Não são poucas as vezes em que as ações da resistência nos deixam desconcertados. Por exemplo, alguém esconderia livros sabendo que será moído de pancadas se eles forem encontrados entre as suas coisas? Não seria melhor cumprir as regras que os proíbem, evitando assim dores de cabeça desnecessárias? Afinal, para que correr riscos por algo que não enche a barriga?
O problema desta aparente sabedoria está em desconsiderar o motivo real
que levou à proibição de ler e as consequências de aceitá-la. Ao baixar a
cabeça diante de quem usa a sua posição de poder para definir o “certo” e o
“errado” no interior da ordem social que nos impõe, ajudamos a viabilizar os
interesses que a sustentam. Aos poucos, o medo das consequências aniquila a
vontade de reagir, leva a assimilar a visão de mundo do opressor e nos torna
cúmplices silenciosos das punições aplicadas aos infratores.
Algo parecido ocorre quando o fato de conhecer apenas a versão dominante
dos acontecimentos faz com que condenemos automaticamente quem, marcado a fogo
com o apelido de “terrorista”, enfrenta a morte para reaver o que, há décadas,
vem sendo tirado através de massacres, destruição e exílio forçado. O adjetivo
que coloca esta gente sempre “do lado
errado da história” faz com que a imposição de novos sofrimentos seja vista
como natural e merecida. Afinal, não se trata de pessoas que lutam por
direitos, e sim de “terroristas” que estilhaçam uma ordem apresentada como
sagrada por quem manda.
É com ouvidos e coração abertos que resgataremos a história de um preso
que arriscou a vida para organizar uma biblioteca clandestina. Em seguida,
caminharemos entre as mulheres do Afeganistão que se opõem ao regime talibã e
iremos conhecer estadunidenses que desafiam a proibição de ter acesso aos
livros que criticam a visão de mundo dominante. Encerraremos as nossas
reflexões resgatando algumas formas de resistência que constituem a coluna
vertebral da luta do povo palestino pelo direito de viver na terra que é sua.
Apesar de o material ao qual tivemos acesso ser fragmentado e limitado,
a carga de humanidade, esperança e determinação nele contida mostra que o “Não”
à opressão segue alimentando os ventos da liberdade que sacodem o cotidiano da
nossa história.
Mauthausen: a Escada da Morte |
A última etapa da nossa viagem começa em Mauthausen, um campo de
concentração nazista situado a 150 quilômetros de Viena, capital da Áustria.
Criado em 1938, Mauthausen foi erguido ao lado de uma pedreira onde os detentos
trabalhavam 12 horas por dia para fornecer os blocos de granito que dariam as
fachadas dos edifícios nazistas a imponência desejada por Hitler.
De acordo com os relatos, havia várias maneiras de morrer neste campo de concentração. Os presos que a exaustão tornava “inservíveis” podiam ser enviados à câmara a gás que, a partir de dezembro de 1941, tinha condições de matar até 120 pessoas por vez com o gás carbônico dos escapamentos dos caminhões. Outros eram levados às enfermarias onde recebiam uma injeção de veneno no braço ou uma de gasolina no coração. Não faltavam casos em que os banhos gelados no inverno com a seguida exposição ao frio fossem o meio escolhido para eliminar uma grande quantidade de detentos. Surras de bastões até a morte, afogamento em barris de água, enforcamentos, ter o corpo despedaçado por cães, fuzilamento em grupo e fome em celas solitárias integravam o cardápio de punições aplicadas a quem descumprisse as normas ou fosse escolhido pelos comandantes para dar vasão a seus instintos mais perversos.
Contudo, os relatos dos sobreviventes são unânimes em apontar as quedas na “Escada da Morte” como a pior forma de morrer. De dez a doze vezes por dia, uma coluna de presos subia seus 186 degraus com uma pedra de, aproximadamente, 20 quilos nas costas. A tarefa demandava um esforço enorme daqueles corpos debilitados pela fome. A queda de um arrastava muitos para o mesmo destino com ferimentos que podiam levar a uma morte lenta e muito dolorosa. Se isso não bastasse, uma vez depositada a carga no topo da escada, soldados e oficiais alemães se divertiam a empurrar violentamente os presos durante a descida em direção à pedreira. Vê-los caírem uns sobre os outros era considerado por eles um espetáculo irrenunciável.
Em 1940, o governo francês, cuja submissão aos ditames nazistas
descrevemos na primeira parte deste estudo, entregou a Hitler os refugiados da
guerra civil espanhola, 7.179 dos quais foram enviados a Mauthausen.Entre eles estava Joan Tarragó.
Membro da resistência derrotada pelas tropas do General Francisco
Franco, em 1939, Joan se refugiou na França, onde se alistou imediatamente no
exército destinado a frear o avanço de Hitler em direção ao Atlântico. Preso no
início das hostilidades, integrou o primeiro grupo de espanhóis que chegaram no
campo em janeiro de 1940.
Militante do Partido Socialista Unificado da Catalunha, Joan sabia que a
resistência não era uma opção e sim um dever. O problema era como fazer isso
num lugar onde o trabalho forçado, a fome, a bestialidade dos guardas, as
péssimas condições dos alojamentos e a presença constante da morte aniquilavam
a vontade de reagir das pessoas.
