O Capital espalha destruição e miséria pelo planeta
afora, independentemente da região e do continente,
confira, nesta excelente analise de conjuntura de Emílio
Gennari que temos o prazer de publicar em nosso blog
Emilio Gennari
Enquanto a pandemia semeia
fartas doses de sofrimento pelas perdas de vidas humanas, a recessão
desperta angústias e revoltas cujo potencial de questionamento da
ordem começa a aparecer em vários paises.
Os
atos contra o racismo e os protestos motivados pela fome trouxeram à
tona as faces visíveis da desigualdade com as quais a sociedade se
acostumou a conviver em tempos de crescimento econômico, mas seguem
pouco nítidas as
relações de produção que precisam do racismo para manter a
exploração.
Limitadas em seu alcance por
não interromperem a produção da riqueza, as pressões que vêm da
base da pirâmide social têm recebido o apoio de inúmeras
personalidades, cujas condenações abrangem as atitudes costumeiras
das pessoas e os abusos dos agentes do Estado.
Por
importantes que sejam na hora de amplificar a indignação popular,
estas posições acabam fortalecendo a idéia de que o racismo a ser
vencido está em
múltiplos aspectos da vida social, sobretudo do comportamento
individual, sem fazer referência a
estrutura econômica da sociedade.
Por toda parte, a elite não
poupa esforços para que o capital saia da tempestade com o menor
dano possível às suas estruturas de dominação. Neste navio que
traça os destinos da humanidade, é fundamental que os passageiros
da terceira classe não saiam do porão; que chefes e prepostos
cuidem para que seu isolamento seja quebrado apenas para garantir os
serviços essenciais à navegação ou limpar as acomodações dos
andares superiores; e que os sistemas de vigilância impeçam
qualquer tentativa de alterar o porto de destino.
Aposta-se que o medo do
naufrágio, a coerção diante das tentativas de levantar a voz, as
cestas de mantimentos e algum dinheiro para diminuir a fome sejam
medidas suficientes para convencer a maioria a se resignar diante da
má sorte. No fundo, trata-se de limitar o descontentamento às
queixas pelos atrasos crônicos no atendimento das demandas dos
necessitados e de fortalecer a confiança em governantes que não
titubeiam em fazer com que, para salvar os lucros empresariais, a
luta pela sobrevivência ande de mãos dadas com as chances de
contrair um vírus mortal.
Entre a destruição da vida e
os protestos de quem não aceita morrer calado, os acontecimentos
apressam o passo da conjuntura e transformam o presente em instante
fugaz cujo sentido escapa à compreensão da maioria. Sob o ritmo
frenético que a realidade impõe, o nosso estudo busca medir o pulso
da crise para entender os desafios que a classe precisa enfrentar na
construção do seu projeto de sociedade.
1.
Qual será o tamanho da destruição?
Apesar dos limites das
projeções econômicas diante da evolução da pandemia, vale a pena
resgatarmos os cenários que as instituições internacionais
desenham para estimar o tamanho da destruição da riqueza mundial
causada pela recessão em curso.
Iniciaremos
nossas reflexões comparando as tendências de crescimento do PIB das
principais economias divulgadas pela Organização para a Cooperação
e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI), entre os dias 10 e 24 de junho de 2020. Vejamos
o que dizem os números: 1
Quadro 1: Estimativas do FMI e da OCDE para o PIB de 2020
Países
PIB 2020 - OCDE
PIB 2020 - FMI
Estados Unidos- 7,3%
- 8,0%Zona Euro- 9,1%
- 8,0%Japão- 6,0%
- 5,8%China
- 2,6%
1,0%Índia
- 3,7%
- 4,5%Rússia- 8,0%
- 6,6%México- 7,5%
- 10,5%Brasil- 7,4%
- 9,1%Mundo- 6,0%
- 4,9%
O
quadro 1 revela que, em 2020, as perspectivas para o PIB Mundial
flutuam entre uma queda de 4,9% e de 6%, sendo que a China é a única
grande economia em relação à qual as duas instituições
apresentam cenários opostos. Segundo o FMI, o país encerraria o ano
com um crescimento de 1% em relação a 2019, enquanto, para a OCDE,
devemos esperar uma retração de 2,6%.
Além
do impacto da pandemia nos mercados locais, a diferença entre as
duas estimativas tem como base a importância da demanda mundial na
economia do gigante asiático. Se, de um lado, faltam dados que
permitam compreender as perdas acumuladas pela China em 2020, de
outro, sobram estimativas em relação ao comércio mundial.
O relatório do FMI, por
exemplo, constata que no primeiro trimestre, as trocas comerciais
internacionais sofreram uma queda de 3,5% ante o mesmo período de
2019 e as projeções entre abril e junho indicam um encolhimento de
11,9% em relação aos mesmos meses do ano passado.2
Ainda de acordo com o FMI,
o PIB mundial seguiria uma trajetória de queda até o final de
julho, quando iniciaria um lento processo de recuperação que traria
uma pequena melhora ao comércio mundial, beneficiando as exportações
da China.
No
extremo oposto, temos os cálculos que a Organização Mundial do
Comércio (OMC) divulgou no início de abril, apontando que as trocas
internacionais encolheriam 12,9%, em relação a 2019, caso o PIB
mundial apresentasse uma queda de apenas 2,5%. Contudo, no cenário
pessimista de um recuo de 8,8%, o fluxo do comércio cairia 31,9% na
mesma base de comparação.3
Ao
projetar uma retração de 6% na produção da riqueza mundial, a
OCDE aposta em um cenário intermediário quanto às trocas
comerciais e, de conseqüência, em relação ao seu impacto na
economia chinesa.
Os
primeiros sinais deste efeito negativo podem ser vistos no valor das
compras externas do país. Vale lembrar que a China precisa importar
uma quantidade considerável de mercadorias para abastecer tanto o
consumo interno, como o mercado exportador. No mês de abril, as
compras chinesas de produtos estrangeiros encolheram 14,10% em
relação ao mês de março deste ano. Em maio, o desempenho da
economia não apresentou sinais promissores, à medida que as
importações sofreram mais uma queda de 8,90% em relação ao mês
anterior, provando o forte esfriamento da economia.4
As projeções da OCDE são
mais pessimistas do que as formuladas pelo FMI também em relação à
Rússia. Além da dificuldade de termos notícias precisas em relação
ao avanço da pandemia no território russo e, portanto, do impacto
na sua economia, as estimativas dos preços futuros dos
hidrocarbonetos têm grande importância na definição do PIB de
2020. É fato que o barril de petróleo bruto é cotado, em média, a
um preço 34% inferior em relação aos doze meses anteriores,
enquanto o gás natural amarga uma perda de 38%, na mesma base de
comparação5
e estes são os
principais produtos de exportação do país.
Para o FMI, a constatação de
que os preços da energia se estabilizaram após os cortes na
extração, é um sinal positivo para a economia mundial e para os
países produtores. Mas a OCDE parece focar na parte vazia do copo
meio cheio descrito pelo FMI ao estimar um impacto maior dos preços
reduzidos e da diminuição das vendas dos hidrocarbonetos na
economia russa que depende da exportação destas commodities para
sustentar o seu crescimento.
As estimativas do Fundo
Monetário Internacional são mais otimistas para a Zona Euro e para
o Japão, mas não para os Estados Unidos, onde os temores de uma
nova onda de contágio levam a apostar em um aprofundamento dos
problemas econômicos do país. As notícias de um possível novo
fechamento das atividades em algumas regiões saíram após a
divulgação do relatório da OCDE, publicado quando tudo indicava
que a economia estadunidense estava reagindo aos primeiros passos da
volta à normalidade e a ameaça de um novo lockdown não passava de
uma possibilidade distante.
Em relação à Índia, México
e Brasil, o FMI estima uma recessão bem mais profunda da que havia
sido prevista pela OCDE. Aqui também as datas dos estudos influem em
seus resultados. Nas semanas anteriores ao relatório da OCDE, os
governos deixavam pairar a possibilidade de um impacto menor da
Covid-19 no desempenho econômico do país em função da proximidade
do pico das contaminações e da subsequente estabilização. Na
contramão das expectativas que animavam o otimismo na retomada das
atividades econômicas, o forte avanço no número de mortes e
contaminações em junho despertou os temores de um agravamento da
pandemia nos próximos meses.
Optamos por detalhar alguns
elementos que subjazem às projeções relacionadas à conjuntura
internacional a fim de mostrar a volatilidade dos elementos sobre as
quais se baseiam e a dificuldade de prever quando as economias
atingirão o nível mais baixo da queda para iniciar uma nova fase de
crescimento. Manter os olhos abertos diante dos fatores que marcam os
passos da crise vai ajudar a entender não só a gravidade dos
problemas econômicos que o mundo herdará, como os movimentos que as
relações comerciais vão traçar no tabuleiro da geopolítica
mundial.
