Olá,
Publicamos
a seguir um artigo de Emilio Gennari que procura refletir sobre o “mal do Século
XXI”; a Depressão. Gennari foge ao lugar
comum que trata a depressão como um problema apenas do indivíduo. Suas reflexões
nos levam a perguntar e a considerar seriamente a sua hipótese, segundo a qual,
o sofrimento tem se transformado em fonte de lucro. Haja vista, o título de seu
estudo: “Da alienação à
depressão: caminhos capitalistas da exploração do sofrimento”.
Anotações para uma reflexão sobre o conformismo do “novo”
trabalhador.
Já é parte do senso comum a idéia de que o perfil dos trabalhadores tem
mudado fortemente em relação ao de duas décadas atrás. A solidariedade, a
indignação e o sentimento de coletividade andam em baixa e a atuação dos
dirigentes sindicais tem se tornado cada vez mais difícil.
No texto que segue, apresentamos fragmentos de uma reflexão a ser
aprimorada e aprofundada. Nele, reunimos alguns elementos que permitem avançar
em relação às conclusões a que chegamos na segunda edição do estudo “Da
alienação à depressão – caminhos capitalistas da exploração do sofrimento”, mas
que ainda demandam uma análise cuidadosa. Apesar disso, submetemos este
rascunho à sua apreciação para que possa ajudar a entender melhor o momento de
dificuldade vivido pelos sindicatos e demais movimentos. Boa leitura!
* - * - *
Nos últimos 20 anos, as emoções ganham um lugar de destaque nas
preocupações das forças que buscam moldar um consenso social capaz de levar as
pessoas a melhor se adaptar às novas exigências da exploração. Para percebermos
esta realidade, basta abrir as centenas de anexos que acompanham os e-mails que
recebemos ou ler algum livro de auto-ajuda. Via de regra, seu conteúdo revela
que a análise racional da realidade cede o lugar a impressões e idéias que
dialogam com a sensibilidade das pessoas e oferecem um enfoque sentimental a
aspectos do cotidiano que eram vistos como um obstáculo para a felicidade do
indivíduo. Além da ausência de uma comprovação empírica consistente, chama
atenção o convite a aceitar a realidade como algo natural e não como fruto de
uma construção histórica que se dá a partir de determinados interesses de
classe. A ordem social que serve de pano de fundo parece algo tão cotidiano,
neutro, imparcial e inevitável quanto a lei da gravidade. Lutar contra ela,
passa a ser visto como ilógico e sem sentido, ao passo que conviver com a ordem
para aproveitar o que esta pode oferecer é apontado como um passo necessário
para construir metas individuais que abram os caminhos da afirmação pessoal e
da felicidade possível. O “EU” que se constrói numa mistura de aceitação do
sofrimento e de esforço para superar os próprios limites sabe que tem que
“ralar para subir na vida”, mas, ao mesmo tempo, começa a ler os entraves com
os quais se depara como ameaça ao seu bem-estar emotivo e à auto-estima.
Trata-se, portanto, de algo que passa a ser vivido cada vez mais na intimidade
de um sujeito cujos critérios de análise o dobram sobre si mesmo na exata
medida em que o colocam como início, meio e fim de qualquer ação a ser
empreendida e o tornam incapaz de uma leitura da realidade na qual o “OUTRO”
não seja somente mais um concorrente a derrotar.
A sustentar a percepção de que tudo depende da capacidade de o indivíduo
buscar sua realização e acreditar em suas capacidades, a baixa auto-estima
começa a ser sistematicamente apontada como a origem dos problemas sociais que
antes eram atribuídos a uma situação de injustiça que a sociedade reproduz
pelas relações nela estabelecidas. Desta forma, não são mais os mecanismos
econômicos, políticos, sociais e culturais a gerarem e alimentarem uma
realidade de pobreza, marginalização, discriminação, violência etc, mas sim a
ausência no sujeito de uma atitude imprescindível ao seu desenvolvimento e à
sua afirmação social: a auto-estima. Se, de um lado, a gente não escolhe o
berço onde nasce, de outro, para a intelectualidade a serviço da elite, o que
explica a pobreza em que você se encontra é a ausência de atitudes positivas em
relação ao presente e ao futuro. Se você não acredita em você mesmo, não
valoriza o seu potencial, não se dá ao trabalho de descobrir e pôr pra
funcionar os talentos de que dispõe, então, não há como deixar esse berço
incômodo em que o acaso o fez nascer. Trocado em miúdos, ninguém tem culpa de
você ter nascido pobre, portanto, pare de se queixar, pense positivo, levante a
cabeça, tente novas possibilidades, invista em você mesmo, assuma desafios,
olhe para o novo, pois a responsabilidade por você continuar na condição social
em que se encontra é somente sua!
A dinâmica que fortalece no sujeito esta percepção tem como base o fato
inegável e natural de que qualquer situação é vivenciada de forma diferente por
cada membro de um determinado grupo social. O foco, portanto, não é o grupo e,
menos ainda as relações sociais a que está submetido, mas sempre e somente o
indivíduo que vive de forma particular a realidade na qual está inserido. No
caso da exclusão, por exemplo, vários autores colocam suas origens numa experiência
de alienação, na baixa auto-estima, na passividade, na dependência, na
desorientação, no medo, na raiva, na apatia, na ausência de aspirações, na
falta de perspectivas ou atitudes do sujeito e na incapacidade deste se adaptar
às demandas da realidade. Desta forma, a exclusão não nasceria de precisos
mecanismos de exploração/acumulação no campo da economia e das relações de
propriedade, mas sim nos núcleos da esfera privada que estão na base da
formação de cada um de nós, entre os quais a família ganha, evidentemente, um
papel de destaque. Na medida em que esta célula da vida em sociedade reproduz
em cada membro uma devastação interior dos sentimentos e das emoções que torna
os indivíduos incapazes de se afastarem de um comportamento anti-social, ela passa
a ser responsabilizada pela incapacidade de o sujeito dar a volta por cima. A
família ser pobre, portanto, não é problema nem empecilho para o
desenvolvimento de atitudes positivas na vida dos seus membros desde que, como
peça-chave da vida em sociedade, ela se torne capaz de levá-los a acreditar em
si mesmos, no seu potencial e a lutar para vencer na vida nos moldes narrados,
por exemplo, no filme “Os filhos de Francisco”. Num passe de mágica, os
mecanismos da injustiça social desaparecem deixando aberto o caminho à
supervalorização das atitudes individuais.
