade dos anos 90. Nesta fase, os
integrantes do Movimento Social Italiano (MSI), criado em 1946 para manter vivo
o legado de Benito Mussolini, começaram a abrandar os tons típicos de uma
oposição de extrema direita e a participar de alguns governos conservadores.
Com movimentos ainda incertos e sem nenhum diálogo com a base da pirâmide
social, as lideranças do partido buscavam vencer o caráter pejorativo que o
termo “fascista” inspirava na população.
Em 2012, os Irmãos da
Itália assumiram a herança política do MSI (a cuja organização juvenil
pertencia a sua líder, Giorgia Meloni) e seguiram a trajetória de participação/oposição
aos governos com a qual aprenderam a dialogar com os anseios e os temores do
povo. A possibilidade de vencer as eleições deste ano levou a eliminar as
posições mais polêmicas, a disciplinar os setores mais radicais do partido e a equilibrar
a mescla de propostas e sentimentos identitários capaz de atrair as atenções de
quem perdeu o interesse pela política, se opõe a qualquer noção de igualdade e vota
em quem promete responder a seus anseios imediatos.
A floresta que, desde
meados dos anos 80, viu cair os direitos conquistados pelas lutas operárias nunca
reagiu à altura de um empresariado que eliminou dos locais de trabalho quem
tinha experiência de luta, naturalizou a precarização, usou a redução dos
impostos como chantagem para não fechar as empresas sediadas no território
nacional e dirigiu o Estado rumo à eliminação progressiva da gratuidade dos
serviços públicos. As agruras do desemprego, o crescente peso das cobranças que
incidiam sobre os atendimentos básicos e a falta de respostas de um movimento
sindical esvaziado pelo processo de reestruturação produtiva e pela perda de
qualquer identidade de classe aplanaram
o caminho pelo qual a direita foi transformando o individualismo e a adaptação
às demandas do capital nos únicos meios para enfrentar as adversidades.
Pouco a pouco, estes
elementos criaram um círculo vicioso que os neofascistas pretendem manter. Para
conter as queixas da população, os governos de centro-direita reduziram os
impostos. A diminuição dos recursos arrecadados forçou uma ulterior
precarização dos serviços públicos. Diante da dificuldade de serem atendidas,
as pessoas aumentaram a procura pelo setor privado e, devido ao peso destes
gastos no orçamento familiar, reivindicaram uma ulterior redução dos tributos
que, ao ser viabilizada, levava a um novo aumento da precarização, dos valores
pagos pelos atendimentos e do contingente que procurava a iniciativa privada
para driblar a demora e a má qualidade dos serviços. Enquanto o povo sofria, os
empresários viam seus lucros decolarem.
No momento em que
escrevemos, a brisa que percorre as áreas desmatadas é recebida pelo que resta
da floresta como um sinal de alívio e não como o anúncio das tempestades de
quem, ao prometer estar "pronto para reerguer a Itália", capturou a sua
confiança e reduziu as possibilidades de uma leitura crítica dos
acontecimentos. Ignaras das intenções do machado que nunca escondeu a sua
lâmina afiada, muitas árvores depositaram nele as esperanças de conseguir
alguma melhora. Nas próximas páginas, vamos resgatar os elementos que levaram a
um resultado eleitoral que a esquerda lamenta, que deixa parte do centro sem
saber o que fazer, mas que anima as esperanças de uma direita rumo à realização
dos seus anseios de poder.
1. Uma maioria
parlamentar conquistada com a minoria dos votos e sem esconder as próprias
origens.
O resultado oficial da
apuração entrega à coalizão de direita, formada pelos partidos Irmãos da
Itália, Força Itália e Liga Norte, nada menos do que 237 das 400 vagas da
Câmara dos Deputados e 115 dos 200 assentos do Senado. Como foi possível chegar
a esta maioria tendo recebido 46% dos votos, seis pontos percentuais a menos em
relação à soma das preferências do centro e da esquerda parlamentar?3
A resposta está na forma como o processo eleitoral é organizado.
De acordo com a legislação
italiana, a escolha dos parlamentares ocorre em três tipos de seções. A
primeira delas é formada pelos colégios que se encontram no exterior e que
elegem 8 deputados e 4 senadores com base na maioria dos votos recebidos.