Joan Tarragó |
De acordo com os testemunhos reunidos pelo filho Llibert, o pai se uniu
a outros deportados para montar uma rede de resistência que começou a agir de
forma integrada em fevereiro de 1941. Todos tinham claro que a solidariedade
era o único caminho para que antigos companheiros de luta tivessem uma chance
de sobreviver àquele inferno. Os meios para isso eram extremamente escassos,
mas era necessário fazer com que o apoio recíproco impedisse que a resignação
triunfasse sobre a vontade de viver.
Por incrível que pareça, as coisas começaram a melhorar no início de 1943, quando Mauthausen recebeu comandantes da SS bem mais rígidos dos anteriores. Focada em alguns aspectos da rotina do campo de concentração, a desumanidade dos oficiais deixava mais espaços para a rede atuar. Foi assim que membros do grupo conseguiram se instalar no armazém, na enfermaria e na cozinha. Desta forma, a resistência tinha acesso a alimentos, roupas e remédios que, em seguida, eram distribuídos entre os detentos. Encarregado de servir as refeições dos oficiais, Joan aproveitava do seu trabalho para subtrair pão, açúcar, geleias e manteiga. Tudo o que conseguia pegar era colocado no fundo dos cestos de lixo e coberto com algumas folhas de papel para separá-lo dos restos a serem eliminados. Encarregado da limpeza, outro integrante do grupo esvaziava o cesto e retirava o tesouro a ser partilhado.
No início do mesmo ano, começaram a chegar a Mauthausen partisans
franceses, italianos e russos, capturados pelos nazistas em seus países de
origem. Ao desembarcar, os guardas sequestravam o que traziam na bagagem.
Separados os objetos de valor, o resto era incinerado. Os membros da
resistência que trabalhavam no armazém onde era feita a separação viram que os
livros estavam entre as coisas destinadas a virar cinzas.
Ao saber disso, Joan propus aos líderes da rede que o grupo resgatasse
algumas obras. Com a ajuda de um companheiro, conhecido como Picot, ele começou
a reunir e ajeitar os volumes que chegavam em mau estado de conservação e a
formar uma pequena biblioteca no barracão onde dormia. Sob as tábuas soltas do
piso, no fundo falso de um armário ou dissimulados entre as beliches, cerca de
200 volumes entre os quais estavam obras de autores como Émile Zola, Victor
Hugo, Fiódor Dostoiewski, Máximo Gorki e Stendhal formavam a biblioteca
clandestina organizada pela resistência. Todos sabiam que, se um guarda
descobrisse os livros ou surpreendesse alguém durante a leitura, a punição
podia variar entre uma surra de cassetetes e a execução imediata.
Então, por que se arriscar por algo que não atendia às necessidades
primárias?
Joan acreditava que a leitura ajudaria os presos a se desconectarem dos
horrores do campo de concentração, a criar um espaço de liberdade e a não serem
aniquilados pelo medo. A frase com a qual convidava à leitura os companheiros
exaustos pelo trabalho era a mesma que repetiria ao filho anos depois do final
da segunda guerra mundial: “Ler te faz livre”. Enquanto a direção do campo de
concentração criava todas as condições para que cada detento se concentrasse
exclusivamente na sua dor a ponto de anular qualquer vontade de reação, ler
ajudava a corroer as correntes da resignação, a não se deixar controlar pelo
medo e a abrir os olhos para a importância da resistência coletiva.
De início, poucos se interessavam pelos livros. Mas, bastou que alguns
começassem a procurá-los para que outros se animassem a fazer o mesmo. Pelas
mãos de Joan, o preso recebia o livro e o escondia imediatamente embaixo do
uniforme. Sem nenhuma possibilidade de ler no alojamento durante o descanso da
noite, ele faria isso usando cada instante da jornada em que poderia pegar o
texto sem ser visto pelos guardas. De acordo com o depoimento de alguns
sobreviventes, ler era uma forma de romper a desumanização, de cavar um espaço
de liberdade e de fugir do medo da morte por alguns instantes. Ler fazia os detentos livres não só por
violarem uma proibição, mas por abrir uma brecha pela qual centelhas de vida e
esperança entravam no seu cotidiano.
De Mauthausen, saímos agora em direção ao Afeganistão, na Ásia Central, onde grupos de mulheres enfrentam o regime talibã que, em agosto de 2021, voltou a ditar os rumos da nação. Apesar de vivermos na era da informação, é difícil encontrar dados atualizados sobre a realidade do país. De acordo com o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, sabemos que, em 2022, mais de dois terços da população afegã estavam em situação de insegurança alimentar.
A penúria no interior das famílias foi se agravando à medida que o regime proibiu o trabalho das mulheres. O fechamento dos salões de beleza, por exemplo, privou cerca de 60.000 delas da que era a sua única fonte de renda. A população feminina foi impedida, também, de exercer cargos públicos, de trabalhar no judiciário, nas organizações não-governamentais, nos hospitais e ambulatórios. Ao vetar que médicas e enfermeiras exercessem a sua profissão, as mulheres, que são proibidas de mostrar o próprio corpo a um homem que não seja seu marido, ficaram sem a maioria dos cuidados básicos de saúde.
