quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Palestina: a resistência é o segredo da liberdade.

 


Matar 1.419 pessoas e ferir outras 5.300 é um acontecimento que, no mínimo, deveria provocar uma reflexão sobre as razões que o produziram, ainda mais quando, entre as vítimas fatais, encontramos 308 crianças. Se você, como eu, fica impactado com notícias assim, me diga apenas uma coisa: a sua reação mudaria se soubesse que os dados  não se referem ao ataque que a resistência palestina realizou nos assentamentos israelenses no dia 7 de outubro de 2023 e sim ao primeiro grande massacre perpetrado pelo exército de Tel Aviv na Faixa de Gaza depois que este território foi transformado numa prisão a céu aberto? Antes de pensar que, no fundo, os palestinos devem ter feito por merecer, você se preocuparia em ouvir atentamente o que eles têm a dizer?

Os números que apresentei acima foram extraídos do relatório da ONU e se referem à “Operação Chumbo Derretido” que as forças armadas israelenses realizaram na Faixa de Gaza entre 27 de dezembro de 2008 e 18 de janeiro de 2009 em resposta às mortes de 3 civis e 10 soldados provocadas por foguetes lançados da Faixa de Gaza. Para cada israelense morto, 109 palestinos perderam a vida. Apesar dos números desta resposta avassaladora, Israel saiu como vítima e o mundo se limitou a apontar o uso desproporcional da força como o único problema da sua retaliação. Mas, devido à gravidade deste acontecimento, a Operação Chumbo Derretido marcou o fim das esperanças palestinas numa solução pacífica dos problemas criados pela ocupação israelense.

Eu já estou vendo no seu rosto a expressão de quem aponta os palestinos como aqueles que começaram a briga. Logo, se Hamas não tivesse lançado seus foguetes, nada aconteceria na Faixa de Gaza. O problema de limitar o olhar à gota que fez o vaso transbordar é a impossibilidade de vermos que ele já estava cheio. Ou seja, longe de ser uma ação desprovida de qualquer razão, o lançamento dos foguetes era o grito de quem estava sendo submetido a uma opressão que passava dos limites numa “normalidade” caracterizada por humilhações e medidas que sufocavam a vida na Faixa de Gaza. O brevíssimo resgate histórico que segue vai ajudar a visualizar o que vinha acontecendo.

Em 2007, o Primeiro-Ministro Ariel Sharon retirou os judeus que moravam no enclave costeiro e cercou a área com muros, alambrados e torres de vigilância. A circulação de pessoas e mercadorias entre Gaza e o mundo externo passou a depender dos caprichos israelenses. A infindável lista de abusos que esta possibilidade alimentava nunca foi detida por razões humanitárias, nem mesmo durante a pandemia do coronavírus, mas, em nenhum momento, a mídia oficial se dignou de apontar as consequências nefastas que produzia entre os palestinos. Romper este silêncio passou a ser uma tarefa essencial para voltar a respirar. Por isso, sempre que os efeitos das restrições beiravam o intolerável, Hamas disparava seus foguetes artesanais (rockets) para obrigar Israel a aflouxar a corda.

O fato de não ter colonos israelenses morando na Faixa de Gaza permitia que as retaliações de Tel Aviv a estes lançamentos fossem sistematicamente desproporcionais aos danos provocados pelos rockets palestinos. Desta forma, criava-se uma dinâmica perversa. O mundo não ficava sabendo dos abusos sofridos pelos moradores do enclave costeiro, mas, ao ver as imagens dos foguetes de Hamas cruzando os céus israelenses, naturalizava a destruição e as mortes causadas pelas forças armadas de Tel Aviv como uma ação de legítima defesa com a qual protegia a sua população de ataques supostamente injustificados contra o seu território.

No final de cada retaliação, Israel aflouxava a corda que sufocava a Faixa de Gaza à espera do momento em que o torniquete voltaria a ser apertado numa dinâmica que transformava as vítimas dos seus abusos em algozes e as ações militares de Tel Aviv em atos que contavam com a aprovação mundial. Desta forma, os palestinos nunca tinham o direito de se defender do estrangulamento em curso enquanto viam avançar as medidas que visavam forçar a população a deixar suas terras e suas casas.

Décadas de enfrentamento fizeram a resistência armada palestina passar por inúmeras fases, desenvolver seus próprios armamentos, aperfeiçoar o treinamento militar, criar unidades cibernéticas para invadir telefones celulares de cidadãos e militares israelenses, unir as forças das diferentes facções em volta de uma estratégia comum, num crescendo que resultou na “Operação Inundação de Al-Aqsa”, realizada em 7 de outubro de 2023. A motivação que levou a invadir assentamentos israelenses próximos à Faixa de Gaza para fazer reféns guarda uma relação direta com o estágio em que havia chegado o projeto de Tel Aviv de aprofundar as condições que permitiam ampliar o isolamento internacional dos palestinos e minar os elementos que fazem deles um “povo em resistência”.

Contudo, diante do número de mortos e feridos e da amplitude da destruição causada pelos bombardeios, é impossível não ficarmos intrigados. Qual é o sentido de capturar reféns para trocá-los por presos palestinos? Valeu a pena sofrer perdas tão pesadas por causa disso? Por outro lado, como explicar que a população da Faixa de Gaza mantém o seu apoio à resistência armada e que a da Cisjordânia aumentou significativamente a sua admiração por estes grupos?

Para a maioria dos comentaristas, os números da catástrofe mostram que a relação custo-benefício é amplamente desfavorável aos palestinos. O problema de usar critérios exclusivamente quantitativos para mensurar o sucesso de uma ação militar é que as equações matemáticas são irrelevantes entre os povos que lutam para ter uma pátria que possam chamar de “sua”. Se tudo dependesse apenas de uma relação vantajosa entre os ganhos e as perdas sofridas, ninguém enfrentaria o poder de fogo de qualquer força de ocupação, à medida que suas retaliações multiplicam, imediata e indiscriminadamente, os sofrimentos da população. Desta forma, a revolta do Gueto de Varsóvia e as lutas partisans que se desenvolveram na Europa a partir dela não deveriam ter ocorrido em função das ingentes perdas impostas pelo nazifascismo. O mesmo se aplicaria aos movimentos de libertação nacional nas colônias britânicas, francesas, portuguesas e de outros países cujas forças armadas, em tempos e períodos diferentes, controlaram política, econômica e militarmente regiões e nações mundo afora.

