Brasil: o desafio de voar na tempestade1
Nenhum
piloto gosta de atravessar uma tempestade, ainda mais quando o avião não está
em boas condições, a tripulação deseja seguir rotas divergentes e os
passageiros podem criar problemas adicionais. Guardadas as devidas proporções,
esta é a situação em que se encontra o governo Lula em fevereiro de 2023.
Ao mesmo tempo
em que não há ninguém melhor do que ele para negociar com forças e projetos políticos
tão contrastantes, estabilizar o curso da aeronave demanda acalmar os quartéis,
costurar acordos espúrios com um Parlamento conservador, lidar com membros dos
primeiros escalões que participaram ativamente do impeachment da Dilma, adoram
o fisiologismo e flertam com uma extrema direita cuja ação tende se desenvolver
cada vez mais nas sombras.
Neste cenário, o Partido dos
Trabalhadores vê a mobilização popular como uma ameaça à governabilidade e age
no sentido de esvaziar qualquer possibilidade de ela marcar a conjuntura dos próximos
anos. Na arena dos movimentos sociais, a participação nos fóruns oficiais
coloca o povo numa espera desgastante de que, além das reuniões e das palavras,
os fatos provem que suas demandas ganharam prioridade.
Nas searas do sindicalismo, a situação seria cômica se não
fosse trágica. Os dirigentes fazem fila para entregar pautas que o governo não
terá condições de atender e posam como generais prontos para o combate diante
de campos de batalha sem soldados dispostos a empunhar as armas. Longe de
construir pela base os elementos que se destinam a derrotar a direita, se
esmeram em reuniões e discursos de uma retórica onde se destacam princípios nos
quais os trabalhadores não se reconhecem e promessas de ação pouco confiáveis.
Por incrível que pareça, neste país onde os gritos de gol superam
em frequência e intensidade aqueles que denunciam as injustiças, só as torcidas
organizadas dos times de futebol enfrentaram o que os bolsonaristas promoviam
em campo aberto e se mantêm dispostas a fazer o mesmo para que a direita não
detone uma democracia cujas pernas sempre cambalearam sob os ventos da
injustiça e da desigualdade.
Até
que ponto, conseguiremos mexer nos interesses empresariais que sufocam o futuro
da população se esta permanece alheia aos acontecimentos que se preparam? Se
quatro anos de bolsonarismo agigantaram as contradições sociais, por que as
pessoas não reagem?
Nas
próximas páginas, pontuaremos os problemas econômicos em voltas dos quais estão
se formando novas áreas de turbulência e refletiremos sobre algumas atitudes que
levam a classe trabalhadora a uma insana submissão à lógica empresarial.
1. De olho no
radar da economia.
O
panorama internacional de 2023 aponta para a redução do crescimento da economia
mundial. Em graus diferentes, esta é a perspectiva traçada tanto pelo relatório
do Banco Mundial (BM), divulgado em 11 de janeiro deste ano, como pelo estudo do
Fundo Monetário Internacional (FMI), apresentado no último dia do mesmo mês.
Vamos aos números:
Quadro 1: taxas de
crescimento das principais economias e do PIB mundial estimados pelo BM e pelo
FMI para os anos de 2022 e 20232
Países/Blocos |
BM 2022 |
BM 2023 |
FMI 2022 |
FMI 2023 |
Mundo |
2,9% |
1,7% |
3,4% |
2,9% |
Estados Unidos |
1,9% |
0,5% |
2,0% |
1,4% |
Zona Euro |
3,3% |
0,0% |
3,5% |
0,7% |
China |
2,7% |
4,3% |
3,0% |
5,2% |
Japão |
1,2% |
1,0% |
1,4% |
1,8% |
Fonte: Elaboração própria a partir das publicações do BM e do FMI.
As projeções das duas instituições
mostram uma semelhança muito grande em relação ao desempenho de 2022, mas
divergem ao desenhar o cenário esperado para o ano em curso. Diante de uma
inflação elevada, mas com tendência de queda, da relativa estabilização dos
preços dos hidrocarbonetos, de uma taxa de juros superior à média praticada em
2022, da redução dos investimentos e das repercussões da guerra na Ucrânia, o
BM prevê que as economias dos Estados Unidos e da Zona Euro passem por dois
trimestres de desempenho negativo antes de encerrar o ano, respectivamente, com
um crescimento de 0,5% e 0,0% ante 2022. Para esta instituição, o fim da
política de Covid Zero na China deve ter um efeito positivo no crescimento do
seu PIB, apesar dos seríssimos problemas causados pelo coronavírus. O fato de
os EUA e da Zona Euro representarem um terço da produção anual da riqueza do
planeta, a desaceleração do aumento do seu PIB deve derrubar o desempenho da
economia mundial para o terceiro menor patamar dos últimos 30 anos.