A segunda é integrada
pelas seções nas quais os partidos, ou as coalizões, apresentam um único
candidato. Nestes colégios, onde se escolhem 147 deputados e 74 senadores,
ganha quem consegue o maior número de votos. Desta forma, pode ocorrer que, por
exemplo, o candidato da coalizão de direita consiga 45 votos, enquanto o do
Partido Democrático (PD) e o do Movimento 5 Estrelas, ambos integrantes do
governo anterior, obtenham 44 votos cada um. Por um único voto de diferença, o
parlamentar conservador ganha a vaga atribuída a esta seção.
O terceiro grupo é
composto pelos colégios multinominais, onde os eleitores escolhem 245 deputados
e 122 senadores. Em cada uma destas seções, os partidos e as coalizões
apresentam uma lista de nomes e a distribuição das vagas é feita com base na
proporção dos votos recebidos por cada lista.
Basta isso para percebermos
que uma coalizão aumenta as possibilidades de eleger seus candidatos à medida
que reúne as preferências dos eleitores que optariam por cada uma das legendas
que a compõem. Por outro lado, quando um partido disputa sozinho as vagas
disponíveis, só pode contar com suas próprias bases eleitorais e corre maiores
riscos de seus representantes sofrerem uma derrota. Ou seja, a direita usou de
forma muito inteligente as possibilidades oferecidas pela lei eleitoral,
enquanto os atritos, divisões e brigas de egos que levaram à queda do governo
anterior inviabilizaram de antemão qualquer possibilidade de o centro-esquerda
apresentar uma coligação capaz de transformar seus 52% dos votos válidos numa
base parlamentar majoritária.
Esta primeira colocação
explica o cálculo aparentemente contraditório pelo qual a direita conquistou a
maioria parlamentar com a minoria das preferências dos eleitores, mas não dá
pistas em relação ao discurso utilizado para convencê-los.
O primeiro elemento que
salta aos olhos é a grande apatia com a qual a maioria dos italianos acompanhou
a campanha eleitoral. A extrema direita enfrentou este distanciamento da
política com a garra de quem acredita na mudança, dialogou com os sentimentos e
as preocupações reais das pessoas sem abrir mão dos seus símbolos históricos.
Vejam como isso ocorreu comparando o logotipo do Movimento Social Italiano, do
seu herdeiro Irmãos da Itália (Fratelli d'Italia, em italiano) e do que, nestas
eleições, incluía o nome da sua candidata ao governo:
A princípio, qualquer
italiano sabe (ou deveria saber) que, desde 1946, a chama com as três cores da
bandeira italiana é usada para estabelecer uma analogia entre o fogo que arde
sobre o túmulo de Benito Mussolini, o criador e o maior representante do
fascismo italiano, e a continuidade que o partido daria à sua política após o
fim da Segunda Guerra Mundial. A chama tricolor se manteve nos três símbolos,
sendo que, no emblema oficial dos Irmãos da Itália, constam também as iniciais
do Movimento Social Italiano que lhe deu origem, apagadas apenas no logotipo da
principal liderança do partido nestas eleições.
Se isso não bastasse,
em várias ocasiões, a própria Giorgia Meloni declarou ser uma admiradora de
Benito Mussolini ao mesmo tempo em que procurou se distanciar do Partido
Fascista de 1922 numa gradação de tonalidades definida pelas relações com Força
Itália e Liga Norte, pelo esforço de reduzir a rejeição do eleitorado e pela
necessidade de dialogar e unificar os diferentes grupos que constituem as bases
do IdI. Ou seja, o machado tinha campo aberto e experiência acumulada para, sem
negar o DNA da sua lâmina, mostrar à floresta que havia uma identidade comum.
Veremos como isso se deu no próximo capítulo.
2. Da oposição à
vitória eleitoral.
Durante os 18 meses em
que o economista Mario Draghi foi primeiro ministro da coalizão de
centro-esquerda, Giorgia Meloni fez uma oposição sistemática às medidas do seu
governo. Suas críticas aumentaram os desgastes oriundos da pandemia, da forte
elevação dos combustíveis, das contas de energia e das metas de ajuste
econômico sem as quais a UE não liberará as novas parcelas do financiamento de
200 bilhões de euros de que o país precisa. Desta forma, a agremiação
neofascista não teve dificuldades em aumentar a própria projeção nacional com
um discurso que condenava o impacto da inflação no poder de compra dos salários
e em se credenciar como capaz de viabilizar propostas que melhorariam a vida de
todos.
Durante a campanha
eleitoral, a busca de uma identidade com a população caminhou simultaneamente em
várias linhas paralelas. A primeira delas apelava a medidas que dialogavam com suas
preocupações imediatas, como a necessidade de pressionar a UE a estabelecer um
teto aos preços do gás e da energia elétrica a fim de reduzir o custo de vida.