Mas, no que diz respeito à geopolítica do Oriente Médio, é importante sublinhar que a criação de um Estado Palestino, total e voluntariamente esquecida pelos países da região e pelas instâncias internacionais, voltou a ser considerada como o único meio para pacificar as relações entre os dois povos. Do mesmo modo, a dinâmica dos acontecimentos desmascarou com riqueza de detalhes o peso dos interesses estadunidenses na manutenção de Israel como potência regional dominante apesar de o país violar normas mundialmente reconhecidas e provocar um genocídio de amplas proporções. Do mesmo modo, o apoio popular ao cessar-fogo e ao povo palestino registrados nas manifestações de rua em inúmeros países evidenciou a postura hipócrita dos governos que falam de paz, mas mantêm inalteradas as relações que alimentam o poder de destruição israelense.

Por outro lado, as perguntas que formulamos acima só podem ser respondidas compreendendo que não estamos diante de indivíduos que resistem ou de grupos isolados que articulam ações arrojadas, e sim de um povo que faz da resistência o caminho cotidiano rumo à sua libertação. Uma resistência cuja firmeza e continuidade se baseiam em elementos identitários que percorrem gerações inteiras, em laços familiares e solidários que surpreendem, numa enorme capacidade de encontrar força e vitalidade nos momentos mais difíceis. Só assim podemos entender como as vivências coletivas são as colunas que sustentam a resistência na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

A questão dos presos palestinos é uma boa porta de entrada para começar a conhecer a dinâmica deste processo. Enquanto os israelenses veem seus reféns em termos de quantidade de pessoas a serem resgatadas, para os moradores da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, cada um dos mais de nove mil presos que lotam as prisões israelenses, muitos deles sem saber sequer do que estão sendo acusados, é uma vítima da ocupação militar dos seus territórios e do apartheid ao qual toda a população é submetida.

Cada preso encarcerado por suas ações de resistência simboliza o cativeiro imposto a uma nação, é uma parte viva e fecunda da sua luta, alguém que, apesar de sofrer violações constantes dos seus direitos, segue trabalhando pela causa Palestina ao transformar celas em espaços de organização. O trecho de uma  entrevista de Charlotte Kate, coordenadora do Centro de Solidariedade aos Presos Palestinos ao New Arab ajuda a entender porque este sentimento é tão forte no meio popular:

«Os palestinos valorizam e honram profundamente os enormes sacrifícios que os presos políticos fizeram pela libertação das suas terras. Cada uma de suas vidas é preciosa para eles». Ela acrescentou que os prisioneiros palestinos são líderes da resistência que foram detidos porque Israel entende que eles são uma ameaça ao sistema colonial dos colonos e, portanto, quer isolá-los do mundo.

«Desde os primeiros dias do movimento de libertação nacional palestino, a prisão sempre foi uma arma usada pelo colonizador», confirmou Kates, «e sempre foi uma inspiração para a resistência palestina». Mais do que vítimas do colonizador, explicou que os presos são também «líderes, organizadores e combatentes. Eles se organizam atrás das grades e transformam as prisões em ‘escolas revolucionárias’ dos oprimidos». Por serem «essenciais para o movimento de libertação», o seu direito à liberdade deve fazer parte da luta de libertação juntamente com o isolamento de Israel.

Como observou Charlotte Kates, «estes prisioneiros colocam diariamente os seus corpos na linha da frente da resistência, confrontando diretamente os carcereiros israelenses e o sistema prisional colonial» através de greves de fome, aulas educativas e organização política para obter direitos básicos. Atrás das grades, eles continuam a exercer a sua liderança na luta palestina, bem como no movimento internacional mais amplo como um todo”.

Entre os casos mais conhecidos desta resistência, encontramos o de Marwan Bargouthi, um dos líderes de Al Fatah, que, no dia 15 de fevereiro deste ano, foi transferido da prisão de Ofer para o confinamento solitário num presídio não revelado por encorajar a escalada das atividades rumo a uma Terceira Intifada nos territórios da Cisjordânia. Bargouthi participou da Primeira Intifada, em 1987, e foi uma das figuras de destaque da Segunda Intifada, em 2000. Preso e exilado em diversas ocasiões, sofreu várias tentativas fracassadas de assassinato por parte de Israel. Em 2017, liderou uma greve de fome que envolveu os presos de vários presídios para exigir mais direitos e melhores condições de detenção. A sua popularidade faz dele o candidato com mais intenções de voto na eventualidade de uma eleição para escolher os novos representantes da Autoridade Palestina.

Entre as mulheres presas, lembramos de Khalida Jarrar, advogada, Mestre em Democracia e Direitos Humanos e deputada eleita do Conselho Legislativo Palestino. Em 2015, foi presa na casa dela, em Ramallah, e levada para o presídio de HaSharon sem que as autoridades apresentassem os motivos da detenção. Diante dos protestos pela sua libertação, o tribunal a julgou e condenou por doze crimes. Na cela, Khalida criou uma escola destinada a oferecer às palestinas presas a oportunidade de estudar que nunca tiveram devido à situação familiar.

Ajudar as mulheres a completar o ensino médio era um trabalho que proporcionaria às detentas uma oportunidade de obter um diploma universitário após o cumprimento da pena, de contribuir ainda mais para o fortalecimento das comunidades às quais pertenciam e, de imediato, a manter viva a esperança na luta num ambiente onde a separação dos filhos e dos entes queridos aumenta ainda mais os sofrimentos diários. Inúmeros os obstáculos que ela teve que enfrentar para fazer valer este direito garantido pela legislação internacional e, uma vez reconhecido, para superar os boicotes com os quais o sistema prisional israelense buscava fazer com que as aulas não se realizassem. Um boicote que confiscou quadro-negro, canetas e lápis quando, após a superação das provas oficiais das duas primeiras turmas (de cinco e nove alunas, respectivamente), a vontade de estudar entre as presidiárias cresceu além das melhores expectativas.

Através destes breves exemplos começamos a vislumbrar porque conseguir soltar algumas centenas de presos e vê-los sair de cabeça erguida numa troca por reféns é, para os palestinos, uma vitória sem paralelos. Sua libertação devolve à comunidade pessoas experimentadas na luta, prova a capacidade que a resistência tem de mudar as regras do jogo imposto pelo opressor, de criar um precedente histórico que antecipa o momento em que todos os presos e os territórios palestinos serão libertados.

Algo parecido ocorre no microcosmo da vida familiar quando a ocupação militar israelense transforma as paredes das próprias casas em celas que sufocam o cotidiano dos moradores para forçá-los a abandoná-las. É o caso do setor H2 da cidade de Hebron, na Cisjordânia, que é controlado pelas tropas de Tel Aviv. Após o ataque de 7 de outubro, os palestinos desta área conheceram a proibição de andar pelas ruas. As famílias tiveram problemas para conseguir água e comida, muitos trabalhadores perderam seus empregos, as crianças não podiam frequentar as escolas, emergências médicas eram submetidas a inúmeras restrições e os soldados chegaram a proibir os moradores de abrir as janelas. No dia e na hora em que a circulação era permitida, quem saía de casa só podia voltar apenas no curto período noturno determinado pela vigilância que sempre mantém uma presença ostensiva.