A
nota comum aos dois relatórios diz respeito à necessidade de não
poupar esforços para reduzir os danos irreversíveis que podem se
abater sobre as economias de cada país. Na recessão causada pelo
coronavírus, não há nenhum bloco econômico cujo crescimento seja
suficientemente forte para ajudar a contrabalançar as perdas
impostas pela crise. Além disso, estamos diante de uma queda bem
mais profunda do PIB das principais economias mundiais em relação
às crises do pós-guerra, de um mercado de trabalho onde o
desemprego destruiu um número considerável das vagas criadas até o
início da pandemia e a precariedade de quem vivia na informalidade
revela agora seus efeitos devastadores na renda e nas condições de
vida de mais da metade da força de trabalho mundial.
Para
termos uma idéia das dimensões do desastre provocado pela crise,
lançamos mão do relatório que a Organização Internacional do
Trabalho divulgou no dia 30 de junho. De acordo com as estimativas da
entidade, no primeiro trimestre de 2020, o corte de horas trabalhadas
corresponde à perda de 155 milhões de empregos em tempo integral
(48 horas por semana), 5,4% a menos em relação ao primeiro
trimestre de 2019. Entre abril e junho, os cálculos da OIT estimam
mais uma redução equivalente à extinção de 400 milhões de vagas
em tempo integral, 14% a menos ante os mesmos meses de 2019.6
Segundo o levantamento
divulgado no final de maio, 60 em cada 100 trabalhadores viram suas
rendas caírem em função da pandemia. A situação era mais grave
entre os informais, à medida que 75,8% deles tiveram seus ganhos
fortemente atingidos em função do isolamento social e houve sérios
atrasos no recebimento da ajuda governamental.
De acordo com o mesmo
documento, a diminuição da renda do trabalho causada pela crise fez
com que a parcela de pessoas com ganhos mensais abaixo de 50% da
média salarial de cada país aumentasse 34 pontos percentuais em
nível mundial e 56 pontos percentuais nos países mais pobres.7
Para as instituições
internacionais que regulam as chances de acumulação do capitalismo
mundial, esta situação merece cuidados redobrados, não pelas
perdas de vidas humanas e sofrimentos, e sim por agravar a situação
das empresas.
No relatório divulgado em 14
de abril, o FMI calculava que, no primeiro trimestre de 2020, os
custos impostos aos governos pela crise do coronavírus haviam
demandado cerca de 14 trilhões de dólares, entre desonerações
fiscais, empréstimos a juros subsidiados, compra de ações de
empresas em dificuldade financeira, auxílio às famílias em
situação de vulnerabilidade e gastos adicionais no setor de saúde.
8
Em maio, registramos que o
governo da França aprovou um plano de socorro emergencial no valor
de 430 bilhões de euros (483 bilhões de dólares).9
Em junho, foi a vez do Banco Central Europeu disponibilizar mais 600
bilhões de euros (732 bilhões de dólares) para comprar títulos da
dívida emitidos pelo tesouro dos 17 países que adotam a moeda única
a fim de ampliar o crédito e as operações estatais de compra de
ações que sustentam as empresas em dificuldades financeiras.10
Em meados de junho, o Banco do
Japão anunciou a injeção de um trilhão de dólares para apoiar a
retomada do crescimento e, segundo a agência de notícias Bloomberg,
o presidente dos EUA prepara um pacote de um trilhão de dólares em
obras de infraestrutura, enquanto o Banco Central do país quer
iniciar um amplo programa de compra de ações de empresas com
problemas de caixa.11
Esta avalanche de dinheiro
público revela a gravidade da crise, à medida que, em menos de seis
meses, as operações para manter vivo o capital demandaram uma
quantia pouco inferior aos 18 trilhões de dólares gastos pelos
estados, entre junho de 2008 e maio de 2009, o período mais crítico
da recessão anterior.12
Tudo indica que, até o fim do ano, será necessário um volume
adicional de recursos públicos para fazer com que, em 2021, a
economia mundial possa entrar num processo de recuperação.13
Com base nos gastos já
efetuados, o relatório do FMI prevê um aumento de 10 pontos
percentuais do déficit público mundial, em 2020, e um acréscimo de
18,7 pontos percentuais do endividamento interno em relação ao
patamar registrado em 2019. Para termos uma idéia do tamanho do
estrago provocado pela recessão, o mesmo estudo lembra que, na crise
de 2009, o aumento do déficit público ficou em 4,9 pontos
percentuais enquanto a dívida interna global aumentou 10,5 pontos
percentuais sempre em relação ao nível do ano anterior.14
A nosso ver, esta realidade
faz com que duas possibilidades simultâneas se perfilem no horizonte
da saída da crise. A primeira diz respeito a um forte processo de
privatização das estatais e de abertura a uma exploração
predatória dos recursos naturais a fim de abastecer os caixas dos
Estados. A segunda, o
capital e o Estado vão
aproveitar do desemprego e das precárias condições de vida dos
trabalhadores para aprofundar a exploração do trabalho e eliminar
os poucos direitos sociais que ainda restam. Claro, sempre em nome da
necessidade de reduzir o déficit público, investir e gerar
empregos.
2.
A economia cai...mas as bolsas sobem. Por que?
Assim
como as Bolsas de Valores são as primeiras a detectar a chegada da
crise, é nelas que ganham corpo as apostas quanto à retomada da
economia e as perspectivas de lucros das empresas.
Por
outro lado, quando há mais investidores tentando vender do que
comprar, os preços das ações caem e, com eles, também se reduz a
pontuação em relação à que havia sido apurada no dia anterior.
Longos períodos de queda, ainda que alternados por pequenas
elevações, indicam um aumento da incerteza que, a depender do
tamanho das perdas e da permanência do declínio descrita pelos
índices, pode apontar a chegada de uma crise.
Seguir
o movimento da Bolsa ao longo do tempo oferece a possibilidade de
prever com alguns meses de antecedência o comportamento da economia
real e, nela, o desempenho das empresas. A sensibilidade das Bolsas
de Valores guarda relação tanto com o fato de que é nesse âmbito
que os investidores apostam quantias elevadíssimas da riqueza
mundial, quanto com a crescente internacionalização da sua
produção. Uma catástrofe natural que atinja importantes redes de
suprimento das empresas em qualquer lugar do planeta ou eventos
econômicos, políticos e sociais que alterem as projeções de
crescimento da economia em países com uma participação
significativa no PIB mundial terão reflexos imediatos no
comportamento das Bolsas.
Por
se tratar de “apostas” baseadas em elementos reais e humores
momentâneos do mercado, e devido à presença de investidores
interessados apenas em ganhar dinheiro especulando com o preço das
ações, não é incomum que a dinâmica de compra e venda registre
um descolamento entre os lucros futuros, projetados pelos índices, e
os que são realmente possíveis nas condições em que a economia se
encontra. A divulgação dos balanços trimestrais das empresas,
cujas ações são cotadas na Bolsa de Valores, funciona como um
termômetro que indica se a economia está aquecendo ou esfriando. È
sobre esses dados que os investidores ajustam os próximos passos.
No
momento em que escrevemos, a produção da riqueza mundial está
encolhendo em ritmos que variam de um país a outro em função da
gravidade da pandemia, da fase em que esta se encontra, da forma como
ela atinge as atividades de alguns setores da economia e das
possibilidades de negócios que oferece a outros. Apesar das
projeções negativas do PIB mundial, a partir de abril, as
principais bolsas de valores apresentaram uma recuperação invejável
diante das perdas acumuladas em fevereiro e março de 2020.