O Fundo Monetário Internacional
parte dos mesmos pressupostos, mas, na avaliação dos seus técnicos, a inflação
deve ceder quanto basta para que, até dezembro deste ano, haja uma redução das
taxas de juros capaz de expandir o consumo e os investimentos rumo a um
crescimento mundial na marca dos 2,9% (1,2 ponto percentual acima do projetado
pelo Banco Mundial e apenas meio ponto percentual a menos quando comparado com
o desempenho que o FMI espera para 2022).
Os
dois cenários levam a crer que, em 2023, o superávit da balança comercial brasileira
será inferior ao do ano passado, quando registrou a marca dos 62 bilhões e 310
milhões de dólares. Este recorde foi obtido graças a uma elevação de 19,3% das
vendas externas que encerraram o ano somando 335 bilhões de dólares enquanto as
importações cresciam 24,3% em relação a 2021.
A fim
de não comprar gato por lebre diante de um resultado influenciado pela
contenção da demanda e dos preços internacionais, é necessário resgatar como
cada setor contribuiu para o resultado final das vendas externas de 2022. As
exportações da agropecuária foram as que mais cresceram. Contudo, a alta de
36,1% se deve, fundamentalmente, à elevação dos preços internacionais dos seus
produtos. De fato, o encarecimento das commodities agrícolas constitui 31,5
pontos percentuais do total de 36,1 pontos apurados no ano passado, enquanto os
volumes embarcados aumentaram apenas 1,8 pontos percentuais. Ou seja, as
exportações do agronegócio contribuíram muito pouco para ampliar a produção
deste setor, ainda que a forte elevação dos preços leve qualquer desavisado a
imaginar exatamente o contrário.
As
vendas externas da indústria de transformação tiveram uma alta de 26,2%. Desse
índice, 15,7 pontos percentuais correspondem ao aumento dos preços e 9,6 à
elevação dos volumes. Por sua vez, a indústria de extração mineral andou na
contramão com uma queda de 4,6% do total exportado graças à redução média de
2,5 pontos percentuais dos preços internacionais dos minérios e de meio ponto
percentual dos volumes exportados.
À
medida que as perspectivas de futuro apontam para uma redução do crescimento
mundial, a extrema direita pode usar um superávit inferior ao de 2022 para
mostrar o acerto da política de Bolsonaro e o fracasso do governo Lula, ainda
que grande parte dos resultados de 2023 deva ser atribuída ao encolhimento dos
preços internacionais em relação ao qual qualquer governo pode fazer pouco ou
nada.
Internamente, uma inflação persistente,
uma taxa de juros que rema contra o crescimento econômico, um mercado de
trabalho onde as vagas com carteira assinada aumentam muito menos que as
atividades informais, precárias e por conta própria, projetam para 2023 uma
alta do PIB de apenas 0,8%.
O elevado índice
de endividamento das famílias é outro obstáculo para melhorar esta estimativa.
De acordo com o estudo divulgado pela Confederação Nacional do Comércio, ao
longo do ano passado, em média, 77,9% das famílias brasileiras estavam
endividadas. Isso representa 7 pontos percentuais acima do patamar apurado em
2021 e é 14,3 pontos percentuais superior ao de 2019, o ano anterior à
pandemia.
De cada R$
1000,00 gastos, R$ 302,00 foram feitos com algum tipo de dívida. O aumento dos
juros e da inflação contribuiu fortemente para que a inadimplência atingisse
28,9% das famílias, 3,7 pontos percentuais acima do patamar registrado em 2021
e 4,9 pontos percentuais superior ao de 2019. Diante deste grau de
endividamento, a expansão do consumo através do crédito tende a não se
configurar como uma forte aliada do crescimento de uma economia onde os gastos
das famílias correspondem a 72% do PIB calculado pela ótica da demanda.
Trata-se
de uma perspectiva assombrosa para um governo que precisa aumentar a produção e
a arrecadação para lidar com os graves problemas sociais que afligem o país e
para conter o déficit público. O combate à sonegação e a aprovação de uma
reforma tributária que onere os lucros financeiros e as fortunas dos mais ricos
e reduza os tributos que incidem sobre o consumo e as rendas do trabalho
trariam mais dinheiro aos cofres do Estado. Contudo, diante da atual composição
do Congresso, é ilusório acreditar que assistiremos à aprovação de medidas que
caminham a passos firmes nesta direção.
