No dia 05 de novembro de 2024, a candidata do Partido Democrata, Kamala Harris, sofreu uma derrota acachapante na eleição para a Presidência da República. A pergunta que todos se fizeram é muito simples: por que os bons resultados da economia não sopraram ventos favoráveis ao seu desempenho nas urnas? O povo, de fato, parece ter esquecido que foi o governo Biden a reduzir a inflação de 9,1% em 2020 para 2,4%, a colocar as taxas de juros em trajetória de queda, a fazer o PIB crescer acima do esperado e, sobretudo, a diminuir a taxa de desemprego de 7,0% para 4,1%.[1]
O que parece contraditório se torna compreensível quando saímos dos dados macroeconômicos e vamos para a vida das pessoas comuns. Entre a posse do Biden, em janeiro de 2021, e julho de 2024, a inflação subiu pouco menos de 20,0% enquanto os preços dos alimentos tiveram uma alta de 25,0%. No mesmo período, os aumentos salariais médios ficaram 11,1% acima da inflação, mas este crescimento real da renda passou longe de se tornar realidade para os 50% mais pobres que viram os preços da comida e do aluguel ampliarem o seu peso no orçamento familiar.[2]
Alguns exemplos da vida cotidiana ajudam a entender o que isso significou para a maioria da população. No final do primeiro mandato de Trump, os habitantes da Pensilvânia pagavam cerca de um dólar por uma dúzia de ovos. Hoje, a mesma quantidade do produto custa cinco dólares.[3] De lá pra cá, a inflação anual caiu, os preços dos alimentos subiram apenas 1%, mas a dúzia de ovos continua 4 vezes mais cara em relação a 2020.
A alta exorbitante dos aluguéis em várias regiões do país oferece outro caso esclarecedor. Em julho de 2024, um em cada dez funcionários da Disneylândia dormia no seu carro pela impossibilidade de continuar pagando o aluguel da casa onde morava.[4] O reflexo desta situação no país inteiro se reflete no aumento de 18,0% dos moradores de rua registrado em dezembro de 2024, ante o mesmo mês de 2023.[5]
Sabendo disso, começamos a entender por que, no encerramento dos atos de campanha, Trump perguntava aos participantes se suas condições de vida haviam melhorado nos últimos 4 anos e a resposta era invariavelmente negativa.[6] Mas, será que os rumos anunciados pelo novo Presidente produzirão os resultados que a população espera? É o que vamos ponderar nas próximas páginas.
1 Culpar os imigrantes para que seus algozes continuem impunes.
A discriminação dos imigrantes impede de perceber que ninguém arrisca a vida quando as condições na terra natal lhe são favoráveis. Na ampla maioria dos casos, quem migra foge da miséria, da morte, da falta de perspectivas para o futuro, de uma realidade deturpada pelos interesses geopolíticos e pela ação das transnacionais que promovem uma brutal exploração do trabalho e dos recursos naturais.
Como não se lembrar do fluxo de imigrantes vindos da antiga Iugoslávia quando a guerra, fomentada pelos interesses estadunidenses, produziu inúmeros massacres ou da degradação das condições de vida no continente africano onde as multinacionais fincaram seus investimentos?[7] Mas, ao colocar os holofotes nos migrantes, a realidade que forçou a sua saída se perde na névoa do alvoroço midiático que culpa as vítimas para ocultar o sistema responsável por suas desgraças. Este brevíssimo resgate do óbvio permite compreender por que um magnata como Trump se lança contra os imigrantes, mas não por que ele obteve uma votação histórica na comunidade latina ao prometer que, durante o seu mandato, deportaria 11 milhões de pessoas que entraram clandestinamente no país.
Não é segredo para ninguém que, nos EUA como em todos os países do primeiro mundo, a maioria dos estrangeiros ocupa os postos de trabalho rejeitados pelos nativos por serem perigosos, mal remunerados, insalubres ou exigirem muito esforço físico. Mas, por ruim que sejam o trabalho e o salário recebido pelos demais, ambos tendem a piorar quando aumenta o fluxo de pessoas que entram no país.