Para o desemprego, a explicação não se distancia da que acabamos de
apresentar. Ninguém duvida que esta praga dos tempos atuais provoca efeitos
psicológicos devastadores a ponto de levar o sujeito a um estado depressivo ou
até mesmo a tirar a própria vida. Mas o problema está justamente no movimento
que isola as emoções da realidade do mercado, da exploração, das pressões
sociais e leva a ver os distúrbios psíquicos como resultado de emoções não trabalhadas
que, por atingirem grupos sociais significativos, justificariam o fato de
colocá-las na origem dos fenômenos antes desconhecidos. Na medida em que o
indivíduo não sabe lidar com os sentimentos negativos que experimenta diante do
desligamento da empresa, a demissão gera, involuntariamente, uma personalidade
potencialmente destrutiva, responsável, em última análise, pelo mal-estar
individual e social num processo que se alimentaria, portanto, não a partir de
condições materiais, objetivas, do mercado e das necessidades da exploração,
mas de atitudes individuais, oriundas de pessoas descontroladas e despreparadas
que deixaram de acreditar em si mesmas e em seu potencial para poder recomeçar.
A passagem das motivações sociais e econômicas para os problemas da
personalidade como explicação que tende a se generalizar, tranquiliza a elite,
permite-lhe continuar sua obra de embrutecimento das maiorias em função das
metas que se propõe e lhe possibilita matar dois coelhos com um único golpe: de
um lado, o substrato econômico, político, social e cultural acaba escondido
pelo biombo de uma vontade do sujeito que tudo explica, tudo pode, tudo tem
condições de realizar. De outro, a luta política que apontava à necessidade de
superar a desigualdade econômica, a discriminação, a marginalização através de
uma nova ordem social é substituída pela decisão do indivíduo de dar a volta
por cima. Vitima de uma situação pela qual se supõe que ninguém pode ser
culpado (pois, como se diz, “as coisas são assim mesmo”, “é o mercado”, etc.),
o “EU” só não conseguiria se reerguer e optaria por comportamentos/atitudes
aberrantes apenas por um desvio de conduta alicerçado na incapacidade de
administrar as emoções negativas oriundas da situação em que se encontra.
Graças à mágica da presença/ausência de auto-estima, a elite, que fez, e
continua produzindo, os estragos com sua exploração da classe trabalhadora,
deixa o banco dos réus para assumir o papel de bem-feitora daqueles que,
através de suas ações de “responsabilidade social” buscam um lugar onde se
refugiar, ao passo que a vítima é relegada ao banco dos réus, pois, nesta
lógica perversa, a ordem social não pode ser condenada por ser “natural” e
comum a todos ao passo que só não sai do buraco quem não quer.
Para o novo conformismo, querer não é apenas poder, mas sim a atitude
imprescindível para levantar, recomeçar, acreditar no sucesso, se afirmar e
subir novos degraus da pirâmide social. Quando isso não ocorre, então, é porque
o núcleo de onde o sujeito saiu está doente, desenvolve atitudes, relações,
idéias, valores e formas de comportamento consideradas “tóxicas” para o futuro
e o bem-estar individual e coletivo. Por outro lado, esta percepção da
realidade faz com que o indivíduo alheio a este núcleo não se sinta responsável
pelo que ocorre na sociedade. De fato, eu que nasci numa “boa” família como
posso ter algo a ver com a família da favela da qual saiu “esse fulaninho aí”?
Enquanto sujeito, o que posso fazer é agir para me resguardar de uma eventual
ameaça, buscar me proteger e, obviamente, pedir que alguém faça valer meus
direitos caso venha a ser atingido por uma situação desagradável. Se, como
indivíduo, não tenho a menor responsabilidade na produção/reprodução das
relações sociais do ambiente em que vivo, então o meu papel deve se limitar à
cobrança dos meus direitos, de preferência através de um profissional
competente, capaz ao menos de obter monetariamente a compensação pelos estragos
produzidos na minha auto-estima e no estado de espírito forçado a passar por certo
período de sofrimento.
Analisando agora o âmbito das relações de trabalho à luz desta
perspectiva, é curioso perceber que as vítimas de assédio moral, por exemplo,
não percebem que o próprio assédio só é possível na exata medida de sua
submissão. Ou seja, além do inegável papel do assediador, encontramos a
ausência de ação de um indivíduo ou grupo que deixou de ser AUTOR, de escrever
seu roteiro de relações e de batalhar por ele e que, diante do aparecimento de
distúrbios psíquicos, limita-se, no máximo, a cobrar na justiça a reparação dos
danos morais sofridos. Longe de perceber que sua omissão é um dos elementos
fundamentais para o assédio ganhar asas, sua postura continua se recusando a
agir diretamente no âmbito do trabalho. O mais comum é que culpe o
chefe/supervisor mau caráter e transfira para o advogado a cobrança uma
compensação monetária. Esta opção não só confirma aos patrões que o crime
compensa (na medida em que, no Brasil, não mais de 10% dos injustiçados buscam
recuperar seus direitos na justiça, sendo que seis deles farão acordo antes do
encerramento do processo), mas, sobretudo reafirma na prática que a realidade
da qual é vítima é o resultado de forças externas poderosas e incontroláveis,
nunca de sua omissão.
Neste processo, o fato de as desgraças poderem ser sempre atribuídas aos
OUTROS, e nunca à falta de ação pessoal, permite aos patrões encolher cada vez
mais o campo de autonomia do sujeito e dificultar sobremaneira a preparação de
uma resposta coletiva na medida em que nem o indivíduo, nem o grupo percebem
que as coisas só estão assim porque eles deixam de agir ou atuam somente numa
determinada direção. Como funcionário, preciso sempre de alguém para atribuir a
culpa da minha condição, pois encontrar um culpado me exime de assumir as
responsabilidades que tenho nos acontecimentos e permite atribuir os meus
problemas a uma causa externa, sobre a qual, aparentemente, não há o que possa
fazer. O que, por sua vez, só reafirma que posso apenas cuidar de mim e nada
mais.
Vale ressaltar que as queixas e a busca de um culpado não são
criticáveis enquanto tais. Na nossa sociedade são muitíssimos os problemas dos
quais se queixar e maior ainda é o número de entidades/pessoas contras as quais
apontar o dedo ao formular acusações. A busca de um culpado, porém, torna-se um
problema quando o indivíduo se livra de todo senso de responsabilidade pela
própria condição e pela degradação das relações sociais ao seu redor. Todos
vivemos em circunstâncias sobre as quais temos pouco controle, mas se renunciamos
à possibilidade de exercer este mínimo de influência sobre a orientação da vida
coletiva corremos o risco de depreciar o sentido da nossa humanidade e
tornarmo-nos cada vez mais vítimas de nossa própria omissão.