Acrescente a obrigação de usar a burca sempre que saírem de casa, a lei que nega o acesso à escola para as meninas com mais de doze anos de idade e a impossibilidade de frequentar os espaços públicos e não terá dificuldade para imaginar como a vida da população feminina foi transformada num pesadelo sem fim. Ainda que o regime de Cabul proíba a divulgação dos números oficiais, a ONU estima que, todos os dias, uma mulher afegã tira a própria vida. Para este contingente assustador, a morte é uma escolha menos dolorosa diante de uma existência privada de qualquer sentido.
A aplicação da lei islâmica segundo a leitura talibã não poupa nenhum aspecto da vida em sociedade. Em julho de 2023, a polícia religiosa queimou vários instrumentos musicais na província de Herat, na região oeste do Afeganistão. De acordo com o Ministério para a Promoção da Virtude e a Prevenção do Vício, esta medida visava evitar que as mensagens veiculadas nas canções corrompessem moralmente as pessoas. E foi assim que violões, guitarras, caixas de som, órgãos e outros instrumentos musicais formaram uma pilha que, sob o olhar atento das autoridades, foi consumida pelas chamas.
Diante desta situação desastrosa, cerca de um milhão e seiscentas mil
pessoas deixaram o país nos primeiros dois anos após a volta do regime. Os
demais habitantes, em graus diferentes a depender da sua condição social, viram
suas vidas piorarem. A degradação progressiva do presente e a perda de qualquer
perspectiva futura levou grupos de mulheres a reagirem. Protestos individuais e
coletivos revelaram a coragem de quem sabe que a ousadia de erguer a voz pode
lhe custar a vida. Uma coragem que o talibã teme e, por isso mesmo, enfrenta da
forma mais cruel e ameaçadora possível.
Inúmeras as manifestantes que foram presas, espancadas publicamente,
estupradas e torturadas nas prisões. Muitas ativistas que põem a cabeça para
fora são rastreadas e mortas por “atiradores desconhecidos”, conforme afirmam
as autoridades que conhecem os nomes dos matadores que encarregaram de se
livrarem delas. Para entendermos um pouco esta realidade, nada
melhor do que ouvir uma de suas protagonistas. Wahida Amiri era uma simples bibliotecária à qual a
vida ensinou a amar os livros na mesma medida em que as ideias neles contidas
mudaram a sua forma de ler o mundo e a levaram a acreditar em si própria.
“A biblioteca era meu lugar feliz,
onde todos eram bem-vindos, principalmente as mulheres»,
explica ela à repórter da BBC. «Às vezes discutíamos temas como feminismo
tomando chai sabzi, o tradicional chá verde afegão com cardamomo. O Afeganistão
não era perfeito, mas tínhamos liberdade”.
A volta do talibã, em agosto de
2021, fez ela reviver o pesadelo experimentado em 1996, quando o grupo governou
o país pela primeira vez. Naquela época, Wahida era apenas uma menina que,
proibida de ir à escola e em meio às ameaças que cercavam as mulheres, fugiu
com a família para o vale do Panjshir e, em seguida, para o Paquistão.
Com a morte da mãe e o novo
casamento do pai, todas as tarefas domésticas caíram sobre os seus ombros.
Cozinhar, limpar e esfregar o chão o dia todo transformaram a vida dela em algo
assombroso. Em agosto de 2021, os primeiros passos do novo governo caminhavam
no sentido de relegar as mulheres a serem escravas do lar. Ver que, em pouco
tempo, ela e as demais seriam privadas dos poucos direitos conquistados a duras
penas fez com que Wahida se tornasse uma das vozes que se erguiam contra o
governo. Ao narrar alguns passos do movimento diz:
“Fiquei aliviada quando descobri que
outras mulheres tinham os mesmos pensamentos. Sabíamos dos riscos de desafiar
os talibãs, mas todas dissemos “vamos protestar”. Criamos um nome para o nosso
grupo: Movimento Espontâneo de Mulheres Lutadoras do Afeganistão.
Nesta altura, os Talibãs já tinham
mostrado a sua verdadeira face. Eles voltaram atrás na promessa de permitir que
as mulheres trabalhassem e fecharam novamente as escolas para meninas. Eles
anunciaram seu novo “governo” e não havia uma única mulher nele.
Naqueles primeiros dias, enquanto
marchávamos nas ruas pelos nossos direitos, os talibãs nos encurralaram.
Dispararam bombas de gás lacrimogêneo contra nós e tiros para o alto – e até
espancaram algumas mulheres. Então eles proibiram completamente os protestos. A
maioria das mulheres decidiu não continuar, era muito arriscado. Mas elas não
conseguiram me impedir de continuar organizando os protestos.
Continuei organizando protestos. Na
noite anterior a cada um deles eu não conseguia dormir. Eu ficava inquieta e
assustada. Ficava pensando “amanhã será o último dia da minha vida”.