Quanto mais acirrada a luta pela sobrevivência, maior é o número dos que aceitam qualquer salário e condição de trabalho o que, por sua vez, tende a rebaixar os direitos contratuais dos demais imigrantes e a ameaçar o nível de vida por eles conquistado. Em sentido oposto, a deportação de milhões de “sem documentos” criaria uma escassez de força de trabalho que forçaria uma melhora dos salários e das condições de trabalho. Por isso, a promessa de uma deportação em massa ganhou a adesão de 45,0% da comunidade hispânica estadunidense e 57,0% dos votos no condado de Starr, no Texas, onde 97,0% da população são de imigrantes.[8]
Para quem atravessa ilegalmente a fronteira em busca de uma vida melhor, não há opção que não seja a de se esfolar de sol a sol. As condições extremas em que muitos empregadores forçam este contingente a trabalhar na agricultura, nos transportes e na construção civil são as mesmas que, de acordo com o Bureau of Labor Statistics dos EUA, alimentam as mortes no trabalho.[9]
Apesar das evidências de desumanidade no tratamento dos “sem documentos”, seus empregadores sabem que a manutenção do atual nível de exploração só é possível na exata medida em que as fronteiras deixam filtrar um contingente significativo deles. É o caso, por exemplo, dos fazendeiros que empregam cerca de um milhão de clandestinos e ameaçam encarecer os preços dos alimentos caso as deportações esvaziem as fazendas.[10]
Do ponto de vista da classe trabalhadora o apoio considerável à expulsão massiva dos imigrantes é um fator preocupante. Motivada pelo medo de perder o pouco que foi conseguido, a aposta num governo de extrema direita para conter a competição no interior do mercado de trabalho inviabiliza a criação de laços de solidariedade capazes de dar vida a formas de resistência que enfrentem os seus algozes.
Mas, como explicar que 90,0% dos eleitores de Trump apontavam a luta contra a imigração ilegal como o compromisso mais importante do seu novo mandato?
Simples: mostrando o clandestino como desumano, como um criminoso em potencial, como alguém que degrada a sociedade estadunidense. Da acusação sem provas de que as famílias dos migrantes comem seus pets aos discursos sobre o aumento da criminalidade, a imagem dos “sem documentos” ganhou cores perturbadoras. Ninguém se perguntou por que alguém se veria obrigado a assar o próprio gato ou cachorro para sobreviver, algo que em tempos de guerra e de penúria era razoavelmente normal em muitos países. Mas ouvir de um candidato à Presidência da República que alguém tão desumano está circulando pelas ruas dos EUA faz com que as pessoas temam por suas vidas e por seus bens. Com a sensação de insegurança plantada no solo do cotidiano, não é difícil entender por que aplaudiam as medidas drásticas para reduzir a presença deste “tipo de gente”.
O resultado desta estratégia de campanha fez com que quase ninguém se desse ao trabalho de verificar o que diziam os estudos sobre o comportamento social dos imigrantes. Entre eles, resgatamos as conclusões da equipe do professor Ran Abramitzky, da Universidade de Stanford. De acordo com a pesquisa por ele liderada, nos últimos 150 anos, os homens imigrantes tiveram taxas de encarceramento mais baixas do que os nativos. E, em 2024, apresentavam 60,0% menos probabilidades de acabar na prisão do que todos os homens nascidos nos EUA e 30,0% menos chances quando comparados apenas aos brancos.
Do mesmo modo, os temores da maioria impediram de registrar que, segundo o próprio FBI, os únicos crimes violentos que estão em alta são os crimes de ódio por motivos raciais promovidos pelos brancos. Ou seja, o contingente que mais ameaça uma fatia considerável da população não é o dos “sem documentos”, nem o dos demais imigrantes, mas, justamente, o que se apresenta como o das “pessoas de bem”. E, aqui, vale registrar que o silêncio dos grupos de poder sobre esse tema guarda uma relação direta com o fato de a discriminação racial ser uma das colunas que sustentam os lucros das empresas.[11]
O fantasma dos “sem documentos” ficou ainda mais ameaçador quando foi divulgado o número de “encontros” entre os agentes do Serviço de Imigração dos EUA e os que atravessam clandestinamente a fronteira com o México. No primeiro mandato de Trump, foram registrados cerca de 2 milhões e 400 mil encontros, mas entre janeiro de 2021 e outubro de 2024, este número subiu para mais de 8 milhões.[12]
Os dados que confirmavam a ineficácia do governo Biden em conter a onda migratória eram os mesmos que faziam 53,0% dos estadunidenses concordarem com a construção imediata do muro para impedir que estas pessoas entrem no território nacional. Trata-se de uma barreira dificilmente transponível nos 598 km que faltam para completar o traçado já protegido da fronteira entre o México e os EUA.[13] Enquanto o muro não passa de um projeto, Trump deve ampliar o atual ritmo das deportações mais para dissuadir os futuros migrantes do que para cumprir a risca uma promessa de campanha. Vejamos por que.