Ainda no campo da economia, a preocupação com o desemprego andava de mãos dadas
com a proposta de socorrer a indústria nacional com um pacote de 30 bilhões de
euros para evitar o fechamento de mais unidades produtivas e salvar o maior
número possível de empregos. Ou seja, por trás de um discurso que aparentava
beneficiar o povo, o país elevaria ainda mais o seu endividamento para auxiliar
quem sempre usou e abusou dos incentivos e das isenções fiscais do governo sem
oferecer nenhuma garantia de emprego e de permanência das instalações no
território nacional.
Além disso, apesar de
saber que não havia disponibilidade de caixa, a coalizão de direita não
titubeou em alardear a redução das alíquotas do imposto de renda das pessoas
físicas para 15%. Esta proposta que faz os olhos de muitos trabalhadores
brilharem de alegria, na verdade, beneficia muitos mais aqueles que possuem
grandes fortunas, como é o caso, por exemplo, do magnata Sílvio Berlusconi que
é um dos principais líderes do partido Força Itália, coligado com a Meloni.
Outra proposta que
agradou muito diz respeito à necessidade de fazer uma reforma do sistema
previdenciário para evitar que, a partir de janeiro de 2023, volte a vigorar a
idade mínima de 67 anos para solicitar a aposentadoria. Neste caso, precisamos
lembrar que, em função da pandemia, o direito ao benefício foi antecipado em
dois anos a fim de assegurar uma fonte de renda a muitas pessoas que perderam o
emprego e que, em função da idade avançada, dificilmente encontrariam uma nova
ocupação.
A questão dos
imigrantes merece um detalhamento sem o qual é impossível entender o que está
acontecendo. Em primeiro lugar, devemos lembrar que a quase totalidade dos
trabalhos com os quais os chamados "extracomunitários" ganham a vida
é de profissões e tarefas que nenhum italiano se dispõe a fazer. De vender
flores nos restaurantes a limpar banheiros públicos, passando por serviços de
pedreiro, encanador, servente, cuidador de idosos, padeiro, eletricista, pintor
e uma miríade de atividades manuais na agricultura, na pecuária e no setor de
serviços, temos uma longa lista de trabalhos temporários, sazonais, pesados e
informais que, se não fossem os imigrantes, o país não teria quem dá conta
deles.
Além disso, é sabido
que o sistema previdenciário italiano se sustenta graças às contribuições da
parcela destas pessoas que consegue um trabalho fixo e que, em função do
possível retorno ao país de origem antes de atingir a idade mínima para a aposentadoria,
não receberá o benefício para o qual contribuiu durante os anos de permanência
na Itália. Ou seja, a primeira coisa que precisa ficar clara é que o país
precisa dos imigrantes tanto para a produção de um volume expressivo de
riquezas, como para garantir os recursos com os quais paga os benefícios aos aposentados
italianos.
Do mesmo modo, o fato
de ter nascido fora da Itália é motivo suficiente para que os imigrantes sejam
responsabilizados pelos principais problemas do país. Ninguém nega o
envolvimento com o tráfico e a prostituição de uma pequena parte deles.
Contudo, enquanto africanos, asiáticos, latino-americanos e oriundos do leste
europeu são constantemente colocados sob suspeita pelo simples fato de serem
imigrantes, não há nenhuma ação contundente para combater a máfia italiana que
os escraviza em trabalhos sub-humanos ou se aproveita deles para fazer do crime
e da prostituição uma fonte de lucros milionários.
Por outro lado, os
extracomunitários são apontados também como responsáveis pela sobrecarga e a má
qualidade dos serviços públicos. Em relação a este aspecto, é interessante
reparar que a população não relaciona a piora do atendimento com a sonegação e
a isenção fiscal e nem mesmo que a grande maioria dos imigrantes é composta por
adultos que chegam sem as respectivas famílias, razão pela qual o país assimila
uma força de trabalho pronta a ser esfolada sem gastar um centavo com o que
seria necessário para a sua formação, do nascimento ao ingresso no mercado de
trabalho.
Estes esclarecimentos
se fazem necessários à medida que os neofascistas fazem coro com os demais partidos
da coalizão quanto à necessidade de impedir a chegada das embarcações nas quais
os imigrantes atravessam o Mar Mediterrâneo rumo à Itália e dos navios com os
quais as Organizações Não-Governamentais levam em terra firme aqueles que
naufragaram ou correm o risco de sofrer um naufrágio.