Naquele dia de fevereiro de 2022,
quando o Talibã invadiu o esconderijo para nos prender, recebemos a ordem de
entregar nossos telefones. Eu não conseguia respirar. "O que vai acontecer
agora?", pensei. "Eles vão me matar? Me estuprar em grupo? Me
torturar?". Eu senti como se tivesse um corpo, mas minha alma havia me
deixado. No Afeganistão, prender uma mulher é o mesmo que arruinar a sua
reputação. Há uma suposição geral de que ela foi estuprada e, na sociedade
afegã, é o pior tipo de vergonha que uma mulher pode carregar.
Um dos últimos protestos
organizados por Wahida, à direita na foto. |
No dia seguinte ao da nossa prisão, um
dos talibãs empurrou a porta e entrou furioso. Ele era alto e tinha uma
expressão sombria. Seus olhos percorreram a sala e quando me encontrou gritou
palavras abusivas - disse que eu era "suja" e "impura".
"Você tem insultado o Emirado [islâmico] nos últimos seis meses.
Com quem você está colaborando?" Eu respondi: “Ninguém, estou fazendo tudo
sozinha”. Então ele me entregou uma caneta e um pedaço de papel e disse:
"Você é uma espiã. Escreva o nome de todos os seus colaboradores".
Como eu era de Panjshir, uma província conhecida por resistir aos talibãs,
pensaram que eu era apoiada pela Frente Nacional de Resistência, um grupo
armado que os combate no norte.
Os dias que se seguiram foram lentos.
Uma por uma, as outras mulheres foram libertadas, mas eu não. Então, um dia,
eles trouxeram uma câmera e disseram às que restavam que iriam nos fazer
perguntas e que deveríamos respondê-las olhando para as lentes. Quando exigimos
saber para que servia a gravação, disseram que era apenas uma formalidade e que
ficaria guardada no arquivo do ministério. Disseram-nos para dizermos os nossos
nomes, de que província éramos e quem estava nos ajudando. Usaram a força para
nos obrigar a dizer que ativistas afegãos no exterior haviam nos dito que era
para protestar.
Naquela altura não sabíamos, mas isso
daria às pessoas a impressão de que realizamos as marchas para nos tornarmos
famosas e sermos evacuadas do Afeganistão. Pouco depois, divulgaram na mídia as
confissões extraídas à força. Numa pequena televisão no corredor vimos o vídeo
transmitido pela Tolo News, uma das maiores estações de televisão do
Afeganistão. Todas nós começamos a chorar. Agora todos sabiam que fomos levadas
pelos Talibãs. Eles não nos estupraram, mas aos olhos de muitas pessoas eles
fizeram isso. Agora todos pensavam que protestávamos apenas para conseguir
ajuda para deixar o Afeganistão.
Dois dias depois das confissões
forçadas disseram que estávamos livres para partir. Mas isso teve um preço –
tivemos que prometer não protestar novamente. Cabul estava fria, as ruas
desertas. No caminho para casa, meu irmão mais velho não parava de me repreender.
"O que você estava pensando, Wahida? Você realmente achou que poderia
derrubar o Talibã? Você é apenas uma mulher." Eu estava envergonhada. Eu
tinha perdido tudo. Meu trabalho, minha liberdade e agora o sentido da minha
vida se eu não pudesse mais protestar.
Um dia, li uma entrevista anônima com
outra manifestante que disse que o Talibã nos espancou enquanto estávamos sob
sua custódia. Eles não tinham feito isso. Minha família me implorou para deixar
Cabul, pois temia que o Talibã ficasse irritado com o artigo e viesse atrás de
nós novamente. Então, dois meses depois da minha libertação, arrumei uma
pequena sacola com roupas e alguns dos meus livros favoritos e me despedi da
minha terra natal. Saí de casa de madrugada e mais uma vez acabei no Paquistão.
Deixei toda a minha família. Deixei
minhas estantes. Saí da biblioteca. A última vez que estive lá foi no dia 14 de
agosto, um dia antes da queda de Cabul. Às vezes me pergunto o que aconteceu
com os livros – eles ainda estão lá? Fui bibliotecária na minha vida anterior,
agora sou refugiada. Moro com várias outras famílias no Paquistão. Olho para os
meus livros, mas não tenho energia para folhear as páginas. Sinto-me presa como
se não pudesse sonhar ou escapar para outra realidade, nem que seja só por um
momento.
As mulheres que ainda se encontram no
meu país estão sendo silenciadas e muitas têm medo de se oporem abertamente ao
Talibã. Vou ao parque para espairecer, mas o pensamento do meu povo não me
abandona. Sinto falta da minha casa, da minha família e do meu gato. A única
coisa que me dá um pouco de alegria e me lembra de casa é um restaurante afegão
ali perto.
Hoje em dia, passo muito tempo na
biblioteca local, tentando juntar algumas palavras sobre as mulheres que
protestaram, sobre as nossas vidas e o quanto elas mudaram por causa do Talibã.
Espero que o que estou escrevendo possa, um dia, virar um livro. Quero que as
mulheres do mundo todo saibam que as mulheres afegãs não desistiram pura e
simplesmente de lutar, elas lutaram e quando foram silenciadas e derrotadas,
reergueram-se, de uma forma ou de outra.