Em 2023, os gastos para devolver ao país de origem os 142.580 não cidadãos estadunidenses demandaram quase 3.000 dólares por pessoa, o que perfaz um total de 428 milhões de dólares.[14] Deportar cerca de 3 milhões de pessoas por ano de mandato exigiria um pesado investimento na construção de centros de identificação e detenção provisória, na contratação de agentes e numa estrutura de transporte à altura de um aumento extraordinário dos deslocamentos a serem viabilizados. Desta forma, o valor médio para devolver um único clandestino ao país de origem é estimado em 16 mil dólares. Multiplique isso por 11 milhões e terá um total de 176 bilhões de dólares, quantia que os cofres públicos estadunidenses não têm condição de entregar ao futuro governo, caso sejam mantidas as atuais regras de endividamento do Estado.[15]
2 O problema de sonhar de olhos abertos
Zerar a inflação de um país é o desejo de qualquer governo. Conseguir esta proeza, a história já mostrou que é impossível. Contudo, é justamente isso que Trump prometeu aos seus eleitores ao fazê-los sonhar com preços inalterados e um aumento do poder de compra dos salários. Como ele pretende realizar esta façanha?
Quando listamos as propostas esboçadas durante a campanha eleitoral, percebemos que o então candidato à Presidência dos EUA lançava mão de duas diretrizes fundamentais. A primeira consistia em reduzir as regulamentações climáticas existentes para aumentar a extração de petróleo, gás e carvão.[16] Com o aumento da oferta, o petróleo e seus derivados ficariam mais baratos. A consequente queda dos preços da energia, dos combustíveis e das matérias-primas utilizadas na produção de inúmeras mercadorias beneficiaria os lucros empresariais e o poder de compra dos consumidores. Esta posição agitou desde o início o mercado internacional do petróleo que, em novembro de 2024, viu o preço do Brent cair para U$ 72,00 o barril.[17] As preocupações das empresas petrolíferas ganharam cores ainda mais intensas quando o City Bank projetou que, com a abertura de mais poços em território estadunidense, o petróleo seria vendido a U$ 60,00 o barril.[18]
Mas, o que parece líquido e certo esconde que os produtores de hidrocarbonetos costumam reduzir a oferta mundial para manter os preços num patamar confortável. De um lado, nada indica que isso deixará de acontecer. De outro, é difícil pensar que as petrolíferas estadunidenses venderão petróleo e gás abaixo do valor mundialmente estabelecido, pois, ao agirem assim, perderiam lucros e investidores.
A segunda medida de contenção dos preços prevê uma redução dos tributos empresariais dos atuais 21,0% para 15,0%.[19] Graças a este corte, os estadunidenses pagariam menos pelo que compram, tanto pela menor porcentagem que incide no valor final dos produtos, como pelo fato de que os próprios empresários investiriam os valores poupados para ampliar a oferta de mercadorias. Com a queda da inflação e sem o risco de uma demanda superior à disponibilidade interna, o Banco Central apressaria a redução dos juros, o que facilitaria ainda mais as compras. Em teoria, tudo funcionaria perfeitamente, com um aspecto se somando ao outro a fim de garantir o melhor para todos.
Três problemas mostram que as coisas podem seguir rumos diferentes em relação aos desejados pelo novo governo. De fato, nada impede que os lucros adicionados pela redução dos tributos se destinem a investimentos fora dos EUA. O capital não é fiel à bandeira nacional, mas à melhor resposta para a pergunta “quanto quero ganhar com isso?”.
