São
muitas as camadas que poderíamos aqui trazer à nossa reflexão. As
Olimpíadas são a expressão clara da sociedade da livre concorrência e da
meritocracia, na qual muitos disputam e poucos ganham. Em Paris, neste ano
de 2024, foram 11400 atletas em 48 modalidades, sendo que, somente 144 chegaram
ao pódio. Desde 1895, quando os jogos da era moderna começaram, foram
distribuídas, no total, 15683 medalhas, ou seja, um pouco mais do que o número
de atletas neste ano. Caso consideremos as qualificatórias pré-olímpicas, o
funil é ainda maior.
Os
jogos são, ainda, uma metáfora perfeita da ordem jurídica, na qual pessoas
diferentes são tratadas diante das mesmas regras, como se não houvesse fatores
econômicos, sociais, políticos e culturais envolvidos. Todo mundo é igual
diante do Comitê Olímpico, o que permite que Etiópia, Nigéria, Tajiquistão e
países da América Latina voltem para casa orgulhosos de suas medalhas. No
quadro final de medalhas, no entanto, o que resulta é o G7 na frente. Diante
das regras e normas igualitárias, temos vencedores subindo ao pódio e um mar de
perdedores do terceiro lugar para baixo.
Podemos
lembrar, também, da ideologia da incrível superação de quem vem de baixo e
galga os pícaros de ouro e prata do Olimpo. Saindo de cidades e bairros
pobres, da miséria e das favelas, contra tudo e contra todos, abrindo com
abnegação e força seu caminho até a glória.
No
entanto, o que gostaria de destacar aqui é o aspecto estético. Aparentemente,
as Olimpíadas são uma verdadeira democracia de corpos. Se você é baixinha
ou baixinho, pode disputar a ginástica olímpica, se alta demais e
sofreria bullying na escola, por exemplo, pode ir para o basquete ou
vôlei. Pode ser muito magra e disputar as corridas ou mesmo gordinhos podem ser
ótimos nos arremessos de disco e peso, ou se darem bem no judô. No entanto,
como na democracia política, as aparências enganam e a virtuosa diversidade,
aqui também, é base para preconceitos.
Nossas
maravilhosas campeãs olímpicas no vôlei de praia sofreram muito com o ódio
destilado pelos dedos covardes nos ágeis teclados das redes sociais, ao que
parece, porque não eram bonitas e seus cabelos não eram apropriados ao Olimpo.
Por algum tipo de norma não escrita, seguida à risca por estes imbecis, uma
jogadora de vôlei feminino deve usar biquínis minúsculos para mostrar seu corpo
escultural, suas majestosas pernas, sua barriguinha chapada, seios pequenos e "nádegas firminhas', além de cabelos lisos e sedosos, de preferência louros, para
esvoaçar ao vento.
Nem
mesmo a maior atleta de nosso tempo, Simone Biles, escapou do juízo estético e
das críticas severas ao seu cabelo. A primeira mulher negra dos EUA a
conquistar uma medalha olímpica (em Londres, 2012), Gabrielle Douglas, foi
duramente criticada porque seu cabelo não correspondia ao padrão das atletas
loiras. Uma pessoa dá um salto numa altura improvável, faz um duplo mortal para
trás com dupla pirueta e o cara vai direto olhar para o joanete no close do pé.
Simone Biles, no excelente documentário de Katie Walsh (Netflix), nos diz
daqueles que criticam seu cabelo com seu sorriso maravilhoso: “isso de um cara
que não consegue nem dar uma cambalhota”.
Além do evidente preconceito estético
e, neste caso, claramente racista, fica explícito o preconceito de classe. Duda
é de São Cristóvão (SE) e Ana Patrícia, de Espinosa (MG). Parece que não são
pessoas de nossa melhor sociedade que circulam nas festas e clubes chiques da
Barra, no Rio de Janeiro, e nas badaladas academias de São Paulo. Como se
atrevem a desfilar seus corpos normais e cabelos duros entre as deusas e, pior,
ganhar delas.
Entendo
o desespero dos racistas ao ver um pódio da ginástica como três mulheres negras
olhando lá de cima para eles afundados com seu ressentimento no sofá da sala.
Deve ser parecido com o que sentiu Hitler diante da vitória de Jesse Owens nas
Olimpíadas de 1936 na Berlim nazista.