Para
termos uma idéia deste processo, vamos comparar o maior nível de
pontos atingido nos dois primeiros meses do ano, quando a pandemia se
apresentava como uma ameaça localizada e distante, com o menor
patamar alcançado em março e com a posição consolidada no dia 26
de junho deste ano:15
Quadro
2: Variação dos índices das bolsas de valores entre 01/01 e 12/06
de 2020
Bolsas de Valores
|
Ápice jan-fev
|
Maior queda
|
Posição 26/06
|
Ápice x 26/06
|
Dow Jones - EUA
|
29.423
|
18.592
|
25.016
|
- 14,98%
|
S&P 500 – EUA
|
3.373
|
2.237
|
3.009
|
- 10,79%
|
Nasdaq Composite – EUA
|
9.817
|
6.861
|
9.849
|
0,33%
|
STOXX Eur. 600 – Zona
Euro
|
430
|
280
|
358
|
-16,74%
|
DAX – Frankfurt Alemanha
|
13.789
|
8.442
|
12.089
|
- 12,33%
|
CAC 40 – Paris França
|
6.104
|
3.755
|
4.910
|
- 19,56%
|
FTSE MIB – Milão Itália
|
25.447
|
15.315
|
19.124
|
- 24,85%
|
IBEX 35 – Madri Espanha
|
10.083
|
6.107
|
7.177
|
- 28,82%
|
Nikkei 225 – Japão
|
24.083
|
16.553
|
22.518
|
- 6,50%
|
CSI 300 – China
|
4.204
|
3.530
|
4.139
|
- 1,55%
|
Bovespa - Brasil
|
119.528
|
63.570
|
93.834
|
- 21,50%
|
Fonte:
Elaboração própria a partir dos dados referentes à evolução de
cada índice
O
quadro 2 comprova que o impacto da pandemia na evolução dos
negócios representados pelos índices considerados teve diferenças
significativas a depender das estruturas de saúde destinadas a
enfrentá-la, da realidade econômica de cada país, da possibilidade
de obter uma vacina antes do esperado, do volume de recursos
outorgados pelo Estado a fim de reduzir os danos produzidos pela
recessão, das perspectivas de retomada das atividades após o fim do
distanciamento social e dos temores relativos a uma nova onda de
contágio com os primeiros passos da volta à normalidade.
Com
base nesta somatória de fatores, as perdas registradas entre o ponto
mais alto da valorização e o que os operadores chamam de fundo do
poço flutuou entre 30,11% do índice Nasdaq Composite, que mede as
ações das principais empresas de tecnologia dos Estados Unidos, e a
Bovespa que sofreu a queda mais significativa entre os índices
considerados com seus 46,81%.
A
única exceção ficou por conta da China, o primeiro país a
enfrentar a pandemia com medidas que bloquearam drasticamente as
atividades econômicas, mas também o primeiro a voltar à
normalidade dos negócios quando o coronavírus ampliava seu efeito
devastador no mundo todo.
O
índice CSI 300 mostra bem esta realidade por ser o único a ter dois
ápices seguidos de duas quedas. Após atingir os 4.204 pontos em 13
de janeiro deste ano, caiu para 3.688 no dia 3 de fevereiro
(-12,26%); ultrapassou a marca de janeiro no dia 5 de março, quando
alcançou os 4.207 pontos, e voltou novamente ao fundo do poço 18
dias depois, quando a pandemia paralisava as atividades econômicas
em amplas regiões do planeta, ao marcar 3.530 pontos (-16,08%).
O
fato de o país deter mais de 50% da produção mundial de material
hospitalar16
e de ser um grande fornecedor de tecnologia da informação fez com
que a elevada demanda de produtos desses setores compensasse
parcialmente as perdas amargadas em outros, reduzindo a
desvalorização das empresas locais. O comportamento do mercado
externo no segundo semestre de 2020 ainda é definido como bastante
sombrio pelas autoridades da China que, no momento, não vêem as
exportações como elemento capaz de dar alento à recuperação
econômica do país.
Quando
comparamos as posições alcançadas no dia 26 de junho deste ano com
o ápice atingido em janeiro-fevereiro de 2020, percebemos que o
índice Nasdaq ultrapassou em 0,33% o pico alcançado em janeiro,
seguido pelo CSI 300 e pelo Nikkei, enquanto Itália, Espanha e
Brasil amargam perdas superiores a 20%. No caso do Brasil, apesar de
a pandemia estar fugindo do controle, o fato de a Bovespa ter
recuperado mais da metade dos pontos perdidos em março passado
guarda relação com o nível dos preços das principais commodities
destinadas à exportação.17
Contrastante
com as perspectivas negativas de crescimento traçadas pelas
instituições internacionais e com o preço do ouro que se mantém
27,93% acima do patamar de junho de 2019, o otimismo que animou a
recuperação das bolsas ganhou fôlego com a divulgação de
indicadores econômicos melhores em relação aos esperados.
Na
Zona Euro, por exemplo, na passagem de abril para maio, a taxa de
desemprego subiu de 7,1% para 7,3% quando era esperado um índice não
inferior aos 8%. No mesmo bloco econômico, a redução de 11,7% das
vendas do varejo em abril mostrou um quadro bem menos pessimista em
relação a uma queda entre 15% e 22,3% que o mercado estimava para o
mesmo mês.18
Na
China, as vendas do varejo em maio deste ano registraram uma queda de
apenas 3% em relação ao mesmo mês do ano passado.19
As
notícias dos Estados Unidos foram ainda melhores. Após registrar
uma taxa de desemprego de 14,7% em abril, a mais alta desde o fim da
Segunda Guerra Mundial, os operadores das bolsas de valores temiam
que, em maio, ela se aproximasse dos 20%. Mas o Departamento do
Trabalho estadunidense criou um clima de euforia ao anunciar que a
economia havia criado dois milhões e meio de novas vagas, levando o
desemprego local a 13,3%. A melhora do mercado de trabalho refletia
uma limitada, porém importante, retomada das atividades econômicas,
à medida que a indústria registrava o maior número de vagas
criadas (255.000), seguida pelos serviços profissionais (127.000) e
pelos empregados em atividades financeiras (33.000).20
O
avanço da riqueza dos bilionários estadunidenses colocou a cereja
no bolo das comemorações. Entre o início da pandemia nos EUA, no
dia 18 de março e o dia 20 de maio, a fortuna combinada dos
bilionários americanos aumentou nada menos do que 565 bilhões de
dólares, 19% a mais em relação ao montante que possuíam no
período anterior ao início do distanciamento social, num sinal
inequívoco de que a realidade criada pela pandemia fez muito bem aos
lucros de muitas grandes empresas.21
Vamos
sair agora do mundo dos negócios para conhecer o que está ocorrendo
entre as pessoas cuja maior façanha é conseguir recursos para matar
a fome.
3.
Uma visita aos pobres dos países ricos
Começamos
nossa viagem pela Espanha onde, entre março e maio deste ano, a
cidade de Madrid se tornou, ao mesmo tempo, o epicentro da pandemia e
o lugar de uma visão típica das nações onde a fome é sempre de
casa.
Nos
bairros operários da capital do país, havia filas enormes de
pessoas que ficavam até 7 horas em pé para ter acesso a um prato de
comida ou a uma sacola de alimentos. De acordo com um levantamento
realizado pela Câmara Municipal, uma em cada 4 famílias precisa de
ajuda para ter acesso a produtos de primeira necessidade. As mais
atingidas pela pobreza são as famílias dos desempregados e dos
trabalhadores que, antes da pandemia, viviam de contratos precários
ou trabalhavam por conta própria.
Sem
renda em função do bloqueio das atividades, sem seguro desemprego e
sem constarem dos programas municipais de renda mínima, estas
famílias só podem contar com a solidariedade da vizinhança ou com
a disponibilidade de alimentos em instituições de caridade para
matar a fome. Mas, com o fechamento dos restaurantes que doavam as
sobras das refeições e as coletas de alimentos oferecendo magros
resultados, estas instituições enfrentam várias dificuldades para
atender uma demanda que, nas primeiras semanas da pandemia, já havia
aumentado 36%.
Enquanto
empresas e bancos receberam uma ajuda que superou os 130 bilhões de
euros logo no início do isolamento social, foi somente no início de
junho que o Parlamento espanhol aprovou o programa de Renda Mínima
da Vida Familiar, destinado a atender 850.000 famílias em situação
de vulnerabilidade social a um custo total de 3 bilhões de euros.
Para as empresas, o socorro imediato e generoso do Estado. Para as
necessidades dos pobres, os tempos da burocracia.22
As
cenas de Madrid se repetiram em Milão, a cidade mais atingida pelo
coronavírus, e em muitas outras localidades da Itália onde a
pandemia provocou uma grande perda na renda conseguida com trabalhos
precários e informais. Em função disso, de acordo com a
Coldiretti, a principal entidade sindical italiana vinculada aos
pequenos agricultores, 700.000 crianças e adolescentes do país
vivem em domicílios onde as famílias enfrentam sérias dificuldades
para colocar comida na mesa.
Mas
além da solidariedade, o agravamento da pobreza e a evolução da
pandemia geraram tensões que levaram a enfrentamentos entre os
próprios pobres.
