O
BRASIL TEM UM PROCESSO DEMOCRÁTICO DE REPRESENTAÇÃO –
PARA QUEM?
As últimas eleições nos deixaram
boquiabertos, perplexos, nos tiraram do lugar nenhum ou do lugar cômodo. Para
uns a realidade foi uma impulsão, fomos às ruas e ao facebook bradar nossa
indignação, a bem dizer, nos deixaram com o “coração peludo” como se diz por
aí, e todas as cartadas foram dadas, amizades perdidas, parentes distanciaram
(alguns foram tarde).
Para outros, a conjuntura nos
deixou deprimidos, angustiados, sem expectativa, sem esperança e por isso,
paralisados.
Alguns diante da possibilidade do
“ignóbil” (não carece mencionar o nome, a simples menção pode soar como
propaganda) vencer as eleições nos lançamos numa cruzada desesperada, sem
pensar, ou seja, em avaliar o presente, as perspectivas, as alternativas, as
saídas.
Até hoje alguns ainda perguntam:
O que deu errado? Sem nos perguntar: Onde erramos?
Enfim, o “ignóbil” abriu caminho
através do vale das trevas e sentou-se na cadeira almejada, bom pra ele ... nem
tanto.
Nosso sistema de escolha de
nossos governantes e legisladores, e por consequência, do alto escalão do
judiciário e dos militares, é tido como um sistema democrático de escolha de (nossos)
representantes; afinal vivemos numa democracia.
Mas o que é democracia mesmo?
Sem buscar por estudos mais
profundos, seja da sociologia ou da filosofia, até porque não é este o âmago
desta reflexão, vou me utilizar do seguinte conceito:
Democracia é uma organização social em que o controle
político é exercido pelo povo. É um sistema de governo que resulta da livre
escolha de governantes, a qual é expressa pela união e a vontade da maioria dos
governados, confirmada por meio de votos. Um sistema de governo democrático
abrange todos os elementos da organização política de um país. Nesse sentido,
democracia não é apenas uma forma de Estado ou de Constituição, mas a ordem
constitucional, eleitoral e administrativa, o equilíbrio dos poderes e órgãos
do Estado, a prioridade política do Parlamento, o sistema alternativo de grupos
governamentais e de oposição. A democracia é uma forma de governo que tem
como fundamentos uma conjugação de princípios de organização política, dentro
de um sistema social, em que prevalece:
·
a
liberdade do indivíduo diante de todos os representantes do poder político,
especialmente face ao Estado
·
a
liberdade de opinião e de expressão da vontade política
·
igualdade
dos direitos políticos e oportunidades favoráveis para que o povo e os partidos
se pronunciem sobre todas as decisões de interesse geral.”[i]
(Grifo meu)
Pois
bem, este não é o melhor conceito, ou o mais correto e nem de todo incorreto,
mas nos serve neste momento porque é o conceito que está presente no homem
comum, é o senso comum que se tem em mente quando se discute democracia.
Os
livros de Direito Constitucional discorrem sobre o princípio democrático que se
encontra prescrito no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal:
Art. 1º A República Federativa do
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.(grifo meu)
Observaram
os fundamentos da nossa Constituição? O parágrafo em destaque possibilita que
todo “cidadão” exercite seu direito político de escolha de seus governantes, é
a chamada soberania popular.
