Já
não basta vigiar e punir, o Capital usa o Sofrimento para no processo de
acumulação possuir ainda mais o proletário, de corpo e alma se poderia dizer.
Será que o Byung-Chul encontrou Focault?
Confira no instigante artigo que O Conselhodaclasse publica hoje.
BYUNG-CHUL
HAN ADENTRA EM TERRITÓRIO DE MICHEL FOUCAULT: A SOCIEDADE DO CANSAÇO NO ESPAÇO
DO VIGIAR E PUNIR!
Senta, que lá vem “estória”...
Imaginemos uma fábrica. Uma renomada, nacional, do
ramo de produção de chapas, portas e painéis – tudo tendo aço como matéria
prima. E imaginemos que nesta fábrica, para organizar a embalagem e facilitar o
transporte destas chapas, portas e painéis, haja um setor de produção de
paletes de madeira. E imaginemos ainda, que na equipe do setor de produção de
paletes, haja um ajudante de cognome “Cabeção”.
Cabeção tem 24 anos de idade e vive em casa alugada com
sua parceira – não se tem a informação se é em estado marital ou de concubinato
– e com um filho de tenra idade. Em seu trampo, na referida organização, lhe é
pago um salário/hora de aproximadamente R$5,50 para produzir paletes ao longo
de uma jornada diária de oito horas. Meta de 400 para paletes “leves”; 230,
quando tem de se fabricar os “pesados” – todos são pesados.
O dedo de cabeção permanece intacto, dentro do
possível, após 24 anos de vida. Mas durante certa jornada, cabeção esteve
cansado. Iniciou o turno anterior às 14h00; encerrou às 22h00. Levantou às
6h00; o filho tinha de estar na creche às 07h00. O mais sábio a fazer, após
deixar o filho na creche, seria retornar para seus aposentos e dormir para o
turno seguinte. A esposa trabalha também. Possuem despesas. Precisam cuidar do
menino. Volta para o leito? Retoma o sono? Não. A empresa conta com um centro
de educação, com profissionais capacitados para educar. Cursos de normas
regulamentadoras de trabalhos realizados em grandes alturas, em espaços
confinados, utilizando-se dessa ou daquela ferramenta... Tudo em prol da
segurança; de um trabalho seguro – irônico né? Ensinamentos que podem torná-lo,
de repente, um brigadista. Poderá cuidar dos companheiros de labor. Terá um
acréscimo no salário: R$70,00... Duas caixas... 24 litros de leite para o
filho. Quem sabe sobre para duas ou três latinhas. Gosta de uma gelada; é
humano.
Horário do
curso? Das 8h00 ao meio dia. Não sabe se volta para casa para almoçar, se
permanece ali esperando o turno das 14h00. É fato: não dormirá. Mas ali estará;
esforçando-se; estudando e trabalhando. Mantendo a família e a dignidade de um trabalhador.
Quanto ao processo de produção?... Bem... A equipe do
setor é formada pelo operador – que ficará nas serras cortando os caibros e
sarrafos nas medidas adequadas para a fabricação dos paletes; pelo
empilhadeirista que reabastecerá as serras e as mesas de produção no momento em
que se esgotarem os materiais então utilizados. E três ajudantes: um que ficará
responsável por lançar e posicionar os caibros na mesa já ajustada e outros
dois que se encarregarão de fazerem o mesmo com os sarrafos. E há o sistema de
revezamento entre os ajudantes. Cada turno, em uma posição da mesa, assim,
todos inevitavelmente passam pelos caibros.
Joga caibros,
ajeita-os; joga sarrafos e ajeita-os. Cada um pega seu “pregador” pneumático e
aí é só “rátátátá”... Depois, caibros e ajeita-os; sarrafos e ajeita-os.
Pregadores e “rátátátá”... 400 vezes no turno.
No início do
turno, cabeção reclama da canseira; é quinta-feira, porra. Começam a produção.
Sua equipe produz os detestáveis paletes; 400 é a meta. É “rátátátá”. Duas ou
três horas depois, seu dedo não está mais intacto.
Precisa do
trabalho. Faz o que for necessário para manter seu emprego. Inclusive, pregar
os pontos que não são de sua responsabilidade, mas de um de seus parceiros. Na
correria, o prego atravessa o dedo do menino. O dedo está intacto... De
repente, não está mais...
Vai ser culpado
pelo acidente. Dane-se o contexto, a canseira, a quinta-feira, o curso, o
menino na creche. Quem mandou fazer o trabalho do outro? Por que a correria?
Pela meta?
Há os procedimentos de segurança para a execução de
qualquer trabalho e manuseio de qualquer ferramenta ou máquina. Há também as
normas padronizadoras de cada processo produtivo, que deixam claro o que cada
membro de tal processo deve fazer no ato da produção. Seguindo-se a norma e os
procedimentos de segurança, os riscos de acidente diminuem muito. Ele não
seguiu normas de padronização da produção nem procedimentos de segurança: “a
mão livre deve permanecer a uma distância de pelo menos 20 centímetros da mão que
estiver manuseando o pregador”. Sendo assim... CULPADO...
Mas há algo mais... Algo não registrado nas normas de
segurança nem nas padronizações dos procedimentos de produção... A necessidade
de produtividade... De alcance e, de preferência, até de superação de metas...
Necessidade esta, que já não mais é exigida a partir do sistema do vigiar e
punir – de nosso velho amigo Foucault. Nãããooo... Em tempos de “flexibilização”
do trabalho, de maior possibilidade de movimento individual e autônomo no novo
mercado de trabalho, mesmo no contexto da indústria, agora o que conta é a
dedicação do integrante do mercado; a iniciativa; o “profissionalismo” – mesmo
para os que não possuem formação profissional.
Cabeção e todos os outros operários, não escaparam
daquilo que o filósofo Germano-Coreano Byung-Chul Han chamou de Sociedade do Cansaço. Estamos no período
da positividade; do sim a tudo. E, sobretudo, do sim ao trabalho – mesmo aos
mais aviltantes empregos – já que este apresenta-se a nós, como maleável, como
não forçado, como livre e até como lúdico, segundo o próprio pensador.
Em contexto industrial, nada há de lúdico, mas as
cobranças já são menores A hierarquia permanece, mas para designações de
funções que exigem mais ou menos intelecto ou conhecimento técnico e isso pouco
ou nada envolve punições, apesar de ainda haver o vigiar, mais para premiações
do que para castigos. O proletário dedicado, que produzir, que alcançar ou
superar metas – que pode até quebrar recordes e ter seu feito noticiado no
sistema de radiofrequência – quando presenciar – ou até promover – a queda de
seu superior imediato, será alçado para o cargo seguinte e terá de desempenhar
suas novas funções – caso haja a obrigatoriedade de “cobrança” de subordinados
– do modo mais amigável possível. Mas é quase que certo que isso não será
necessário. Seu subalterno produzirá muito, de forma rápida e de boa vontade.
O trabalhador
comum, em geral, não sabe que dois corpos não ocupam o mesmo espaço ao mesmo
tempo, e assim, para dar conta de suas metas, jogará caibros ou sarrafos nas
mãos de seus parceiros de função para manter seu ritmo e seu desempenho. Mas
não por maldade. O movimento não é intencional, pensado, planejado... É
automatizado, não observado, apenas executado. Se ao longo do processo produtivo,
tiverem de se trombar, se trombarão. Dificilmente, um irá parar, raciocinar e
esperar pela passagem do outro. Cada um terá em mente apenas o cumprimento de
sua tarefa e pouco se importarão se vier a acontecer esbarrões de operário com
operário. A produtividade tem de fluir.
E também tem de haver o aperfeiçoamento. Não o
pessoal, o intelectual, o espiritual, tampouco o religioso – apesar do
cristianismo predominante entre os operários – e nem o profissional,
propriamente dito. Mas o do trabalhador cumpridor de tarefas, das que já cumpri
e das que poderá vir a cumprir de modo autômato caso conquiste novo nível na hierarquia.
O jovem cabeção assim o fez. Tinha de ser produtivo ao máximo e por isso
“pregava muito” no ato da produção dos paletes e concorria com seus
companheiros de mesa, ao posto de mais versátil “pregador”. E como os outros,
procurava se diferenciar cursando os cursos que a todos eram ofertados e pela
maioria cursados. E como tinha de cuidar da vida pessoal, cansava-se bastante,
mas explorando a si – o coreaninho de novo – o máximo que podia. É bem possível
que esteja aí, neste raciocínio, a gene de seu ferimento.
E quanto aos retardatários? Bom, quanto a estes, basta
manterem baixo nível de absenteísmo, estarem de corpo presente e produzirem
alguma coisa, que ali permanecerão. Pois mesmo em estado de incomoda
improdutividade poderão ter extraída alguma mais-valia e até poderão servir de
exemplos a não serem seguidos pelos trabalhadores dispostos a explorarem-se e
cansarem-se no dia-a-dia do funcionamento organizacional.
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