Na
cidade de Mondragone, entre Roma e Nápoles, moradores autóctones
que viviam de trabalhos precários antes da crise hostilizaram
imigrantes, vindos da Bulgária, que residem no mesmo bairro e vivem
num grau de pobreza ainda maior. As queixas de que, ao violar o
lockdown para trabalhar nos plantios dos fazendeiros locais, os
imigrantes estariam espalhando o vírus se transformaram em gritos
que acusam estes trabalhadores de estarem “roubando” os empregos
que poderiam tirar os autóctones do sufoco causado pela recessão.
Uma manifestação espontânea, ocorrida no dia 25 de junho, reuniu
cerca de cem pessoas em frente ao conjunto habitacional onde moram os
búlgaros. Houve insultos, hostilidades e agressões de ambos os
lados e só não produziram algo pior pela intervenção da polícia.23
Há momentos em que a mescla de xenofobia e desespero faz os pobres
se digladiarem entre si, enquanto os ricos contemplam a possibilidade
de reduzir ainda mais o pagamento pelo trabalho em suas lavouras.
As
filas de pessoas à espera que entidades ligadas a igrejas e ONGs
beneficentes distribuam doações de comida também foram longas na
Suíça. No sábado, dia 16 de maio, em Genebra, cerca de 1.500
pessoas desnudaram a pobreza que, antes da pandemia, era escondida
pelas imagens dos hotéis luxuosos, das mansões, das vitrines de
relógios transformados em jóias e dos bancos em cujos escritórios
é proibida a entrada de clientes cuja fortuna é inferior a um
milhão de dólares.
A
recessão causada pela pandemia fez emergir a realidade dos
imigrantes e das famílias carentes que, na fase anterior, ganhavam a
vida nas cozinhas de hotéis e restaurantes, limpando mansões ou em
qualquer serviço que permitisse ganhar o pão de cada dia.
Na
cidade onde os bancos guardam as contas secretas dos magnatas e os
cofres lotados de dinheiro, barras de ouro e diamantes abrigam o
fruto da exploração do trabalho mundial, as filas da fome expõem
os rostos envergonhados dos que a crise privou do pouco que
conseguiam.24
Da
Europa passamos aos Estados Unidos. No país que viu o patrimônio
dos bilionários atingir patamares inesperados em plena recessão,
milhões de pessoas que viviam de atividades informais, de trabalhos
temporários ou de tempo parcial perderam seus empregos até o início
de junho e mergulharam num período de crescentes dificuldades
econômicas.25
Sem perspectivas de encontrar uma ocupação para garantir o seu
sustento, passaram a depender da solidariedade de vizinhos e
instituições para matar a fome.
Segundo
o Departamento de Agricultura dos EUA, antes do início da pandemia,
cerca de 37 milhões de estadunidenses enfrentavam situações de
insegurança alimentar em função da renda incerta ou extremamente
baixa proporcionada por seus trabalhos. Em função disso, muitos
deles recebiam a comida oferecida gratuitamente por instituições de
caridade e pelos Bancos de Alimentos.
De
acordo com uma pesquisa realizada pela Universidade de Washington na
segunda quinzena de março deste ano, as entidades que faziam doações
de alimentos haviam recebido pelo menos o dobro do número de pedidos
registrados no mesmo período de 2019, sendo que, nas regiões mais
atingidas pela pandemia, a demanda chegava a ser cinco vezes maior.26
A
resignação e a aparente calmaria diante do massacre provocado pela
recessão foram parcialmente sacudidas pelas manifestações que
ganharam as ruas dos EUA depois da morte de George Floyd, um
afro-americano de 46 anos, desempregado, cujos últimos instantes de
vida foram vistos no mundo inteiro.
“Não
consigo respirar”, dizia George ao ser assassinado, no dia 25 de
maio, por um policial branco que esmagava o seu pescoço sob o
joelho, depois de tê-lo rendido devido à acusação de um lojista
que afirmava ter recebido uma nota falsa de 20 dólares como
pagamento da compra por ele efetuada.
“Não
consigo respirar” foram as palavras que homens e mulheres de todas
as etnias gritaram e gravaram em faixas e cartazes nas manifestações
em repúdio ao racismo que percorreram o mundo.
Grande
parte da mídia apontou como problema central os protocolos que
regulam as abordagens policiais de suspeitos de terem cometido algum
crime, a necessidade de melhorar o treinamento dos agentes e de
eliminar as manifestações de racismo presentes nas cidades
estadunidenses.
Não
negamos que tudo isso seja necessário, mas há um aspecto que chamou
a nossa atenção: por que os afro-americanos transformaram as
últimas palavras de George no grito de sua própria revolta? A quem
interessa que a dinâmica mutante, mas sempre presente, do racismo
oriente as relações sócio-econômicas de um país que é
considerado a maior democracia do planeta e faz do sonho americano a
idéia que atrai pessoas do mundo todo? Concretamente, por que os
afro-americanos não conseguem respirar no país onde nascem,
crescem, trabalham e morrem?
Repare
que não estamos falando de imigrantes sem documentos que se sujeitam
a tudo para ganhar a vida e poderem enviar às suas famílias no
exterior os recursos que poupam, e sim de cidadãos que gozam de
todos os direitos civis reconhecidos pelo Estado desde o final dos
anos 60, quando a segregação foi eliminada da legislação
estadunidense.
Um
primeiro indício de resposta vem do próprio Martin Luther King para
o qual não bastava combater a segregação, era necessário eliminar
a injustiça social que a sustenta. Esta posição não era fruto de
conjecturas abstratas e sim da reflexão sobre as mudanças na
realidade do trabalho que vinham ocorrendo nos anos em que a luta
contra a segregação alcançava seu patamar mais elevado.
Conforme
estudo realizado por Sérgio Lessa,27
nas décadas de 50 e 60, a opção da elite de flexibilizar a
discriminação racial visava responder à necessidade de manter
baixos os salários dos operários especializados brancos. Ao impedir
o acesso dos negros a determinadas funções no ambiente fabril num
período de forte crescimento econômico, o racismo havia se
transformado em obstáculo à acumulação. O desenvolvimento e a
ampliação da indústria fordista precisavam de um número crescente
de trabalhadores preparados para assumir as tarefas mais importantes
do processo produtivo e a escassez desta força de trabalho,
tipicamente composta por brancos, fazia com que os salários
aumentassem, encolhendo as possibilidades de lucro.
Transformar
negros em operários especializados levou a criar um grande número
de trabalhadores prontos a assumir estes postos e fez os salários
destas profissões caírem. Os ordenados dos negros permaneceram num
patamar inferior ao dos brancos e isso manteve o racismo como um meio
poderoso para dividir a classe trabalhadora. Isolados e humilhados
pelos representantes das empresas, com inúmeras dificuldades de
relação com os colegas brancos e tendo suas reivindicações
raramente acolhidas pelos sindicatos, os afro-americanos passam a
viver numa sociedade que mescla igualdade de direitos legais e
segregação econômica.
Após
a crise de 1974-75, a reestruturação do trabalho fabril promovida
pelas mudanças tecnológicas altera as funções especializadas e
eleva o desemprego. Este processo se soma ao crescente número de
imigrantes e à possibilidade de as empresas transferirem suas
atividades para países onde encontram uma força de trabalho farta,
salários baixos, acesso fácil às matérias-primas e baixa
conflitualidade sindical. Graças a estes ingredientes, temos um
processo pelo qual a classe trabalhadora perde sua capacidade de
manter os direitos conquistados e os afro-americanos vêem definhar
as possibilidades de reduzir a segregação econômica na qual se
encontram.28
De
acordo com o Economic Policy Institute, antes da pandemia, para cada
100 dólares ganho por um estadunidense branco, um afro-americano
recebia apenas 73 como pagamento do mesmo trabalho. Esta diferença
cria as condições materiais para que a taxa de pobreza entre os
negros seja 2,5 vezes maior em relação à dos brancos. 29
Do
mesmo modo, os dados levantados pela sucursal de Cleveland do Federal
Reserve Bank provam que a desigualdade nos ganhos das duas etnias se
manteve praticamente inalterada ao longo do tempo. Segundo esta
sucursal do Banco Central dos EUA, em 2019, a riqueza média das
famílias brancas era 6,5 vezes maior do que a média constatada
entre as afro-americanas, uma diferença muito semelhante em relação
à que existia em 1962.30
Para
manter esta realidade, o racismo mostra sua presença desde os
processos de seleção dos candidatos a uma vaga. Em 2016, as
Universidades de Toronto e de Stanford realizaram um estudo mostrando
que os afro-americanos que tentavam esconder nos currículos enviados
às empresas o fato de serem negros tinham mais que o dobro de
chances de serem convocados para uma entrevista com os possíveis
empregadores em relação àqueles que declaravam abertamente a cor
da pele.31
A
discriminação que marca presença nos salários e nas condições
de vida, determina também as diferenças nos níveis de
empregabilidade dos indivíduos.