Podemos
dizer o mesmo em relação à renúncia fiscal que, de acordo com o orçamento de
2023, está estimada em 456 bilhões de reais. Entre os maiores beneficiados encontramos empresas com
faturamento de até 4 milhões e 800 mil reais anuais que optaram pelo Simples
Nacional e somam uma redução de 88 bilhões e 500 milhões de reais no pagamento
dos impostos; o agronegócio, por sua vez, deixará de pagar quase 54 bilhões de
reais em tributos; enquanto as indústrias da Zona Franca de Manaus contribuirão
com esta falta de arrecadação com mais de 55 bilhões de reais. Diante de um
empresariado que pleiteia acintosamente uma diminuição da carga tributária, é
muito difícil que Lula consiga reduzir o tamanho da renúncia fiscal, apesar dos
reiterados pedidos do Tribunal de Contas da União.
Até o
momento, a urgência de uma arrecadação extra para diminuir o déficit público
levou o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a propor uma nova modalidade dos programas
de refinanciamento das dívidas com o Estado (REFIS). Ao perdoar multas e juros
para pôr fim aos litígios judiciais com os quais os empresários negam ou
protelam indefinidamente o pagamento dos valores devidos, Haddad entrega o título
de otário a quem mantem em dia suas obrigações fiscais e premia com uma
vantajosa redução das multas e dos juros os "espertinhos" que agem em
sentido oposto.
Com
pouco dinheiro em caixa, o combate à devastação ambiental e às ações criminosas
contra os povos originários não terão o que precisam para abranger o território
nacional. Impossível esquecer que, no governo Bolsonaro, o desmatamento
aumentou 59% em relação aos 4 anos anteriores sendo que, em território
indígena, esta porcentagem chegou a 138%, entre 2019 e 2021.
A
pandemia, a invasão de garimpeiros, as medidas governamentais que permitiam a
exploração de recursos naturais nas reservas dos povos originários, as
pulverizações de agrotóxicos usadas como arma química para inviabilizar a vida
dos indígenas em algumas regiões, uma extensa rede criminosa tecida pelas
empresas que comercializam o ouro e a madeira extraídos ilegalmente e cujas
malhas abrangem os donos dos garimpos e os fazendeiros que comandam centenas de
milhares de pessoas cuja sobrevivência depende destas atividades ilegais moldam
as tramas de um cenário no qual não basta recuperar o IBAMA e a FUNAI para
caminhar rumo a uma solução definitiva.
A
devastação deixada por Bolsonaro nos serviços públicos impõe colocar em
discussão a lógica que define o teto de gastos do governo. De acordo com as
regras atuais, o Estado pode se endividar à vontade para pagar os juros e os
encargos da dívida interna, mas está com as mãos amarradas na hora de aumentar
os valores que se destinam a cuidar da população. De fato, o montante dos
gastos orçamentários com a Saúde, a Previdência Social, a Educação, etc. só
podem ser reajustados pela inflação acumulada nos doze meses anteriores. Desta
forma, com o número de habitantes crescendo em termos reais de um ano para
outro, mas com os recursos disponíveis sendo corrigidos apenas pela inflação, o
governo tem a mesma quantia de dinheiro para atender mais gente, o que implica
numa piora sistemática dos serviços públicos. A retirada do Bolsa Família do
teto de gastos melhora esta situação, mas o total destinado às necessidades da
população continua insuficiente diante de uma demanda que, historicamente,
nunca foi devidamente atendida.
Enfrentar
os problemas mais graves que afligem o país não depende somente da
disponibilidade de dinheiro. É o caso, por exemplo, da insegurança alimentar
que, em 2022, atingiu mais de 125 milhões de pessoas, sendo que desse
contingente 19 milhões passavam fome. Como isso é possível em um país que se
vangloria de alimentar o mundo? Vejamos os principais elementos que ajudam a
responder a esta pergunta.
Em
primeiro lugar, precisamos separar a produção dos alimentos que vão para a
nossa mesa daqueles que se destinam à exportação (as chamadas commodities
agrícolas, como a soja, o milho, o café, as carnes, etc), à produção de ração
animal e de biocombustíveis ou à indústria têxtil, como é o caso do algodão. Ou
seja, quando a mídia alardeia, por exemplo, que o Brasil é um dos maiores
exportadores mundiais de carnes significa que grande parte dos bois, porcos e
frangos criados pelos nossos trabalhadores estará nas mesas de outros países e
não nas nossas e que, exatamente por isso, nós gastaremos mais para colocar um
pouco de mistura nas refeições diárias.