Passo o resto do meu tempo falando com mulheres afegãs do mundo todo – da Alemanha aos EUA – organizando um movimento global contra o Talibã. O meu objetivo é garantir que a comunidade internacional nunca os reconheça como um governo oficial. Quero que pressionem o grupo para que reabra as escolas, para que as nossas meninas aprendam, para que vivamos livremente em nosso próprio país.
Wahida tem razão de confiar na
coragem das mulheres afegãs e na capacidade de elas tecerem clandestinamente os
passos da resistência. Três exemplos ajudam a nos dar uma ideia desta rebeldia
que encontra formas de se transformar em ação.
O primeiro deles nos é oferecido
pelas médicas que permaneceram no país. Várias delas, trabalham
clandestinamente em algum hospital. Sem licença para exercer a profissão,
recebem salários irrisórios. Outras
visitam as pacientes em suas próprias casas. As burcas são as principais
aliadas destas profissionais à medida que impedem de serem reconhecidas. É
assim que um dos símbolos de opressão das mulheres se transforma em aliado
contra aqueles que obrigam a usá-lo.
Enquanto o Ministério para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício queima os instrumentos que mantinham vivas as expressões da música afegã, duas irmãs fazem ressoar seus cantos nas redes sociais. Cobertas pela burca e sem sinais que levem a identificar o ambiente onde são feitas as gravações com o uso de um celular, elas decidiram que não podiam ser expectadoras inertes dos acontecimentos e criaram um movimento conhecido como a “Última Tocha”.
Sem nenhuma experiência anterior no campo musical, a dupla decidiu usar a própria casa para fazer do canto um meio de protestar contra o talibã e manter viva a esperança das mulheres. Escrever para denunciar não era parte dos seus afazeres diários. Esta forma de protestar desabrochou depois que as irmãs e algumas amigas começaram a se reunir na que, supostamente, devia ser uma escola de costura, mas que, na verdade, era uma sala onde o grupo, fingindo se dedicar a este trabalho, se reunia para ler livros. Nesse aprendizado, se depararam com um poema que Nadia Anjuman escreveu na primeira vez que o Talibã tomou o poder, em 1996, e no qual a burca é comparada a uma gaiola que simboliza o aprisionamento dos sonhos de mulheres e meninas.
É assim que são feitas as gravações postadas nas redes sociais.
Os versos da poesia integraram a letra de uma das primeiras músicas:
Como
eu posso falar de mel quando minha boca está tomada por veneno?
Minha boca é esmagada por um punho cruel...
Oh, [anseio] pelo dia em que
quebrarei a gaiola,
[Para]
Me libertar desse isolamento e cantar de alegria.
Não demorou para que a dupla
percebesse que nenhum poema conseguia traduzir o que sentiam. Foi assim que as
limitações sufocantes do dia a dia, a prisão de ativistas e as violações dos
direitos humanos se tornaram temas das novas canções. A resposta da resistência
às condições abusivas em que as ativistas são presas foram resumidas nos versos
citados pela reportagem:
“As ondas de vozes femininas
quebram fechaduras e correntes da
prisão.
Esta caneta cheia do nosso sangue quebra suas espadas e flechas.
As afegãs que acessam as redes sociais têm reagido postando suas próprias performance das canções. È assim que, aos poucos, a dupla se transformou em quatro, oito, dezesseis e centenas de vozes que, violando a proibição de cantar, fazem ecoar o seu “não” ao governo.
As ameaças recebidas pelas irmãs desde a primeira apresentação custaram várias noites em claro por medo que os agentes do talibã conseguissem identificá-las e aprisioná-las. Contudo, a percepção de que era impossível se calar diante do que estava acontecendo ajudou ambas a vencer o medo e a resistir às pressões dos familiares para que parassem.
O cenário se agravou muito quando um grupo de estudantes afegãs no exterior gravou a própria versão de uma das músicas no auditório da escola e sem usar a burca. Depois da divulgação deste material pelas redes sociais, as ameaças engrossaram. Uma delas dizia, textualmente: “Uma vez que nós encontrarmos vocês, sabemos como arrancar sua língua da garganta”. No dia em que foi divulgada a reportagem à qual tivemos acesso, a dupla afirmava estar fora do Afeganistão, firme em seu compromisso de ser uma Tocha que acende outras para fazer a esperança brilhar na escuridão.
O terceiro exemplo guarda uma relação direta com a
proibição de mulheres e meninas frequentarem a escola após completar os doze
anos de idade, o que equivale a limitar a sua formação a seis anos do ensino
fundamental. O conteúdo de uma reportagem ajuda a termos uma ideia do que é
necessário fazer para violar esta proibição:
“Quatorze meninas afegãs se
reúnem todos os dias no porão de um prédio em Cabul para continuar seus estudos. A professora
delas é uma aluna veterana que ensina matemática. A escola está escondida do mundo externo – as
portas e janelas estão fechadas para que ninguém possa ver ou ouvir as alunas.