O segundo diz respeito a como compensar a queda da arrecadação em função da diminuição dos tributos devidos. No caso dos EUA, esta questão é bem mais complexa do que muitos pensam, à medida que os elevados déficits nas contas públicas aumentam o endividamento do Estado que, ao alcançar o aumento máximo definido pela lei, obriga o governo a suspender imediatamente as suas atividades.
No exercício de 2023, encerrado em março de 2024, o governo federal dos EUA gastou cerca de 6 trilhões e 200 bilhões de dólares. A necessidade de cobrir a baixa arrecadação com dinheiro emprestado elevou suas dívidas a 36 trilhões de dólares.[20] A proximidade do patamar em que todas as atividades deveriam ser paralisadas fez soar o alarme na segunda metade de dezembro do ano passado, quando o Congresso dos EUA votou para estender o financiamento do governo até 14 de março de 2025, mas não para elevar a porcentagem da nova dívida que o governo Trump pode fazer.[21]
Nada impede que um novo projeto de lei venha a ser elaborado nos próximos meses, mas os próprios senadores republicanos reconhecem que, no orçamento para o próximo período, o governo deve apresentar cortes consideráveis em setores como a parte do seguro de saúde administrada pelo Estado, os benefícios dos veteranos de guerra, as pensões do setor público e a ajuda alimentar aos pobres. Ou seja, para viabilizar os planos que dariam a Trump o prestígio que almeja, setores importantes da população conhecerão o fim de parte substancial da ajuda governamental com a qual ainda podiam contar. Resta saber até que ponto reduzir os gastos públicos com a saúde, com as contribuições para os veteranos de guerra e com a ajuda para comprar comida em função da queda na arrecadação pelo corte dos tributos empresariais vai gerar o mesmo índice de aprovação conseguido nas urnas.
O terceiro problema guarda uma relação direta com a permanência dos fortes déficits da balança comercial que devem ser financiados pelo governo. Se, de um lado, o país detém o controle da tecnologia de ponta em vastas áreas do conhecimento humano, de outro, não são poucas as mercadorias consumidas pela população que deixaram de ser produzidas nos EUA. Quanto mais as corporações encerravam as atividades locais para investir em países onde baixos salários e menores custos de produção proporcionavam taxas de lucro impossíveis de serem alcançadas nos EUA, mais o país importava o básico para atender as demandas da vida cotidiana.
Mas o melhor vem agora. Diante da necessidade de equilibrar uma balança comercial deficitária, Trump está decidido a aumentar as tarifas de importação, sobretudo em relação ao México, ao Canadá e à China. Encarecer as importações dos principais parceiros comerciais ajuda a reduzir o déficit à medida que incentiva a produção local do que hoje é trazido de fora.
Bom, primeiro: quem garante que os manufaturados produzidos por trabalhadores estadunidenses que ganham salários bem maiores em relação aos que se esfolam nos países de origem dos importados sejam tão ou até mais baratos? Segundo: enquanto a produção local demora a acontecer, estas mesmas compras ficam mais caras em função das tarifas alfandegárias. De acordo com um levantamento do Center for American Progress, caso as importações do Canadá e do México sejam oneradas com tarifas de 25%, as famílias dos EUA gastariam, em média, 1.300 dólares a mais para comprar anualmente os mesmos produtos do seu consumo regular.[22] Com sua pose imperial, Trump promete o melhor governo de todos os tempos, mas já dá para ver que será o povo a pagar a conta.
Ainda no que diz respeito a Canadá e México, as tarifas com as quais Trump ameaça as mercadorias vindas destes países violam o acordo de livre comércio, conhecido como T-MEC, que ele próprio assinou em 2020.[23] México e Canadá podem retaliar as vendas estadunidenses com porcentagens semelhantes, mas isso não evitaria que as duas economias sofram o baque da redução do comércio com os EUA. De fato, cerca de 80,0% das exportações mexicanas e 70,0% das canadenses têm os Estado Unidos como destino final.[24] A consciência desta dependência e o medo que Trump realize o que promete tendem a criar um clima favorável aos negociadores que Washington enviará para forçar um ajuste do T-MEC aos seus interesses.