Durante
uma crise econômica, este último elemento faz toda diferença. Como
vimos, as estatísticas sobre o desemprego nos EUA durante o mês de
maio anunciavam que, com a reabertura parcial da economia, a taxa de
desemprego oficial havia caído de 14,7% em abril para 13,3%. Entre
os negros, porém, os números não revelavam nenhuma melhora ao
mostrar que o desemprego havia passado de 16,7% para 16,8% entre
abril e maio.32
Com
uma renda menor e uma dificuldade maior de encontrar emprego, os
afro-americanos acabam morando em bairros onde a pobreza prepara o
terreno para a criminalidade ampliar seu raio de ação. Com a
incerteza marcando o cotidiano da vida, a fronteira entre viver em
meio a mil dificuldades pelos parcos ganhos de um trabalho honesto e
a oportunidade de conseguir um pouco mais graças ao crime se torna
tênue e porosa. O envolvimento das pessoas em situações violentas
aumenta e, com elas, aumenta também o estigma do preconceito.
Segundo
a Pew Research, em 2018, de cada grupo de 100.000 afro-americanos,
1.501 estavam presos, quase o dobro em relação aos hispânicos
(797) e cinco vezes e meia maior do que os brancos não hispânicos
(264). Apesar de terem caído cerca de um terço em relação a 2006,
as taxas de detenção dos negros acabam alimentando o círculo
vicioso que eleva a pobreza e a marginalização.
Neste
cenário cuja origem está na segregação econômica, não causa
estranheza que o preconceito ganhe asas entre as forças policiais.
De acordo com o estudo da Universidade de Northwestern, os negros têm
2,5 vezes mais chances de morrerem nas mãos da polícia do que os
brancos.33
Nos EUA, como no Brasil e em muitos outros países, ser negro é
sinônimo de ser suspeito, o que, no entender dos agentes do Estado,
acaba justificando o uso de medidas mais duras.
As
desigualdades econômicas também se refletem fortemente nos cuidados
com a saúde. Entre os negros, são muito mais freqüentes os casos
de diabetes e de doenças ligadas à alimentação e às precárias
condições de vida. De acordo com os Centros de Controle e Prevenção
de doenças (CDC, pela sigla em inglês) 34,
os negros com idades entre 18 e 49 anos têm duas vezes mais chances
de morrerem de problemas cardíacos do que os brancos, e os da faixa
entre 35 e 64 anos têm 50% mais possibilidade de sofrer de
hipertensão. Em função disso, não é de estranhar que, segundo
estas entidades, os negros estadunidenses representem 22,9% das
mortes pela Covid-19, apesar de serem apenas 13,4% da população.
Resumindo,
podemos dizer que o racismo foi e continua sendo um elemento poderoso
no processo de acumulação. De um lado, permite pagar,
sistematicamente, salários inferiores aos que são recebidos pelos
brancos. De outro, cria as condições que alimentam o preconceito e
ocultam os mecanismos econômicos que sufocam os negros em estruturas
de dominação raramente visíveis a quem só percebe o racismo
quando a ação covarde de um policial desperta indignação. Nesta
realidade, as medidas que se destinam exclusivamente a alterar os
protocolos de abordagem da polícia, como as que foram assinadas por
Donald Trump, não passam de mudanças cosméticas que, por
necessárias que sejam, não alteram a coluna vertebral do racismo.
4.
A crise entre os pobres da América Latina
Dos
Estados Unidos, passamos ao nosso continente, onde vamos olhar de
perto a realidade da Colômbia, do Peru e do Chile. Optamos por estes
países pelo fato de seus governos terem sido fiéis seguidores do
receituário neoliberal, pelos baixos índices de desemprego
registrados antes da crise e pelas diferentes formas nas quais suas
populações reagem ao agravamento dos problemas sociais criados pela
pandemia.
A
Colômbia é um país com cerca de 49 milhões e meio de habitantes,
sendo que 38,7% deles sobrevivem com uma renda inferior aos 5 dólares
e 50 centavos diários que definem a linha da pobreza.35
Em
março deste ano, o Departamento Administrativo Nacional de
Estatística (DANE) afirmava que o desemprego atingia apenas 2
milhões e 969 mil pessoas e que, em função da recessão causada
pela pandemia, este número havia subido para 4 milhões e 82 mil, em
abril.36
Trata-se, sem dúvida, de um aumento considerável, mas,
infelizmente, passa longe de representar o drama vivido pelos
trabalhadores colombianos.
De
fato, em agosto de 2019, o próprio DANE calculava que a
informalidade atingia 62% dos ocupados nas áreas urbanas e 84% dos
que trabalham nas regiões rurais. Temos, portanto, uma situação
dramática à medida que mais de dois terços da população do país
não conta com nenhuma forma de proteção social diante da perda dos
rendimentos do trabalho. 37
Em
Soacha um bairro na periferia de Bogotá, capital do país, o DANE
estima que 60% dos seus moradores vivem na pobreza, um índice bem
maior do que a média nacional. Aqui a informalidade é de casa e as
condições de vida andam sempre de mãos dadas com a insegurança.
Conforme o relato de uma moradora, “o que conseguimos em um dia,
o gastamos no outro”. Ou seja, mesmo sem a pandemia, basta um
nada para que a família se veja obrigada a cortar uma das três
refeições por falta de comida.38
Nesta
realidade, uma quarentena que prevê o fechamento total das
atividades tem um impacto devastador, ainda mais quando é decretada
sem que o governo conceda subsídios e ajudas para minorar a fome.
Foi
por este motivo que, impedidas de trabalhar desde o dia 19 de março,
milhares de pessoas foram às ruas das cidades colombianas no dia
seguinte exigindo uma renda básica para as famílias pobres
enfrentarem a pandemia. Os protestos se concentraram em Bogotá e
manifestações menores ocorreram também em Cali, Medellín e outras
localidades do interior do país. Na capital e em San Cristóbal a
tropa de choque foi encarregada de dispersar os protestos dos grupos
de trabalhadores informais, desempregados e imigrantes que pediam
recursos para terem o que comer.
Dias
depois, o governo respondeu à crise com um pacote de 15 bilhões de
dólares. Desse total, o valor da ajuda alimentar destinada às
famílias pobres (sacolas com arroz, lentilhas e farinha) não passou
de um milhão e 800 mil dólares. O presidente se comprometeu também
a emitir 500 mil bônus com valores mensais entre 45 e 110 dólares
aos lares mais necessitados e suspendeu os pagamentos das contas de
abastecimento de energia e água.39
O
sinal de que estes recursos servem a bem pouco está nas janelas de
Soacha e de muitos bairros das cidades colombianas, onde as famílias
mais necessitadas penduram um trapo vermelho para sinalizar as casas
onde as pessoas mais precisam da solidariedade para poder comer.
A
idéia nasceu espontaneamente como uma resposta aos apelos da
primeira dama do país que, no início da pandemia, pediu à
população que pendurasse na janela a bandeira nacional, como
símbolo do entusiasmo de um povo engajado na luta contra o vírus. À
medida que a realidade dos pobres passa longe da possibilidade de
viver o isolamento nos moldes típicos das classes abastadas, o pano
vermelho na janela passou a representar um pedido de socorro e um
símbolo de protesto contra a política governamental. 40
No
dia 15 de abril, em Soacha e em outros bairros da capital, bem como
em Medellín e Ciénaga as pessoas saíram às ruas para protestar
agitando esses panos vermelhos, batendo panelas e cantando o hino da
Colômbia. A quarentena havia sido ampliada até o final de abril e,
dos 500 mil bônus prometidos pelo governo, apenas 280 mil haviam
sido entregues até aquele momento. Além de ser uma mixaria, a ajuda
para aliviar a fome estava atrasada. 41
Nesse
dia, estações do sistema de transporte público da capital foram
ocupadas pelos manifestantes, rodovias foram bloqueadas, panelaços
foram ouvidos em Bogotá e nas principais cidades do país e
ocorreram tentativas de saques aos supermercados. A tropa de choque
foi chamada e não poupou recursos para dissolver as manifestações.