Um quadro branco fica no canto da sala, onde Nooria (nome fictício) explica
logaritmos às suas alunas.
Administrar a
escola secreta nessas circunstâncias não é uma tarefa fácil, mas muitos pais
estão determinados a educar suas filhas e estão prontos a assumir os riscos. As
alunas desta escola fazem diferentes caminhos para ingressar nas aulas em
horários diferentes do dia para que não sejam notadas pelas autoridades. Não há
carteiras e cadeiras na sala de aula; as meninas sentam-se em círculo no chão.
Shamsia
(nome alterado), aluna do nono ano da "escola subterrânea", admite
que há riscos, mas afirma que não quer perder os nove anos de estudos. «Sim, estou com
medo. Tento fazer o meu melhor para ser o mais discreta possível e continuar a
minha educação», relata.
As alunas desta
escola pagam uma pequena taxa à professora, mas a situação financeira da
maioria das famílias no Afeganistão faz com que mesmo uma pequena quantia seja
um grande fardo para elas.
Para Nooria, no entanto, o dinheiro é secundário em relação ao desejo de fornecer educação às meninas. Ela diz que há muitas famílias no Afeganistão que vivem na extrema pobreza, mas ainda estão comprometidas com a educação das meninas. «Não cobro de famílias pobres. Estou prestando um serviço», garante”.
Mas,
como é possível esconder uma escola? E ainda que os livros sejam escassos, como
ocultá-los no interior das próprias casas? Alguns elementos ajudam a responder
a estas perguntas. No caso da primeira, o fato de muitos afegãos não
concordarem com a proibição da continuidade dos estudos para as mulheres tem
favorecido certo espírito de cumplicidade. Sempre que as relações interpessoais
criam laços de confiança, os vizinhos das casas que abrigam as escolas
clandestinas se dispõem a afirmar aos agentes do talibã que lá funciona uma
escola de corte e costura ou uma que ensina o Alcorão.
No
caso das relações familiares, o conteúdo de uma reportagem oferece uma pista de
como o projeto do talibã de relegar as mulheres aos trabalhos domésticos
oferece elementos para burlar a proibição de continuar frequentando as aulas:
“Nafeesa (nome fictício) encontrou o local
ideal para esconder os seus livros na cozinha, onde os homens raramente entram
e seus livros ficam protegidos do olhar recriminador do seu irmão talibã. «Os
garotos não têm nada para fazer na cozinha, assim é lá que eu guardo meus
livros», explica Nafeesa de 20 anos que frequenta uma escola clandestina no seu
vilarejo rural no leste do Afeganistão. «Se meu irmão souber, ele me bate».
(...)
Nafeesa tem 20 anos, mas ainda estuda disciplinas do Ensino Médio devido
ao atraso de um sistema educacional afetado por décadas de guerras no país.
Apenas sua mãe e a irmã mais velha sabem que frequenta as aulas, não o
irmão que durante anos lutou com os talibãs nas montanhas contra o antigo
governo e as forças estrangeiras retornando para casa apenas após a vitória dos
islamitas em agosto de 2021.
De manhã, ele permite que ela frequente uma Madrassa para estudar o
Alcorão, mas, à tarde, sem que o irmão saiba, ela segue para uma sala de aula
clandestina organizada pela Associação das Mulheres Revolucionárias do
Afeganistão (RAWA, pela sigla em inglês).
«Aceitamos o risco ou ficaríamos sem educação», diz Nafeesa.
«Quero ser médica. (...) Queremos ter algo para nós mesmas, queremos ter liberdade, ser úteis à sociedade e construir o nosso futuro», disse a jovem.”
Estar numa escola clandestina é um risco para quem
ensina e para quem aprende. Quando
uma delas é descoberta, como ocorreu no dia 6 de janeiro de 2024, em Cabul, o
refúgio de aprendizado é destruído, as meninas e mulheres presentes são
agredidas e quem ensina é espancado, preso e mantido na prisão por um período
que varia a depender da extensão do “ensino ilegal” que estava sendo
proporcionado. Contudo, apesar do pesadelo de serem descobertas, alunas e
docentes acreditam que desistir não é uma opção. Mais forte do que o medo, é a
determinação de todas de ensinar, aprender, crescer e ser livres. Uma aluna que
presenciou a invasão da sala de aula que citamos diz:
“Seguiremos resistindo. Talvez algum dia veremos a luz no fim do túnel”.
Queimar livros, sequestrar cópias de obras guardadas em bibliotecas
públicas e domésticas, prender seus autores e leitores, enfim, proibir o acesso
a ideias que questionem as explicações
dos problemas sociais apresentadas pelos grupos de poder são ações típicas dos
regimes ditatoriais. Brasil, Chile e Argentina viveram esta realidade em vários
momentos da sua história.