Ou seja, a ideia de
bloquear o acesso aos portos italianos visa criar fatos que ganham o aplauso da
população sem que isso afete o excedente de pessoas das quais as atividades
econômicas precisam para gerar a riqueza nacional e arrochar os salários. Desta
forma, em nome de uma ação apresentada como necessária para proteger as
fronteiras nacionais, deixam-se morrer no meio do mar milhares de seres humanos
cuja chegada aumentaria esta “sobra” populacional indesejada.
Mas isso não é tudo. Aos
olhos dos italianos, a crueldade criminosa e covarde que transforma o Mediterrâneo
no maior cemitério do mundo ganha, as feições de um ato de coragem à medida que
o governo apela à defesa da soberania, à segurança dos cidadãos e à preservação
da identidade cultural do país para violar as normas da União Européia em
matéria de imigração.4 Por este caminho, os neofascistas mostram que
não têm medo de enfrentar as leis comunitárias e as críticas de quem,
independentemente de sua autoridade, adota posições que contrariam as
percepções de uma população cujo bem-estar depende cada vez mais das pessoas
que rejeita.
Últimas, mas não menos
importantes, são as questões identitárias amplamente usadas por Giorgia Meloni
durante a campanha eleitoral. Em praticamente todos os comícios, a líder neofascista
fazia questão de se apresentar como mulher, mãe e cristã. Num discurso
abertamente conservador, a líder neofascista afirmava seguidamente que, como
alicerce da sociedade, a família é um "bem sagrado a ser protegido, e não
uma instituição velha e ultrapassada a ser destruída". Neste sentido, a
Meloni se posicionou contra a legislação que legaliza o aborto até o terceiro
mês de gravidez, apresentou propostas para o aumento da natalidade, afirmou seu
compromisso de combater os grupos de pressão LGBTQIA+ e as teorias de gênero,
temas caros à igreja católica e a um número significativo de pessoas que
cresceram à sombra de suas orientações.
É interessante reparar
que, em seus discursos, o esforço do governo para elevar os nascimentos era sinônimo
de investir no futuro do país. O ponto de encontro entre uma Pátria cuja
população tem uma das maiores médias etárias do mundo e um projeto de família tradicional
seria atingido através de uma redução dos impostos e tarifas proporcional ao número
de filhos do casal; do pagamento de um bônus por cada filho/a com valor superior
ao atual e a ser recebido até completar os 18 anos de idade; do corte dos
tributos que incidem sobre fraudas, mamadeiras, leites em pó, etc.; da criação
de creches cujos horários se adaptam à jornada de trabalho dos pais; de uma
política de sensibilização do empresariado para ampliar os direitos da
maternidade; e do aumento da isenção fiscal sobre os salários das pessoas
contratadas para cuidar das crianças no ambiente doméstico. Ou seja, a Meloni
não tratou apenas de defender verbalmente um ideal de família e sim de envolver
o Estado e os valores cristãos para que, de um lado, a família tradicional
ganhe solidez e, de outro, seja possível justificar que os programas de ajuda
governamental se restrinjam ao atendimento de quem se encaixa neste modelo
familiar.
Isso explica por que, em várias
ocasiões, a líder neofascista alternava este anúncio à necessidade de cortar
programas sociais a grupos necessitados, entre os quais estão os imigrantes
que, na maioria das vezes, não têm uma família que segue os mandamentos do
cristianismo. Enquanto as pessoas fixavam o olhar numa proposta que,
dificilmente, vai convencer os jovens casais a ter filhos, a direita lançava as
bases para justificar cortes de gastos que devem atingir a parte da população que
aderiu a outros modelos de família.
Numa síntese que resume
bem a sua postura durante a campanha eleitoral, podemos dizer que a líder dos Irmãos
da Itália agiu como um camaleão que, ao captar os sinais do ambiente
circunstante, adaptou o seu discurso ao perfil das pessoas que estavam à sua
frente. Aos tons conciliadores que tranquilizavam os investidores podiam seguir
palavras inflamadas que seduziam os que estavam fartos da política atual, apelos
à tradição e à identidade cristã que dialogavam com os que nutrem uma visão
nostálgica do passado ou promessas de agir com rigor no cumprimento da lei e no
combate à criminalidade para convencer os moderados e os indecisos a entrarem
no seu barco.
3. Problemas
imediatos e estratégias de longo prazo.