No caso da China, salta aos olhos que as tarifas impostas desde o primeiro mandato de Donald Trump não conseguiram reduzir significativamente o déficit da balança comercial que os EUA mantêm com o gigante asiático. Os dados de 2023 mostram que a corrente de comércio entre os dois países continua favorável a Pequim em 330 bilhões de dólares.[25] Isso foi possível não só graças à contenção das taxas de lucro das empresas exportadoras sediadas na China, da melhora da logística e dos processos produtivos, mas, também pela retaliação de Pequim às mercadorias que seguiam dos EUA para a China. Haja vista que, no mesmo ano, as barreiras tarifárias atingiam 58,3% das compras chinesas de produtos fabricados nos EUA ante 66,4% das importações de produtos chineses pelos estadunidenses, no que, guardadas as devidas proporções, pode ser considerado um “empate técnico”.[26]
3 O otimismo que cega o pobre engorda o rico
As considerações que apresentamos nas páginas anteriores trazem uma pergunta para a qual não temos resposta. O que significa para cada setor da pirâmide social estadunidense apoiar a nova fase de grandeza dos EUA anunciada por Trump?
Para alguns, talvez seja a possibilidade de colocar um pouco mais de comida na mesa sem aumentar o seu endividamento. Para outros, ter renda suficiente para pagar o aluguel ou realizar sonhos de consumo que permitem respirar ares de ascensão social. Para outros ainda, comprar um carro, fazer uma viagem, ter renda para adquirir uma casa melhor. Seja como for, ninguém se pergunta em que medida os EUA podem realmente oferecer chances de uma melhora efetiva e duradoura para todos.
A distribuição da renda fornece a base para ponderarmos até onde isso é possível.
De acordo com um estudo de Micheal Roberts, entre 1947 e 2022, a riqueza do 1% mais privilegiado da população estadunidense passou de 10,42% (o ponto mais baixo registrado em 1980) para 20,87% do PIB, em 2022. Neste mesmo período, a renda dos 50% mais pobres caiu de 21,24% (o ponto mais alto registrado em 1970) para 10,38% do PIB, em 2022, menos da metade em termos percentuais. Bastariam estes dados para perceber que a “teoria do gotejamento”, com a qual Trump defende suas propostas, não funciona. Vamos mostrar isso com um exemplo bem simples.
Certamente, você já viu aquela pirâmide de copos cuja disposição permite à taça que está no topo fazer transbordar o seu conteúdo para as que se encontram nos níveis inferiores. Obviamente, isso é possível à medida que o garçom continua enchendo a primeira, ou seja, no nosso caso, a alimentar de benesses o topo da pirâmide social para que, com o tempo, até os mais pobres recebam gotas do vinho que flui em direção à base.
Para Trump, reduzir os impostos que oneram a renda dos ricos e os lucros das empresas é sinônimo de aumentar este fluxo, quando, na verdade, só aumenta o tamanho da primeira taça na qual o vinho é derramado. Isso significa que os ricos vão se apropriar de uma parte da riqueza que, antes, beneficiava o país como um todo.
Contudo, não há nenhuma garantia de que a maior quantidade de vinho na primeira taça aumente o transbordamento para os níveis inferiores. De acordo com os dados levantados por Micheal Roberts, não só não há sinais de uma maior e melhor distribuição da riqueza, como também não há provas de que, em outros momentos da história do país, esta mesma política tenha impulsionado o crescimento do PIB e do emprego além do que era esperado sem ela, justamente pela concentração de renda que ela promove.[27]
Sim, você tem razão, há sempre algum pobre que acaba ganhando alguma gota de vinho que espirra lá de cima. Isso permite que uma pequena parte da base da pirâmide realize algum sonho de consumo, mas passa a anos luz de proporcionar uma estabilidade das condições de vida capaz de enfrentar sem sobressaltos as corriqueiras flutuações da economia. Trocado em miúdos, enquanto o rico dá mais uma engordadinha, o pobre, se tudo correr bem, vai trazer pra casa uma parte do que só podia desejar do lado de fora da vitrine...e nada mais.
Mas isso não é tudo. De tanto cortar impostos dos ricos, a fatia de renda sobre a qual eles vão pagar tributos se torna proporcionalmente menor que a do pobre. Ainda de acordo com Micheal Roberts, em 1960, as 400 famílias mais ricas dos EUA pagavam tributos sobre 57,0% da renda auferida, ao passo que, em 2018 (último dado disponível), esta porcentagem havia caído para 22,5%.