Neste cenário, marcar um encontro na casa de alguém nos momentos em que é terminantemente proibido sair do próprio lar pode ser comparado à evasão de um presídio. É o que um grupo de oito mulheres já fez ao se reunirem para tricotar, uma escolha que se apresenta como totalmente descabida pelos riscos que impõe e pelo motivo que lhe dá origem. Mas, basta afastar o véu das aparências para perceber o que significa realizar esta façanha em termos de resistência.

Desde o início do confinamento, as mulheres aprenderam a observar os soldados e a se movimentar quando eles não estão olhando. Desta forma, realizam o trajeto até o ponto de encontro ora esgueirando-se pelas ruas laterais e entre os edifícios, ora se protegendo na casa de alguma família conhecida até que o caminho pela porta dos fundos da mesma permita completar mais uma parte do percurso. Encontrar-se para tricotar equivale a dizer ao opressor que não terá a submissão que procura impor e nem levará as famílias palestinas a abandonarem suas casas. E, aqui, não estamos falando de lideranças renomadas e sim de mulheres comuns que, ao criarem espaços de liberdade, mostram com seus passos a firmeza de um povo em luta.

No caminho da Cisjordânia para a Faixa de Gaza, onde a destruição atinge níveis inimagináveis, uma pergunta marca cada passo deste trajeto: por que a população faminta, exausta, traumatizada e que perdeu o que possuía não só não ergue a sua voz contra os grupos que desencadearam a fúria de Israel, mas mantém o seu apoio à resistência?

Algumas considerações nos ajudam a encontrar as respostas. A primeira delas guarda uma relação direta com alguns erros de compreensão bastante comuns no mundo ocidental. Resistir não é apenas empunhar um fuzil, disparar um projetil antitanque, lançar uma granada ou um rocket. Estas ações constituem uma parte bem pequena das formas nas quais a resistência se manifesta e o seu impacto seria facilmente neutralizado pela repressão se não contassem com um forte apoio popular e com sua firme capacidade de reação nos momentos mais difíceis.

Não há como negar, por exemplo, que, além das perdas de vidas humanas, ter a própria casa destruída em um bombardeio e saber que a Faixa de Gaza foi transformada em um espaço inabitável em todos os sentidos práticos da palavra mostram o poder destruidor de Israel e convidam a abandonar aquele território. Contudo, para os palestinos, a terra é mais preciosa do que a própria casa, à medida que ela representa o seu patriotismo e encarna a luta para restaurar a harmonia e a unidade nacional. Neste sentido, a resistência armada se apresenta como o único caminho que restou para lutar pela terra, um passo sem o qual não será possível reconstruir a plenitude do ser povo, da sua identidade e do seu papel no mundo.


Do mesmo modo, a terra é também o elemento que conecta os palestinos à noção de lar. Por isso, perderem as casas nos bombardeios transforma eles em desabrigados, não em sem terra, porque a terra é o seu lar. Desta forma, aderir à resistência é uma maneira de responder aos ataques desferidos contra o seu direito à terra que, como pátria e lar, é a base para reconstruir a humanidade e a dignidade palestina enquanto povo. Este compromisso transforma as ações mais simples numa forma de rejeitar a desumanização e a humilhação causadas pela ação destruidora de Israel e num momento que desperta o orgulho que alimenta a firmeza da própria resistência. Um exemplo vai nos ajudar a entender a importância deste processo. Desnudar prisioneiros, bater e urinar neles, amarrá-los e submetê-los a situações humilhantes para, em seguida, divulgar as fotos tiradas pelos soldados a fim de mostrar qual é o destino reservado a quem cai nas suas garras é parte da guerra psicológica que completa os efeitos devastadores dos massacres e dos bombardeios. Mas o tiro pode sair pela culatra quando o torturado não baixa a cabeça diante do opressor.

   

Ao postar a foto ao lado, a intenção do exército israelense era de enviar uma mensagem de superioridade militar e de derrota palestina. Nela, Hamza Abu Halima, é reduzido à impotência diante do soldado que olha para ele com a superioridade do vencedor. Hamza não é um combatente da resistência armada, mas apenas uma pessoa comum.

Preso depois de os soldados matarem o pai, a cunhada e dois sobrinhos, de 6 e de 3 anos, ele aparece totalmente dominado, com sangramentos na perna e coberto apenas com uma cueca, uma condição que seus valores culturais e religiosos consideram extremamente vergonhosa e humilhante. Mas, apesar disso, Hamza está de costas retas e olhando bravamente no olhos do soldado. Em sua postura, os palestinos viram o orgulho, a dignidade e a coragem de uma geração que está destruindo a reputação das forças armadas de Israel ao impedir que consigam extrair qualquer sentimento de vitória dos massacres que estão perpetrando.

Saber da etimologia do seu nome e do bairro onde morava completou a obra de transformar aquele olhar em convite a se manter firmes na resistência. Hamza é uma palavra árabe antiga que significa “Leão”. Ele e a sua família moravam na região leste da Cidade de Gaza e, mais precisamente, no bairro de Shejaiya que significa “Bravura”. Agora, ele é conhecido como “O Leão de Gaza” não por ostentar uma audácia sobre-humana, e sim por refletir a firmeza de um povo em tempos extremamente difíceis.

Ao percorrer esta estreita faixa litorânea, chama a atenção que a destruição das mesquitas estava nos planos israelenses desde o início dos bombardeios. Longe de serem fábricas de terroristas ou lugares onde o fanatismo religioso ganha corações e mentes, estes ambientes têm se constituído cada vez mais em parte central da resistência. E, por incrível que pareça, Israel jogou um papel de primeira ordem neste processo.

Apesar do compromisso de preservar a Mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém Oriental (Al-Quds), o fato de ela ter sido erguida sobre as ruínas do Templo de Salomão torna a ocupação daquele área um aspecto central para os setores que veem na sua reconstrução uma peça-chave para a espiritualidade e a purificação dos judeus. Mas há um problema. A mesquita é o terceiro lugar mais sagrado do islamismo, à medida que a ascensão aos céus do Profeta Maomé teria ocorrido justamente onde ela foi erguida. Desta forma, Al-Aqsa é também um lugar santo, um símbolo da espiritualidade e da história para mais de um bilhão de muçulmanos.