Com o
aumento dos preços internacionais das commodities agrícolas durante a pandemia,
produzir para exportar se tornou ainda mais vantajoso. Grandes proprietários
arrendaram as terras de vários pequenos agricultores para ampliar os plantios
dos produtos vendidos ao exterior. Desta forma, quem antes enfrentava as
incertezas do clima e do mercado para ganhar a vida com a produção de comida
para a população, encontrou nos arrendamentos uma fonte de recursos mais abundante
e segura. Este processo foi indiretamente incentivado pela redução das verbas
que o governo Bolsonaro aplicou aos programas que sustentavam a agricultura
familiar. O aumento dos problemas climáticos e a redução das áreas onde se
produz o que comemos faz com que baste pouco para causar uma escassez que faz
disparar os preços e leva muita gente a apertar os cintos.
Esta
situação se agrava quando o custo da comida sobe bem mais do que o reajuste dos
salários. O levantamento realizado pelo G1 mostra que, entre outubro de 2019 e
o mesmo mês de 2022, os alimentos que vão para as nossas mesas ficaram, em
média, 41,5% mais caros enquanto a renda média da população subiu apenas 19,7%.
Esta discrepância castiga, sobretudo, as famílias que ganham até dois salários
mínimos nas quais a compra de comida representa a maior porcentagem do salário
mensal. E aqui também alguns números ajudam a termos uma dimensão do problema.
De
acordo com o estudo realizado por Bruno Imaizumi, economista da LCA
consultores, com base nos dados da PNAD-Contínua do IBGE do terceiro trimestre
de 2022, em média, 35,63% dos trabalhadores brasileiros ganham até um salário
mínimo e outros 31,56% recebem entre um e dois salários mínimos. Ou seja, a
inflação dos alimentos levou mais de 67% dos ocupados a reduzir em diferentes
graus a sua dieta alimentar sempre que a renda do trabalho não acompanhou o
aumento dos preços da comida. Esta situação é ainda mais crítica nas áreas
rurais onde a maioria dos empregos é de trabalho precário, terceirizado ou
sazonal e 60,52% dos ocupados ganham até um salário mínimo.
Com
os preços dos alimentos aumentando, os R$ 600,00 do governo destinados às famílias
de baixa renda não compram sequer os itens de uma cesta básica. Em dezembro de
2022, isso só era possível em 5 das 17 capitais onde o DIEESE calcula o seu valor (Natal, Salvador,
João Pessoa, Recife e Aracaju). Em São Paulo, por exemplo, um trabalhador
precisava de mais R$ 191,29 para adquirir uma cesta básica. Em Florianópolis,
ele deveria acrescentar R$ 169,19; R$ 152,74 no Rio de Janeiro; R$ 144,21 em
Campo Grande; R$ 128,78 em Vitória; R$ 124,63 em Goiânia; R$ 96,32 em Belo Horizonte;
R$ 53,99 em Fortaleza e assim por diante.
À medida que a produção de comida não aumenta, esta
situação tende a se repetir e a se agravar. Em janeiro deste ano, por exemplo,
Os R$ 600,00 do Bolsa Família só compravam a cesta básica em Salvador e
Aracaju, onde a soma dos seus produtos perfazia, respectivamente, o total de R$
594,83 e de R$ 555,28.
Para que a comida não seja um bem de luxo, é necessário que
mais terras sirvam para alimentar o povo e não para engordar os cofres dos
fazendeiros. Resta saber quem vai mexer com o agronegócio e como vai convencer
os pequenos proprietários a arriscarem seus recursos para aumentar os plantios
do que o povo come.
2. Cheiro de queimado na cabine dos passageiros.
No dia 31 de dezembro, os pesquisadores do Instituto
Datafolha constatavam que Bolsonaro encerrava o seu mandato com 39% de
ótimo e bom e outros 24% como regular. Concretamente, isso significa que,
apesar de todos os absurdos e desmandos que marcaram os últimos quatro anos de
governo, a extrema direita conseguiu fazer as pessoas assimilarem uma ampla
variedade de elementos sobre os quais, agora, se prepara para dar continuidade
ao trabalho iniciado em junho de 2013.
Não é novidade para ninguém que o bolsonarismo
usou as redes sociais para criar um mundo paralelo ao real, soprou nas brasas da
violência e fortaleceu o individualismo em meio a uma população que idolatra a
propriedade privada e cuja ampla maioria nutre uma verdadeira ojeriza pelo
coletivo. Na esteira deste feito, a fome, a marginalização social e o racismo
foram naturalizados com a força de uma sina alimentada pelas pressões de uma
elite cujo status demanda uma separação clara entre o mundo dos que têm
dinheiro e as senzalas onde se amontoam os empobrecidos pela acumulação da
riqueza em poucas mãos; matar a natureza e os povos originários para dar conta
da sobrevivência ou para elevar as fontes de ganho nem despertou a indignação
popular que alguns esperavam, nem constituiu um motivo de preocupação naqueles
que promoviam a devastação em nome da ampliação dos seus investimentos.