Na base da pirâmide, aconteceu o processo inverso. Em 1960, o pagamento dos mesmos impostos incidia sobre 21,5% da renda familiar, mas, 58 anos depois, chegava a pouco mais de 23,0%, meio ponto percentual acima do patamar sobre o qual os ultra ricos pagavam tributos.[28] Aceitar a dinâmica do sistema capitalista como base para a classe trabalhadora pensar o presente e o futuro...dá nisso.
Sim, eu sei que o otimismo também não deixa ninguém desistir de lutar para ter um lugar ao sol. O problema é quando o imaginário das pessoas faz elas não verem que em caso de piora das condições de vida, não podem sequer contar em ter a rua como casa. E isso não é piada. No afã de proteger as propriedades da desvalorização proporcionada pelo aumento dos moradores de rua, no dia 28 de julho de 2024, a Suprema Corte dos EUA deu um passo importante para “criminalizar a pobreza”. Ao julgar uma ação apresentada por várias administrações locais, os magistrados entregaram a prefeitos e governadores a possibilidade de imporem leis que proíbam dormir na rua, em tendas, nos bancos das praças e em outros locais públicos e multem ou prendam quem desrespeita as proibições.[29]
Sabendo que, nem Donald Trump, nem Kamala Harris, apresentaram propostas para reduzir as desigualdades e que este problema sequer foi citado durante a campanha eleitoral dos principais candidatos à Presidência dos EUA, sobram perguntas sem respostas.
O que significa para os trabalhadores e trabalhadoras que votaram em Trump “tornar a América grande novamente”? A esperança de que os grupos de poder deixem cair uma migalha maior? A renovação do “sonho americano” após décadas de exploração mostrarem que só um número muito limitado de pessoas consegue realizá-lo? Será que a lógica do sistema capitalista já está no DNA das pessoas a ponto de elas não verem o que a história coloca sob os seus olhos?
Resumindo: o que está acontecendo com a classe trabalhadora?
Emilio Gennari, Brasil, 06/01/2025.
[1] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/c87xe2wq3j1o Acesso realizado em 01/12/2024.
[2] Estas e outras informações estão disponíveis em:
- https://www.bbc.com/mundo/articles/c724z2dm4gyo
- https://thenextrecession.wordpress.com/2024/11/02/the-us-presidential-election-part-one-the-economy/
Acessos realizados em 04/12/2024.
[3] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/crr92d41nl5o Acesso realizado em 01/12/2024.
[4] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/c2v0dl52gvyo Acesso realizado em 01/12/2024.
[5] Estas e outras informações sobre o mesmo tema podem ser obtidas em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/12/28/eua-registra-recorde-de-pessoas-em-situacao-de-rua.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias e em: https://elpais.com/internacional/2024-12-27/el-numero-de-personas-sin-hogar-aumenta-un-18-en-2024-en-ee-uu-por-la-falta-de-vivienda-asequibles.html Acessos realizados em 28/12/2024.
[6] Vale ressaltar que a imigração era considerada uma questão importante por 90,0% dos eleitores de Donald Trump; a economia vinha em seguida com 80,0%; a política externa com 57,0%; o aborto com 25,0% e o estado da democracia com 18.0%. Maiores informações podem ser encontradas em: https://www.bbc.com/news/articles/c0mzl7zygpmo Acesso realizado em 01/12/2024.
[7] Falamos destes processos em várias de nossas análises anteriores. Contudo, se desejar ter uma ideia de como os investimentos das corporações internacionais matam as possibilidades de vida de milhões de africanos, sugerimos que conheça a realidade das minas de cobalto do Congo, minério sem o qual nossos equipamentos eletrônicos não poderiam funcionar. Você pode fazer isso consultando:
- https://www.bbc.com/portuguese/geral-50828077
- https://diplomatique.org.br/o-lado-vergonhoso-do-metal-azul/
- https://www.dw.com/pt-002/rdc-faltam-direitos-e-transpar%C3%AAncia-nas-minas-de-cobalto/a-68629597
Acessos realizados em 27/12/2024.