Mas
esta não é a única violência que preocupa ao olharmos para a
Colômbia. Na contramão de uma queda de 16% dos homicídios
registrados no país inteiro durante o primeiro quadrimestre de 2020,
o levantamento realizado pela Fundação Idéias para a Paz revela
que, neste período, foram assassinados 49 líderes sociais, um
aumento 53% em relação aos primeiros quatro meses de 2019, e as
agressões praticadas contra eles registraram um crescimento de 10%.42
Estamos
falando de dirigentes sindicais e de líderes comunitários,
camponeses, e indígenas, ou seja, de pessoas cujo contato direto com
o povo pode transformar descontentamento em ação coletiva por
mudanças. A nosso ver, não há dúvidas de que se trata de um
recado dos donos do poder a quem deseja fazer ecoar o grito dos
pobres por justiça.
Da
Colômbia, passamos ao Peru, país que, com seus 32 milhões e 900
mil habitantes, foi considerado uma “estrela em ascensão” pelos
economistas liberais do mundo inteiro. Vejamos o porquê.
De
acordo com o Banco Mundial, entre 2002 e 2019, o PIB do país cresceu
em média 4,6% ao ano. Neste período, o PIB per capita passou de U$
2.021 para U$ 6.941. Graças a este crescimento, a taxa de desemprego
caiu de 5,84% em 2002 para 3,93% em 2018.
O
Peru encerrou 2019 com um PIB de quase 229 bilhões de dólares,
reservas cambiais de 68 bilhões e 44 milhões de dólares, inflação
anual em 2,80%, déficit público e dívida interna que correspondem,
respectivamente a apenas 1,6% e 26,8% do seu Produto Interno Bruto.43
No
campo da saúde pública, ainda de acordo com o Banco Mundial, o país
passou de um investimento correspondente a 2,3% do PIB em 2000, para
3,2% em 2015 (último dado disponível), o que fez o gasto per capita
pular de U$ 123 para U$ 414 no mesmo espaço de tempo, um aumento de
336,58%.44
Por
esses números, deveríamos encontrar um país preparado para
enfrentar a pandemia, ainda mais que a primeira resposta
governamental aos desafios por ela colocados impressionou o mundo das
finanças com seus 26 bilhões de dólares.45
Mas
o brilho dos números que fazem a felicidade dos economistas liberais
esconde duras realidades. Em primeiro lugar, é preciso dizer que o
forte crescimento do país ao longo das últimas décadas, além da
expansão da extração de petróleo se deve, sobretudo, ao forte
aumento da mineração de ouro, cobre, zinco, chumbo e estanho. Os
produtos deste setor, em 2019, representaram 9% do PIB, 60% dos
dólares recebidos com as exportações, 20% da receita total
arrecadada através do Imposto de Renda, empregando apenas 220.000
pessoas.46
Do
mesmo modo, é grande o peso da agricultura entre os produtos
vendidos a outros países. Não podemos esquecer que o Peru é
campeão na exportação de abacates, uvas e aspargos, produzidos em
terrenos de cultivos destinados a satisfazer desejos alimentares de
outros povos, e não as necessidades da população local.
Ao
apostar nestes investimentos, o Peru acabou se tornando fortemente
dependente das exportações de produtos primários para ter acesso
aos dólares que permitem ao país importar o que precisa para fazer
sua economia funcionar. Esta dependência é ainda forte em relação
à China que compra 70% do cobre peruano e todo o ouro extraído
pelas suas multinacionais que atuam no país.47
Se,
de um lado, os ganhos com a venda das commodities minerais fizeram a
felicidade de empresários e governantes, de outro, além da
devastação do meio-ambiente, elevaram os problemas de saúde
causados pelo acúmulo de poeira nos pulmões dos trabalhadores.
Quando somamos a esta realidade as precárias condições de vida dos
vilarejos onde moram os mineiros, a proximidade na execução das
tarefas típicas do seu trabalho e o fato de estas não terem sido
interrompidas mesmo após a detecção do contágio nas mineradoras
temos como resultado a preparação de um terreno fértil para as
formas mais devastadoras da Covid-19.
A
baixa taxa de desemprego medida pelos institutos governamentais
esconde uma realidade aterradora. Longe de termos postos de trabalho
que oferecem alguma proteção social, os anos de crescimento
econômico deixaram quase intocada a informalidade que caracteriza o
mercado de trabalho do país.
Em
2004, cerca de 80 em cada 100 trabalhadores não possuíam nenhum
vínculo formal de emprego. Este número desceu a 65 em cada 100, em
2018, o patamar mais baixo registrado pelas pesquisas; e, em 2019, a
informalidade voltou a subir, alcançando 71%.48
Ou seja, 71 em cada 100 pessoas sobrevivem com aquilo que conseguem
ganhar dia após dia e não têm acesso a nenhuma forma de proteção
social.
Em
meados de março, o governo do Peru criou um bônus de 760 sóis
peruanos (U$222) a ser pago a 6 milhões e 800 mil lares mais pobres.
O valor total desta ajuda que não cobre as necessidades ocasionadas
pela falta de trabalho soma pouco menos de um bilhão e 510 mil
dólares. Quem fez o país crescer com o suor do seu rosto tem que se
contentar com apenas 5,8% dos 26 bilhões de dólares em recursos
emergenciais que o governo liberou no início da pandemia.49
Podemos
ter uma idéia melhor da condição de vida da maioria da população
quando saímos dos parâmetros monetários que definem a pobreza para
entrarmos nas casas das pessoas comuns. De fato, quando a economia
cresce, pode não ser tão difícil ganhar o correspondente a mais de
5 dólares e 50 centavos por dia, mas isso não significa que as
famílias contam com condições de vida melhores e mais estáveis.
Neste
sentido, é interessante reparar que, apesar da taxa de pobreza ter
caído de 58,7%, em 2004, para 21,7%, em 2018, de acordo com a
Pesquisa Nacional de Lares, realizada pelo governo em 2019, apenas
21,9% das famílias peruanas têm geladeira e somente 38,1% dos
adultos têm uma conta bancária.
Em
relação à pandemia, a soma de trabalho informal, impossibilidade
de guardar certa quantidade de alimentos e falta de conta bancária
para receber o bônus do governo obrigou uma multidão de pessoas a
romper o isolamento para ganhar alguma coisa, ir aos mercados comprar
comida ou aguardar a vez de ser atendido em longas filas diante dos
bancos. Isso sem contar que, para 11,8% das famílias peruanas, o
distanciamento social soa como uma piada de mau gosto, à medida que
a pobreza obriga seus mais de cinco componentes a morarem em um único
cômodo.50
A
realidade que descrevemos se traduz nos índices de mortalidade do
vírus que variam a depender das regiões do país. De acordo com o
mapa da pandemia da Universidade John Hopkins, dos EUA, atualizado em
19 de junho, no Peru, a taxa média de letalidade por Covid-19 é de
3% dos infectados, mas atinge 6,53% nos locais mais pobres, como Ica,
600 km a sul da capital.51
Apesar
da elevação dos gastos governamentais a partir de 2000, as redes de
saneamento básico e de saúde pública permanecem extremamente
frágeis. Em Lima, a capital do Peru, o abastecimento de água é
oferecido por cerca de 19 horas diárias,52
enquanto em Iquitos, uma cidade na região norte do país, a água
potável está disponível somente durante 5 horas, inviabilizando os
cuidados com a higiene pessoal.
Ao
longo da pandemia, numerosos hospitais públicos do Peru registraram
falta de leitos e de equipamentos para atender os pacientes atingidos
pela Covid-19. A lotação das UTIs disponíveis ocorreu também em
Lima onde o governo precisou invocar o direito constitucional de
expropriar os privados em casos de segurança nacional ou necessidade
pública para que as clínicas particulares reduzissem pela metade as
tarifas cobradas para aceitar os pacientes da rede pública.53
Mas,
por difícil que seja a situação em muitas unidades de saúde é em
Iquitos, cidade-sede do hospital regional, que encontramos uma das
situações mais gritantes.
Além
de não haver medicamentos suficientes para os doentes internados, há
uma grande concentração de contaminados que recebem o atendimento
possível nos corredores e no pátio externo do hospital. Os mortos
pela Covid 19 são guardados em sacos e amontoados no necrotério
onde passam dias até serem sepultados. Do lado de fora, os parentes
aguardam pacientemente a liberação dos corpos em filas
intermináveis.
A
ajuda que chega da capital vem a conta-gotas e os médicos aconselham
os parentes dos novos contaminados a ficarem em suas casas, ainda que
haja risco de morte, à medida que não há como prestar a eles
nenhum cuidado hospitalar.