Impossível não lembrar que, em novembro de 1937, a ditadura capitaneada por Getúlio Vargas incinerou 1.800 obras consideradas simpatizantes do comunismo, entre as quais havia o romance de Jorge Amado, Capitães de Areia. Logo após o golpe de Estado no Chile, o regime de Augusto Pinochet iniciou a destruição sistemática de livros considerados subversivos. Bibliotecas públicas, universidades, escolas, livrarias e casas foram invadidas e esvaziadas de todas as obras “perigosas”. A presença de um desses livros na estante da sala era motivo para alguém da família ser detido e, a depender do caso, torturado e assassinado. Na Argentina, os militares estabeleceram o controle da produção de livros logo após o golpe de março de 1976. Ter um conteúdo contrário aos “valores nacionais” que as forças armadas impunham a ferro e fogo levou à proibição imediata de 125 títulos. A queima de livros mais significativa ocorreu em Sarandi, na província de Buenos Aires, onde, em junho de 1980, foram incinerados cerca de um milhão e meio de exemplares que iam da literatura infantil às reflexões de grandes pensadores.
Sendo assim, podemos dizer que o fato de um regime ditatorial proibir os
livros como forma de impedir o acesso às ideias que questionam suas posições é
algo esperado e, historicamente, sempre presente. Mas, quando muitos
governantes estadunidenses enveredam por caminhos semelhantes é algo que
deveria fazer soar todos os alarmes da “maior democracia do planeta”.
De acordo com o relatório da PEN América, uma entidade que defende a liberdade de expressão e os direitos humanos, somente entre junho de 2021 e o mesmo mês do ano seguinte, os governos de 32 Estados proibiram a presença de 1.648 livros nas bibliotecas de suas escolas, um aumento de 250% em relação aos doze meses anteriores. Alegando a necessidade de proteger crianças e adolescentes de conteúdos prejudiciais à sua formação humana, foram retiradas das prateleiras 674 obras que envolvem temas ou personagens LGBTQIA+, 659 livros que têm pessoas de cor em seu enredo e 338 títulos que abordam diretamente questões étnicas ou formas de racismo.
Num movimento alimentado por pressões políticas dos setores mais
conservadores, grupos de pais envolvidos nos conselhos das escolas forçaram a
proibição de textos cujas ideias contrariam a visão de mundo com a qual as
elites buscam viabilizar seus interesses. O afã de vetar textos incômodos fez
com que a própria Bíblia fosse banida nos Estados do Utah, Texas e Missouri sob
a alegação de “estar cheia de sexo e não ter valores sérios para menores”. A proibição do livro sagrado deixou muitas
pessoas indignadas e seu clamor levou a devolvê-lo às bibliotecas escolares.
Mas uma reação igualmente multitudinária não ocorreu com nenhum outro texto,
num claro sinal de que a maioria não percebe o verdadeiro sentido das
proibições.
O ataque mais veemente ocorreu na Flórida, governada por Ron DeSantis,
do Partido Republicano. Em nome do direito de os pais controlarem as leituras
dos filhos no ambiente escolar, em março de 2022, Ron aprovou uma lei que lhes
permite vetar determinados conteúdos e pune docentes, bibliotecários e
responsáveis das escolas que não colocam os livros proibidos fora do alcance
dos alunos.
Em sua cruzada contra a cultura “woke” - que convida as pessoas a buscarem as causas profundas da desigualdade e da discriminação - o governador republicano censurou, inclusive, várias biografias como a do jogador de beisebol porto-riquenho, Roberto Clemente, de Sonia Sotomayor, a primeira mulher hispânica a ser nomeada juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos e da ativista pelos direitos civis, Rosa Park. Concretamente, tudo o que trata da experiência de vida de pessoas negras, morenas, imigrantes e LGBTQIA+ é automaticamente colocado sob suspeição caso o seu conteúdo se distancie do que os grupos de poder consideram a interpretação correta da realidade.
No topo da lista dos livros que são considerados perigosos demais para serem lidos encontramos as obras baseadas na Teoria Crítica da Raça (TRC). Nascida no ambiente acadêmico na década de 1950, esta teoria afirma que a discriminação de uma pessoa por causa de sua cor não é apenas um problema do indivíduo, e sim uma prática presente e atuante nas estruturas sociais que se reflete nas leis e no funcionamento das instituições. Desta forma, longe de demandar apenas uma mudança de condutas individuais, acabar com o racismo estrutural exige um intenso trabalho de reestruturação das instituições e de ruptura dos mecanismos que produzem as desigualdades sociais.
Entrada da livraria Books & Books.
Sendo assim, é fácil entender a reação dos grupos mais conservadores que acusam a TCR de criminalizar os brancos e de ser uma teoria antiamericana. Reconhecer o racismo como elemento estrutural da economia e da sociedade estadunidense, implicaria em ver ruir os mitos que sempre fizeram do esforço pessoal o fator que explica a ascensão social e o sucesso individual. No “país da liberdade” não há espaço para quem se opõe às explicações hegemônicas da elite.
E não é para menos. Ao questionar o que é considerado líquido e certo,
os livros proibidos são como abelhas polinizadoras que fecundam a mente, abrem
o pensamento a horizontes desconhecidos, desvendam as raízes dos problemas
sociais, unem pessoas diferentes e distantes num debate comum. Uma vez
divulgadas, as ideias se reproduzem em vários setores da população num processo
cujo controle escapa das mãos dos grupos de poder. E, quanto maior a
fragilidade das convicções que garantem a submissão, mais a possibilidade de
manter a ordem atual é colocada em risco.