Como sempre acontece numa
campanha eleitoral, o custo das promessas supera abundantemente a possibilidade
de realizá-las. Na hora de acertar as contas com a arrecadação, a aritmética é
muito cruel com qualquer líder que prometeu mundos e fundos, mas é forçado a
recuar por falta de recursos.
Será que os
neofascistas não têm medo de frustrar as expectativas populares? Ou será que o
descontentamento nascido delas pode oferecer à extrema direita a chance de se consolidar
como defensora dos interesses da população? A seguir vamos resgatar alguns
fatos que ajudam a esboçar as primeiras respostas.
Giorgia Meloni assume a
condução de um país que, não fossem os empréstimos concedidos pelo Banco
Central Europeu (BCE), estaria em bancarrota. De fato, a Itália está
desmoronando sob o peso de uma dívida interna correspondente a 150% do seu
Produto Interno Bruto (PIB) e um déficit nas contas públicas equivalente a 6%
da produção anual da riqueza. A crise econômica desencadeada pela pandemia
levou o BCE a suspender as regras pelas quais os países da Zona Euro, como é o
caso da Itália, podem ter, no máximo, um déficit de 3% do Produto Interno Bruto
e devem viabilizar políticas que limitem a dívida pública a 60% do PIB.
No momento em que
escrevemos, Bruxelas se dispõe a flexibilizar estas regras para não criar
impactos recessivos que piorariam ainda mais a situação econômica das nações
que adotaram a moeda única, mas isso não significa que o BCE vai abrir mão dos
compromissos já negociados com cada governo para a continuidade dos
financiamentos. Rejeitar estes compromissos para viabilizar as promessas de campanha
significa não receber o dinheiro novo e estrangular o país sob o peso de uma
dívida que é a segunda maior da União Européia. Cumpri-los implica em adiar
indefinidamente as propostas da coalizão que demandam um volume maior de
recursos. Sendo assim, podemos concluir que o governo de Giorgia Meloni tem uma
margem de manobra bastante estreita, o que aumenta os riscos de o
descontentamento popular vir a corroer o capital político que o seu partido
conseguiu acumular. Isso significa que os neofascistas estão num beco sem
saída? Tudo indica que não.
É fato que reduzir a
idade da aposentadoria, bloquear os imigrantes que procuram desembarcar no país
e viabilizar algumas das medidas para aumentar a natalidade não demandam
grandes custos imediatos, ainda mais que parte desses dispêndios seria
compensada pelos cortes em outros programas sociais do governo. Ou seja, a coalizão
de direita pode mostrar serviço com algo razoavelmente barato e que pode ser alardeado
como um passo para ir de encontro às demandas da população, enquanto a Primeira
Ministra busca negociar com o Banco Central Europeu um abrandamento das
condições para a liberação das próximas parcelas dos financiamentos.
Romper com a União
Européia é uma possibilidade com a qual Giorgia Meloni já sonhou, mas que
descartou ao perceber que 71% da população aprovam a permanência do país no
bloco e a manutenção do Euro como moeda nacional. Por outro lado, é impossível
esquecer que 51% das exportações italianas se destinam aos países da UE que,
por sua vez, fornecem 58% do que a Itália precisa. Ou seja, sair da UE seria
como dar um tiro no próprio pé. O jeito, então, é caminhar em três direções
complementares: 1. Driblar algumas obrigações do bloco com posições que
evidenciem quanto Bruxelas se distancia da vontade dos italianos; 2. Mostrar
que os neofascistas estão fazendo o possível para defendê-los; 3. Somar forças
com os demais governos de extrema direita européia para ampliar os espaços de
atuação nos fóruns comunitários e nos 27 países do bloco. Vejamos alguns
exemplos que mostram como isso pode se concretizar.
O primeiro deles diz
respeito à determinação de impedir que barcos carregados de imigrantes e navios
de ONGs que recolhem estas pessoas em mar aberto entrem nos portos italianos. No
dia 3 de novembro, durante o primeiro encontro entre Giorgia Meloni e a
Presidente de turno da União Européia, Ursula Von Der Leyen, a líder
neofascista deixou claro que a proteção das fronteiras é um aspecto tão
importante quanto o resgate dos imigrantes e que são os países aos quais
pertencem os barcos de salvamento que devem se responsabilizar pelos
passageiros que transportam. Desta forma, a Itália aceitará que mulheres
grávidas, crianças e doentes que se encontram nestas embarcações desembarquem
em seus portos, ao passo que os demais extracomunitários só poderão fazer isso
se já tiverem outro país como destino final de sua viagem. Ao opor um dever ao
outro e ao afirmar que a responsabilidade pelos imigrantes é das nações cuja
bandeira está hasteada no mastro dos navios de salvamento, a Primeira Ministra italiana
busca ganhar o aplauso dos eleitores enquanto acusa os demais países da UE e as
ONGs que atuam sob suas bandeiras de assumirem responsabilidades que
descarregam nas costas dos italianos.5
Outro exemplo interessante é a defesa que
Giorgia Meloni faz do Made in Italy do ponto de vista da produção e do consumo.