[8] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/crr92d41nl5o Acesso realizado em 01/12/2024.
[9] Maiores informações sobre o tema podem ser encontradas em: https://www.bbc.com/mundo/articles/c3w62zx2nn6o
Acesso realizado em 02/12/2024.
[10] Em: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2024/11/25/grupos-agricolas-dos-eua-querem-que-trump-poupe-seus-trabalhadores-da-deportacao.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias
Acesso realizado em 27/11/2024.
[11] Em: https://elpais.com/us/2024-07-13/crimen-e-inmigracion-un-mito-sin-fundamento-que-perdura.html
Acesso realizado em 20/07/2024.
No que diz respeito à desigualdade entre brancos e negros, os dados levantados pela sucursal de Cleveland do Federal Reserve Bank provam que, nos EUA, a discriminação econômica se manteve inalterada ao longo do tempo. Segundo esta repartição do Banco Central, em 2019, a riqueza média das famílias brancas era 6,5 vezes maior do que a média constatada entre as afro-americanas, uma diferença muito semelhante à que existia em 1962. Em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/06/afro-americanos-sofrem-marginalizacao-economica-nos-estados-unidos-ha-geracoes.ghtml Acesso realizado em 30/06/2020.
[12] Em: https://www.bbc.com/news/articles/c0jp4xqx2z3o Acesso realizado em 01/12/2024.
[13] Estas e outras informações sobre o mesmo tema podem ser encontradas em:
- https://www.bbc.com/mundo/articles/cwyxllqjv3lo
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjr4lye5nn0o
Acessos realizados em 02/12/2024.
[14] Estas e outras informações estão disponíveis em:
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/cr5ndllge00o Acessos realizados em 02/10/2024.
[15] Em: https://elpais.com/us/2024-09-25/el-largo-costo-de-la-masiva-deportacion-de-trump-podria-reducir-entre-un-26-y-un-6-el-pib-de-estados-unidos.html Acesso realizado em 01/10/2024.
[16] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/cje0d39zjn0o Acesso realizado em 15/11/2024.
[17] Em: https://br.investing.com/commodities/brent-oil Acesso realizado em 05/12/2024.
[18] Em: https://cincodias.elpais.com/mercados-financieros/2024-11-08/la-victoria-de-trump-sacude-el-mercado-del-petroleo-citi-cree-que-se-abaratara-hasta-un-20.html Acesso realizado em 15/11/2024.
[19] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/cwyxllqjv3lo e em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjr4lye5nn0o
Acessos realizados em 02/12/2024.
[20] Em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/12/21/aprova-projeto-shutdown-eua.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias Acesso realizado em 22/12/2024.
[21] Maiores informações sobre o tema podem ser encontradas em: https://www.bbc.com/news/articles/c3e3p3nx3kno e em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/12/21/aprova-projeto-shutdown-eua.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias Acessos realizados em 28/12/2024.
[22] Em: https://elpais.com/us/economia/2024-11-28/los-aranceles-con-los-que-trump-amenaza-a-mexico-y-canada-costaran-1300-anuales-a-los-hogares-de-estados-unidos.html Acesso realizado em 30/11/2024.
[23] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/ce9gl054d43o e em: https://www.bbc.com/mundo/articles/cjr4wn3y3y3o Acessos realizados em 03/12/2024.
[24] Em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/hande/id/470492/noticia.htm?sequence=1&isAllowed=y
Acesso realizado em 11/12/2024.
[25] Idem.
[26] Em: https://www.bbc.com/mundo/articles/ce9gl054d43o Acesso realizado em 03/12/2024.
[27] Em Micheal Roberts, textos citados.
[28] As porcentagens citadas foram extraídas pelo autor do gráfico publicado na página 4 do estudo divulgado em: https://thenextrecession.wordpress.com/2024/11/04/us-election-part-two-trump-v-harris/ Acesso realizado em 04/12/2024.
[29] Em: https://elpais.com/us/2024-08-05/ser-homeless-puede-ser-ilegal-el-encendido-debate-de-que-hacer-con-los-650000-sin-techo-del-pais.html Acesso realizado em 10/08/2024.
Nenhum comentário:
Postar um comentário