No
auge da Guerra Fria, quando nós de esquerda torcíamos para os soviéticos e os
atletas do leste europeu, o discurso é que no mundo livre o esporte era a
comprovação da liberdade, enquanto lá atrás da cortina de ferro as crianças
eram sequestradas e afastadas de seus pais, submetidas a duríssimas condições
de treinamento para que como robôs condicionados se transformassem em fábricas
de medalhas assim com Alexei Stakanov arrancava carvão da mina soviética.
Entretanto,
no mesmo documentário aqui citado de Katie Walsh, ficamos sabendo que os EUA
contrataram um casal de romenos, ex-treinadores de Nadia Comăneci, para que
treinassem atletas em série com uma disciplina militar e produtivista, sem
nenhuma consideração quanto à saúde mental, enquanto o médico da equipe, Larry
Nasser, abusava sexualmente das meninas. Tudo isto sob as grades vermelhas e
brancas de uma bandeira cheia de estrelas da liberdade. Entre as meninas estava
a grande Simone Biles, que desistiu dos jogos de Tóquio porque seu corpore
sanus se desencontrou de sua mente que sofria.
Mas,
então, por que assistir aos jogos, ir às lágrimas com conquistas e chorar com
derrotas? Por que perder seu tempo com bolinhas e bolas, petecas e pesos,
flechas e dardos, quimonos e collants?
Vejam, como
tudo nesta vida e no modo de produção capitalista, as Olimpíadas são
contraditórias, isto é, da mesma forma que são a expressão desta sociedade
desumana e cruel, também são expressão da vida que pulsa e resiste contra a
ordem que a oprime. Devemos evitar a todo custo o risco do maniqueísmo. Diante
da incrível vitória da maravilhosa Bia Souza, os dedos ágeis nos teclados das
redes, desta vez de esquerda, se apressaram em reforçar a necessária denúncia
contra o governo genocida de Netanyahu, como se a derrotada fosse o próprio
sionismo. Certo, todos nós guardamos um pouco de bile no fígado e não nos
conformamos com os russos fora das Olimpíadas enquanto ucranianos e israelenses
disputam suas medalhas, mas daí a impor a uma atleta a responsabilidade do
sionismo e do massacre aos palestinos vai uma grande distância.
Este
é um bom exemplo da arquitetura do preconceito, do juízo prévio e burro das
generalizações. Bia não lutou contra o sionismo, lutou contra Raz Hershko,
atleta, medalhista de prata, muito simpática, que aceitou sua derrota com
espírito olímpico, sorridente e olhando com a admiração para a grande Bia. Em
1936, no episódio que lembramos quando Jesse Owens alcançou sua marca de ouro,
seu principal adversário, Luz Long, alemão e loirinho, correu para abraçá-lo e
dar a volta olímpica junto a Owens diante da desaprovação do nazista na tribuna
de honra. Assim funciona o preconceito, eu apago o que estou vendo, uma atleta
simpática, e colo nela a figura lamentável de sua nação. Odeio o nazismo e o
sionismo genocida, mas gosto muito de um alemão de família judaica que me
ensina há bastante tempo que as fronteiras não deviam dividir os povos.
O
que fazer diante dos atletas que nascem e lutam no seio de nossa classe e nas
condições que o capitalismo lhes impôs de sofrimento e, muitas vezes, miséria,
que furam a bolha e chegam ao pódio ou numa participação de superação
incrível? Deveríamos criticá-los por servir de exemplo de meritocracia,
acusá-los de não ficar entre os pobres lutando contra o capitalismo?
-
Acredito que não.
Devemos
abraçá-los com todo carinho e alegria, porque, como eles todos dizem, não
chegaram ao pódio sozinhos, carregam seus país e amigos, sua cidade, seu
quilombo, sua cor e sua classe, com seus joanetes, lesões, cabelos e a alma
repleta de cicatrizes.
Um jornalista esportivo, Marcelo Barreto, disse, com razão, que aquele que não se emociona com a Bia dizendo que “foi pela vó, mãe… foi pela vó”, está morto por dentro. Eu digo que...
Se os que se dizem revolucionários não conseguem ver
beleza em Bias, Anas, Dudas, Rebecas, Simones, Izaquias, Valdenices, Pios e
tantos outros e outras… bom, a revolução está morta por dentro.
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2024/08/14/olimpiadas-estetica-e-politica/ (Acesso em Agosto/2024)
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