Aparentemente, esta orientação parece indicar apenas o desejo de reerguer a
economia do país com base no trabalho de sua gente e na valorização do que ela produz.
O problema é que esta diretriz está na contramão da condição pela qual a Itália
deve se abrir ainda mais à concorrência das nações da União Europeia se quiser
continuar recebendo os financiamentos do bloco. Sendo assim, não é difícil
perceber que um apelo nacionalista como este coloca a UE no papel de inimiga da
recuperação econômica que o governo deseja promover e, de quebra, do bem-estar
da população que acabaria não tendo acesso à geração de emprego e renda
proporcionada pelos incentivos às atividades locais. Nesta rota de colisão com
Bruxelas, a líder neofascista busca se afirmar como defensora dos verdadeiros
interesses populares em oposição às determinações aceitas pelo governo
anterior.
No plano das relações
internacionais, a invasão russa da Ucrânia é outro ponto de atrito com
Bruxelas. Não é segredo para ninguém que Sílvio Berlusconi, líder de Força
Itália, senador e integrante da coalizão de governo, é um grande amigo de
Vladimir Putin, apoia a invasão da Ucrânia e critica abertamente as sanções
impostas à Rússia. Mas Berlusconi não é o único a cortejar Putin, cuja proximidade
com a extrema direita russa segue rumos identitários que o aproximam do
pensamento mais conservador e nacionalista da Europa.
Em vários momentos desde o
início da guerra, Matteo Salvini, líder da Liga Norte (partido que também
integra a coalizão de governo), propôs retirar as sanções contra a Rússia
afirmando que estas não eram capazes de deter a guerra. Mantendo uma distância
prudente em relação a Berlusconi, Salvini e o seu partido sempre aprovaram a
ajuda militar e humanitária que o país ofereceu à Ucrânia, mas ele sempre fez
questão de sublinhar que nem o preço das sanções, nem a conta das ajudas
enviadas a Kiev podiam ser pagos pelos trabalhadores italianos.
Giorgia Meloni seguiria
uma linha próxima aos colegas de coalizão, não fosse pelo fato de que, neste
momento, seria imperdoável para a Itália comprar briga, ao mesmo tempo, com a
União Européia e com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Apesar
disso, não faltam aos três líderes posições comuns que permitem descarregar na
UE a responsabilidade pelo encarecimento das contas de energia e pela falta de
gás que ameaça tanto o bom funcionamento da economia, como a capacidade de as
famílias enfrentarem os rigores do inverno. Ou seja, ainda que os fatos
recomendem prudência, a coalizão de direita afina as posições que apontam a
Itália como vítima das diretrizes de Bruxelas e o seu governo como fiel protetor
dos interesses dos trabalhadores.
O caso da Hungria é,
sem dúvida, o exemplo mais significativo do processo com o qual a extrema
direita do velho continente procura somar forças para minar por dentro os
estatutos da UE. Vejamos o que aconteceu recentemente. Em meados de setembro
deste ano, por 433 votos a favor, 123 contra e 28 abstenções, o Parlamento
Europeu aprovou uma resolução onde se afirma que o Estado de direito na Hungria
foi degradado a ponto de o país se tornar "um regime híbrido de autocracia
eleitoral", ou seja, a Hungria já não pode ser considerada uma democracia
plena.
Motivos para isso não
faltam. Basta pensar que, desde a sua eleição em 2010, o Primeiro Ministro,
Viktor Orban, trocou centenas de juízes das cortes húngaras a fim de instalar
pessoas que fossem suas aliadas, alterou a lei eleitoral para beneficiar o seu
partido, transformou centenas de jornais independentes em máquinas de
propaganda do seu governo e chegou a proibir livros didáticos de história que
não estavam em linha com a leitura do passado desejada pelo seu partido.