Em
busca de uma solução, o governo local distribuiu cilindros de
oxigênio aos que tentam a cura em seus lares, mas até esse gás tão
comum e tão precioso no tratamento da Covid-19 anda em falta. E,
frequentemente, as pessoas precisam vender o que têm para poder
comprá-lo junto a algum fornecedor privado. 54
No
Peru, as filas do desespero impressionam pelo cumprimento e pelas
histórias de quem busca nelas um fio de esperança ou, simplesmente,
a possibilidade de dar o último adeus a um ente querido. Este longo
rastro de dor prova, mais uma vez, que crescimento econômico não é
sinônimo de bem-estar para a maioria da população que, neste
momento, trata seus sofrimentos com doses generosas de resignação.
Passo
a passo, chegamos ao Chile que, em 2019, viu seu PIB somar mais de
282 bilhões de dólares, manteve a dívida interna em 27,9% deste
valor e se orgulhou de ter apenas 4,4% dos seus 19 milhões de
habitantes abaixo da linha da pobreza. 55
Mas
a posição invejável que o país ostentava com esses dados começou
a ser questionada pelas manifestações em repúdio ao aumento da
passagem do transporte público ainda em outubro do ano passado. A
ampliação e o prolongar-se da revolta popular revelavam uma
indignação que os manifestantes expressavam com a frase: “não
é por trinta pesos, é por trinta anos”. Trinta anos de
desigualdade, de fragilidade das formas de proteção social, de
promessas não cumpridas, de baixos salários, de endividamento
familiar para custear estudos e cuidados médicos, de precarização
do trabalho para 30-40% das famílias, sim, trinta anos que haviam
criado uma bomba-relógio cujo detonador foi acionado pelo aumento
das passagens.56
Os
protestos encurralaram o governo do Presidente Sebastián Piñera,
forçando-o a marcar um referendo para decidir a elaboração de uma
nova Constituição para o país. Em meados de março, a pandemia
silenciou a voz dos inconformes. O Estado de emergência que
instaurou o isolamento social, impôs o toque de recolher e colocou
uma ostensiva presença policial nos espaços urbanos, tirou o povo
da rua e agravou a situação de quem vivia na corda-bamba.
Com
o centro de Santiago fechado às atividades não essenciais e o
aumento do desemprego, as classes média e média-alta perderam 32%
da renda enquanto os setores mais vulneráveis partilharam a mesa com
a fome ao ver seus ganhos caírem 72%.57
As
medidas econômicas de Sebastián Piñera mostraram desde o início
quem seria beneficiado pela ação do Estado. No final de março, o
Presidente do Chile anunciou o primeiro pacote de estímulo à
economia no valor de 11 bilhões e 700 milhões de dólares. Sob a
pressão da oposição, este montante incluía três parcelas de um
auxílio emergencial para as famílias mais pobres no valor de 65.000
pesos chilenos (cerca de R$ 440,00), em junho, de 55.000 pesos (R$
380,00), em julho, e uma última contribuição de 45.000 pesos (R$
310) em agosto. Ou seja, enquanto o socorro às empresas era
imediato, a fome do povo devia esperar dois meses e meio para
encontrar algum alívio.
Em
abril, Piñera anunciou novas medidas para enfrentar a pandemia que
previam um fundo de 2 bilhões de dólares destinados a beneficiar
quase 2 milhões e 600 mil trabalhadores informais sem acesso ao
seguro-desemprego e uma linha de crédito de 24 bilhões de dólares
com garantia estatal para micros, pequenas e médias empresas.58
No
dia 13 de maio, as autoridades chilenas pediram ao FMI um empréstimo
de 23 bilhões e 800 milhões de dólares, destinado exclusivamente a
socorrer as empresas.59
Sob
o peso desta realidade, em meados de maio, cerca de 200 pessoas
realizaram um protesto no centro de Santiago para fazer ouvir o seu
desespero. Lançando mão do decreto que impede a reunião de mais de
50 pessoas no mesmo local, o governo ordenou que os manifestantes
fossem dispersos por uma duríssima intervenção policial.
Mas
a repressão não sacia a fome e nem cala a indignação que nasce
dela. Nos dias seguintes, enfrentamentos com a polícia e barricadas
foram registrados também nas cidades de Antofagasta, Concepción e
Valparaíso. Em 18 de maio, centenas de moradores de El Bosque, um
pequeno município a sul de Santiago, romperam o confinamento e
saíram às ruas para protestar. Houve saques e confrontos com a
policia que se encerraram com 22 pessoas detidas.
No
dia 20, a bota da repressão esmagou um protesto em La Pintana, outro
município operário na periferia de Santiago. Segundo a prefeita
Claudia Pizarro, 88,9% dos cerca de 177.000 habitantes vivem na
pobreza e 14% deles se amontoam em habitações de até 12 metros
quadrados. Basta isso para entender por que as pessoas foram para a
rua gritando “preferimos morrer de coronavírus que de fome”.60
Também
em La Pintama, os manifestantes ergueram barricadas, enfrentaram a
polícia que lançou mão de todos os meios para sufocar a revolta
dos famintos. Como cantava Violeta Parra na música “La carta”,
“em minha pátria não há justiça, os famintos pedem pão,
chumbo lhes dá a milícia”.
É
interessante reparar que, em algumas áreas da região metropolitana
de Santiago, a ajuda do narcotráfico chegou antes daquela que havia
sido prometida pelo Estado. A distribuição de cestas de alimentos
às famílias das regiões controladas pelas gangues se uniu à
solidariedade dos vizinhos para proporcionar uma refeição às
famílias desamparadas.61
Até meados de junho, apenas 57% das famílias mais pobres da capital
e das áreas adjacentes haviam recebido algum tipo de ajuda (bônus
em dinheiro ou cesta de alimentos) do governo.62
Diante
do agravamento da pandemia, no dia 15 de junho, Sebastián Piñera
prorrogou o Estado de exceção por 90 dias. Policiais e militares
farão respeitar o isolamento social, controlarão as permissões de
quem está nas ruas, fiscalizarão o transporte público e irão
impor o toque de recolher. Sabendo que de cada 100 trabalhadores dos
níveis sócio-econômicos mais baixos apenas 28 podem trabalhar a
partir de suas casas, não é difícil imaginar o que irá
acontecer.63
Para
assegurar o respeito às normas legais, o senado chileno aprovou, no
dia seguinte, uma lei que estabelece multas entre 300 mil e 10
milhões de pesos (de 2.034 a 67.800 reais) e penas que variam de 61
dias a 3 anos de prisão para quem descumprir a quarentena, não
respeitar as medidas sanitárias prescritas pelas autoridades ou não
retirar a autorização para sair de casa emitida pelo poder
público.64
Agora,
os pobres podem escolher entre morrer silenciosamente em suas casas,
ou apodrecer em prisões superlotadas por tentarem ganhar o pão de
cada dia ou por teimar em fazer ouvir o seu grito de revolta.
As
nossas visitas a algumas realidades dos países ricos e da América
Latina mostram que, além dos negros
estadunidenses, os pobres do mundo inteiro também não
conseguem respirar. Preocupada com o desemprego e a falta de pão, a
grande maioria deles não percebe a relação entre suas privações
e a riqueza que dorme nos cofres empresariais à espera de novas
oportunidades para se multiplicar com o seu suor e a sua penúria.
A
indignação expressa nos protestos ainda se concentra em condenar
atitudes individuais e coletivas, em denunciar abusos de governantes
e forças policiais, em reivindicar o básico que a falta de trabalho
está negando, mas ignora as relações de exploração e o papel
nada neutro do Estado no jogo da acumulação capitalista.
Como
um cachorro que morde a pedra, e não a mão que a lança, os
protestos mordem medidas e atitudes que despertam raiva e indignação,
mas não ameaçam as engrenagens que as sustentam e que se alimentam
delas para lubrificar as relações de poder.
As
contradições gritantes desta crise econômica não cessam de
oferecer estímulos a uma reflexão mais profunda, de convidar os
trabalhadores e as trabalhadoras do mundo inteiro a apostar numa ação
que arranque o mal pela raiz.
Uma
ação que começa com a construção de organizações capazes de
transformar em realidade a frase que as lutas do passado entregaram
aos protestos do presente: “não haverá paz enquanto não
houver justiça”.
Brasil,
01 de julho de 2020.
1
O
relatório completo da OCDE encontra-se disponível em:
https://www.oecd.org Acesso em 11/06/2020. O relatório completo
do FMI encontra-se disponível em:
https://www.imf.org/em/Publications Acesso em 25/06/2020.
2
As
porcentagens relativas à queda do comércio mundial constam no
mesmo relatório do FMI em: https://www.imf.org/em/Publications
Acesso em 25/06/2020.