Os
direitos políticos, segundo José Afonso da Silva, doutrinador de grande
referência no Direito Constitucional:
(...) os direitos políticos positivos
consistem no conjunto de normas que asseguram o direito subjetivo de
participação no processo político e nos órgãos governamentais. Eles
garantem a participação do povo no poder de dominação política por meio de
diversas modalidades de direito de sufrágio direito de voto nas eleições,
direito de elegibilidade (direito de ser votado), direito de voto nos
plebiscitos e referendos, assim como por outros direitos de participação
popular, como o direito de iniciativa popular, o direito de propor ação popular
e o direito de organizar e participar de partidos políticos.[ii]
(grifo
meu)
Para
Alexandre de Moraes, outra referência no Direito Constitucional, que ganhou
mais destaque agora como Ministro do Supremo Tribunal Federal, citando Pimenta
Bueno infere que direitos políticos:
“... prerrogativas, atributos,
faculdades, ou poder de intervenção dos cidadãos ativos no governo de seu país,
intervenção direta ou indireta, mais ou menos ampla, segundo a intensidade de
gozo desses direitos. São o ‘Jus Civitatis’, os direitos cívicos, que se
referem ao poder Público, que autorizam o cidadão ativo a participar na
formação ou exercício da autoridade nacional, a exercer o direito de
vontade ou eleitor, o direito de deputado ou senador, a ocupar cargos políticos
e a manifestar suas opiniões sobre o governo do Estado.” (grifo
meu)
Assim
o que se deduz das lições destes constitucionalistas é que podemos participar
deste sistema democrático de governo, desta forma, a primeira vista temos a
ideia de que é só chegar em Brasília, lá no Palácio do Planalto, de arquitetura
maravilhosa, que por ironia do destino foi concebida por um comunista e, bater
na porta do Gabinete da Presidência da República, ir entrando e já se vai
exercendo a cidadania, o direito político de manifestar livre, tal como: “É aí
seu ‘ignóbil’ sabe que só tá queimando seu filme com as “cagadas” que fala né”
e precisa dar uma segurada nos seus “pimpolhos” que só tem sangue nos olhos,
ataca todo mundo e depois vai pros twitters da vida dar aqueles sorrisos
cínicos que só gente louca estampa cara” (importante deixar claro que tenho meu
respeito e solidariedade aos que possuem efetivamente doença mental e mesmo
assim não encontram serviço/atendimento adequado neste país), pois bem, seria
bom fazer isso, sem qualquer reprimenda.
Mas
então podemos ir lá no Senado ou na Câmara Federal e sentar lá na mesa de
deliberações, levantar o dedinho “questão de ordem” e dizer “O meu povo, lá do
meu bairro, ou da minha fábrica, da minha escola, do meu sindicato, do meu
grupo de teatro não tá concordando muito com essas leis que vocês estão fazendo
ou alterando não ... dá pra mudar? E essa redação fascista e então, dá pra ser
um texto mais, que seja mais cidadão, pelo menos ... dá pra considerar mais os
direitos humanos e os valores sociais do trabalho e menos os da livre
iniciativa?
Depois
desce correndo da mesa e foge, combina com uns colegas pra esbarrarem nos seguranças
que vem correndo logo atrás de você.
Pois
bem, a gente tem a ideia de que a participação popular é regra simples: votei,
o vereador/deputado/senador se elegeu, posso ficar tranquilo, pois, ele vai
defender meus interesses no processo legislativo.
Abaixo
segue um fluxograma para demonstrar como ocorre a aprovação de projetos na
câmara Federal, e através deste link: https://www.camara.leg.br/entenda-o-processo-legislativo/,
você pode ter detalhes de cada etapa.
Mas é
justamente neste processo que a representatividade popular se perde, pois, o
que aparenta ser um simples mecanismo de discussão e propostas para “o bem público”,
trata-se na verdade de um cabo de guerra dos interesses que se defende ... aí
você dirá do povo claro!
Claro
que não!
A
coisa já começa na forma de elaboração da lei, as palavras corretas, que se
deve pensar em seus significados, pois a partir deste momento você pode
expressar uma ideia de direita/centro/esquerda, cuidado onde coloca os pontos e
vírgulas para que posteriormente se faça a interpretação correta da lei, senão
ela fica cheia de abertura para seus costumeiros desvios.
A lei
escrita vai pra Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), onde se
deve analisar a forma e a matéria da lei.