A resolução aprovada
pelo Parlamento Europeu tem consequências econômicas imediatas, à medida que,
pelos estatutos da UE, somente as democracias plenas podem integrar o bloco e,
de consequência, ter direito aos fundos que Bruxelas coloca à disposição dos
países membros. Desta forma, a Hungria só voltaria a receber novos
financiamentos depois que a Comissão Européia verificar que o respeito ao Estado
Democrático de Direito foi restabelecido.
O problema é que, de
2014 em diante, os fundos da UE representaram, em média, 60% dos investimentos
públicos da Hungria e, neste momento, o seu governo precisa muito de dinheiro novo
para fazer frente ao desemprego criado pela pandemia, aos problemas de uma
inflação anual de 18,6%, de uma desaceleração econômica alimentada por uma taxa
de juros de 11,75% e de um déficit público superior aos 11% do PIB.6
Aliada de Orban,
Giorgia Meloni criticou abertamente a votação do Parlamento Europeu, alegando
que a instituição não estava respeitando a soberania húngara e que o
cancelamento dos financiamentos punia as decisões de um representante
legitimamente eleito pela população. Ou seja, os estatutos da União Européia,
para os quais o compromisso com a democracia plena é a condição sem a qual uma
nação não é admitida no bloco, deveriam ser rasgados em nome de escolhas que
negam a base fundamental dos acordos comunitários que, por sinal, foram aprovados
pelo Parlamento húngaro.
O objetivo desta
inversão (partilhada pelo governo da Polônia, pelo partido da extrema direita
espanhola Vox, pela Hungria e, ao que tudo indica, pelos representantes do
setor mais conservador da direita sueca que ganhou as últimas eleições7)
não é o de fazer justiça à vontade soberana do povo, até porque, no caso de
Budapeste, a expressão desta vontade já foi devidamente moldada e impedida de
se manifestar livremente pelas mudanças introduzidas por Orban. Ao apresentar a
Hungria como vítima de um abuso do Parlamento Europeu, Giorgia Meloni visa
legitimar a ruptura dos estatutos comunitários para que a extrema direita tenha
o espaço de ação do qual precisa para construir governos autocráticos ao mesmo
tempo em que, veja só, acusa Bruxelas de adotar uma postura antidemocrática.
Esta lógica de ação
busca aumentar as rachaduras que já existem na União Européia para
transformá-la numa espécie de federação de Estados nacionais com um número
extremamente reduzido de obrigações comunitárias. Com esta mudança, cada país
seria totalmente soberano e independente para tomar as decisões que dizem
respeitos à política interna, às restrições dos direitos sociais que considera
necessárias e às medidas que, em nome da preservação da sua identidade cultural,
restringem as liberdades coletivas.
A senda que leva ao
autoritarismo se disfarça também em apelos identitários que confundem as
pessoas simples. Veja o que aconteceu, por exemplo, no dia 10 de outubro diante
das cerca de 10.000 pessoas presentes na festa anual do Vox, partido da extrema
direita espanhola. Em seu discurso, o líder polonês ultraconservador, Mateusz
Morawiecki, defendeu as tradições de cada país diante "dos burocratas de
Bruxelas que acreditam serem eles que estão formando a Europa" quando, na
verdade, estão criando "um monstro transnacional sem valores". Para
Morawiecki, nada deveria impedir que ministros e presidentes fizessem escolhas
guiadas pelos valores da civilização cristã dos quais seus povos são herdeiros.
Ao defender esse direito
com o manto de uma suposta sacralidade que percorre os séculos, as palavras do
líder polonês escondem que o governo por ele dirigido é um dos mais fiéis
seguidores das pegadas que Orban semeou na UE e que ele próprio já foi
repreendido por Bruxelas por estar a um passo da autocracia e por negar os
direitos civis aprovados pelas normas do bloco. Ou seja, enquanto o discurso
soa a democracia, os fatos apontam em sentido diametralmente oposto.
Neste mesmo encontro,
Giorgia Meloni, que já havia assumido a tarefa de formar o próximo governo,
enviou uma mensagem de apoio a Vox na qual costura inteligentemente apelos a
temas sensíveis à população e posições que traduzem seu plano de governo com
questões identitárias que respaldam sutilmente o discurso de Morawiecki. Em
vídeo conferência diante da plenária do encontro, a líder neofascista disse
defender uma “Europa pragmática que persegue a transição ambiental sem destruir
o tecido produtivo e sem se entregar à China; que acolhe quem chega legalmente
de outros países para trabalhar e protege as fronteiras externas contra a
imigração ilegal; que investe na natalidade e defende a liberdade na educação e
o papel social da família”. Para bom entendedor, meia palavra basta...