Diante
deste cenário desolador, inúmeras vezes nos perguntamos o que estava
acontecendo com o nosso povo e tecemos as respostas possíveis. Hoje vamos dar
continuidade a esta reflexão acrescentando alguns elementos que nascem de um
diálogo aberto e despretensioso com aqueles que, nos últimos quatro anos, tiveram
que se virar diante da ameaça do desemprego, do avanço da informalidade e do
trabalho por conta própria.
Diante do aumento significativo das incertezas
em relação ao próprio futuro, as pessoas fortaleceram a ideia pela qual cada um
deve cuidar estritamente de si e se proteger dos demais. Sobreviver na
adversidade impôs a urgência de assumir voluntariamente uma disciplina que
naturaliza a angústia de não estar fazendo o suficiente para melhorar o próprio
desempenho e a necessidade de não medir esforços para ir além das metas
alcançadas.
A lógica pela qual parar de evoluir
é assinar o próprio atestado de óbito no altar das disputas que marcam presença
no mercado de trabalho fortaleceu a adesão ativa a uma servidão voluntária que
transforma em motivo de orgulho pessoal a capacidade de suportar condições de
trabalho cada vez mais duras. Quanto mais os resultados obtidos se apresentam
como uma vitória pessoal, mais o sujeito se convence de que tudo depende única
e exclusivamente de um esforço de vontade e que os sofrimentos proporcionados
pela servidão voluntária são o justo preço do gostinho de sucesso e alegria com
os quais dá início a uma nova etapa da interminável corrida da submissão.
Neste ambiente, quem denuncia algum
tipo de injustiça social é visto como um fracassado, como alguém que busca
colher o que não plantou e, por deteriorar a motivação dos demais, não pode
continuar pertencendo àquele meio. Com as câmaras de vídeo controlando a
execução das tarefas e os contatos que elas demandam, o novo “dedo-duro” se
dedica a farejar quem usa palavras e fatos para semear dúvidas, incertezas e
insinuações que turvam o consenso criado em volta da servidão voluntária.
Identificar esta maçã podre para que seja retirada da cesta das boas é uma
forma que o dedo-duro encontrou para proteger a si próprio e os demais de um
perigoso pico de angústia que ameaça danificar a motivação e a disciplina que
dão sentido à vida dentro e fora dos ambientes de trabalho.
As consequências desta realidade são
agravadas pela perda de qualquer sentimento de coletividade. O colega de trabalho é sempre uma ameaça
potencial ao que o indivíduo deseja para si e nunca a promessa de construir uma
causa comum para mudar o rumo dos acontecimentos que marcam negativamente a
vida de ambos e de muitos como eles. Ao se encontrar sempre e sistematicamente sozinho
na hora de enfrentar os crescentes desafios da sobrevivência, o trabalhador vive o seu sofrimento com a
mesma postura de um doente crônico que busca paliativos para diminuir a dor e
apela à resiliência sempre que se sente esmagado sob o peso das correntes que
carrega.
Apesar dos níveis elevados de
servidão voluntária, a realidade não costuma poupar ninguém do choque entre as
convicções com as quais um sujeito interpreta a rotina diária e as situações
com as quais se depara. É neste espaço em que a vida cutuca o sentido comumente
dado aos acontecimentos com a percepção de que "tem algo errado" que
as expressões elementares do bom senso começam a dar os primeiros passos.
A possibilidade de transformar a
sensação de que "as coisas não batem" numa causa coletiva depende
essencialmente da convivência com alguém que, ao partilhar os mesmos espaços do
vivido, consegue ampliar a brecha da dúvida para que o bom senso seja transformado
numa percepção mais coerente e profunda do que aquela proporcionada pela
intuição. O problema destas brechas está no fato de que elas não costumam
permanecer abertas por muito tempo e impedir que se fechem com perguntas e
intervenções assentadas nos aspectos do vivido que são de domínio comum é algo
vital para começar a construir uma visão de mundo bem mais ampla e coerente.
A cunha que permite manter aberto o
espaço da dúvida não pode ser composta por discursos genéricos ou elementos
teóricos externos ao ambiente e precisa ser enfiada com a máxima precisão e
tempestividade possíveis no estreito espaço entre o apelo à verdade da maioria (que
o senso comum usa incessantemente como escudo diante da angústia causada pelos
primórdios de uma nova leitura dos acontecimentos) e os questionamentos que a
própria dúvida produziu na visão de mundo de quem agora percebe a possibilidade
de as coisas estarem de cabeça para baixo. Por isso, a inserção diária no mesmo
espaço do vivido é a peça sem a qual não é possível encontrar as mediações que
dão continuidade ao processo iniciado pela dúvida e nem ter a sabedoria de
intervir para acolher e ampliar a dúvida sempre que as angústias causadas pelas
contradições entre o real e os critérios que orientam a sua interpretação, assimilados
ao longo da vida pessoal, levam o sujeito a dizer abertamente o que sente.