Na
forma se analisa se foram obedecidos os procedimentos para proposta e depois faz-se
as indicações de como deve ser a votação: é lei ordinária ou lei complementar, o
tema é pertinente para aquele tipo de lei, necessita de 1 ou 2 turnos para
votação, qual o quórum é necessário para aprovação.
Quanto
à matéria, se analisa se quem propôs a lei tinha autoridade pra isso, há
matérias que são prerrogativas somente do executivo, por exemplo, quando se
trata de aumento do número de funcionários, afinal é ele quem possui o orçamento
e saberá se pode ou não gastar mais com o funcionalismo público (de fato nunca
se sabe como o orçamento efetivamente está sendo utilizado, exceto quem o
controla, eu seu está lá no papel, mas ...).
Nesse
ponto a soberania popular já se perdeu, pois devemos perguntar quem compõe a
CCJ? O projeto precisa passar pela comissão de Orçamento, Tecnologia, Educação,
Saúde? Quem compõe essas comissões?
Aí
você pensa, votei naquele deputado/senador/vereador e ele defenderá meus
interesses. Pois não é bem assim.
Nas
campanhas os candidatos fazem de tudo pra se elegerem, não é a toa que possuem
assessoria/marketing de campanha, os mesmos profissionais que trabalham com
publicidade pra te vender comida, roupa, ideia de bem estar, ideia de sucesso
... também vendem um vereador/deputado/senador, só pra ficarmos na esfera
legislativa.
Daí
vai o recado, sabe aquele seu candidato que se elegeu?! comece a pensar: “como
ele pensa, como ele vive”, com quem ele almoça e janta, com quem ele passa a
férias, onde ele passa as férias, qual colégio o filho dele estuda, ele tem
plano de saúde, qual? Qual a experiência de vida dele? Afinal as articulações
para as eleições começam antes, no processo pré-campanha? Não! Anos antes,
quando os sujeitos e sujeitas fazem faculdades juntos, os pais que são sócios
da mesma empresa, os amigos que tem interesses comuns.
Os
candidatos de direita, muitos deles encontrados também no centro e alguns até
já se aventuraram à esquerda, organizam suas vidas em torno do capital, suas
empresas, suas escolas, seus bancos, preparam seus filhos e no caminham
encontram outros que pretendem ter sucesso na vida, independente do custo,
independente que precise passar por cima de outras pessoas, pois o que um dia
foi interesse pessoal, passou a ser interesse do coletivo a quem passam a
servir.
Então
aquele sujeito/sujeita de sucesso passa a servir aos interesses de seu grupo:
financeira, banqueiros, bolsa de valores, agronegócio, sem contar aqueles que
integram a “banca da bala”, “banca da religião” e por aí vai.
Essa
ideia de defesa de uma proposta, de uma ideia, de um estilo de vida, de uma
forma de pensar o país, permeia todo o tempo como um representante faz ou não
proposições legislativas, muitas das vezes a pessoa está lá só pra garantir que
aquele que bancou sua campanha não tenha prejuízos, percalços, só pra frear novas
leis que limitem sua atuação, sua forma de lucrar. Influencia também em qual
das comissões ele vai participar, como ele vai votar, se faz ou não emendas e a
propaganda que ele faz de tudo isso, afinal um representante político nada mais
é que um garoto propaganda, de propaganda política (ideia, proposta de governo,
proposta econômica) a questão é de quem? Para quem? Porque?
No
processo ainda, há muitas, muitas, mas muitas negociações. Depois de feita uma
proposição legislativa, as negociações começam pra empurrar ou acabar com o
projeto, e se não der pra acabar com ele, como se pode cozinhá-lo em banho-maria
pra que não chegue pra votação, e se chegar a votação como faço pra obstruí-la.
Errado?
Certo?
Esse é
o jogo pra quem quer participar do nosso democrático sistema de representação,
as regras já estão prontas, aquelas escritas e aquelas de décadas de costume.
E são
nessas negociações que muitos dos “representantes do povo” deixam de lado suas
convicções e interesses, seja porque cede aqui, pra que seu projeto seja votado
ali, ou faz vista grossa de um aspecto da proposta porque aceitou verba para um
projeto de sua cidade, quando não cede porque alguém do seu grupo foi escolhido
para um cargo/função. Por tudo se negocia.
Pra
não se ir muito longe, pense aí na sua cidade, quais são os interesses dos
vereadores, porque tomam a atitude que tomam, porque defendem o prefeito mesmo
que este tome medidas impopulares, que seja prejudicial à população ou pior
quando atingem os humildes, os desvalidos. Por isso que digo, a medida, a lei
interessa a quem?
Então
talvez você diga: quer dizer que no processo se esquece que o sistema é de
representação?
Eu
diria, no sistema capitalista de produção algum dia houve interesse de
representasse em prol da classe trabalhadora?
Vale a
pena dar uma olhada neste link: https://static.poder360.com.br/2018/10/Novo-Congresso-Nacional-em-Numeros-2019-2023.pdf,
que é elaborado pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar –
DIAP dá pra se se der um Raio-X do atual Congresso, como se compõe de forma
partidária, número de mulheres e homens, formação.
Isto porque
neste processo se esquece o todo, qual seja: vivemos num sistema capitalista, o
interesse do capital se sobrepõe ao interesse dos indivíduos, o interesse do
capital é inconciliável com o interesse da classe trabalhadora, a classe
trabalhadora é e sempre vai estar em maior em número, sem a submissão da classe
trabalhadora o capital não vive.
O todo
não permite uma representação efetiva da classe trabalhadora. Enfim este
sistema serve ao capital: serve aos bancos, ao agronegócio, às empresas, às
grandes escolas/faculdades, aos grupos/convênios de saúde, serve também aquele
que pensa que faz parte desta classe, sem ser.
Assim
pra não me estender nessa reflexão, onde cabem diversas outras alças de
reflexão: o que é democracia? Esse sistema é democrático? O sistema
representativo é representativo mesmo? Quais os outros modelos existentes? A
democracia é inconciliável com a representação popular? Se somos maioria porque
o sistema não é feito pra atender a maioria trabalhadora?
Desta
forma, cabe apenas uma última reflexão. Porque as lideranças de esquerda
insistem em participar deste sistema de representação? Elas acreditam que podem
mudar a relação capital x trabalho pelo sistema legislativo ou mesmo executivo?
Qual o plano ao ser eleito?
Uma
coisa é certa o capital sabe qual é seu plano, por isso até o “ignóbil”
enfrenta dificuldades em implantar seu projeto, por que até ele está tendo que
negociar ... só temos que lembrar que ele tem o que oferecer: o lombo da classe
trabalhadora ... é o que tem feito e, mesmo as parcas lideranças da esquerda
não conseguem ter voz.
Porque?
Falta reflexão, avaliação, organização, ação, planejamento, formação e
capacitação, solidariedade, uma ideia de classe? Não sei, mas temos que fazer
tudo isso, juntos!
Quem
dera pudéssemos implantar a primeira parte do parágrafo único do art. 1º da
Constituição Federal: “Todo poder emana do povo.” e tal qual nossos “hermanos” do
Equador que corajosamente se insurgiram contra medidas que trarão mais
precarização às condições de vida e trabalho à classe trabalhadora e juntos
pudéssemos mudar tudo isso.
Esse “modelo
de representação” que se quer que acreditemos seja para defesa de nossos
interesses, as condições de vida (saúde, educação, moradia, transporte, cultura
e lazer) e trabalho, primeiro aqui, depois nos juntando com nossos hermanos da
América Latina e depois ... o mundo né!
Fátima Marques
Membro do IDE
Membro do IDE
[ii]
José Afonso da Silva citado por Motta, S.; Barchet. G. Curso de Direito
Constitucional. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
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