A esperteza do machado
em convencer as árvores de sua identidade com elas ganhou novas adesões na
Itália e promete ampliar a porcentagem da floresta que confia em suas
promessas. No momento em que escrevemos, 17% do eleitorado europeu (um em cada
seis votos válidos depositados nas urnas) escolheu uma opção ultraconservadora
nas últimas eleições do seu país.
Muitos desses votantes
são trabalhadores, desempregados, gente que sofre na pele as consequência do
neoliberalismo, árvores que se agarram ao pouco que têm e que, diante das
agruras cotidianas, acreditam no novo alardeado pelo machado. Árvores que
buscam respostas aos seus anseios, querem oportunidades para realizar seus
interesses imediatos e às quais nossos convites a se unirem para que nenhuma
delas seja derrubada, infelizmente, não dizem nada.
Emilio Gennari, Brasil,
07 de novembro de 2022.
______________________________________________________________
(1) Os dados que serviram de base à
elaboração das nossas reflexões e parte dos elementos para aprofundá-las foram
divulgados em:
- https://elpais.com/opinion/2022-07-22/draghi-dimite-europa-se-debilita.html#?rel=mas
- https://elpais.com/opinion/2022-08-26/italia-ante-los-ultras.html
- https://elpais.com/opinion/2022-09-25/seismo-en-italia.html
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-63029976
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-63090118
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-63029974
- https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63045625
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-63038679
- https://tg24.sky.it/politica/2022/10/13/nuovo-parlamento-composizione
- https://european-union.europa.eu/principles-countries-history/country-profiles/italy_pt
- https://tg24.sky.it/politica/2022/10/25/ministero-merito-sovranita-alimentare-significato#10
- https://tg24.sky.it/politica/approfondimenti/rosatellum-come-funziona-legge-elettorale
- https://elpais.com/opinion/2022-10-26/la-doble-cara-de-meloni.html
Todos os acessos foram realizados entre os dias 25
de agosto e 31 de outubro de 2022.
(2)
Analisamos alguns aspectos desse processo em nosso estudo Gestão empresarial
do Estado e pandemia - o caso da Itália, disponível em: https://drive.google.com/file/d/1Jt6VBx5__t17LmIStrv7uc8-QHjHP7Mg/view?usp=drivesdk
(3)
Os dois pontos percentuais restantes pertencem a pequenos partidos que vão da
extrema direita à extrema esquerda.
(4)
É importante lembrar que, como em muitos outros casos, as normas da União
Européia em matéria de imigração estão acima da legislação nacional. Contudo,
devemos levar em consideração que, na última década, foram se multiplicando os
casos em que as diretrizes do governo de um país-membro desprezaram esta
primazia. No caso da imigração, por exemplo, Orban foi o primeiro a descumprir frontalmente
a legislação comunitária, bloqueando o acesso dos refugiados sírios que fugiam
da guerra em direção ao seu território.
(5)
Em: http://elpais.com/internacional/2022-11-03/meloni-choca-con-alemania-por-la-llegada-de-barcos-con-migrantes-a-las-costas-italianas.html Acesso em 04/11/2022.
(6) Vale lembrar que a Hungria não
pertence à Zona Euro. Por esta razão, sua taxa de juros e o déficit nas contas
públicas não são regulados pelas normas comunitárias e pelo BCE.
(7) O partido de ultradireita,
Democratas da Suécia, foi o mais votado nas eleições deste ano e ganhou o direito
de formar o próximo governo do país. Os Democratas foram muito hábeis em
capitalizar o descontentamento de uma população que via o Estado de bem-estar
social entregar o que esperavam dele, enquanto a desigualdade e a criminalidade
aumentavam consideravelmente, e ao atribuir à imigração as mudanças negativas
ocorridas no país. Além disso, em várias ocasiões, a extrema direita lançou mão
de questões identitárias às quais as pessoas são particularmente sensíveis. Para
eles, as nações devem estar alicerçadas em uma raça e em uma cultura homogênea
a fim de preservar os valores próprios de cada uma delas. Neste sentido, ser
sueco é ser branco, é ser portador de uma herança comum transmitida pelo
passado, de uma cultura cujos traços urbanos e rurais são incompatíveis com os
dos imigrantes cuja história, identidade e formação trilharam outros caminhos. Daí
a necessidade de ter a menor quantidade possível deles para fortalecer as bases
comuns da sociedade sueca.
Estas e maiores informações estão disponíveis em:
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-62996390
Acessos
realizados em 15/10/2022.
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