Isso explica porque, como indivíduo, detesto um sindicato que aponte
minhas responsabilidades e aumente minha insegurança ao me colocar frente a
frente com a realidade dos fatos. Tudo o que preciso é que forneça um bom
advogado, lute por uma justiça ágil, coloque processos de cobrança alheios a
qualquer risco para que, reparado o dano sofrido, “EU” possa
recuperar minha auto-estima, ser reconhecido e retomar o meu caminho. Como
qualquer ser humano, eu, trabalhador da categoria, gosto de acreditar em algo
ou alguém porque isso me faz sentir confortável e amparado, e não de me ver
como soldado na linha de frente, diante de um inimigo poderoso e com a estranha
sensação de virar alvo ao menor deslize que venha cometer. O que quero mesmo é
que seja possível ter tudo, ao mesmo tempo, agora e, obviamente, sem riscos! É
como se, ao desejar um filho, a condição para iniciar a gravidez fosse a de não
lidar com enjôos, não ficar com dores nas costas, não ganhar peso, nem ter
aqueles efeitos desagradáveis que costumam aparecer neste período e, obviamente,
dar à luz uma criança saudável que não dê trabalho e nem faça perder uma única
noite de sono. A esta altura, o bom senso aconselharia comprar um boneco, mas,
para não desagradar, não são poucas as vezes em que se opta por passar a mão na
cabeça, por entender e por deixar de colocar as pessoas frente a frente com
suas responsabilidades históricas.
Para agradar, para ser vistas como representativas e combativas ou,
simplesmente para não correr riscos de perder associados, as direções sindicais
deixam freqüentemente de tratar os trabalhadores como adultos e enveredam por
formas de paternalismo tão nefastas quanto às que eram marcada pelo
assistencialismo dos velhos pelegos. Por isso, até a que ponto a ação sindical
consegue construir a dúvida na cabeça de seus representados ao explorar a via
do sentimento para recolocar a razão diante da realidade das relações sociais
que escapa da percepção do senso comum? Afinal, sabemos “incomodar” o
trabalhador ao colocá-lo diante de suas responsabilidades históricas para
consigo mesmo e os demais ou a postura do sindicato acaba favorecendo o
processo que descrevemos com atitudes e serviços que compensam parcialmente a
falta de atuação coletiva, acabam reafirmando as justificativas individuais
para a omissão e ocultando o desenvolvimento dos mecanismos de exploração? E,
neste processo, estamos conseguindo nos fazer entender ou nossos interlocutores
apenas balançam a cabeça à espera de que, terminado nosso discurso, possam
voltar a seus afazeres com a sensação de ter perdido o próprio tempo?
* - * - *
Como já dissemos, o estado emotivo das pessoas torna-se o elemento-chave
para definir sua identidade, seus anseios, seus sonhos, enfim, sua realidade.
Neste processo, a gestão das emoções é a maneira mais fácil de guiar o
comportamento individual e coletivo, por dispensar a realidade material na qual
o sujeito se encontra, fazendo com que tudo dependa de um simples esforço de
vontade. Não por acaso o termo auto-estima é usado para indicar o sentir-se bem
consigo mesmo, o respeito para si próprio, a confiança em si mesmo e nas
próprias capacidades, o que faz da auto-estima a expressão de um atitude
serena, confiante e um estado de espírito desejável para quem deseja se tornar
um vencedor, apesar dos limites de sua condição econômica e social.
Mas por que deveríamos pensar que problemas sociais tão complexos como
os que o Brasil enfrenta podem ser causados por um único fator, ou seja, o
sentir-se mais ou menos bem consigo mesmo?
Se o que caracteriza a identidade do indivíduo é a maneira pela qual ele
se sente em relação a si mesmo (o que ocorre através de suas emoções), então
todas as iniciativas que procuram promover ou melhorar esta situação de
bem-estar não encontram dificuldades em serem aceitas, assimiladas e vistas
como naturais.
Mas como isso é possível?
A tendência a reduzir uma realidade complexa a um problema de
auto-estima não se baseia em dados científicos, mas sim em elementos que
confirmam pontualmente as intuições e pressupostos do indivíduo. Esta postura
tem sido fortalecida pela progressiva valorização do sentir em relação ao
raciocínio lógico, movimento que dispensa uma investigação científica e
racional. O “caso” individual é separado das condições materiais que permitiram
o seu desenvolvimento/sucesso e passa a ser apresentado como modelo a ser
seguido por quem partilha o mesmo estado de espírito. Um prato cheio para a
lógica formal do senso comum pela qual o fato de uma pessoa em cada mil ter
conseguido dar a volta por cima é mais que suficiente para cobrar dos 999
restantes a suposta falta de compromisso que gerou o seu fracasso. Trata-se de
algo próximo ao que ocorre com quem joga na loteria. No verso do bilhete está o
número de possibilidades reais de ganhar o prêmio almejado, mas para o jogador
basta saber que alguém, ao fazer uma jogada mínima, pôs a mão numa bolada de
dinheiro. Por isso, contrariando qualquer dado empírico, ele sente que pode
ganhar.
O fato de a auto-estima ser apontada como chave de leitura para explicar
situações sociais complexas não tem como base as evidências que emergem da
realidade, mas sim uma idéia de auto-estima que, por ser vaga e ter um sentido
flutuante, se adapta a qualquer circunstância, tornando-se um mito que pode ser
facilmente incorporado na visão de mundo do povo simples e por ele repetido à
exaustão como explicação racional de sua situação. Se querer é poder, então eu
não quis o suficiente, não me esforcei o suficiente, não me preparei como devia
ou desanimei justo quando era necessário acreditar e apostar todas as fichas. A
causa dos problemas pessoais, vista como tendo origem em situações estritamente
individuais, tem assim sua percepção confirmada em cada fracasso do sujeito. O
“EU” sabia que a realidade era o que era. Um erro de leitura, adaptação e intervenção
só pode ser atribuído ao mesmo “EU” num círculo vicioso que, ao deixar o
indivíduo como responsável único pelo que lhe acontece, o enaltece ou faz
precipitar proporcionalmente aos seus sucessos ou fracassos.
O fascínio da auto-estima se deve também à convicção do seu poder quase
mágico ou dos seus efeitos milagrosos. Como vimos, é tida como elemento-chave
para o desenvolvimento positivo do indivíduo, para o sucesso futuro da
inteligência e do talento, tornando-se caminho obrigatório para a felicidade.
Uma espécie de vacina contra os males que afligem a sociedade e de estímulo
necessário para subir na vida.