3
O
relatório completo encontra-se disponível em:
https://www.wto.org/english/news_e/pres20_e/pr855_e.htm Acesso em
25/05/2020
4
A
queda no valor das importações foi calculado pelo autor a partir
dos dados da balança comercial divulgados em:
https://www.ceicdata.com/pt/country/china Acesso em 11/06/2020. As
porcentagens relativas à queda do comércio mundial constam do
relatório do FMI em: https://www.imf.org/em/Publications Acesso em
25/06/2020.
5
Dados
divulgados em: https://pt.tradingeconomics.com/commodities Acesso em
25 de junho de 2020
6
Em:
https://ilostat.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/briefingnote/wcms_749399.pdf
Acesso em 01/07/2020.
7
Em:
https://ilostat.ilo.org/global/topics/coronavirus/impacts-and-responses/WCMS_745965/lang--es/index.htm
Acesso em 25/06/2020.
8
Em:
https://www.imf.org/em/Publications Acesso em 25/05/202
9
Dados
publicados em:
https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/19/veja-medidas-economicas-adotadas-pelos-paises-para-socorrer-populacao-e-empresas.ghtml
Acesso em 09/06/2020.
10
Dados
publicados em:
https://elpais.com/economia/2020-06-04/el-bce-incrementa-su-plan-de-compra-en-600000-millones-ante-el-deterioro-economico.html#?sma=newsletter_diaria_noche20200604m
Acesso em 09/06/2020
13
Infelizmente,
não é possível saber a porcentagem destinada para salvar as
empresas e para socorrer as pessoas, seja no que diz respeito ao
atendimento hospitalar, como na forma de ajuda imediata diante da
perda do trabalho e da forte redução da renda. Mais adiante,
apresentaremos o que conseguimos neste sentido ao relatar a situação
de alguns países.
15
Dados
extraídos de: Dow Jones: https://g.co/kgs/uBXUwX ; S&P 500:
https://g.co/kgs/tM5Q47 ; Nasdaq Composite: https://g.co/kgs/UJUQDQ
; Stoxx Europe 600: https://g.co/kgs/pbWpec ; DAX:
https://g.co/kgs/Zjg8Dy ; CAC 40: https://g.co/kgs/r2pME5 ; FTSE
MIB: https://g.co/kgs/qkuEvo ; IBEX 35: https://g.co/kgs/snvd6m ;
Nikkei 225: https://g.co/kgs/z5wbBW ; CSI 300:
https://g.co/kgs/5Z2Q2R ; Bovespa: https://g.co/kgs/me6XSA Todos os
acessos foram realizados em 13/06/2020.
17
O
minério de ferro com teor de 62%, por exemplo, registrou um aumento
de preços de 12,44% entre 27 de maio e 26 de junho, mas ainda
amarga uma perda de 13,58% em relação ao patamar de 27 de junho do
ano passado. No mesmo período, a soja teve um aumento de 1,88% em
relação ao mês anterior, mas ainda apresenta um recuo de 2,32%
ante junho de 2019; e a carne de boi conheceu uma valorização de
3,26% nos últimos 30 dias e de 32,19% em relação a 27 de junho de
2019. Dados divulgados em:
https://pt.tradingeconomics.com/commodities Acesso em 13 de junho de
2020.
-
https://brasil.elpais.com/economia/2020-05-29/espanha-aprova-renda-minima-vital-para-850000-familias.html
Todos
os acessos foram realizados em 13/06/2020.
23
Os
acontecimentos foram retratados na reportagem de Dario Del Porto,
Gli
scontri di Mondragone tra italiani e bulgari – “Noi a casa, loro
lavorano”,
publicada no jornal diário La
Repubblica, edição
impressa de 26/06/2020, pg 3.
24
Informações
disponíveis em:
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/05/21/fila-comida-genebra.htm
Acesso em 04/06/2020.
27
Em:
LESSA, Sérgio. Capital
e Estado de bem-estar social
– o
caráter de classe das políticas públicas.
ED. Instituto Lukács. São Paulo, 2013, pg. 73-74
30 Idem.
32
Em:
https://brasil.elpais.com/internacional/2020-06-07/por-que-os-negros-dos-eua-nao-respiram.html
Acesso em 12/06/2020.
35
Dados
publicados em WORLD BANK, Macro
Powerty Outlook country-by-country – analyses and projections for
the developing world.
Abril
de 2020. Disponível em:
https://worldbank.org/en/publication/macro-powerty-outlook Acesso
em 26/06/2020
37
Em:
https://www.esquerdadiario.com.br/Protestos-na-Colombia-Duque-decreta-quarentena-sem-realizar-medidas-sociais
Acesso em 21/06/2020.
-
https://correio.rac.com.br/_conteudo/2020/04/agencias/928089-manifestantes-exigem-comida-e-outras-ajudas-diante-da-pandemia-na-clombia.html
-
https://www.dw.com/pt-br/pa%C3%Adses-da-am%A9rica-latina-precisam-gastar-mais-para-enfrentar-recess%C3%A3o/a-53076084
Todos
os acessos foram realizados em 21/06/2020
40
Em:
https://brasil.elpais.com/internacional/2020-04-18/a-fome-como-bandeira.html
Acesso em 18/06/2020
41
Em:
https://correio.rac.com.br/_conteudo/2020/04/agencias/928089-manifestantes-exigem-comida-e-outras-ajudas-diante-da-pandemia-na-clombia.html
Acesso em 21/06/2020
-
https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-52104166
-
https://www.ceicdata.com/pt/indicator/peru/nominal-gdp
-
https://www.ceicdata.com/pt/indicator/peru/unemployment-rate
-
https://www.indexmundi.com/g/g.aspx?c=pe&v=71&l=pt
-
https://www.bbc.com/mundo/noticias-48050868
Todos
os acessos foram realizados em 19/06/2020.
44
Em:
https://www.worldbank.org/em/news/press-release/2019/01/31/proyecto-creacion-de-redes-integradas-de-salud-beneficiara-a-203-millones-de-peruanos
Acesso em 19/06/2020.
-
https://brasil.elpais.com/economia/2020-05-24/pandemia-apaga-os-tres-farois-economicos-da-america-latina.html
-
https://brasil.elpais.com/economia/2020-06-08/brasil-mexico-e-peru-arrastam-america-latina-para-sua-maior-recessao-desde-que-ha-registros.html
Acessos
realizados em 10/06/2020.
51
Em: Acesso em 20/06/2020
52
O
dado se refere ao ano de 2013 e consta do panorama do Banco Mundial
atualizado em 11 de outubro de 2019. Disponível em:
https://www.bancomundial.org/es/country/peru/overview#3 Acesso em
19/06/2020.
54
Copilamos
nos parágrafos anteriores as notícias relativas à cidade de
Iquitos publicadas em:
https://www.bbc.com/mundo/noticias/america-latina-52670889 E em:
https://www.bbc.com/mundo/noticias/america-latina-52413260 Acessos
em 19/06/2020.
55
Dados
publicados em WORLD BANK, Macro
Powerty Outlook country-by-country – analyses and projections for
the developing world.
Abril
de 2020. Disponível em:
https://worldbank.org/en/publication/macro-powerty-outlook Acesso
em 26/06/2020
56
Em:
https://brasil.elpais.com/internacional/2020-05-24/crise-impulsiona-a-retomada-dos-protestos-no-chile.html
Acesso em 06/06/2020.
57
Os
dados foram publicados na síntese da pesquisa IPSOS/ESPACIO
PÚBLICO, Como
se vive la cuarentena em la región metropolitana?, realizada
na região metropolitana de Santiago do Chile entre os dias 12 e 16
de junho de 2020. Em:
https://www.espaciopublico.cl/category/publicaciones Acesso em
26/06/2020.
-
https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-52372170
Acessos
em 17/06/2020
-
https://br.sputniknews.com/americas/2020051315575666-em-meio-a-pandemia-chile-pede-us-238-bilhoes-ao-fmi/
Acesso
em 17/06/2020.
60
Em:
https://brasil.elpais.com/internacional/2020-05-24/crise-impulsiona-a-retomada-dos-protestos-no-chile.html
Acesso em 06/06/2020.
62
Dado
publicado em: IPSOS/ESPACIO PÚBLICO, Como
se vive la cuarentena em la región metropolitana? O
relatório completo da pesquisa está disponível em:
https://www.espaciopublico.cl/category/publicaciones Acesso em
26/06/2020.
64
No
momento em que escrevemos, esta lei aguarda apenas a sanção
presidencial para entrar em vigor. Maiores informações através do
link:
https://www.senado.cl/aumento-de-sanciones-para-quienes-no-cumplan-cuarentena-pasa-a-tercer/senado/2020-06-16/173146.html
Acesso em 25/06/2020.
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