Teoricamente, os cerca de sete milhões e trezentos mil palestinos que moram na Cisjordânia, em Jerusalém Leste, Faixa de Gaza e em Israel têm direito a frequentá-la. Ocorre que, ao longo das três últimas décadas, o governo de Tel Aviv multiplicou os bloqueios militares, as interdições e as restrições de acesso. Some a isso as profanações promovidas por grupos de colonos judeus dos espaços em volta de Al-Aqsa e as investidas dos soldados contra os muçulmanos que a frequentavam e entenderá porque proteger a mesquita foi assumindo um significado cada vez mais profundo na identidade do povo palestino e no cotidiano da sua resistência. Por isso, apertar o cerco em volta de Al-Aqsa e bombardear as mesquitas na Faixa de Gaza se tornou uma forma de destruir os símbolos religiosos de um povo inteiro.

Desta forma, o “mal” encarnado pela política israelense abre feridas ainda mais profundas na vida de milhões de palestinos. Combatê-lo e eliminá-lo passa a ser uma tarefa de primeira ordem por todos aqueles que creem. Nas leituras que fizemos para a elaboração deste texto encontramos uma passagem da tradição islâmica particularmente esclarecedora. Um dito atribuído ao Profeta Maomé ordena:

“Quem dentre vós vê o mal, mude-o com a mão. Se ele não puder fazer isso, então, que seja com a língua. Se ele não puder fazer isso, então será com o coração, que é o nível mais fraco da fé”.

Concretamente, remover o mal com uma ação individual e coletiva é um dever de cada muçulmano. Quando, por algum motivo, lhe é impossível agir diretamente contra este mal, o fiel é chamado a denunciá-lo para que o mal possa ser visto e combatido. Mas, caso as condições nas quais as pessoas se encontram impossibilitem que também esta tarefa seja cumprida, a tradição aponta que elas podem fazer isso com o coração, ou seja, apoiando intimamente a luta contra o mal. Contudo, esta terceira possibilidade é descrita como o nível mais fraco da fé, à medida que não há nenhuma participação efetiva nas ações que se destinam a mudar a realidade e nos riscos que elas envolvem.

Entender a profundidade deste compromisso é a base para compreender como a religião se tornou um aspecto central da resistência palestina e a razão pela qual Israel  aniquila os símbolos que encarnam a espiritualidade dos fiéis. É o caso, por exemplo, do Xeique Issa Miqdad, pregador na mesquita de Salman Al-Farsi. Apesar dos bombardeios e das incursões dos soldados, ele nunca saiu do bairro onde morava em busca de refúgio e proteção e nem parou de encorajar os palestinos a resistir. Quase diariamente costumava ir ao Hospital dos Mártires de Al-Aqsa para participar dos funerais, confortar as famílias, liderar as orações e exortar as pessoas a permanecerem firmes e pacientes. Issa também nunca parou de se deslocar de uma mesquita a outra para pedir aos fiéis que permanecessem nas suas casas, não abandonassem os campos e frustrassem os planos da ocupação que visavam expulsar os palestinos do seu próprio país. As palavras pronunciadas partilhando os mesmos riscos a que a população estava submetida faziam com que ele mantivesse uma relação especial com os habitantes da Faixa de Gaza.

À mãe dele que, temendo pela sua vida, pedia que tivesse cuidado e não viajasse entre as mesquitas para pregar às pessoas, Issa, sorrindo, respondia dizendo que continuaria a expor os crimes da ocupação e a educar o povo sobre os planos de Israel para Gaza. No dia 15 de abril, exortou os fiéis, abalados por seis meses de bombardeios e pela fome a serem fortes, deixando claro que os povos só podem se libertar pagando um preço elevado e que todos estavam dispostos a dar as próprias vidas pela libertação da Palestina. Na manhã do dia seguinte, um drone israelense calou a sua voz.

Encontramos a mesma determinação entre os jornalistas palestinos que fazem a cobertura dos massacres. Sempre que alguém deles é assassinado num bombardeio ou por franco-atiradores é uma parte da verdade sobre as atrocidades da invasão israelense que deixará de ser dita. Nenhum jornalista ou repórter escapa das ameças que buscam intimidá-los e, em seguida, apesar de todas as identificações que a profissão exige, os transformam em vítimas fatais. É neste processo que os sofrimentos da população se unem à dor pela perda dos próprios entes queridos, enquanto partilham com ela as dificuldades de ter acesso à água, ao abrigo, à comida, ao transporte, à internet ou a uma simples tomada para recarregar as baterias de seus equipamentos.

Alguns depoimentos ajudam a termos uma ideia deste compromisso em denunciar o mal. O primeiro deles é o do jornalista palestino Mohamed Balousha que, baleado na perna esquerda enquanto gravava posições das tropas israelenses na Cidade de Gaza, escapou da morte por pouco. Ao comunicar o ocorrido, Mohamed encerra a mensagem escrevendo:

“Um ataque que não te mata te fortalece mais, mais e mais”.

Entre os casos mais conhecidos está o do jornalista da Al-Jazeera, Wael Al-Dahdouh. No dia 25 de outubro de 2023, as tropas israelenses atacaram a casa da sua família matando a esposa, a filha Sham, o filho Mahmoud e um sobrinho. Momentos depois, ele voltava a entrar no ar para continuar denunciando os crimes da ocupação.

Em 15 de dezembro, sofreu um ferimento na mão direita em consequência de um bombardeio que destruiu uma escola na cidade de Khan Younis. Na mesma ocasião, viu morrer o seu operador de vídeo, Samer Abu Daqqah, que, em função do cerco militar, não pôde receber atendimento médico durante mais de três horas.

Wael Al-Dahdouh se despede do filho Hamza.


No dia 7 de janeiro, os soldados israelenses assassinaram seu filho Hamza, também jornalista, enquanto cobria os efeitos dos bombardeios com Mustafa Thuraya. Horas depois da última despedida, Wael entrava no ar dizendo:

“Estas são as lágrimas da dor e da separação, as lágrimas que nos diferenciam de nossos inimigos: nós estamos saturados de humanidade, enquanto eles estão saturados de morte e de ódio. Por isso choramos, é verdade, mas estas são lágrimas de humanidade, lágrimas de generosidade e nobreza, não lágrimas de impotência, de medo e de submissão”.

A tarefa de denunciar o mal não conhece limites de idade. Lama Abu Jamous, uma garota de 9 anos, refugiada em Rafah e filha de um jornalista é talvez uma das pessoas mais jovens a assumir voluntariamente esta tarefa. Após o início da incursão militar, ela começou a gravar vídeos e a publicá-los num blog do Instagram que hoje tem cerca de 750.000 seguidores.

Lama Abu Jamous.


Neles, Lama documenta as dificuldades diárias que ela e a sua família enfrentam no meio dos bombardeios, nos deslocamentos forçados, na falta de comida e água que aflige a população. Ao explicar porque retrata a devastação em curso na Faixa de Gaza e a resiliência do seu povo, a menina diz:

“Quero que o mundo ouça as vozes das crianças da Palestina. Estamos sofrendo torturas, fome e deslocamentos forçados no meio de tudo isto e queremos que o mundo ouça”.


Muitas vezes, a voz que descreve o cotidiano de destruição perpetrado pelo exército israelense em Gaza é a mesma que, nas angústias do presente, faz ecoar do passado para o futuro e do interior do conflito para o mundo o que os povos desconhecem. É o caso do poeta e professor universitário Refaat Alareer, conhecido como a “Voz de Gaza”, que sempre acreditou na necessidade de cada vez mais pessoas narrarem o cotidiano de sofrimento naqueles territórios, as histórias de suas vidas e seus sonhos numa Palestina livre. No início da invasão israelense, ele próprio começou a documentar a vida cotidiana sob os bombardeios e, consciente da gravidade dos acontecimentos, instou alunos e alunas a fazerem o mesmo. (Na imagem, Wael Al-Dahdouh se despede do filho Hamza).

Ao resgatar o espírito e os objetivos do seu “contar histórias”, Alia Khaled Madi, estudante e escritora, dá o seu depoimento partindo de uma frase do livro “Gaza Writes Back”, uma coleção de escritos de jovens autores que o próprio Refaat havia editado:

    “«Às vezes, uma pátria se transforma em um conto. A história nos encanta porque fala da nossa pátria e amamos ainda mais a nossa pátria graças à história». 

Estamos profundamente arraigados em nossa herança palestina. Os contos populares e outras histórias são um refúgio para todos nós. Dão-nos poder quando o nosso sofrimento é particularmente agudo, como durante as guerras de Israel contra Gaza e, inclusive, durante o genocídio atual.

Isso não significa que as histórias evitem a realidade. Longe disso. Nossas histórias estão envolvidas na dor mais profunda. Temos histórias sobre cadáveres brutalizados. História sobre como Israel condenou a morte a palavra «lar».

Nossas histórias de terror atravessam as camadas sufocantes do silêncio e da vergonha que envolvem a humanidade. Contamos histórias e escrevemos para proteger nossos corações entristecidos e agitados. Encontramos consolo em escrever, no fato de que alguém, em algum lugar desta terra lerá nossas palavras, ouvirá nossas vozes e contará nossas histórias.

Todas as nossas histórias são partes conectadas de uma história original de verdade e esperança. O conto da terra. Escrevemos porque as palavras são a verdade. A eco de nossas palavras segue se tornando mais forte. E se fará mais forte até que nos libertemos da opressão”.

O Professor Refaat Alareer.


No dia 6 de dezembro de 2023, um míssil teleguiado entrou em seu apartamento durante a noite matando Refaat e toda a sua família. Israel calou a sua voz dando a ele o tratamento reservado aos oprimidos que reivindicam o direito a contar a própria versão da história. No dia 26 de abril de 2024, as bombas fariam o mesmo com sua filha, Shymma, seu genro e o neto de três meses. Filha à qual havia dedicado um poema no qual pedia que, quando morresse, ela devia transformar a sua história num conto que trouxesse esperança.

Histórias e esperanças que, à noite, deitadas no chão de areia das tendas erguidas nos campos de refugiados ou no que restou de suas casas, as mães transmitem aos filhos em meio às permanentes ameaças de morte que rondam a Faixa de Gaza. Histórias e esperanças que os idosos nascidos antes da criação do Estado de Israel testemunham acompanhando suas palavras com uma foto amarelada, com a chave da porta da casa da qual foram expulsos, com as lembranças vivas de uma Palestina livre, com o espírito de quem continuou tomando conta da terra para que um dia seja novamente a sua pátria.

Nesta altura, já é possível ver que a resistência percorre simultaneamente os mais diferentes caminhos, encontra força na religião e na história para se traduzir em práticas cotidianas vivenciadas em diferentes níveis por grande parte da população palestina. Para quem ainda não se deu conta, os membros da resistência armada não são mercenários assoldados em algum país estrangeiro e sim os filhos e filhas de um povo em luta. Em 2005, antes que os “túneis do Hamas” protegessem os deslocamentos dos combatentes, as mães palestinas armavam lençóis e pedaços de tecidos para servirem como uma espécie de teto que, estendido sobre as vielas dos campos de refugiados, impedia que Israel visse do alto quem se movimentava naquele meio. Era assim que elas impediam aos mísseis israelenses de aniquilar os membros da resistência, os representantes da sua fé e até mesmo famílias inteiras suspeitas de apoiá-los.

É assim que começamos a perceber o papel de primeira ordem que as mulheres desempenham na resistência palestina. No dia 11 de março, enquanto vasculhávamos os caminhos da comunicação eletrônica para reunir os elementos das nossas reflexões, lemos uma matéria que iniciava com este convite:

“Na Faixa de Gaza, entre as casas destruídas, ao lado dos cadáveres encharcados de sangue, ao lado dos doentes nos corredores de hospitais, nas tendas dos refugiados, e entre as crianças e os idosos, encontrarás uma mulher de ferro de Gaza que o mundo deveria conhecer”.

O desafio com o qual nos deparamos na hora de escrever não guarda nenhuma relação com a dificuldade de encontrar essas mulheres, e sim de escolher quais delas mais ajudam a entender o que é ser parte essencial de uma resistência que não se dobra ao opressor. Nenhuma delas empunha uma arma. Mas todas elas são guerreiras de uma Palestina que constrói diariamente os passos da liberdade. E é através delas que tentaremos resgatar ao menos uma pequena parte do que milhares de outras sentem, vivem e transmitem.

Cidade de Khan Yunis, Hospital Al-Nasser, 10 de fevereiro de 2024. Desde o dia 22 de janeiro, soldados israelenses cercam o hospital. Atiradores posicionados em lugares estratégicos disparam contra tudo o que se move em volta dele. No interior deste centro de saúde, mais de 300 profissionais cuidam dos doentes internados, dos cerca de 450 feridos nos bombardeios e de mais de dez mil refugiados que, forçados a deixarem as suas casas, procuraram se proteger neste espaço que, segundo as leis internacionais, não deveria ser objeto de bombardeios e incursões militares.

Entre os médicos que trabalham incansavelmente para dar conta de uma demanda muito acima do que o hospital comporta e sem ter acesso aos recursos de que precisam, encontramos a Dra. Amira Al-Assouli que, desde o dia em que a sua casa em Abasan Al-Jadeeda, a leste de Khan Yunis foi destruída num bombardeio, mora e trabalha no hospital para salvar vidas.

Na noite do dia 10, nas proximidades do hospital, um jovem baleado por um soldado israelense está sangrando e gemendo de dor. De pé numa posição em que não pode ser vista pelos franco-atiradores, Amira ouve o seu pedido de socorro. Ela própria sabe que, desde o início da invasão militar, 340 médicos e 46 socorristas foram assinados no cumprimento da sua missão e ninguém precisa lhe lembrar que a próxima a integrar esta lista pode ser ela.

A Doutora Amira Al-Assouli.

Tensão e angústia marcam os instantes que antecedem uma decisão extremamente difícil para qualquer ser humano. De repente, Amira tira o casaco, curva o corpo e corre em direção à voz que pede socorro. Ao chegar no local, sinaliza estar precisando de ajuda e três pessoas se dirigem onde ela está. Tiros são disparados, mas, felizmente, os quatro conseguem trazer o ferido para o interior do hospital sem serem atingidos. Ao verem as imagens, os palestinos celebram a heroica médica de Khan Yunis que, ao enfrentar a morte para salvar uma vida, alimenta a chama da resistência.

Assim como os hospitais, as escolas foram alvos constantes dos bombardeios. As forças armadas israelenses sabem que os palestinos veem a educação como o meio mais importante para construir um futuro melhor. Apesar das dificuldades financeiras, das circunstâncias adversas dos campos de refugiados e das incertezas causadas pela ocupação militar, as famílias da Cisjordânia e da Faixa de Gaza sempre colocaram a formação escolar no topo das suas prioridades. Por isso, bombardear escolas e universidades, matar professores e estudantes, arrasar arquivos, bibliotecas, museus e obras que refletem a história de um passado cultural que Israel luta para que seja esquecido é um meio para inocular a ideia de que não haverá futuro para os palestinos nestas terras.

Por isso, entre o início da invasão e o dia 15 de abril deste ano, 378 escolas foram destruídas e danificadas em Gaza, 325 professores e professoras foram mortos e 625.000 estudantes palestinos estão sem aula.

De pé, a direita da foto, a professora Iman Basal.


É neste contexto que Iman Basal, uma professora da aldeia de Al-Mughraqa, no centro da Faixa de Gaza, com a ajuda de algumas colegas, teve a ideia de montar uma tenda educativa. Iman deixou o lugar onde morava depois que os bombardeios arrasaram as casas da aldeia e hoje partilha o cotidiano do mesmo campo de refugiados no qual se abrigam as crianças que frequentam as aulas.

Ensinar inglês, matemática e árabe numa tenda, a estudantes submetidos a privações de todos os tipos e traumatizadas pelos bombardeios é um enorme desafio ao qual se soma a dificuldade de conseguir giz para escreve na lousa e o fato de canetas, cadernos e simples folhas de papel serem terrivelmente escassos. Na sala de aula, não há mesas, nem cadeiras, e as crianças sentam no chão de areia.

Diariamente, cerca de 200 estudantes passam pelos 20 metros quadrados da tenda que, em alguns horários, fica pequena demais para abrigar tanta gente. No interior dela, a temperatura é insuportavelmente alta nos dias ensolarados e a precariedade da sua estrutura oferece pouca proteção quando chove e venta. Os bombardeios israelenses já atingiram as edificações que cercam o campo de refugiados onde a escola funciona, aumentando o medo e a possibilidade de que novos deslocamentos forçados sejam necessários.

Assim como Iman, grupos de docentes voluntários fazem o mesmo em outros campos de refugiados ou em qualquer ambiente improvisado onde seja possível tirar as crianças do clima de ameaça, incerteza e morte que cerca o seu cotidiano. Ainda que incapazes de recuperar os conteúdos próprios de cada série, as aulas mostram que ninguém desistiu da ideia de criar uma geração palestina educada e informada, capaz de resistir à ocupação e expor os seus crimes em todos os fóruns internacionais.

Da escola nas tendas, passamos a uma situação que ajuda a termos uma ideia do que é ser mãe, na Faixa de Gaza. Faremos isso transcrevendo o relato da filha dela, Lujayn, de 14 anos, que, impactada pelas atitudes da própria mãe num momento de perigo, optou por colocar no papel o que aconteceu e o que aprendeu com ela numa noite em que a morte visitou o bairro onde se refugiavam:

No dia 2 de março de 2024, meu pai saiu em busca de comida em Rafah, apesar dos perigos que isso acarretava. Ele passou a noite em Rafah porque não havia transporte depois do anoitecer. Naquela noite, de repente, a situação mudou. Havia sons de explosões e mísseis por toda parte.

Minha mãe, eu e minha família estávamos abrigados com outras quatro famílias e oito crianças desacompanhadas em uma casa em Khan Yunis. Saímos dos quartos e nos escondemos embaixo da escada. Tiros e ruídos estranhos soaram por toda parte. Tentamos entender o que estava acontecendo, mas não conseguimos porque havia tiros e caos ao nosso redor.

Mamãe ficava me dizendo: «Não se preocupe, vamos ficar bem», mas eu percebi que ela estava muito preocupada. Ela me disse: «Tenho que entender o que está acontecendo. Fique longe das janelas».

Vi estranhas linhas de luz verde que atravessavam a janela e ouvi o som dos tiros. Eu disse a ela: «Não vá, é perigoso», mas ela insistiu. Ela disse: «Preciso saber o que está acontecendo». Então, fui para baixo da escada. Quando ela voltou, disse: «Venha rápido».

Descemos as escadas correndo e mamãe disse a todos: «Uma escavadeira está demolindo a casa do outro lado da rua e os tanques nos cercaram por todos os lados. Temos que sair imediatamente antes que eles venham em nossa direção». Ninguém achou que fosse uma boa ideia, então, mamãe disse que sairia primeiro. Se a deixassem passar, ela nos sinalizaria para sairmos. Todos lhe disseram que ela não deveria sair; sabíamos que eles estavam matando pessoas lá fora.

Enquanto ela falava, duas adolescentes e três meninos apareceram na porta da frente. Um deles estava coberto de sangue, gritando muito. Eram filhos da família cuja casa acabara de ser demolida. O pai deles também estava em Rafah, assim como o meu, mas a mãe, a irmã e o resto da família foram martirizados pela escavadeira que destruiu a casa enquanto eles estavam lá dentro. Ficamos todos atordoados.

Mamãe me disse para trazer a bolsa de primeiros socorros e começou a limpar o sangue do menino e a desinfetar suas feridas. Então ela as enfaixou tentando consolá-lo.

De repente ouvimos um barulho alto. A escavadeira estava se aproximando de nossa casa. Mamãe parou e me disse: «Tenho que sair e tentar impedi-los, porque senão morreremos todos esmagados. Tentarei sair e dizer-lhes que somos civis. Se eles me baterem e deixarem todos vocês sair, venham atrás de mim. Se eles me baterem e continuarem destruindo a casa, lembre-se de que fiz tudo o que pude na esperança de te salvar».

Eu comecei a chorar. Todos pediram que ela parasse, dizendo que o exército a mataria. Enquanto isso, ouvimos a escavadeira se aproximando. Mamãe saiu de repente e ficou na frente da máquina, exatamente no meio do caminho, e começou a gritar com eles que havia civis, mulheres, idosos e crianças dentro de casa. A escavadeira continuou a se aproximar.

De repente, um tanque acendeu as luzes e a escavadeira começou a dar ré. Ao sair de casa, vi mamãe ao lado do tanque, recusando-se a se mover. Então o corpo e o rosto da minha mãe foram preenchidos com linhas de luz verde. Percebi que a metralhadora do tanque estava apontada para ela. Eu sabia que eles iriam atirar nela. Fechei os olhos. De repente, a luz verde se apagou, o tanque começou a sinalizar e duas pessoas saíram de casa com uma bandeira branca.

Todo mundo estava tentando entender o que minha mãe estava dizendo. O exército fazia sinal para que saíssemos e quando o tanque sinalizou com luz verde entendemos que  tínhamos que ir para uma escola próxima. Todo mundo estava tentando sair.

Mamãe me disse para não ter medo e levantou o menino ferido pelas pernas, enquanto a menina carregava o irmão nos braços.  Começamos a andar atrás dos demais. Mamãe estava ofegante e com falta de ar. Percebi que ela precisava da bombinha para a asma. Quando tentei dar para ela, me disse que não dava tempo, que devíamos continuar rápido, que não devíamos parar. Se parássemos, eles poderiam atirar em nós.

Não sei como conseguimos chegar à escola,  mas fomos todos salvos. Minha mãe colocou o menino para dormir em um colchão e certificou-se de que ele estava bem. Então ela me sentou em uma cadeira. Eram duas da manhã e mamãe insistia para que eu não me preocupasse.

Poucas horas depois, os soldados começaram a gritar em árabe que deveríamos deixar o lugar e ir para outro local seguindo uma determinada rota. Então partimos. Em ambos os lados da estrada havia soldados, tanques e escavadeiras. Um soldado que falava árabe selecionava as pessoas, incluindo mulheres, que foram detidas e levadas para “Israel”.  Aqueles de nós que permaneceram foram levados para um prédio parcialmente destruído a cerca de trezentos metros da escola. Ficamos do lado de fora das nove ou dez da manhã até as oito da noite, esperando em frente à entrada do prédio.

Todos estavam com fome e sede, principalmente as crianças. Então os soldados trouxeram garrafas de água e começaram a distribuí-las. Mamãe nos disse que não deveríamos aceitar água do exército e que eles partiriam em breve. Ela pediu a todos que tivessem paciência e acrescentou que se alguém não aguentasse, deveria beber.

O garotinho que estava conosco perguntou por que eles não conseguiam água e mamãe explicou que os soldados estavam tirando fotos e fingindo ser legais para mostrar ao mundo como tratavam bem as pessoas, mas na verdade eles estavam destruindo casas com pessoas dentro e esmagando elas com sua escavadeira. Ela estava certa. Um dos soldados estava tirando fotos e nos recusamos a aceitar a água.

Fiquei na frente da entrada do prédio. Não consegui nem sentar quando um soldado me disse para sentar e apontou seu rifle para mim. Mamãe veio e ficou na minha frente, falando energicamente em árabe e inglês, dizendo para ele não assustar a filha, pois não havia espaço. Havia pessoas idosas ao meu lado e se eu me sentasse tão perto delas, poderia machucá-las. Por um momento, ele apontou a arma para ela. Ela ficou entre ele e eu, a distância era de cerca de um metro e meio.

Eu estava com medo, mas, mais do que isso, fiquei surpresa e me perguntei de onde mamãe tirava forças.

Todos estavam assustados e a maioria chorava, mas ela estava calma, conversando e me confortando. O soldado saiu e minha mãe me sentou.  Era por volta das oito da noite. Ela colocou a mim e aos que estavam comigo no centro, enquanto ela ficou na ponta, perto dos soldados. Ela me disse: «Se nos deixarem ir juntos, tudo bem, mas se não me deixarem ir com você, leve o dinheiro e o telefone. Tenho certeza que você encontrará o papai lá». E ela disse aos outros para onde ir.

Fomos separados e posicionados para inspeção. Estranhamente, eles nos deixaram passar sem revistar. Continuamos caminhando até chegar ao último depósito. Mamãe estava me segurando com uma mão e as duas crianças na outra. De repente, o exército desapareceu e tudo ficou escuro.  Mamãe ligou a lanterna e vimos papai vindo de longe correndo em nossa direção. O pai das crianças da casa destruída também vinha correndo. Papai me abraçou com força. Então senti mamãe parar, como se estivesse esperando esse momento para recuperar o fôlego. Eu não conseguia acreditar que havíamos saído vivos.

Depois dessa experiência, mãe, tenho uma coisa para te contar. Aprendi duas coisas que nunca esquecerei.  A primeira, que não devemos perder em nenhum momento a nossa força, a nossa coragem e a nossa fé na vontade de Deus. A segunda, que não viremos as costas aos necessitados, aconteça o que acontecer. Você não deixou o menino ou suas irmãs sozinhos. Você ficou ao lado deles e me disse: «Eles não têm ninguém além de nós». Não vou esquecer disso nunca. Estou certa de que a ocupação nunca poderá destruir a nossa fé, a nossa força, a nossa coragem, a nossa bondade e a nossa compaixão.

Não sei se a guerra terminará enquanto estivermos vivos, mas o que importa é que há muita gente resistindo com o que é mais importante que as armas. Todos os dias, um pai passa sob os bombardeios para nos alimentar. Uma mãe enfrenta escavadeiras e tanques na esperança de proteger sua filha, sabendo que mesmo que ela morra, o que importa é que sua filha viva. Um neto carrega a avó e não pensa em deixá-la para trás nem por um instante. Uma irmã tira seu irmão dos escombros, afasta-o da morte e tenta salvá-lo.

Mãe, este é o meu país, este é o meu povo. Cada geração de palestinos transmitirá estas lições à geração seguinte.

Lujayn, Rafah, março de 2024.”

Fé e resistência são as pernas que fazem os palestinos caminharem. Impossível separá-las, assim como é impossível descrever todos os caminhos pelos quais estes dois elementos amarram seus fios para formar uma rede de proteção coletiva. A celebração da esperança e da solidariedade diante do nascimento de uma criança traz uma pequena amostra do que isso significa entre as pessoas mais simples:

A primeira voz que Arkan ouviu, assim que nasceu, foi o sussurro da sua mãe. E a primeira sensação que experimentou foi o beijo carinhoso de uma mulher exausta, desnutrida, rodeada pelos filhos, numa tenda fria, num campo de refugiados em Rafah, a sul de Gaza. Seu nome significa «pilares», pilares da fé, pilares da esperança e pilares da firmeza. Arkan acaba de se juntar à luta pela liberdade.

No momento em que o seu pai, um refugiado pobre do norte de Gaza, o segurou, ele fez apelo à oração. «Dessa forma», disse o pai feliz ao Palestine Chronicle, «Arkan crescerá forte e cheio de fé».

Enquanto dezenas de milhares de crianças de Gaza foram mortas, feridas ou estão desaparecidas sob os escombros, Arkan chega para espalhar esperança no campo de refugiados devastado.

Mulheres refugiadas de todo o campo vieram à tenda para ajudar a nova mãe a lidar com a pesada responsabilidade. Elas compartilharam migalhas de pão, cobertores extras e água.

Arkan ainda não foi registrado com um nome completo e uma certidão de nascimento, uma vez que Israel destruiu todas as instalações governamentais em Gaza e fechou ou bombardeou todos os hospitais.

Então, por enquanto, seu nome é apenas Arkan, seus pais são refugiados deslocados, seu local de nascimento é uma tenda e sua terra natal é a Palestina”.

Assim como a resistência coletiva cerra fileiras para acolher uma nova vida, o sorriso das crianças é uma das forças que a alimenta. Despertar esse sorriso em meio aos traumas dos bombardeios é uma tarefa que indivíduos e grupos assumiram para si.

Entre eles, encontramos Mahmoud Saleh, 25 anos, de Rafah, desempregado como a grande maioria dos trabalhadores de Gaza, cuja família precisa desesperadamente de comida como as demais.

Mahmoud fazendo girar o seu carrossel.

No final de dezembro, ele montou um pequeno carrossel para as crianças numa área repleta de refugiados. É assim que esperava ganhar algum dinheiro para alimentar a sua família, mas, como ele, ninguém tem um tostão.

Mahmoud resolveu não pedir dinheiro. Quem pode, ajuda com alguma coisa. Quem não pode, vai usar o carrossel do mesmo jeito. Ao conversar com o repórter, diz:

“Abri este carrossel para as crianças, para que libertem um pouco da sua energia e estresse psicológico. Algumas delas vem de Bureij [centro da Faixa de Gaza], outras vêm de Rafah. É para todas as crianças.

E quem não pode pagar, eu daria meus olhos [não cobro]. Eu só quero fazê-las felizes. Elas estão sofrendo nesta vida e nesta situação horrível. Isso é o mínimo que posso fazer, isso é tudo que posso fazer”.

Não longe daí, em fevereiro deste ano, nos campos de refugiados perto da praia na fronteira com o Egito, artistas do grupo Free Gaza Circus, divertiam as crianças com uma apresentação de palhaços. Assim como eles, no mesmo período, o teatro móvel de jovens palestinos conhecido como “O Ônibus da Nossa Vizinhança” percorria o sul da Faixa de Gaza numa velha combi para colocar um sorriso no rosto delas. Enfrentando os perigos da guerra, os jovens artistas faziam apresentações e criavam momentos interativos para que as crianças pulassem, corressem, cantassem, brincassem e batessem palmas.

Todas estas iniciativas podem parecer insignificantes diante da gravidade da tragédia. Contudo, é também através delas que os palestinos alimentam a esperança em meio ao genocídio. Mas, até quando é possível não sucumbir à máquina de guerra israelense que, no momento em que finalizamos esse texto, matou mais de 37.300 pessoas, a maioria delas mulheres e crianças?

Assim como procuramos fazer ao longo das nossas reflexões, vamos deixar que sejam os próprios palestinos a responder.


E a resposta que transcrevemos foi pintada na parede de uma casa que resistiu aos bombardeios, na última sexta-feira do mês do Ramadã, em 5 de abril, quando se celebra o Dia Internacional de Al-Quds. Nela, uma mulher desenhou o símbolo da vitória com as pontas dos dedos indicador e médio cobertas pelo lenço palestino. Ao lado, um recado para o mundo: “Permanecemos apesar da morte. A inundação dos livres”. Nenhuma das nossas palavras responderia melhor à última pergunta.

Ao caminhar conosco nas páginas que recolheram os diferentes ecos da resistência, você deve ter percebido que pessoas comuns fizeram dela um espaço de liberdade. Transformar a indignação em ações que traduziam a vontade de mudar os rumos dos acontecimentos é o passo indispensável para que o “NÃO” nascido no coração de cada um ecoe nos demais, criando um clima capaz de minar os planos dos poderosos.

Longe de ser um espaço onde é possível se acomodar, a resistência é o âmbito da constante inquietação, da busca permanente de formas que rejeitam a resignação e que, ao dar um novo sentido aos acontecimentos, dialogam com quem continua naturalizando a opressão. Participar ativamente destes espaços e tecer laços com os valores e percepções de quem decide enfrentar a correnteza é a condição para os movimentos fazerem a resistência sair dos limites de suas possibilidades imediatas para se fazer povo que luta e almeja voos maiores.


A eco que trouxemos do passado para o presente nos lembra também que o tempo não para e que os poderosos seguem ganhando adeptos para construir um futuro ainda mais sombrio. Tudo diz e repete que este futuro é o produto inevitável do presente em que vivemos, que o melhor a fazer é aceitar seus limites e se moldar ativamente às suas exigências. Cuidar exclusivamente dos próprios interesses completa as condições que prometem reduzir os sofrimentos e almejar alguma visibilidade social.

A indiferença que deixa acontecer e a mesma que envenena as relações humanas e permite que os opressores costurem na sombra o que pagaremos com sofrimentos bem maiores em relação aos que supomos poder evitar. Diante dela, as situações que levantamos nas nossas reflexões se despedem com duas perguntas: quando você vai dizer o teu “NÃO” a quem oprime e impede que haja tudo para todos? E se não é agora, então, quando será?

 

Emilio Gennari, Brasil, 17 de junho de 2024.