À medida que o individualismo levou a
afirmação do "EU" a assumir o papel de protagonista absoluto em
qualquer circunstância, o sujeito tende a se envolver ativamente somente no que
promete dar asas ao que deseja ser e a rejeitar aquilo que o transforma em ator
coadjuvante de um grupo, em aprendiz de um saber coletivo que questiona o
status de verdade por ele atribuído às suas crenças. Nas duas últimas décadas,
as redes sociais se tornaram o caminho privilegiado deste "EU" que
adora o que reflete a sua própria imagem, despreza a realidade material como
fator de ponderação e verificação das suas opiniões e exclui do seu círculo de
amizades quem critica as posições e as posturas que assume diante dos
acontecimentos.
Neste cenário, agir para mudar as
relações sociais demanda tanto uma sensibilidade mais aguçada e uma visão de
mundo suficientemente grande para compreender e dialogar com subjetividades tão
acentuadas. Mas este não é o único desafio com o qual os militantes se deparam.
À medida que as redes sociais se tornaram a principal rodovia pela qual
trafegam as relações e as visões de mundo das pessoas e os aparelhos
eletrônicos são os veículos que permitem se movimentar em suas faixas de
rolamento, qualquer mensagem gravada ou escrita permite o mapeamento
ininterrupto e incontrolável das informações que são transmitidas. Do perfil no
Facebook, no Instagram ou em sites de compras ao conteúdo dos e-mails e das
mensagens enviadas por qualquer programa de computador ou app, tudo serve para
que os gigantes da tecnologia tenham acesso a bilhões de dados pessoais.
Quanto maior e mais aprimorada a
coleta e a classificação realizadas pelos algoritmos da inteligência artificial,
melhores serão as condições com as quais empresas e instituições de todos os
tipos poderão usar estes mesmos dados para manipular os comportamentos e as
ideias das pessoas em um futuro próximo. Ou seja, quanto mais um indivíduo intervém
nas redes, mais ajuda os grupos de poder a confeccionar a camisa de força que,
em breve, ele vestirá com a satisfação de quem acaba de comprar uma peça de
roupa muito desejada.
Longe do "cala a boca"
imposto a quem estava na base da pirâmide social no século passado, o capitalismo
dos dias atuais cria inúmeras oportunidades de contarmos nossas histórias, de
falarmos dos nossos gostos, das ideias que orientam o que queremos ser, do que
amamos ou detestamos. O sistema quer conhecer nossas opiniões, críticas,
desejos, escalas de valores e preferências; o que fazemos rotineiramente e o
que evitamos a qualquer custo; as ideias que orientam as nossas escolhas; o
sentido que damos aos acontecimentos; nossas relações com a religião; e o que,
de alguma forma, nos faz sentir únicos em meio a milhões de pessoas. Quanto
maior a parte do nosso universo que consegue mapear, mais o sistema se torna
eficiente em mobilizar formas de dirigir os nossos comportamentos, de moldar as
nossas vontades, de alterar nossos gostos e jeitos de ser sem que consigamos
perceber que estamos sendo manipulados.3
O fato de o dialogo valorizar o
"EU" no campo dos sentimentos e das emoções deixa no indivíduo a
impressão de estar trazendo à luz algo que já estava nele e que, portanto, é
genuinamente seu. Desta forma, dos estímulos ao consumismo aos critérios que
orientam a relação com os demais, pouco ou nada irá cheirar a artificialidade e
quase tudo se apresentará como mais uma forma de afirmar a própria subjetividade.
Ou seja, a crença de estar colocando mais de si em si mesmo, fortalecida pela
adoção do novo, faz com que o indivíduo se torne um agente ativo do
aprimoramento do sistema e da construção da sua própria prisão.
Os movimentos sociais não fogem a esta
realidade. Entre os seus dirigentes fervem as discussões em torno da ampliação
e do aprimoramento das intervenções nas redes sociais, bem como a busca de
jornalistas que saibam lidar com elas. No fundo, tratam de obter por uma
comunicação que chega até os celulares dos seus representados o que os carros
de som nunca conseguiram fazer penetrar nos locais de trabalho e nos bairros em
anos de agitação e ampliação da potência dos seus alto-falantes.
Sem as mediações que só a inserção
ativa no cotidiano das pessoas permite obter, nada operará o milagre de entender
o que é realmente importante para elas, de levá-las a ouvir, ver ou ler o que,
por exemplo, um sindicato está dizendo. E, para entender isso, basta olhar o
desconhecimento dos diretos já conquistados por parte dos dirigentes que acabam
de iniciar a sua primeira gestão numa entidade sindical. Quem nunca se deu ao
trabalho de ler as matérias que divulgavam os resultados das negociações é a prova
cabal de que a comunicação não funcionava e que dificilmente o esforço dos
profissionais da área conseguirá superar as barreiras de quem escreve sem
conviver com os destinatários de suas mensagens e, muitas vezes, sem conhecer
os elementos do cotidiano do trabalho que abririam caminhos para que suas
palavras sejam ouvidas.
Quando o sapato aperta, os
trabalhadores irão encher o Whatsapp do sindicato de perguntas que refletem as
preocupações individuais e imediatas que, por sua vez, os dirigentes repassarão
aos departamentos jurídicos cujas respostas só serão lidas se forem curtas,
objetivas, compreensíveis e voltadas exclusivamente a sanar a dúvida
apresentada.
Infelizmente,
enquanto o fracasso tem um lugar cativo no diálogo base-direção, nossas
intervenções nas redes sociais são um sucesso de ponta a ponta na tarefa de
entregar o ouro ao bandido de forma fácil, gratuita, rápida e indolor. À medida
que tudo percorre as sendas da comunicação eletrônica, o Grande Irmão do
romance “1984” escrito por George Orwell, que vigia cada passo, controla e pune
os que se distanciam de suas normas, é cada vez mais eficiente, invisível,
íntimo e parceiro até daquelas pessoas que têm a obrigação de se contrapor às
suas artimanhas. Isso foi conseguido graças a um processo diário,
imperceptível, e perigosamente cativante que se materializa na devoção a
determinados objetos, cujos rituais oferecem uma sensação de bem-estar, de
“estar por dentro” das coisas, de afirmação pessoal e de alívio nas angústias
diárias. E, nisso, as diferenças entre base e direção dos movimentos são apenas
de marcas e tipos dos aparelhos, não de entrega sistemática das informações
almejadas pelo sistema.
O celular, as redes sociais, as
novelas, as séries televisivas que encantam pela forma como traduzem
determinados aspectos da realidade são exemplos destes objetos de devoção e de
submissão. Aparentemente é o "EU" que decide o que ver e o que não
ver, que manda no celular, que escolhe quando usar, o que fazer e dizer nele...entra
e sai dos apps...deixa seus "like" e "dislike", permite
estar com quem desejamos onde quer que nos encontremos, mas, como vimos acima,
tudo o que acontece nele envia dados preciosos do nosso comportamento, da nossa
personalidade e do que planejamos fazer. Dados que serão usados tanto para aprimorar
os controles sobre o nosso dia-a-dia como para construir novos patamares de
dependência e de submissão.
Mas isso não é tudo. Na amplíssima
maioria dos casos, a devoção aos objetos de vigilância do sistema consegue
também absorver a cólera sem a qual as pessoas não conseguem transitar da
indignação para a ação. Acredito que você ainda lembra daquele caminhoneiro que
levou um empresário bolsonarista colado na dianteira do seu veículo. Os poucos
trechos das suas falas registrados pela mídia ilustram o que acabamos de dizer.
Sem nenhum envolvimento na política partidária e sem participar de grupos
organizados que se opunham ao bolsonarismo, ele simplesmente se recusou de
obedecer à ordem de parar no bloqueio ao ver que um grupo de pessoas que não
tinham o que fazer na vida estava ameaçando o acesso aos meios de sobrevivência
que dependiam fundamentalmente do seu trabalho com o caminhão. Foi a cólera, e
não a consciência vinda de uma discussão política, a fazer com que ele se
arriscasse a ter uma dor de cabeça caso o empresário caísse na via e fosse
atropelado pelo seu próprio caminhão.
Em sentido oposto, os vídeos que
circularam nas redes com a gravação das manifestações de descontentamento e de
indignação dos passageiros de ônibus urbanos cuja chegada ao destino final era
atrasada por bloqueios do mesmo tipo mostraram que, quando a indignação e a
reprovação verbal não produzem a cólera, tudo não passa de palavras vazias cujo
conteúdo se perdia à medida que o ônibus se afastava dos bolsonaristas.
Ao não evoluir para a ação, o
descontentamento e a indignação dos passageiros se reduzem a uma expressão de
quanto eles estavam enojados e desejavam a presença de um “alguém", sem nome
e sem rosto, que resolvesse aquela situação sem envolvê-los. Sem a cólera
mobilizando para a ação, as centelhas de consciência e indignação acabam quase
sempre em expressões como: “fazer o que...é assim mesmo...pobre tem que dançar
conforme a música...só Deus para virar isso de cabeça pra baixo”, ou seja, em
algo que resgata a resignação e o conformismo que a indignação queria expulsar.
Quando unimos esta constatação às
considerações que traçamos anteriormente, percebemos outro fator igualmente
importante. Na quase totalidade das vezes, assim que aparece, a cólera é
inteiramente canalizada através das redes sociais. Usando uma expressão do
Érico Veríssimo, podemos dizer que elas funcionam como um "quebra-ondas de
algodão", ou seja, como algo que, ao se contrapor ao impacto, absorve a
força da onda e neutraliza os estragos que poderia provocar. Por isso, quanto
mais duro o desabafo popular nas redes sociais, mais ele esvazia o potencial de
este sentimento mobilizar para a ação direta.
Ingenuamente, as pessoas acham que
basta soltar os cachorros nas trocas de mensagens para que as coisas mudem. Mas
as únicas mudanças que suas palavras conseguem produzir serão aquelas que se
materializam nos ajustes que os grupos de poder farão diante da intensidade e
da amplitude destas manifestações a fim de canalizar este perigoso sentimento
popular para saídas que o sistema tem condições de absorver sem grandes
prejuízos.
Infelizmente, estamos numa situação
em que as pessoas revelam um medo crescente de assumir a autoria das mudanças e
não de que as coisas nunca mudem. O que é necessário e urgente construirmos
coletivamente para reduzir os estragos que os quatro anos de Bolsonaro ajudaram
a ampliar? Seguiremos nos queixando do Lula e dos compromissos políticos
assumidos pelo seu governo? Ou lançaremos as bases de uma alternativa que
supere os limites da nossa atuação e impeça à direita de desenvolver o seu
trabalho?
Estamos diante de perguntas tão
incômodas quanto uma pedra pontiaguda num sapato apertado. Perguntas que
obrigam a uma avaliação criteriosa e crítica das escolhas que fizemos nas duas
últimas décadas. Perguntas às quais os movimentos precisam responder se não
quiserem se tornar cascas vazias de uma representação cada vez mais efêmera e
inconsistente.
Enquanto isso, o avião do mandato
presidencial identificado pelo prefixo "Lula 2023-2026" segue a sua
viagem turbulenta pelas nuvens de tempestade de uma direita impossível de ser
contida com o plano de voo que orienta as operações na cabine de comando.
Emilio
Gennari, 09 de fevereiro de 2023.
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(1)
Para elaborar esse texto, nos valemos das matérias divulgadas em:
·
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62920776
·
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63209750
·
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63096483
·
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63562381
·
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63605227
·
https://mapbiomas.org/favelas-no-brasil-crescem-em-ritmo-acelerado-e-ocupam-106-mil-hectares
·
https://mapbiomas.org/agricultura-triplica-area-de-cultivo-em-37-anos-1
·
https://mapbiomas.org/57-dos-municipios-da-mata-atlantica-tem-menos-de-30-de-vegetacao-natural
·
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63631085
·
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63701894
·
https://elpais.com/ideas/2022-11-30/la-polarizacion-es-como-las-drogas-engancha.html
·
https://elpais.com/opinion/2022-12-07/como-enfrentar-la-aparicion-de-la-nueva-ultraderecha.html
·
https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/a-fome-explode-e-o-agro-planta-combustiveis/
·
https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-64118772
·
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64072279
·
https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-63451556
·
https://www.bbc.com/mundo/vert-fut-64147841
·
https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/analiseCestaBasica202212.html
·
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64258035
·
https://outraspalavras.net/outrasmidias/radiografia-do-antifascismo-nas-torcidas-organizadas/
·
https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/analiseCestaBasica202301.html
Listados em ordem cronológica, os acessos foram
realizados entre 25 de julho de 2022 e 07 de fevereiro de 2023.
(2) Os relatórios das duas instituições foram extraídos,
respectivamente, dos sites: https://www.worldbank.org/pt/news/press-release/2023/01/10/global-economic-prospects#:~:text=A%20economia%20global%20tem%20previs%C3%A3o,emergentes%20e%20economias%20em%20desenvolvimento e https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2023/01/31/world-economic-outlook-update-january-2023#Overview Acessos realizados em 01/02/2023.
(3) Para uma melhor compreensão deste assunto, sugerimos a leitura do
estudo de Shoshana Zuboff, A era do capitalismo de vigilância - a luta por
um futuro humano na nova fronteira do poder, versão digital da Ed.
Intrínseca Ltda. divulgada em 2021 e disponível através do link https://drive.google.com/file/d/1xt2G4pEhETsdld69niAT-90ipSKPD5gn/view?usp=drivesdk
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