Mas isso não é tudo. Sabemos que é somente após uma análise criteriosa
que tomamos consciência de quanto a globalização, o mercado, as relações de
trabalho e de propriedade determinam nosso comportamento e influenciam as ações
que empreendemos. Estes elementos do dia-a-dia se apresentam diante de nós de
forma tão natural que, para a maior parte das pessoas, acabam desaparecendo
atrás da convicção de que suas ações e sentimentos vêm de algo que está apenas
dentro delas, daí que o estresse, a crise dos quarenta, uma situação de
esgotamento físico e mental, etc, são remetidas a um comportamento individual,
fruto de uma forma de ver e dar sentido à vida produzido pela cabeça do
indivíduo e, portanto, visto como algo privado e solitário. Esta percepção
superficial do cotidiano da história faz perder a capacidade de perceber o
amplo leque de elementos que partilhamos com os demais e as forças sociais que
influenciam nossas decisões.
Nesta situação, não é de estranhar que seja difícil dar um sentido à
própria existência. O isolamento leva o indivíduo a acreditar que as
dificuldades de encontrar um sentido para a vida sejam oriundas de um problema
interior, próprio de cada um. De conseqüência, não estaríamos diante de algo
que tem relação com a incapacidade de a sociedade criar laços comuns de sentido
através de uma identidade coletiva e um sentimento de solidariedade capazes de
servir de rede de proteção aos seus membros. O que, por sinal, já ofereceu
resultados surpreendentes até mesmo em situações tão traumáticas quanto as de
uma guerra. (1)
O mal-estar que resulta desta sensação de vazio passa assim a ser vivido
como problema individual, de natureza fundamentalmente emotiva. O mundo
interior do sujeito reafirma-se como o âmbito no qual se acredita devem ser
resolvidos os problemas da sociedade, pois se supõe que sem um indivíduo que
acredita em si mesmo, dificilmente teremos a possibilidade de impedir um
comportamento anti-social e construir um cidadão dedicado exclusivamente a
fazer o “seu” dever, a cumprir a “sua” parte, como se para o bem comum bastasse
a simples somatória dos esforços individuais propensos a fazer o que é
considerado correto, bom, justo e louvável pelo senso comum moldado de acordo
com os interesses dominantes.
Mas como é possível que isso “pegue” em meio a uma realidade na qual a
maioria da população continua amargando uma situação de marginalização?
Mais uma vez, o campo das emoções oferece um caminho viável para
fortalecer a idéia de que o individuo deve se tornar paladino de si mesmo. O
“EU” deve focar suas energias em sentir-se bem consigo mesmo, pois este
bem-estar é uma condição virtuosa indispensável para as suas realizações. O que
implica em colocar em segundo plano os comportamentos, as preocupações e as
atitudes que distraem o sujeito das exigências e da busca de sua realização
pessoal.
Neste sentido, se você está com raiva de alguém ou, ao contrário, se
apaixona por uma pessoa, no fundo, você está se amarrando ao outro. Quanto mais
este vínculo se fortalece, mais o sujeito estaria impedido de crescer e
progredir no plano emotivo na medida em que estes sentimentos, ainda que
opostos, estariam afastando-o da preocupação central que é sua realização
pessoal. Para alguns autores, quando você se compromete com algo externo a você
mesmo (a felicidade do parceiro/a, o tratamento de pais doentes, a adesão a uma
causa social, etc.), passa a ser dominado por um processo negativo pelo qual a
sua felicidade depende de algo que não é apenas você mesmo.
O compromisso com o sofrimento ou a necessidade do outro, base para a
formação do sentimento de coletividade, passa a ser visto como falsa
generosidade ou dependência, fruto de uma consciência que ainda se preocupa em
apaziguar sentimentos de culpa e de vergonha vindos de relações vividas em
outras épocas e, portanto, ultrapassadas e prejudiciais para o indivíduo da
modernidade. Quem se dedica corpo e alma a ajudar os demais ou se envolve
profundamente numa causa social estaria apenas descuidando de si mesmo, das
próprias exigências e, obviamente, dos elementos emocionais que poderiam lhe
proporcionar algo bem mais sólido e satisfatório. Ou seja, para os intelectuais
a serviço do novo conformismo social, é somente quando pensamos que podemos ser
felizes sem o outro que deixamos de nos comportar como tóxico-dependentes que
usam os vínculos e a relação com os demais como dose diária da droga predileta
para atingir instantes fugazes de felicidade e satisfação.
Nunca foi mistério que o envolvimento emotivo pode provocar sofrimento,
o que é potencialmente prejudicial ao equilíbrio emocional do indivíduo. Mas,
na concepção que acabamos de apresentar, a relação com os demais passa a ser
caracterizada pelo medo e por uma profunda desconfiança de que, mais dias menos
dias, é inevitável que as pessoas ao nosso redor venham a nos decepcionar. Daí
a necessidade de o sujeito ser, e não apenas se sentir, totalmente independente
e autônomo, sem vínculos e sem outra bússola que não seja o investir em si
mesmo. O problema é que quanto mais diminui a confiança nas relações pessoais,
mais cresce a necessidade de recorrer à ajuda profissional de um terapeuta, de
um psicólogo ou de alguém com quem sentimos poder desabafar. A erosão do
envolvimento, da solidariedade, do companheirismo e da amizade gratuita com os
demais não aumenta a independência do indivíduo, mas, simplesmente, leva à
substituição de uma suposta dependência por outra bem mais real e invisível.
Sem fornecer um guia para a conquista da solidariedade, a terapia (nas mais
diversas formas em que o sujeito tem acesso a ela) busca dar sentido à
experiência de falta de solidariedade. Na ausência deste elemento
imprescindível à vida diária, celebra o culto do “EU” como fim em si mesmo e
reduz as demandas coletivas à somatória de problemas pessoais. Mais uma vez, ao
centrar o olhar no individuo, este é distraído dos fatores econômicos,
políticos, sociais, culturais, ambientais, etc. que tornam objetivamente
difícil e cansativa a vida moderna. Mas este mesmo fato é devidamente ocultado
pelo fato de que o terapeuta/psicólogo/confidente está ao seu inteiro dispor e
se foca no “eu” a ser reconstruído, o que, por sua vez, reafirma a lógica
dominante do resgate da auto-estima e continua mantendo o sujeito como elemento
a ser indiscutivelmente colocado no centro das atenções.
Um exemplo disso é o aconselhamento/acompanhamento psicológico que
algumas empresas oferecem aos funcionários que acabam de ser demitidos. De
início, era denunciado como uma tentativa de conter a reação dos que acabavam
de perder seu emprego, convencendo-os a adaptar-se a uma existência precária. A
partir dos anos 90, porém, esta medida passa a ganhar apoio de várias empresas
e sindicatos diante dos suicídios que ocorrem após as demissões e que, de
alguma forma, denunciam a desumanidade dos processos em curso. O fato é que as
dinâmicas desses encontros trazem a idéia de que a realidade esta dada, não há
o que fazer a não ser se conformar/aceitar, pois é fruto das relações de
mercado que ninguém pode controlar e deter e, portanto, o sujeito estaria
diante de algo inevitável/natural que atinge toda a sociedade. O “boi manso”,
indignado pelo desemprego, pode se rebelar e denunciar a injustiça de várias
formas, inclusive através do suicídio. A intervenção de caráter terapêutico
serve de “sossega-leão” para naturalizar o que despertava indignação. O peão
pode voltar a ser boi manso, resignado diante de uma realidade que nega o que
já foi, mas com sua auto-estima recuperada tanto quanto basta para acreditar
que pode enfrentar, sozinho, uma forma mais precária de ganhar a vida e usá-la
como meio para subir novos degraus de reconhecimento social.
Como já vimos, ao contrário do entendimento pelo qual, no passado, se
dizia que “ninguém pode ser feliz sozinho”, hoje se afirma que qualquer vínculo
mais forte com o mundo ao nosso redor é um freio à busca do que nos faz
felizes. Ou seja, para que o sujeito possa se realizar, se faz necessário que o
“EU” incorpore como regra de vida a busca incessante de uma felicidade completa
graças a um esforço exclusivamente centrado em si mesmo. Por isso a
responsabilidade primordial do indivíduo é a que ele desenvolve em relação a si
próprio. Assim como o beija-flor procura retirar de cada flor o que é
necessário para o seu sustento sem criar vínculos com as plantas que lhe servem
de alimento, o indivíduo tem que se relacionar com os demais com a única
preocupação de alimentar sua realização pessoal através das migalhas de
felicidade que esta pode lhe proporcionar.
O “EU”, assim construído, acredita poder se realizar na medida em que
vai se livrando do que soa a obrigação/limite até mesmo em relação ao círculo
de pessoas mais íntimo com as quais convive. O primeiro passo nesta direção vem
da eliminação de todo sentimento de culpa ou de vergonha. Visto como incômodo e
desagradável, mas também como reconhecimento de responsabilidades que o
indivíduo não cumpriu junto à coletividade, este sentimento indicava a
consciência do sujeito em relação a expectativas morais do coletivo a que
pertence, a presença de idéias de certo e errado, além de constituir um
elemento importante no processo de socialização e de reflexão sobre a relação
entre o sujeito e o grupo do qual faz parte.
Hoje, os sentimentos de culpa e de vergonha são apresentados como algo
exclusivamente negativo por induzir o indivíduo a se submeter a exigências
externas que nada podem ter a ver com seu caminho de realização pessoal. A
culpa e a vergonha não seriam apenas causa de infelicidade, mas absorveriam
energias emotivas que, no lugar de serem empregadas na auto-realização, acabam
direcionadas a satisfazer demandas externas que podem não estar em sintonia com
os rumos que o individuo definiu para si mesmo. Por isso, longe de valorizar os
momentos de sofrimentos produzidos por estes sentimentos rumo à necessária
responsabilidade do sujeito com o mundo em volta dele, a culpa e a vergonha
tendem a ser lidas como problemas comportamentais oriundos de distúrbios da
personalidade.
Neste contexto, a relação com os demais passa ser vista apenas como a
partilha momentânea de um sentimento que cria um vínculo descomprometido de
qualquer intervenção mais séria com quem está ao nosso lado. Um bom exemplo
disso nos é oferecido pela atitude dos políticos que visitam populações
atingidas por catástrofes naturais. Suas declarações costumam trazer frase como
“sinto a sua dor”, “partilho o seu sofrimento”, “estou com vocês neste momento
de dificuldade”, pronunciadas como prova de compromisso de quem sente os mesmos
sentimentos dos atingidos pelos desastres. Assim como o camaleão se adapta a
qualquer ambiente para escapar dos predadores, não há político que não use o
boné, não vista a camisa, apele ao seu histórico (“eu também sou nordestino,
retirante...”), enfim deixe de se identificar com os presentes como forma de
criar a empatia que a situação demanda e de fazer nascer nas pessoas a sensação
de estarem sendo entendidas.
Para a elite, basta isso para tentar superar sem sustos uma situação de
desgaste ou de perigo para a reafirmação da própria representatividade, pois,
em ambientes despolitizados e de falta de envolvimento na luta social, o
interesse pelas emoções é freqüentemente considerado um indicador de uma
maneira de pensar iluminada e um compromisso implícito com o interesse
coletivo. Ninguém vai lembrar dos desmandos, das falcatruas, das
irresponsabilidades e das medidas que poderiam ter evitado o pior e cuja
ausência continua projetando um futuro sombrio, pois isso é parte de um real
que compromete o desejo de realização do político enquadrado nos moldes
dominantes. Quem lembrar disso publicamente para formular uma crítica
contundente corre o risco de ser repreendido pelos presentes na medida em que o
luto convoca a solidariedade esquecida e o momento é visto como de renovação
das condições subjetivas para dar a volta por cima. E o que importa é
justamente o momento, o instante, o sentimento, não a realidade dos fatos que,
por sinal, revela sentimentos e posturas bem distantes do que é revelado nas
frases de ocasião. Para afugentar posições contrárias baseadas nos fatos,
sempre que alguém conquista um lugar de destaque graças a suas virtudes e
compromisso público, sua vida privada é investigada de forma tão invasiva que é
inevitável que venha descoberto algum ponto negativo, sistematicamente usado
para desqualificar o mérito deste sujeito que ousou se afastar do que era
esperado. Ao fazer isso, a elite busca apenas mostrar que, no fundo, o que
parecia interesse público não passa de uma fachada que veio abaixo diante de
uma investigação que coloca em dúvida a seriedade das realizações passadas
sobre as quais paira agora a sensação de que tudo não passava de uma forma de
acobertar algo errado e que a mídia fez bem a desmascarar.
Ainda que por caminhos tortuosos, podemos recuperar aqui um aspecto
esquecido da comunicação sindical que, via de regra, percorre o caminho da
racionalidade sem se preocupar em dar sentido às vontades dispersas da base
numa leitura e co-participação do sentimento coletivo que estas expressam. Se,
de um lado, é verdade que a solidariedade mostra sua fragilidade ao precisar de
uma situação extrema para se manifestar, é também verdade que, como dirigentes
sindicais, não dá pra aproveitar o momento de dificuldade para uma espécie de
revanche no estilo do “bem feito! Nós já havíamos alertado e vocês não nos
deram ouvidos!”. Ainda que o gostinho da vingança ou do “eu não disse?” abram a
possibilidade de “dar o troco a quem não nos ouve”, esse tipo de intervenção
não só não cria empatia, como impede a abertura de um canal de comunicação com
a base.
Sem a partilha do sentimento para abrir os ouvidos e dialogar com as
emoções coletivas, a mais lúcida exposição racional de motivos e razões corre o
risco de não ter o menor efeito. Dado esse passo, estabelecido o contato,
estreitada a conexão pelo caminho do sentimento, pode-se começar a ponderar o
como e o porquê dos elementos em jogo, sem esquecer de apontar o onde queremos
chegar para, em seguida, mostrar concretamente qual é o primeiro passo a ser
dado. Do contrário, a mudança/intervenção projetada vai cair no vazio e elevar
a sensação de insegurança na exata medida em que é percebida como projetada
para um futuro incerto no qual o processo de intervenção permanece indefinido,
sem um projeto consistente que parta da realidade vivida pelo coletivo e
incorpore suas preocupações. A idéia precisa se fazer projeto para que possa
encontrar no “nós” a ser construído as respostas que cada trabalhador deseja
ver espelhadas para restabelecer os sentimentos feridos. Não se trata de
despolitizar o debate com falsos sentimentalismos, nem muito menos de enganar
as pessoas com ilusões vazias ou apelos estéreis à auto-estima e à
individualidade, mas sim de dialogar com adultos que precisam ver como e porque
seu anseio pessoal só é possível na medida em que suas vontades se fundem num
coletivo a ser construído e no qual cada um terá que assumir a responsabilidade
pelo andar da carruagem com o melhor de suas energias.
Mas por que é tão difícil reconstruir o sentimento de coletividade sem o
qual não há ação coletiva possível?
A resposta é o resultado de uma somatória de elementos. De um lado, a
globalização e os caminhos da reestruturação produtiva têm colocado os
trabalhadores diante de situações apresentadas como a única alternativa viável.
“Ou é isso, ou não dá pra continuar”, “não há outro jeito”, “é assim no mundo
inteiro”. Na ausência de uma crítica ideológica e de um processo de mobilização
à altura da situação, as pessoas tendem a acreditar que, no fundo, estão diante
de algo natural, próprio do desenvolvimento social mundial e, portanto, não há
como se rebelar a algo que afirma uma realidade tão presente e cotidiana que só
podemos conviver com ela, mas que, aparentemente, não há como rejeitar. O
problema é que se não há alternativas, qualquer debate torna-se vazio e um
exercício inútil de busca do impossível. Diante desta postura, só resta ao
indivíduo aceitar fazer a própria parte no caminho de sua realização pessoal e
manutenção da auto-estima, na medida em que o esforço exigido consolida a
superação de um limite individual e a adesão a um novo patamar de valores,
idéias e formas de comportamento que dialoga com suas ambições e sonhos de
consumo.
Ao mesmo tempo, porém, se não há alternativas significa que você,
indivíduo, é impotente diante da realidade, incapaz de buscar ou vislumbrar
algo diferente e, sem perceber, o “EU” acaba se convencendo de que não é
possível virar o jogo, mas tão somente se limitar à busca do prejuízo menor,
sem perceber os interesses de classe que vão se beneficiar com as posturas a
serem originadas por esta convicção. Por sua vez, a afirmação de que “é
possível fazer de outro jeito” demanda uma vontade coletiva a ser construída e
não apenas palavras de ordem que acreditam somar desejos individuais dispersos.
Mas o que conforta a elite quanto às dificuldades desse processo se realizar é
justamente a convicção assumida pelo sujeito de que o caminho para a felicidade
demanda a exclusão dos demais e um olhar centrado em suas demandas
particulares. O resultado: a lógica das capivaras que, ao se separar do grupo
para cuidar de si, viram comida de onça... O fato de perceber que chegou a
minha hora de ser comido, assusta, mas, em geral, não acorda quem aderiu a esta
lógica. Pois, tudo o que deu errado volta a ser atribuído a uma fragilidade
pessoal e não a um sistema perverso que busca se reproduzir através de uma
servidão voluntária cega a tudo o que pode distrair o “EU” de seus projetos de
afirmação social.
Como chegamos a este ponto?
Algumas pistas permitem pensar e compreender o emaranhado de situações
que, ao se acumular, vêm permitindo e fortalecendo as dimensões emotivas com
base nas quais o indivíduo interpreta e se posiciona diante do cotidiano.
1. A corrosão dos mecanismos tradicionais/culturais (nos quais se inclui
tanto a religião como o sentimento de comunidade e identidade coletiva) pelos
quais as pessoas davam sentido à própria vida e se sentiam conectadas com uma
maneira de agir socialmente aceita, ao mesmo tempo em que estes elementos
ofereciam ao individuo um objetivo mais amplo no interior do qual se inserir.
Sem essa identidade coletiva, feita de valores, crenças, vivências e formas de
comportamento (e tendo, em contrapartida, o vazio atual de responsabilidade
coletiva), retira-se um elemento de coesão que, ao desgastar a solidariedade e
o compromisso social, acelera o passo da individualização. Um dos exemplos
típicos desta realidade é o processo de urbanização da população rural. Ao sair
da forte identidade coletiva do povoado de origem e chegar na cidade grande
onde ninguém conhece ninguém e nem quer saber de ninguém, o sujeito perde todas
as suas referências de vida. Com o afastamento da própria comunidade, os laços
se enfraquecem, o isolamento social aumenta, a vida privada e as relações
pessoais se tornam mais difíceis. À luta pela sobrevivência material
acrescenta-se a necessidade de um duro embate com os demais para obter atenção
e aceitação, o que só faz crescer a ansiedade e a sensação de incerteza.
2. O esvaziamento do papel das ideologias e das causas coletivas cujas
idéias e valores eram capazes de motivar e conquistar o compromisso do sujeito
levando-o a se sacrificar em nome de uma causa e a ser autor da cena social na
medida em que era constantemente chamado a assumir suas responsabilidades pelos
acontecimentos que se preparavam e a intervir para alterar os rumos da vida em
sociedade.
3. O processo de racionalização econômica e de reestruturação produtiva
que subordina o indivíduo a forças poderosas, aparentemente invencíveis e sobre
as quais o sujeito não exerce nenhum controle imediato. O choque provocado
pelas mudanças planta um forte sentimento de impotência a ponto de convencer o
“EU” de que não pode fazer nada, de que sua sensação de vulnerabilidade é algo
natural e que, portanto, longe do optar pelo caminho aparentemente irracional
da rebeldia, o melhor a fazer é mergulhar de cabeça nas novas demandas do
mercado de trabalho. Afinal, o acesso aos bens que definirão sua própria sobrevivência
e afirmação social dependem desta capacidade de se adaptar constantemente para
garantir a própria empregabilidade num mundo em constante mudança. Ao partir da
sensação de que é impossível domar os mecanismos de mercado, o jeito é se
adaptar a eles com a flexibilidade e a agilidade de quem deixa progressivamente
de ser ele mesmo para assumir uma identidade que vincula seu “EU” às mutantes e
caprichosas exigências da acumulação. Em aberta oposição ao que parece esmagar
e aniquilar o indivíduo, a única saída que ele ainda consegue vislumbrar é a
das emoções na medida em que a auto-estima vinculada ao sucesso no trabalho e
aos momentos de amor, prazer, paixão, medo, raiva, dedicação exaustiva, etc., o
tornam consciente de estar vivo, fazem-lhe sentir o sangue correr pelas veias e
proporcionam centelhas de humanidade e sentido para uma vida sempre marcada
pela incerteza. O raciocínio frio cede o lugar aos sentimentos e à
autoconfiança que, como vimos, impedem que se tire o olhar do próprio umbigo.
4. Na medida em que cresce a sensação de impotência e de
vulnerabilidade, a percepção da própria solidão aumenta na mesma proporção.
Diante da presença cada vez mais invasiva do mercado e sem um coletivo que
ajude a encontrar um sentido diferente para a rotina diária, o cansaço e o
estresse abrem a porta dos distúrbios psíquicos. Oriundo do embate entre o
processo de afirmação individual, a solidão, os sonhos de consumo e os efeitos
da servidão voluntária à qual o sujeito se entrega por ver nela uma etapa
necessária de sua realização, o adoecimento passe a ser a conseqüência mais
óbvia e um convite à reflexão sobre a própria vida. Mas para o “EU” construído
na forma que descrevemos acima, a condição de “doente” torna-se sinônimo de “me
deixe em paz”, “não me cobre”, “você não vê que já estou pra baixo?”. Além de
manter a visão acrítica em relação à realidade que o fez adoecer, o indivíduo
acredita que sua nova situação se deve a uma fragilidade desconhecida, a um
deslize pelo qual o “EU” acredita ter cedido às pressões do ambiente por falta
de estrutura pessoal diante do que, no seu entender, não passaria de algo
natural, próprio da vida moderna.
Longe de interpretar o sofrimento como convite a abrir o campo de visão
do sujeito diante do mundo externo, os eventos adversos começam a ser recebidos
como fonte de trauma num leque cada vez maior de experiências e situações que
antes não passariam de simples dificuldades. Diante de tudo o que fere sua
sensibilidade e auto-estima, o indivíduo se vê na clara impossibilidade de se
afirmar como AUTOR da vida coletiva na qual está inserido. Na medida em que
eventos banais são definidos como traumatizantes pelo sujeito, aumenta nele a
sensação de impotência. A idéia de trauma, ou seja, de ser dominado por uma
força que aniquila e impede de agir, torna-se chave de interpretação das marcas
deixadas no sujeito pelas adversidades e alimenta no imaginário coletivo uma
sensação de profundo fatalismo frente a uma realidade imprevisível e violenta
em seus efeitos sobre as emoções e os sentimentos. Aos poucos, este conjunto de
percepções reafirma a posição de potencial fragilidade do indivíduo que passa a
justificar sua incapacidade de reagir aos golpes das adversidades. Na verdade,
o que o “EU” não consegue perceber é que suas próprias estratégias de reação e
contra-ataque foram sendo corroídas e colocadas em cheque pela sensação de
vulnerabilidade que tem de si mesmo e que tendem cada vez mais a imobilizá-lo
diante do que ganha progressivamente a forma de uma realidade intransponível.
Ao atingir este ponto na percepção da própria fragilidade a idéia de ser
“AUTOR” da vida coletiva não tem a menor chance de se sustentar. A
possibilidade de fazer uma besteira cresce na mesma proporção em que o sujeito
vê a vida escorrer por entre os dedos e, a esta altura, é bastante comum
encontrarmos expressões que absolvem o próprio indivíduo das responsabilidades
que ele tem nos acontecimentos em que está envolvido. Desse jeito, ninguém é
pecador, mas todos são vítimas de um mundo frente ao qual já abdicaram de
qualquer possibilidade de controle.
Entre as formas atuais pelas quais se reafirma a relação entre a
vulnerabilidade individual e a impossibilidade de ação positiva do sujeito
encontramos a idéia de “situação de risco” que cristaliza na linguagem do
dia-a-dia a sensação de que o sujeito está permanentemente na corda bamba.
Situação de risco é diferente de “correr um risco”. A segunda formulação parte
do pressuposto de que o sujeito pode sim fazer escolhas e decidir experimentar
o desconhecido, nadar contra a correnteza e desvendar o que permanece oculto
aos olhos dos demais. Trata-se, portanto de um sujeito ativo que, com suas
ações, busca obter resultados positivos para si mesmo e mudar as
circunstâncias. Por sua vez, a “situação de risco” inverte a relação entre o
mundo e a experiência, entregando à pessoa um papel passivo e dependente que só
se torna ativo no sentido da defesa e da proteção para reduzir sua
vulnerabilidade. Situação de risco não diz respeito ao que você faz, mas sim ao
que você é: vítima das circunstâncias. É um atestado de impotência, uma
objetivação da vulnerabilidade individual. Na medida em que a expressão
“situação de risco” atinge os mais variados âmbitos da vida em sociedade, acaba
se tornando um atributo intrínseco do indivíduo. A idéia de que alguém se
encontre numa situação de risco implica na autonomia dos perigos que estão
diante do sujeito e traz uma inversão de papéis: o sujeito autônomo que age
sobre o mundo transforma-se em objeto que padece da ação deste mesmo mundo, o
que aniquila a dinâmica de interação sujeito-mundo (faço e me faz na mesma
proporção) e a própria idéia de capacidade de transformar o mundo em volta
dele. Agora, o risco não prevê a possibilidade de escolha por parte do sujeito,
mas é apresentado como uma força que existe independentemente das pessoas que
têm que enfrentá-lo, tem vida própria e não está sujeito à intervenção do
indivíduo.
O sentimento de vulnerabilidade e as sensações que este desencadeia no
“EU” determinam a gravidade da situação de risco por ele percebida. Tamanha é a
fragilidade do sujeito focado em si mesmo que qualquer coisa capaz de torná-lo
infeliz é definida como um ataque às suas emoções e sentimentos, e, portanto,
passa a ser sistematicamente rejeitada. Vista sob este ângulo, a idéia do que é
considerado inaceitável é bastante vaga e, por isso mesmo, inclui um número
infinito de comportamentos. Será a sensibilidade individual a estabelecer, em
cada caso, se um ato ou uma experiência são prejudiciais ao sujeito envolvido,
passando assim a serem sumariamente definidos como inaceitáveis. Dada a
amplitude e a subjetividade das possibilidades desta avaliação, é difícil
imaginar um aspecto importante da existência que não lhe seja potencialmente
arriscado e que, por temor dos possíveis danos emotivos, não acabe isolando o
sujeito ou levando-o a manter relações superficiais com quem está ao seu redor.
Mas isso não é tudo. O conceito de “situação de risco” inclui a idéia
que o próprio medo constitui uma fonte de perigo. Nesta perspectiva, a
avaliação do risco assume uma dimensão unilateral, psicológica, inseparável da
ansiedade e da situação de impotência. A avaliação de risco sempre tem uma
componente psicológica inegável. É intrinsecamente subjetiva. Caracteriza-se
por uma mistura indeterminada de ciência, julgamento pessoal, fatores
psicológicos, sociais, culturais, econômicos e políticos. Mas, na medida em que
os sentimentos e emoções assumem um papel tão importante e direto na sua
formatação, o sujeito é levado a prescindir de qualquer avaliação objetiva do
que dá origem aos riscos com os quais se depara. O máximo que o indivíduo sente
poder fazer é limitar os prejuízos. A preocupação que o move como ser social
não é a de se envolver para construir algo “bom” para todos, mas de redobrar os
cuidados para “evitar o pior” para si mesmo. O medo passa assim a dominar a
experiência social porque os riscos são infinitos e estão presentes por toda
parte. A relação entre o sujeito e o mundo de incertezas ao seu redor é mediada
por uma consciência do risco permeada pelo medo que cresce na exata medida da
percepção da própria impotência e vulnerabilidade. O ditado pelo qual a corda
sempre arrebenta do lado mais fraco nunca como agora foi assumido como tão
apropriado pelo sujeito que o experimenta como verdadeiro e real na medida em
que se foca sobre si mesmo, longe de qualquer ação e identidade coletiva que
lhe permita voltar a ser autor, resistir, enfrentar o medo e superá-lo. Em sua
cegueira, o “EU” torna-se incapaz de ver os laços que o vinculam aos demais
como o sangue que alimenta sua indignação e capacidade de ação no cotidiano da
história. Saber-se em situação de risco, fortalece no sujeito uma atitude
passiva que leva ao imobilizá-lo diante dos acontecimentos sociais. Enquanto o
sujeito não se envolve na construção consciente da vida coletiva a partir de
seus interesses de classe, a elite aplaude do camarote quem, ao retirar-se
voluntariamente da cena social, deixa-lhe livre campo para a ação política.
O que o “EU” não percebe é que a desintegração social aumenta o estresse
causado pelos eventos negativos, ao passo que um forte sentimento de
comunidade, do mesmo modo que o ativismo político, aumenta a
capacidade/possibilidade de reagir diante dos perigos. Na medida em
que o coletivo se compromete ativamente a procurar uma solução para a causa do
sofrimento, este mesmo sofrimento é pensado, tratado e resolvido em um contexto
social capaz de lhe dar um novo sentido e de alterar as expectativas em relação
às ações individuais produzidas diante das experiências negativas.
A deixar-nos perplexos no momento em que escrevemos é a constatação da
incapacidade de o indivíduo perceber, ponderar e tomar a iniciativa para
enfrentar a exploração. Muitas vezes, chega-se ao contra-senso pelo qual o “EU”
considera melhor arriscar a vida no trabalho em nome de um sonho de duvidosa
afirmação social do que enfrentar os riscos para eliminar o que destrói sua
saúde e pode lhe tirar a vida. A auto-estima é compensada até mesmo neste
patamar nefasto, pois o sujeito vangloria-se de ter coragem pra trabalhar, de
suar a camisa, de dar conta do recado, de não fugir da raia, enfim, de aceitar
morrer aos poucos, ou de uma vez, por achar que enfrentar o que o destrói como
ser humano é um sinal de fraqueza, próprio de quem não se dispõe a superar os
próprios limites ou é privo de uma “mente vencedora” como a sua. Para quem vive
no mundo das emoções, dizer não à exploração é um absurdo e perder o emprego se
torna bem mais vergonhoso, doloroso, arriscado e cruel do que perder a própria
saúde e a própria vida.
Se você acha que estamos exagerando não cores talvez isso se deve à
dificuldade de perceber o tamanho do estrago que está sendo produzido na classe
trabalhadora. De acordo com um levantamento realizado pela Associação Internacional
do Controle do Estresse (ISMA, pela sigla em inglês) o Brasil é o segundo país
do mundo a apresentar níveis altíssimos de estresse. Pelo menos três em cada
dez trabalhadores sofrem de esgotamento mental e físico intenso causado por
pressões no ambiente profissional (a chamada síndrome de Burnout). Bastaria
esse número para percebermos que não estamos mais diante de casos isolados, mas
sim de uma epidemia que amplia seu raio de ação graças ao envolvimento lento e
silencioso do sujeito nas malhas de uma busca incessante de uma auto-realização
que o isola dos demais, anestesia seu sentimento de indignação e o leva a uma
servidão voluntária que o destrói na exata medida em que o faz acreditar em
suas promessas de sucesso e ascensão social.
Chegamos ao fim. Não sabemos qual é o gosto que estas linhas deixaram na
sua boca. Seria muito bom se agora você nos enviasse suas impressões, críticas,
observações ou comentários através do e-mail nadiacorujavermelha@gmail.com As marcas deixadas na sua maneira de ver a realidade que esboçamos
irão ajudar a direcionar melhor os estudos e as pesquisas em andamento.
Emilio Gennari.
Brasil, 31 de março de 2011.
(1) Estudos sobre reações da população atingida pela Segunda Guerra
Mundial na Grã Bretanha e pelo conflito no Vietnã comprovam esta possibilidade
com uma impressionante riqueza de detalhes.
(2) Dados publicados em BITTENCOURT, Fátima. “Estresse: o mal do
século”, emPsique, Ano VI, Nº 63, Ed. Escala, São Paulo, março de 2011.
__________________________
Acessos aos materiais divulgados através da lista e novas inscrições
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As informações sobre os livros EZLN - PASSOS DE UMA REBELDIA e EM BUSCA
DA LIBERDADE – TRAÇOS DAS LUTAS ESCRAVAS NO BRASIL podem ser obtidas junto à
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