Enquanto governos e setores de extrema direita buscam controlar o que pensam os cidadãos e as ideias em volta das quais estão sendo formadas as novas gerações, a resistência contra a censura do saber ganha as mais diversas expressões. Por exemplo, a livraria Books & Books, em Miami, pintou na parede acima da entrada uma frase com os dizeres “A censura nos deixa no escuro - nós lemos livros proibidos” e, nos espaços ao lado da porta, o nome das principais obras cujo acesso foi vetado nas escolas e nas bibliotecas públicas.
Na Flórida, Adam Tritt, de 58 anos, professor de inglês numa escola de ensino médio, criou a Fundação 451 que compra livros proibidos para distribui-los em lugares públicos, como cafeterias e sorveterias. Segundo a reportagem à qual tivemos acesso, a Fundação já havia distribuído cerca de 3.000 exemplares destes livros a crianças e jovens num trabalho incansável para aumentar a consciência popular.
Mas, a notícia que mais nos enche de orgulho e esperança relata que adolescentes de várias escolas desafiam as normas criando “clubes de leitura de livros proibidos”. É o caso, por exemplo, de Ella Scott e Alyssa Hoy, de 17 anos, que moram no Estado do Texas, cujo governo retirou das bibliotecas 801 obras. Até os primeiros debates sobre o tema, ambas só pensavam em terminar o segundo grau, curtir a vida adolescente da região e pensar na profissão à qual se dedicariam no futuro.
Um dia, a mãe de Alyssa, uma professora local, contou à filha que na
cidade de Leander estavam proibindo vários livros de instituições acadêmicas
após as queixas recebidas por parte dos pais de alguns alunos. A conversa sobre
o assunto envolveu Ella e fez nascer a ideia de criar um clube onde as pessoas
tivessem acesso gratuito aos livros proibidos. Na entrevista concedida à BBC,
as duas amigas contam em grandes linhas como a reflexão sobre o tema levou
ambas a agirem e os resultados da sua decisão:
“«Não tínhamos
ideia do que estava acontecendo com a proibição, e sentimos que algo precisava
ser feito para aumentar a conscientização.
É definitivamente desconcertante pensar que isso está
acontecendo em um lugar como os EUA, onde temos essa cultura de liberdade», diz Scott, de 17 anos, à BBC.
O clube do livro
de Scott e Hoy começou com um grupo de meninas de sua classe e depois cresceu
para incluir alunos da Vandergrift High School, uma escola estadual com 2.709
alunos.
«As pessoas vêm de diferentes
graus e origens. É ótimo ouvir as várias conversas que surgem quando falamos
sobre um assunto que afeta a todos nós», acrescenta Hoy, também de 17
anos. «É natural que sempre haja alguém que esteja desconfortável com
certos tópicos», diz Scott. «Mas isso não é necessariamente um motivo para
tirar os livros ou tirar a oportunidade de os demais formarem sua própria
opinião».
Scott e Hoy
querem que a sua voz seja ouvida neste debate.
«É tão estranho que, em uma sociedade tão individualista como os EUA, haja algumas pessoas tentando excluir histórias que mostram individualidades diferentes», diz Hoy. «Isso cria um tipo "ideal" de pessoa que você deveria ser. É assustador crescer em tempos como esses»”.
O Clube
do Livro Proibido de Ella e Alyssa é apenas um das centenas que surgiram nos
Estados Unidos em resposta à censura nas escolas e bibliotecas públicas. Não há
dados sobre quantas pessoas estejam envolvidas na organização e quantas outras
sejam leitores e participantes assíduos. Contudo, a sensação que emana das
reportagens é que tanto as adolescentes texanas como as demais pessoas que
disponibilizam as obras estão conseguindo bem mais do que desafiar as
proibições legais. Elas estão vislumbrando o perigo de não conhecer
determinados aspectos da realidade, de serem moldadas por ideias e valores que
as impedem de ser realmente livres.
Além de
vários alunos assumirem uma posição contrária à censura nos conselhos
escolares, a consciência da razão pela qual as obras foram proibidas leva a um
debate mais amplo que, em algum caso, chegou aos tribunais e se traduziu em
manifestações de rua. No Estado do Missouri, por exemplo, dois estudantes
entraram com uma ação contra o distrito escolar de Wentzville por causa da
decisão de remover oito livros apontados como "obscenos",
incluindo o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1993, "Olhos Azuis",
de Toni Morrison. O clima criado em volta do julgamento levou as autoridades
locais a devolverem às estantes as oito obras que haviam retirado.
Outro caso que ganhou as manchetes dos jornais estadunidenses ocorreu em 2021, na Pensilvânia, quando a decisão de restringir o acesso a mais de 300 livros, filmes e artigos escritos por autores negros e latinos fez professores e estudantes irem às ruas contra a censura.Diante daqueles que fazem das proibições e do medo o passo para que muitos estadunidenses não conheçam as raízes dos problemas sociais, as palavras de Joan Tarragó ecoam nas vozes de quem, a seu modo, diz:
“ler te faz
livre”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário