A Grande
Mídia está cada vez mais de boca fechada sobre a Guerra na Ucrânia.
Talvez as notícias "bombásticas" tenham deixado de vender e dar lucro para os senhores capitalistas da grande mídia.
Este é o segundo texto de Emílio Gennari sobre a Guerra na Ucrânia.
Os interesses do capital ( os lucros e a submissão) continuam sendo tecidos por lá.
Se fosse você daria uma boa olhada nas informações que os olhos de lince de Gennari captaram até o mês de julho.
Boa
leitura
A guerra na Ucrânia já não tem a mesma cobertura que a
mídia oferecia no início do conflito. As falas dos comentaristas passam longe
de delinear os erros estratégicos da Rússia que permitiam projetar o fim
próximo das hostilidades. Os discursos dos chefes de Estado e de governo
perderam o brilho e a veemência com a qual afirmavam que as sanções econômicas
colocariam Putin de joelhos.
Dia após
dia, a ênfase com a qual a Europa propunha a desconexão do abastecimento de
petróleo e gás russos cedeu o lugar a falas preocupadas quanto aos custos deste
processo e à impossibilidade de garantir reservas suficientes para enfrentar o
próximo inverno. Pouco a pouco, a realidade corrói o biombo de palavras e
certezas que a encobria, projeta um horizonte onde a guerra continuará marcando
a conjuntura dos próximos meses e traz a perspectiva tenebrosa de uma crise
econômica mundial em 2023.
Dando
continuidade às reflexões divulgadas no dia 12 de maio1,
resgataremos a seguir os principais passos dos dois últimos meses do conflito.
Trataremos da admissão da Finlândia e da Suécia à OTAN, da política
estadunidense, dos planos de autonomia energética da União Européia, do
abastecimento mundial de alimentos, da realidade econômica de Rússia e China. 2
Esperamos
que este esforço ajude a esboçar suas próprias reflexões sobre acontecimentos,
a analisar cada item da conta que o capital apresenta à classe trabalhadora e,
sobretudo, a pensar os caminhos pelos quais esta mesma classe precisa ampliar o
alcance de suas lutas para não se perder no jogo de interesses que cerca o
presente e o futuro do conflito.
1.
Finlândia e Suécia: sair da neutralidade não é começar do zero.
Muitas
pessoas ficaram surpresas com a demanda de adesão à Organização do Atlântico
Norte (OTAN) que Finlândia e Suécia entregaram em meados de maio. Para elas, a
histórica neutralidade que levou os dois países a décadas de paz estaria
cedendo o lugar a uma fase em que o centro das preocupações é a preparação para
a guerra. O espanto é fruto do entendimento pelo qual assumir a neutralidade
seria sinônimo de ausência de estruturas militares para desempenharem um papel
defensivo e de dissuasão diante das ameaças vindas do exterior. Mas, como
veremos a seguir, a realidade é bem diferente do que as pessoas comuns
imaginam.
Em
primeiro lugar, é importante resgatar que, no caso da Finlândia, a neutralidade
surgiu em 1948 como condição de paz imposta pela antiga União Soviética (URSS)
e foi recebida por Helsinque como uma forma pragmática de assegurar a
independência do país. Esta postura foi mantida até o colapso da URSS, em 1990,
quando a Finlândia passou a procurar os EUA para fortalecer suas forças armadas
e, dois anos depois, comprou 64 aviões de combate de fabricação estadunidense.
Vale
lembrar que, ao adquirir equipamentos militares de um país estrangeiro, o
governo local assina contratos que preveem anos de colaboração tanto no que diz
respeito às atividades de treinamento de suas forças armadas, à aquisição de
peças e serviços de manutenção, como de assessoria militar a fim de modernizar
e aprimorar o uso das máquinas de guerra.
Em 1994,
a Finlândia deu mais um passo em direção ao fim da neutralidade ao se tornar
parceira da OTAN, participando desde então de várias ações e treinamentos
conjuntos da Aliança Atlântica. No ano seguinte, os governos de Estocolmo e
Helsinque aderiram à União Européia e, como todos os países membros, passaram a
ter os direitos e as obrigações das nações do bloco no campo da defesa militar.
Em
termos de preparação para a guerra, a Finlândia, que tem uma população de 5
milhões e meio de habitantes, conta com um exército de 280.000 soldados e
900.000 reservistas, tropas treinadas para o combate no Ártico e cada homem
entre os 18 e os 60 anos é elegível para o serviço militar. Além disso, desde o
início dos anos 80, o governo de Helsinque começou a construir uma extensa rede
de refúgios subterrâneos nos quais a população pode se proteger em caso de
invasão militar, ataques nucleares ou em qualquer situação de emergência.
Para
termos uma ideia do que isso significa, basta pensar que na capital do país
existem 5.500 destes refúgios com capacidade para abrigar quase um milhão de
pessoas (30% a mais em relação ao número de moradores de Helsinque), todos eles
equipados com sistemas de filtragem de ar, água potável e comida para garantir
a sobrevivência de seus ocupantes durante um longo período de tempo.
Antes de
pedir formalmente a sua adesão a OTAN, o governo finlandês já gastava 2% do PIB
em armamentos, a mesma porcentagem estabelecida pelas regras da Organização
Atlântica e, a partir de junho deste ano, vai investir uma quantia adicional
para construir muros e cercas nos pontos mais sensíveis dos 1300 km de sua
fronteira com a Rússia.
No dia
13 de maio, Moscou respondeu ao pedido de adesão da Finlândia à OTAN cortando o
fornecimento de gás e de eletricidade. O abastecimento russo cobria apenas 10%
das necessidades do país. Além de as reservas de gás existentes terem uma
duração estimada entre 2 e 3 meses, em setembro, Helsinque deve inaugurar uma
nova central nuclear cuja energia compensará com sobras a que era gerada com o
abastecimento russo.
A
neutralidade da Suécia percorreu caminhos diferentes. Ser um país neutro evitou
que Hitler invadisse o seu território que, ao sair incólume dos bombardeios que
arrasaram as nações europeias, fez com que Estocolmo tivesse as condições de
que precisava para usar a reconstrução do segundo pós-guerra para expandir
fortemente as atividades econômicas da Suécia.
Entre
1960 e 1990, o país usou a sua neutralidade para servir de mediador
internacional e aliado de países em desenvolvimento, chegando a tecer fortes
críticas tanto à antiga URSS, como aos EUA. Com o fim da Guerra Fria, Estocolmo
reduziu o tamanho de suas forças armadas e mudou a prioridade de ação delas de
"defesa do território" para "integrantes de missões de paz
convocadas pela ONU". Neste período, a sua indústria armamentista exportou
artefatos bélicos a vários países que não estavam em guerra, entre eles a
Turquia que só teve o fornecimento suspenso em 2019 ao se envolver diretamente
na guerra da Síria.
Concretamente,
ser um país neutro demandava que a Suécia se mantivesse fiel a três posições:
não fornecer armas a países em conflito; atuar como promotor e mediador de
ações voltadas ao desarmamento nuclear; usar seus soldados para a estabilização
da ordem social de um país a pedido das Nações Unidas.
A
postura oficial em relação à guerra começou a mudar em 2014, quando a Rússia
anexou a Criméia. O serviço militar voltou a ser obrigatório e os gastos com a
defesa subiram. A preocupação com possíveis agressões externas cresceu em 2018
e levou o exército a distribuir panfletos que orientavam as famílias quanto ao
que fazer em caso de conflito (algo que não ocorria desde 1991). Enquanto isso,
o Ministério da Defesa elevava as capacidades defensivas de lugares
estratégicos, como é o caso da Ilha de Gotland, no Mar Báltico.
A
posição estratégica de Gotland transforma este território num posto avançado de
defesa contra o lançamento de mísseis vindos do enclave russo de Kaliningrado
(situado a 300 km de Gotland), da Bielorrússia e da própria Rússia. Por outro
lado, o fato de estar geograficamente situado na rota dos navios mercantes, dos
submarinos nucleares e das embarcações militares de Moscou no Mar Báltico
aumenta as possibilidades ofensivas das instalações posicionadas na Ilha.
Figura 1: localização geográfica da Ilha de Gotland
Para
termos uma ideia da importância deste território em caso de conflito, basta
pensar que, durante a Guerra Fria, quando a Suécia zelava por sua neutralidade,
Gotland chegou a receber 25.000 soldados, uma média de quase um militar para
cada dois habitantes. Controlar Gotland era dominar o espaço aéreo e marítimo
do sul do Báltico, e isso oferecia uma vantagem estratégica considerável.
É com
este mesmo objetivo que Estocolmo acelera os novos investimentos em
equipamentos bélicos, alojamento de tropas, sistemas de defesa avançados,
instalações para garantir água, energia, combustíveis, remédios, alimentação e
abrigo para os moradores da ilha em caso de conflito. Enfim, algo que deve
consumir uma parte razoável dos 11 a 12 bilhões de euros em gastos militares adicionais
que a Suécia deve desembolsar para atingir o patamar mínimo determinado pela
OTAN.
Com a
entrada dos dois países nórdicos, a Organização Atlântica vai contar com uma
posição privilegiada a partir da qual pode defender melhor alguns de seus aliados
(como Estônia, Letônia e Lituânia), ao mesmo tempo em que o Mar Báltico vai se
transformar numa espécie de "Lagoa da OTAN". De fato, dos cerca de
8.000 km da costa do Báltico, 7.800 pertencem a países que integram a Aliança
Atlântica (Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, Alemanha, Dinamarca, Suécia e
Finlândia) enquanto a Rússia conserva apenas os 200 km restantes.
Sabendo
disso, as primeiras respostas de Moscou não demoraram a aparecer. O espaço
aéreo de Gotland já foi violado várias vezes desde que o governo de Estocolmo
apresentou o pedido de adesão à OTAN e aviões de guerra eletrônica da Rússia
(que diminuem a eficácia dos sistemas de rádio e de radar) passaram a rondar
sistematicamente os céus desta região.
Diante
do desenrolar dos acontecimentos, as preocupações dos moradores dos dois países
quanto ao fim da neutralidade giram em torno de uma única pergunta: ser membro
da OTAN vai tornar Suécia e Finlândia mais seguras?
De um
lado, a maioria acredita que o guarda-chuva nuclear da Aliança Atlântica
aumentará o poder de dissuasão das duas nações em relação a um possível ataque
da Rússia. De outro, uma minoria expressiva prevê que o armamento atômico com o
qual a OTAN equipa os territórios dos seus aliados levará a uma corrida armamentista
que tornará os dois países bem menos seguros do que eram antes da invasão da
Ucrânia.
E não é
para menos. Além da promessa de responder à altura de cada ameaça a segurança
da Rússia, formulada por Putin no final de junho, segundo o Instituto para a Abolição
das Armas Nucleares (ICAN, pela sigla em inglês), as potências que contam com
ogivas atômicas estão aumentando os gastos para modernizar seus arsenais e
produzir novos artefatos. Só em 2021, os dispêndios deste item do orçamento
bélico aumentaram 9% em relação a 2020 (perfazendo um total de 82 bilhões e 400
milhões de dólares) e tendem a acelerar.
Os EUA
ocupam um lugar de destaque com 44 bilhões e 200 milhões (12,7% a mais ante
2020). Na segunda posição, encontramos a China com 11 bilhões e 700 milhões de
dólares (10,4% a mais ante 2020). Na terceira, temos a Rússia com 8 bilhões e
600 milhões de dólares, seguida pelo Reino Unido com 6 bilhões e 800 milhões de
dólares. Ao que tudo indica, o rufar dos tambores da guerra anuncia tempos cada
vez mais difíceis para a paz.
Mas não
é só isso que a realidade traz à tona com seu caminhar. No encontro que a OTAN
realizou em Madri entre os dias 28 e 30 de junho, as pressões estadunidenses
conseguiram dois feitos importantes. De um lado, forçaram uma negociação que
levou a Turquia a aceitar Suécia e Finlândia como membros da Organização
Atlântica. Os problemas que pareciam insolúveis em meados de maio foram
pragmaticamente resolvidos com um memorando de entendimento. Nele, os países
nórdicos se comprometem a intensificar o ritmo das extradições dos separatistas
curdos solicitadas pela Turquia e cooperarão com Ancara na luta contra as
forças que defendem a independência do Curdistão por meio de ações terroristas;
os governos dos dois países se comprometem também a alterar a legislação a fim
de endurecer o tratamento a ser dispensado a supostos militantes curdos e a
Suécia retomará as exportações de armas para a Turquia.
De
outro, a Organização do Atlântico Norte conseguiu um avanço inusitado na
relação com a União Europeia. Além de acelerar e justificar o processo de
admissão de Suécia e Finlândia, de admitir Áustria, Bósnia-Herzegovina, Kosovo
e Irlanda como sócios externos, a OTAN saiu da cúpula de Madri arrastando o
velho continente para o embate geoestratégico dos Estados Unidos com Rússia e
China.
Ao
apontar a Rússia como "ameaça direta" e a China como "desafio
sistêmico à aliança euro-atlântica", a OTAN puxa a Europa para uma posição
de crescente rivalidade com Moscou e com o gigante asiático. O problema é que a
dependência da UE em relação à China tem o tamanho dos quase 700 bilhões de
euros anuais em comércio exterior cuja perda produziria estragos consideráveis
nas duas economias. Politicamente, com a China aliada da Rússia e se recusando
a cumprir qualquer papel de mediação que possa levar ao fim das hostilidades, a
UE terá dificuldades em assumir uma posição menos agressiva nas relações com
Pequim da que foi acertada conjuntamente na cúpula da OTAN.
Do ponto
de vista militar, os países europeus terão que apertar seus orçamentos para
destinarem o máximo de recursos possíveis ao rearmamento. Para termos uma ideia
da situação atual, basta pensar que, entre 1999 e 2021, o gasto conjunto em
defesa da UE aumentou apenas 19,7% ante 65,7% dos EUA, 292% da Rússia e 592% da
China. Mas fazer isso é sinônimo de elevar os déficits públicos e os impostos e
de deteriorar ainda mais os serviços públicos, algo que promete colocar lenha
na fogueira do descontentamento.
2.
EUA: prontos para uma guerra sem prazo para terminar.
A
invasão da Ucrânia não permitiu apenas a expansão da OTAN, mas justificou aos
olhos do mundo uma postura mais agressiva contra a Rússia, a Coreia do Norte e
a China, e leva à busca de uma maior integração de Japão, Coreia do Sul, Nova
Zelândia e Austrália à estratégia militar dos EUA na região do Pacífico.
Em sua
visita oficial a Tóquio e Seul, iniciada no dia 20 de maio, o Presidente dos
EUA Joe Biden não tratou apenas da guerra na Ucrânia e da contenção do programa
nuclear norte-coreano, mas também da intensificação das exercitações militares
conjuntas, dos projetos que visam aumentar o comércio e a colaboração dos
países asiáticos com Washington, da necessidade de o Japão alterar o artigo da
Constituição pelo qual "o povo japonês renuncia para sempre à guerra como
direito soberano da nação e à ameaça e ao uso da força como meio de solução em
disputas internacionais", uma posição que, apesar das
"releituras" introduzidas nas duas últimas décadas, ainda impede que
o país possa aderir aos planos bélicos dos EUA na região.
Nunca é
demais lembrar que a necessidade de consolidar a hegemonia estadunidense mundo
afora envolve também a estruturação de cadeias de suprimentos e manufaturados
que excluam a China. Este desafio demanda elevar as expectativas de cada país
em relação aos possíveis ganhos da parceria com Washington a fim de que o
governo promova as mudanças internas para que isso se realize. Para Biden,
trata-se de costurar acordos e entendimentos para garantir que a economia
estadunidense tenha acesso ao que precisa enquanto os governos locais se
embrenham num jogo de possibilidades que eleva a dependência de suas economias
das compras dos EUA e faz com que Washington possa sustentar um diálogo mais
duro com a China sem correr o risco de sofrer algum tipo de boicote.
Em
termos estritamente militares, os acontecimentos e as declarações que
acompanharam a viagem de Biden sinalizam a adoção de atitudes mais agressivas
em relação à Pyongyang. Depois do encontro, o recém-eleito presidente da Coreia
do Sul, Yoon Suk-Yeol, confirmou que o seu país está a um passo de entrar numa
era em que não basta ter força suficiente para dissuadir o vizinho do Norte e
que Seul vai contar com a "implantação oportuna de ativos
estratégicos". Trocado em miúdos, ele está se referindo a mísseis,
lançadores móveis, radares e demais equipamentos bélicos que elevam o poder
ofensivo da Coreia do Sul...e que nada impede venham a ser usados para melhor
responder as opões militares da China.
Entre as
demonstrações do endurecimento em relação à Coréia do Norte, resgatamos o fato
de que, no dia 6 de junho, durante os exercícios militares conjuntos, a Coreia
do Sul e os EUA lançaram nove mísseis nas proximidades da fronteira entre os
dois países em resposta aos três foguetes disparados por Pyongyang no dia
anterior. Um recado mais do que claro de que Seul e Washington não titubearão
em usar seu poder de fogo a qualquer momento de crise que a Coreia do Norte
vier a provocar.
Em sua
viagem à Ásia, Biden também não perdeu a chance de reafirmar a promessa de
defender militarmente Taiwan de qualquer ataque da China e comparou a
possibilidade de Pequim usar a força contra a ilha à invasão da Ucrânia pela
Rússia. Não é a primeira vez que os EUA assumem esta posição que vai bem além
do conteúdo da Lei de Relações com Taiwan, de 1979, pela qual Washington
garante que a Ilha tenha recursos bélicos para se defender de qualquer mudança
unilateral de status imposta pela China, mas não diz que os EUA agirão
militarmente para defendê-la de uma eventual invasão chinesa. Resta saber se
esse “arroubo de retórica” é um dos passos essenciais para alterar internamente
o que é definido pela norma vigente.
Prolongar
a guerra na Ucrânia guarda também uma relação direta com fortes motivos de
natureza política e econômica. Quanto maior a duração das hostilidades, maior a
destruição e, de consequência, maiores as chances de negócios que gerem lucros
fartos com a reconstrução do país. É interessante reparar que, enquanto os
combates não davam trégua, no dia 4 de julho, em Lugano, na Suíça, os
representantes de 38 países, EUA incluídos, participaram da Conferência sobre a
Recuperação da Ucrânia.
Promovido
pela União Européia, o encontro apresentou a ideia de Bruxelas mapear as
necessidades de investimentos do pós-guerra e coordenar as ações de países,
instituições do setor privado, sociedade civil e organizações internacionais na
tarefa de reconstruir o que foi destruído. No encontro, o Banco Europeu de
Investimento, que trata dos empréstimos da UE às nações do bloco, colocou na
mesa um financiamento de até 100 bilhões de euros, uma quantia expressiva para
convencer instituições e governos a participarem do negócio.
Ninguém
esconde que a Europa tem vários interesses nesta reconstrução que é anunciada
como uma espécie de Plano Marshall para a Ucrânia. O problema é que, a exemplo
dos empréstimos concedidos após o fim da Segunda Guerra Mundial, ninguém dá
nada de graça. Ou seja, trata-se de dinheiro entregue mediante a aceitação de
uma lista de obrigações que, a cada obra realizada, amarra o futuro político e
econômico do país a dívidas e interesses que hipotecam o destino da população.
Por isso, quanto mais escombros precisarem ser removidos, mais lucros jorrarão
nos cofres das empresas privadas, mais aumentarão os juros que Kiev terá que
pagar e maior será a camisa de força em que as próprias dívidas amarrarão o
país.
Internamente,
os EUA estão longe de viver num mar de rosas. O sucesso inesperado da OTAN e a
melhora das condições que fortalecem a hegemonia estadunidense são ofuscados
por problemas diários que diminuem consideravelmente os índices de aprovação de
Joe Biden.
O maior
deles é, sem dúvida, o aumento dos preços que, nos doze meses até junho de
2022, registrou uma elevação de 9,1%. A perspectiva de maiores altas da
inflação até o final do ano e o risco de a economia entrar em recessão caso o
Banco Central acelere a elevação das taxas de juros estão dando vida a um
debate que mostra como não será fácil eliminar a importância da China para a
economia estadunidense. Para ajudar a conter o descontentamento causado pela
queda do poder de compra, o governo pensa seriamente em remover as tarifas
impostas às exportações chinesas por Donald Trump. A medida ajudaria a reduzir
os preços dos insumos necessários à economia estadunidense, traria
manufaturados bem mais baratos, ajudando a conter o custo de vida.
Por
ironia da história, Biden está diante de um divisor de água politicamente
perigoso para o seu partido: remover as tarifas de importação para diminuir a
inflação, reduziria o descontentamento interno, mas acabaria enfraquecendo a
produção de alguns setores da economia norte-americana e ajudando o PIB da
China a crescer; manter as coisas como estão, conservaria a vantagem da
indústria estadunidense no mercado local, adiaria o controle da inflação, mas
deterioraria ainda mais a popularidade do presidente democrata cujo governo,
segundo as pesquisas de opinião, tem a aprovação de 39% dos entrevistados e uma
rejeição de 52%.
Tanto
Biden como o Partido Democrata temem que a perda do poder de compra das
famílias, causada por uma inflação que não para de crescer, e o temor da
recessão no horizonte de 2023 coloquem em risco o desempenho eleitoral do
partido no dia 8 de novembro, quando a população irá às urnas para renovar uma parte
da Câmara dos Deputados e do Senado. Caso os Democratas percam espaço, o atual
presidente dos EUA terá dificuldades ainda maiores para governar e dificilmente
marcará a sua gestão com realizações que tornam competitiva a sua candidatura à
reeleição.
É
interessante reparar que a elevação da inflação não é uma surpresa de mau gosto
que a chegada de 2022 colocou sobre a mesa do governo. De fato, o ano de 2021
se encerrou com um aumento dos preços de 7% em função dos problemas nas redes
de suprimentos mundiais, da alta do petróleo e do forte encarecimento dos
fretes marítimos e terrestres. O Banco Central dos EUA acreditava que o índice
cairia à medida que o comércio mundial e a extração de petróleo voltariam aos
patamares anteriores à pandemia. Só não contava que, em 2022, a invasão da
Ucrânia ampliaria os problemas que alimentavam o encarecimento do custo de
vida.
As
preocupações do lado empresarial percorrem caminhos opostos. Enquanto, em 2021,
o aumento do PIB, os cortes de salários e benefícios promovidos pelos patrões
se uniam à possibilidade de repassar aos produtos parte da elevação dos preços,
as 500 maiores empresas dos EUA somaram o lucro recorde de um trilhão e 800
bilhões de dólares (580 bilhões de dólares a mais em relação a 2019), um resultado
que elevou o preço das ações muito acima do que seria lógico esperar. O
problema é que a guerra na Ucrânia e seus reflexos na economia mundial não só
reduziram as perspectivas de crescimento em 2022 e projetam uma recessão em
2023, como estão levando a classe trabalhadora a um clima de agitação cujas
pressões podem reduzir os ganhos antes conseguidos com o arrocho salarial.
Manter
as margens de lucros em patamares próximos aos de 2021 com uma economia que
tende a esfriar e o consumo das famílias perdendo terreno pela queda do poder
de compra dos salários, é algo impossível tendo como base a defasagem de 3,7%
entre a inflação acumulada e o reajuste médio dos salários nos doze meses até
março de 2022, segundo o último dado disponível no momento. A perspectiva de
uma queda da lucratividade está tirando o sono dos operadores das Bolsas de
Valores, à medida que para as empresas valorizarem o capital acumulado em 2021,
precisariam aprofundar bem mais o peso da exploração. Prova disso é que, entre
o final do ano passado e o início de junho de 2022, as ações que integram o
índice S&P 500 perderam cerca de 7 trilhões de dólares em valor mercado.
Nunca é
demais lembrar que a agitação do mundo das finanças deve ser separada e
analisada com critérios bem diferentes da que cresce entre os assalariados.
Enquanto os mercados pressionam para que o governo sinalize como e quanto
ajudará na tarefa de manter os lucros em patamares satisfatórios, o peso da
inflação no bolso dos trabalhadores assusta ao ver que o descontentamento está
ajudando a classe a superar o medo de se organizar. Para nós, esta é uma ótima
notícia, ainda mais quando os primeiros passos da ação sindical também marcam
presença em ambientes nos quais, até antes da pandemia, parecia simplesmente
impossível que ela viesse a se estruturar. Alguns exemplos ajudam a delinear
este movimento.
Após
inúmeras tentativas infrutíferas, os funcionários de um centro de distribuição
da Amazon em State Island, estado de Nova Iorque, venceram o bloqueio da
companhia e montaram sua primeira organização no seio de um dos gigantes do
comércio eletrônico mundial. A pequena vitória se tornou um símbolo nacional da
capacidade de resistência dos trabalhadores e sua importância foi
involuntariamente sublinhada pelo próprio Jeff Bezos que demitiu todos os
chefes do centro por sua incapacidade de abortar a primeira criação de um
sindicato nas unidades estadunidenses da Amazon.
Seguindo
a mesma trilha, e pela primeira vez na história da empresa, 65 dos 100
trabalhadores de uma loja da Apple na cidade de Towson, no Estado de Maryland,
aderiram ao sindicato, passando a exigir medidas de segurança, a cobrar
mudanças na política salarial e nos horários de trabalho.
Enquanto
isso, após criar o primeiro núcleo sindical em duas das 8.000 cafeterias da
rede Starbucks, em dezembro de 2021, os comitês de trabalhadores ampliaram sua
presença em dezenas de outras. Este pequeno passo mostra sua relevância não
apenas em função da represália da empresa, que chegou a fechar uma das lojas
onde o sindicato nasceu, mas pelo fato de mostrar que o descontentamento chegou
também no setor de lanchonetes, bares e restaurantes onde apenas 1,2% dos
trabalhadores estão associados a um sindicato.
Sim,
sabemos que os empresários ainda vão dar muito trabalho. Contudo, não deixa de
ser animador ver trabalhadores e trabalhadoras recuperarem a coragem de lutar
depois de 25 de anos de silêncios e amarguras em corporações cujas políticas
pareciam ter blindado as empresas contra qualquer possibilidade de ação
sindical. A piora nas condições de vida e um futuro que projeta mais angústias
do que esperanças começam a destruir o medo de enfrentar os patrões e
deterioram a aversão a qualquer ideia de luta coletiva...o que é uma ótima
notícia.
3. A
União Européia...nua diante da realidade.
Quem
ouviu os discursos inflamados dos chefes de Estado e de governo sobre a
necessidade de a Europa se desconectar dos suprimentos de petróleo e gás da
Rússia imaginou se tratar de algo bem mais fácil do que a realidade revela. O
problema é que entre as palavras que contavam as maravilhas e as possibilidades
das energias renováveis usada na substituição dos combustíveis fósseis de
Moscou e o que é necessário para a economia não sofrer sobressaltos atendimento
há uma subida lastreada por tarefas cuja execução demanda anos de trabalho.
Os
primeiro desafio deitava raízes na geografia de alguns países do bloco. Sem
acesso ao mar, Hungria, República Tcheca, Eslováquia e Áustria, que hoje
recebem os hidrocarbonetos russos através de oleodutos e gasodutos,
simplesmente não podem depender de navios-tanques para alimentarem suas reservas.
Alemanha e Polônia têm acesso ao mar, mas parte considerável dos derivados
utilizados em suas economias vem de refinarias preparadas exclusivamente para
processar o tipo de petróleo vendido por Moscou. Aumentar as estruturas de
refino para assegurar combustíveis e derivados para a indústria química é um
processo que, na melhor das hipóteses, demanda cerca de dois anos. Se isso não
bastasse, no mundo inteiro, não há gás suficiente para substituir o que hoje
chega dos campos da Sibéria e parte dos novos investimentos do setor é
controlada pela companhia russa Gazprom. Aumentar a extração de gás para
atender a demanda da UE não é um bicho de sete cabeças, mas depende de
investimentos cuja maturação não demorará menos de 18 meses.
No
momento em que escrevemos, o objetivo imediato das nações europeias é chegar em
outubro com os reservatórios de gás a 80% de sua capacidade máxima a fim de
minorar os sacrifícios que virão com a chegada do inverno.
A
situação mais confortável é a da Dinamarca que, apesar do corte no
abastecimento, tem reservas para os próximos cinco meses. França, Alemanha e
Itália, assistem a uma redução de 30% na entrega de gás depois que seus
chanceleres prometeram a Kiev ajuda militar até o fim das hostilidades e, entre
eles, a Alemanha está com o coração na mão à medida que a Gazprom parou
completamente a entrega de gás pelo gasoduto Nord Stream 1 a fim de realizar os
serviços de manutenção que costumam ser feito durante o verão europeu e ninguém
sabe se voltará a utilizá-lo em setembro, quando estes trabalhos terminarem. No
fundo, nenhuma das nações da UE sabe se Moscou manterá as atuais entregas de
gás até o final do ano e todas imaginam o tamanho da encrenca que deverão
enfrentar quando o frio chegar.
O plano
Repower United Europe (Reenergizar a Europa, numa tradução livre), que visa
cortar a dependência da Rússia no abastecimento de petróleo e gás, já está em
andamento. Vale lembrar que investimentos previstos em fontes renováveis e no
aumento da extração nas nações produtoras alcançará as quantidades suficientes
para se desconectar da Rússia apenas em 2030. Serão oito longos anos de espera,
enquanto Moscou lida com as entregas seguindo o ditado "Nossos produtos,
nossas regras!".
No
papel, o plano é simplesmente genial, define prazos com a precisão cirúrgica de
quem sabe onde cortar e enxertar, as possibilidades oferecidas pelas fontes de
energias renováveis, conta com o parecer de especialistas, é apresentado com a
ênfase que a retórica dos políticos sabe dar, faz tesouro das promessas de
investimento em várias regiões do mundo, mas nenhum governo se atreve a
responder às perguntas simples e diretas que qualquer cidadão se faz neste
momento: terei gás para a calefação da minha casa a partir de novembro, quando
as baixas temperaturas demandam que as moradias sejam aquecidas? À medida que
ninguém sabe quanto gás os russos continuarão entregando, o que acontecerá
quando as reservas atuais acabarem? Diante da indisponibilidade do produto, o
governo privilegiará as indústrias ou se preocupará em assegurar primeiro o
bem-estar da população? Ou será que, movido pela escassez, o ulterior aumento
das tarifas deixará muitas famílias sem recursos para a calefação?
Não é
segredo para ninguém que o presente traz em si uma perspectiva de forte redução
do crescimento do PIB e uma inflação difícil de vencer apesar do esfriamento da
demanda geral da economia. Elevar os juros para combater a alta anual dos
preços que, na zona euro, fechou o mês de junho em 8,6%, provocará uma ulterior
desaceleração da economia do bloco, reduzindo o emprego e a renda dos
trabalhadores. Tentar conter a inflação com tímidos aumentos dos juros na casa
dos 0,25% a cada reunião do Banco Central Europeu significa correr o risco de
um descontrole à medida que a alta dos preços de hoje alimenta reajustes que,
ao tentar proteger os lucros diante das expectativas de novos aumentos, criam
uma espiral inflacionária sem fim.
Ao
ocupar o sofrido lugar entre o prego e o martelo, os trabalhadores de vários
países já começaram a se mobilizar. Ninguém melhor do que eles sabe que os
discursos assépticos dos economistas de plantão sobre as causas da inflação
escondem que patrões e governos farão de tudo para conter a elevação dos
salários, apontando-os entre os responsáveis das novas altas que se preparam.
Mostrar que a classe não está disposta a apertar o cinto para pagar a conta da
invasão da Ucrânia é o primeiro passo da marcha que precisa deter a guerra e
impedir que os planos da OTAN se tornem o motivo em volta do qual o capital prepara
uma rodada de submissão dos trabalhadores semelhante à que conhecemos durante
os anos da Guerra Fria.
No
momento em que escrevemos, não faltam elementos que, ao alimentar o
descontentamento, corroem o aparente consenso construído em volta da necessidade
de expulsar a Rússia das fronteiras ucranianas. Do racionamento dos óleos à
elevação dos preços dos alimentos que, além do encarecimento dos custos de
transporte, enfrenta as temperaturas extremas de um verão sem chuvas; da conta
de energia aos preços dos combustíveis e dos produtos industrializados, a
impressão é que, enquanto a guerra perdurar, a economia de cada país tende a se
comportar como um avião sobre o qual os pilotos perdem progressivamente o
controle na mesma proporção em que a recessão pinta o horizonte de 2023.
Para
termos uma ideia das tensões que crescem no interior dos países europeus, vamos
apresentar alguns dados da Alemanha. Em maio deste ano, a alimentação estava
19,2% mais cara em relação ao mesmo mês de 2021, os preços da energia haviam
subido 87,1% na mesma base de comparação e os produtos industriais encareceram,
em média, 33,6%.
Sentindo
a gravidade do momento, o primeiro ministro alemão Olaf Sholz antecipou a sua
promessa de campanha de aumentar o salário mínimo para 12 euros por hora,
medida que beneficia cerca de 6 milhões de trabalhadores. A elevação de quase
15%, que vigorará a partir de outubro, incidirá sobre o valor/hora de 2015, ano
em que o salário mínimo foi criado, e recuperará apenas as perdas
inflacionárias acumuladas até maio de 2022. Ainda que bem-vindo, o alívio
trazido por esta medida às famílias de baixa renda tende a se desgastar na
exata medida em que, novas altas dos preços se somam aos sacrifícios do
desemprego e à redução da renda trazida pela crise.
Com a
piora do cenário econômico e diante da ausência de saídas em curto prazo, novos
elementos desagregadores devem marcar as relações entre as pessoas. Por
exemplo, a convivência com os refugiados de guerra, que até o momento foi
respeitosa e receptiva, pode ganhar o gosto amargo da rejeição. Segundo dados
da ACNUR (a agência da ONU que trata desta questão), entre o início das
hostilidades e o mês de junho, cerca de 6 milhões e meio de pessoas procuraram
abrigo nos países vizinhos. A Rússia recebeu 920.000 refugiados; a Bielorrússia
27.000; a Polônia 3.506.000; a Romênia 961.000; a Alemanha 700.000; a Hungria 644.000;
a Moldávia 471.000; e a Eslováquia 442.000.
Enquanto
Putin tinha todo o interesse em conceder a cidadania russa sem restrições a
todos eles, a UE outorgou a permissão de permanecer e trabalhar nos países
membros por até 3 anos, com direito a assistência social, acesso à moradia,
tratamento médico e escola. Em tempos de crescimento econômico consistente, a
disputa de uma vaga no mercado de trabalho por parte destas pessoas não costuma
despertar graves reações adversas. Mas quando isso ocorre numa recessão em que
empregos e salários são cortados, a concorrência dos refugiados tende a fazer
com que a convivência com eles seja bem menos tranquila.
Este processo se soma aos aumentos do déficit público
de cada país em função tanto da ajuda bélica e humanitária proporcionada ao
governo de Kiev, como para oferecer acomodação e serviços sociais a quem foge
da guerra. Não é segredo para ninguém
que os buracos nos cofres públicos levarão, de imediato, a uma piora dos serviços
oferecidos, e, em seguida, por um aumento dos impostos, possibilidades que, na
atual conjuntura, deixam as populações de cabelos em pé.
Sob a
pressão da incerteza e das contas a pagar, a maioria dos europeus apoia um
cessar-fogo que ponha fim ao conflito, ainda que a Ucrânia tenha que ceder à
Rússia parte dos territórios ocupados. Difícil dizer qual a chance real que
esta postura tem de se transformar em movimento que questiona tanto a
continuidade da guerra, como a adesão de cada país europeu à estratégia da
OTAN. Contudo, é bastante animador ver que há cada vez mais pessoas dizendo que
as posições oficiais não representam o pensamento da população.
4. A
comida tá cara...culpa da Rússia?
Com a
guerra preste a completar o quinto mês de duração, apontar a Rússia como direta
responsável pelo encarecimento dos preços dos alimentos já é parte do senso
comum. Ninguém duvida que, ao tornar indisponíveis os produtos agrícolas
ucranianos e ao encarecer os preços dos combustíveis, o custo da comida tenha
alcançado patamares inesperados e contribua para elevar em 345 milhões o número
dos seres humanos em situações de grave insegurança alimentar.
Mas há
uma pergunta incômoda que ninguém quer responder: se não tivesse ocorrido a
invasão da Ucrânia, teríamos uma alimentação farta e barata?
A
invasão russa fez com que, de uma hora para outra, os elementos que mantêm em
situação de penúria enormes contingentes populacionais simplesmente
desaparecessem como causas da fome de quase um bilhão de seres humanos. Aqui no
Brasil, os mesmos comentaristas que se delongam ao tratar do aumento médio de
67% dos óleos vegetais na América Latina já esqueceram que, em 2020, o preço ao
consumidor final do "nosso" óleo de soja registrou uma alta de 103%
e, ao levar muitas pessoas a procurarem alternativas, acabou fazendo disparar
os preços de todos os óleos vegetais. Gozado como ninguém lembra que isso
ocorreu à medida que exportar soja era mais rentável do que vendê-la
internamente e que, em nome dos lucros, os ruralistas brasileiros não
titubearam em estrangular as famílias de baixa renda criando uma escassez que
permitia cobrar em reais os valores correspondentes aos que ganhariam em
dólares. Por que esta "guerra" dos capitães do agronegócio já foi
esquecida? Foi por ser parte de uma guerra que mata muitos sem disparar um
único tiro? Por que, este aumento exorbitante num país que é um dos maiores
produtores de soja não ganhou as manchetes internacionais, apesar de ser fruto
de contradições gritantes?
Citamos
a nossa realidade a fim de mostrar que a produção de alimentos não visa a
satisfação da fome, mas aproveita a necessidade de os seres humanos se
alimentarem para produzir lucros. Para que isso ocorra, é necessário manter uma
relação bastante apertada entre oferta e demanda, uma postura que, em tempos de
mudanças climáticas, faz a humanidade correr permanentemente no fio da navalha.
Foi
exatamente isso que o mundo conheceu em 2021, quando os preços da comida vinham
sinalizando altas expressivas. A Organização das Nações Unidas para a
Alimentação Mundial (FAO) emitiu vários comunicados mensais anunciando seguidos
recordes no preço médio de sua cesta de alimentos3 e estimando que o
contingente humano que passava fome todos os dias havia subido para 811 milhões
de pessoas no final do ano passado. Em janeiro de 2022, a FAO confirmava que,
no ano anterior, o custo da sua cesta havia aumentado 28,1% o índice mais alto
dos últimos 10 anos.
Curiosamente,
nela se destacavam os preços dos óleos vegetais com uma elevação média de 65,8%
em relação a 2020; do milho, com 44,1%; e do trigo com 31,3%. A invasão da
Ucrânia ainda demoraria um mês e meio para se tornar realidade, mas a FAO já
apontava uma situação de escassez ainda mais grave em função dos problemas
climáticos e das condições estruturais em que os alimentos são produzidos.
Ninguém
precisa ser um especialista para entender que plantar os alimentos destinados a
matar a fome do povo em porcentagens reduzidas de terreno agrícola de um país
faz com que baste pouco para criar uma situação de escassez que faz os preços
subirem. Ou seja, bem antes da guerra na Ucrânia, os estragos provocados pelas
mudanças climáticas e pela política de produção do agronegócio no mundo
inteiro, por si só, reuniam condições suficientes para forçar um número
crescente de pessoas a apertarem os cintos. Por que nada disso é levado em
consideração nas análises atuais?
E tem
mais.
De
acordo com as estimativas do governo da Ucrânia, em junho deste ano, 80% das
terras agrícolas do país continuavam nas mãos dos seus proprietários que já
haviam comprado todos os insumos necessários para plantar a próxima safra. Mas,
à medida que as colheitas armazenadas não podiam ser exportadas, os preços dos
grãos haviam caído pela metade em função do excesso de oferta e não haveria
onde guardar o resultado das próximas colheitas.
Com Kiev
tendo minado as águas do Mar Negro e afundado vários navios em lugares
estratégicos para impedir que a frota russa se aproximasse do litoral do país
entre a Criméia e a Romênia, utilizar navios para levar os produtos agrícolas
aos mercados externos, como ocorria antes da guerra, foi uma opção que, desde o
início, se mostrou extremamente arriscada. De fato, retirar as minas de
superfície para criar um corredor marítimo minimamente seguro abriria à marinha
de guerra russa a chance de ocupar os portos ainda em mãos ucranianas. Restava
então a opção do transporte rodoviário e ferroviário até algum porto europeu
cujas instalações permitissem o embarque de grãos.
Contudo,
enquanto a fome aumentava nos países compradores, a burocracia da União
Europeia criava filas de caminhões de até 25 km de cumprimento nas passagens de
fronteiras a fim de desencorajava a circulação das cargas pelo seu território.
E não é para menos. Com as colheitas de verão dos países membros sendo
processadas no mesmo período, nenhum governante se atreveria a reduzir os
armazéns a elas destinados e nem a ver os preços no atacado caírem além do
esperado por abrigar o trigo e o milho ucranianos.
Usar a
ferrovia foi apresentado como algo ainda mais complicado, à medida que a bitola
ucraniana é maior que a dos países da UE e, entre burocracia e motivo técnicos,
o tempo médio para transferir a carga de um vagão para outro levaria entre 16 e
30 dias. Gozado...usar vagões ferroviários para levar armas dos países europeus
às frentes de batalha é uma operação que não sofre atrasos...mas usar o trem
para alimentar os pobres do mundo precisa superar obstáculos que crescem à
medida que culpar a Rússia pela alta dos preços dos alimentos desgasta a sua
imagem no cenário mundial.
Á medida
que os portos de Polônia e Romênia não estão equipados para lidar com grandes
quantidades de grãos, aceitar a proposta do presidente de Belarus, Alexander
Lukashenko, que colocou a estrutura rodoviária do país à disposição para que as
cargas de cereais e oleaginosas fossem levadas a um dos portos do Báltico onde
isso poderia ser feito, se apresentava como uma opção razoável. Mas o problema
aqui não estava na viabilidade técnica e sim no fato de o país solicitar, em
troca, o fim das sanções à exportação das mercadorias que produz, em especial,
os fertilizantes potássicos, aguardados por muitas nações que dependem deles
para extrair da terra os alimentos de que suas populações precisam. O silêncio
foi a resposta que Lukashenko recebeu.
Se a
questão central era abastecer o mundo com os produtos ucranianos a fim de
reduzir a quantidade de pessoas em situação de insegurança alimentar, por que
nada foi feito para resolver os problemas logísticos que impediam de viabilizar
esta possibilidade? Assegurar os lucros dos agricultores da UE e manter a
pressão da mídia sobre a Rússia é mais importante do que ajudar a matar a fome
das pessoas mundo afora?
Seguindo
em nossas reflexões, lembramos que, em meados de maio, o governo da Índia
proibiu a exportação de trigo. Esta decisão foi tomada diante da quebra da
safra do cereal devido às temperaturas que, em algumas regiões produtoras,
atingiram os 50 graus. No início de fevereiro, o governo de Nova Deli esperava
colher nada menos do que 111 milhões e 320 mil toneladas de trigo, mas a forte
onda de calor que varreu o país reduziu as estimativas para 105 milhões, número
que pode cair ainda mais caso o clima não ajude.
Mesmo
sem exportar um único quilo deste cereal, a quebra de safra elevou em 24,1% os
preços do produto na Índia e teve um efeito imediato na alta das cotações do
mercado mundial. Mas, estranhamente, poucos falaram disso e, menos ainda, foram
aqueles que apontaram a seca nos países europeus e no oeste dos EUA como
fatores determinantes na redução das colheitas e na consequente elevação dos
preços dos alimentos.
O mais
curioso é que, muitas vezes, nem São Pedro nem Putin podem ser
responsabilizados pelo encarecimento do cardápio das famílias. Vejamos, por exemplo,
o que aconteceu nos Estados Unidos a partir do final de 2021 quando os
proprietários das granjas começaram a sacrificar pintinhos e a abater
prematuramente frangos, perus, marrecos e patos.
Insignificante
no mês de novembro de 2021, quando a tonelada de milho era cotada a 567
dólares, a matança dos pintinhos ganhou corpo em meados de fevereiro de 2022,
com o preço médio da tonelada a 640 dólares. No mês seguinte, a cotação a 725
dólares elevou o sacrifício dos animais na casa dos milhões de unidades e as
coisas pioraram ainda mais em maio quando o preço do milho chegou a 813 dólares
a tonelada.
Aparentemente,
a evolução dos preços do milho de novembro em diante parecem dar razão a quem
aponta a guerra na Ucrânia como causa de tudo. Desta forma, tanto a mídia,
quanto o agronegócio, conseguem ocultar facilmente três elementos sem os quais
esta variação dos preços seria bem mais comedida: 1. O fato de, nos EUA, parte
considerável desta produção agrícola ser utilizada para fabricar etanol; 2. Que
o período de dezembro a maio é de entressafra e, de consequência, os preços
tendem a subir por motivos sazonais; 3. Em 2022, a escassez de chuvas em muitas
regiões produtoras do país já trabalhava com a perspectiva da diminuição das
colheitas, com reflexos negativos nos estoques mundiais do produto. Ou seja, o
preço da tonelada de milho acabaria revelando uma tendência de alta superior à
que costuma registrar independentemente dos efeitos da guerra no mercado
mundial.
Mas...que
mal pergunte...sacrificar pintinhos e abater prematuramente as aves que estão
sendo criadas nas granjas...não aumenta o preço deste tipo de carne?
Exatamente.
Este é justamente o objetivo dos donos dos aviários que, com esta prática,
provocam uma escassez artificial das carnes de aves para forçar uma elevação
dos seus preços capaz de compensar o aumento dos gastos de produção e oferecer
lucros bem mais polpudos com as vendas aos consumidores. Sabendo que, nos EUA,
nos 12 meses até junho, o preço médio das carnes e dos ovos aumentou 11,7%,
perguntamos: quanto desse índice corresponde, de fato, aos efeitos negativos da
guerra no abastecimento mundial?4 Quantos pontos percentuais podem
ser atribuídos à elevação do custo da ração por problemas climáticos? Na
variação anual do preço das carnes no varejo, quanto reflete as ações do
agronegócio no sentido de elevar artificialmente as margens de lucro?
Dos
Estados Unidos, vamos agora para a África.
O
aumento das pessoas em situação de grave insegurança alimentar no continente
africano é sempre citado nos noticiários que vinculam a fome à guerra. Não
precisamos ser economistas para entender que a situação de uma população que
tinha problemas de acesso à comida pode transitar rapidamente para a falta de
alimentos à medida diante de qualquer acontecimento conjuntural.
Mas por
que basta pouco para milhões de africanos passarem fome? A resposta a esta
pergunta deve ser procurada no processo de expropriação da terra para que os
investimentos dos grandes conglomerados internacionais nas áreas da mineração,
extração de petróleo e da produção agrícolas destinada à exportação pudessem se
realizar. Ano após ano, um crescente número de famílias expulsas das terras que
lavravam, impedidas de pescar e criar animais para o seu sustento engrossaram o
número de desempregados e ampliaram as favelas que cercam as cidades do
continente.
As
promessas de emprego e renda dos projetos empresariais instalados nas áreas que
eram do povo sempre geraram desequilíbrios enormes entre o número de vagas
criadas e o das pessoas privadas das fontes tradicionais de sustento. A ideia
de ganhar dólares com as exportações para importar mais comida que convenceu a
quase totalidade dos governantes sempre se deparou com a realidade pela qual
quem está desempregado simplesmente não tem dinheiro para comprar o que é
vendido nas lojas. Ou seja, as supostas fontes de progresso e elevação da renda
no continente africano sempre alimentaram, de um lado, a concentração da
riqueza nas mãos de poucos e, de outro, o número de pessoas que vivem ao Deus
dará bem antes da invasão da Ucrânia.5
Claro
que as dificuldades de abastecimento trazidas pela guerra pioram o que já
estava muito ruim. A nova alta dos preços reduz as quantidades de alimentos que
um país pode comprar e, de consequência, encolhe ainda mais o número de pessoas
que têm acesso a elas. Mas desde bem antes do conflito, a situação da população
africana na base da pirâmide social se deteriorava a olhos vistos.
Se isso
não bastasse, a implantação dos projetos das multinacionais demanda que os
Estados se endividem para construir ferrovias, estradas, portos, aeroportos,
centrais elétricas etc. destinadas ao seu funcionamento. À medida que os
governos dos países africanos precisam emprestar dinheiro junto aos bancos
internacionais para construir a infraestrutura necessária, o endividamento
público cresce e consome parte significativa do orçamento do Estado. Desta
forma, sobram ainda menos recursos para qualquer tipo de gasto social, o que
inclui, obviamente, a possibilidade de socorrer a população que passa fome.
Na
primeira metade de maio deste ano, o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (UNDP) emitiu um alerta segundo o qual o endividamento dos
países africanos estava estrangulando a capacidade de seus governos oferecerem
ao povo o pouco com o qual contava no período anterior. Segundo a UNDP, em
2014, em média, a dívida pública do continente representava 35% do seu PIB.
Graças aos mecanismos que descrevemos, no primeiro trimestre de 2022, ela
chegou, em média, a 60% do PIB da África.
As
consequências desta elevação constam do próprio documento da ONU: em 2010, o
pagamento dos juros consumia, em média, 5% do orçamento dos países africanos;
em janeiro deste ano, esta conta demandava mais que o triplo dos recursos
orçamentários anteriores ao atingir a marca dos 16%. Com menos dinheiro
disponível, os gastos sociais foram despencando em todos os países da África
subsaariana. No Zâmbia, por exemplo, a parcela para a educação caiu de 16,1%
para 10,4% do orçamento do Estado nos últimos quatro anos. Em Angola, a marca
histórica de 4% do PIB destinados à luta contra o analfabetismo, em 2014, foi
sendo corroída até chegar aos 2%, em 2021.
A forma
como o impacto da guerra na insegurança alimentar está sendo veiculado consegue
a proeza de apagar as questões estruturais da produção da comida que, ano após
ano, privam grandes contingentes humano do acesso ao que precisam para
sobreviver. Reconhecer isso implica em admitir que as relações de propriedade e
a finalidade para a qual o terreno agrícola é utilizado matam a sede de lucros
de poucos e não a fome que condena à morte milhões de pessoas.
Com as
breves linhas deste capítulo, não queremos menosprezar os problemas adicionais
que a invasão da Ucrânia colocou na mesa da alimentação mundial. Queremos
apenas sugerir a necessidade de verificarmos como e quanto estes mesmos
problemas estão servindo de biombo para encobrir contradições gritantes que
fragilizavam o acesso à comida bem antes da guerra.
5.
Rússia e China entre as sanções e as pressões internacionais
Passados
quase cinco meses do início das hostilidades, quem apostava que as sanções
econômicas colocariam Putin de joelhos deu, literalmente, com os burros na
água. Vejamos por que.
Apesar
dos seguidos cortes no fornecimento de petróleo e gás aos países da União
Européia durante os primeiros 100 dias de guerra, estima-se que 59 dos 97
bilhões de dólares que a Rússia recebeu com a exportação de energia vieram
justamente dos países do bloco.
A
exigência do pagamento em rublos pelos hidrocarbonetos fornecidos aos europeus
e a obrigação dos exportadores locais converterem na moeda russa 80% das
quantias obtidas com as vendas no mercado externo fizeram com que o rublo
ultrapassasse o valor pelo qual era negociado antes da guerra, conforme mostra
o gráfico que segue:
Gráfico 1: Variação do rublo em relação ao dólar entre
janeiro e maio de 2022.
O
gráfico 1 espelha a variação do câmbio em relação ao dólar de acordo com o
caminhar da invasão, com a imposição das sanções econômicas nas semanas
seguintes e a reviravolta oriunda da determinação de Moscou segundo a qual, a
partir de 1º abril, os pagamentos dos combustíveis fornecidos pela Rússia
teriam que ser efetuados obrigatoriamente em rublos, sob pena de cortes no
abastecimento. No início de maio, o rublo tinha a mesma cotação de meados de
fevereiro, chegou ao ponto mais alto na segunda metade de junho e retomou a
tendência de queda quando as perspectivas de recessão em 2023 levaram a uma
redução dos preços do petróleo, do minério de ferro e de várias outras
commodities.
Diante
deste quadro e da completa ausência de informações confiáveis, é impossível
saber se os cortes no fornecimento de petróleo e gás à União Européia foram
totalmente compensados pelo aumento das vendas à Índia e à China. As notícias
disponíveis mostram que a economia russa está sofrendo menos que o esperado,
mas os pouquíssimos dados veiculados por Moscou podem ser mais para efeito
propagandístico do que um espelho da realidade.
Sabemos
que, antes da invasão da Ucrânia, apenas 1% do petróleo russo tinha a Índia
como destino e que, em junho deste ano, as compras de Nova Deli chegaram a 18%
das vendas de Moscou. Do mesmo modo, as maiores aquisições da China constituem
um excelente reforço de caixa para a economia russa. Na comparação entre
janeiro e maio de 2022 com o mesmo período do ano anterior, o gigante asiático
elevou em 80% as compras de petróleo russo; em 54% as de gás; em 5,2% as de
carvão; em 70% as de carvão para a indústria siderúrgica; em 15% as de cobre
refinado; e em 19% as de paládio.
Tendo
como base a quantidade de empresas que deixaram o território russo após a
invasão da Ucrânia e as dificuldades de acesso a componentes eletrônicos de
alta tecnologia em função das sanções impostas ao país, as opiniões dos
economistas ocidentais estimam que o PIB da Rússia esteja sofrendo uma
contração que varia entre 5% e 17%. Mas aqui também estamos falando de
especulações e não de cálculos produzidos com base em dados estatísticos.
Afinal, fazer com que o inimigo não possa avaliar a capacidade de resistência
da economia russa é parte da estratégia de guerra.
As
respostas de Putin ao boicote internacional têm sido adotadas, até o momento,
com base em quatro diferentes atitudes. A primeira delas é a substituição pura
e simples de serviços executados por empresas estrangeiras que saíram do país
por outros realizados por russos que ocuparam os mesmos espaços e ofereceram
produtos semelhantes, como é o caso do Mc Donald.
A
segunda percorre o caminho da nacionalização com a compra a baixo preço da
totalidade das ações do antigo proprietário. Foi isso que ocorreu em meados de
maio quando, com a produção de veículos automotores enfrentando uma queda de
96%, Moscou adquiriu a participação majoritária (68% das ações) da montadora
Renault cujas unidades instaladas na Rússia, em 2021, transformaram o país no
segundo maior mercado da empresa depois da Europa.
A
terceira modalidade passa pelo caminho do sequestro puro e simples de bens de
capital estrangeiros. No dia 22 de maio, por exemplo, Moscou registrou como
próprios pelo menos 360 aviões que operavam voos no país e que, em sua grande
maioria, pertenciam a empresas de leasing sediadas nas Ilhas Bermudas. Agora,
estas aeronaves não podem deixar o espaço aéreo da Rússia a fim de evitar que
sejam bloqueadas e repatriadas. Por outro lado, sabendo que as sanções impedem
também o acesso à manutenção do fabricante e à compra de peças originais, a
hipótese mais provável é que as empresas de aviação russas acabem canibalizando
alguns dos aviões sequestrados a fim de fazer voar o restante da frota.
Último,
mas não menos importante, é a ruptura de acordos de investimentos com empresas
ocidentais ou com países que apoiam as sanções econômicas. No dia 4 de julho,
por exemplo, a Rússia decretou o controle total de um dos maiores projetos de
gás liquefeito do mundo, o Sakhalin-2. Inicialmente construído numa parceria da
Gazprom (50% das ações) com a Shell (que detinha uma participação de 27,5%) e
as empresas japonesas Mitsui e Mitsubichi (proprietárias dos 22,5% restantes),
o projeto destina-se a abastecer 4% do mercado mundial de gás natural
liquefeito. De imediato, sabemos que o Japão não receberá um único metro cúbico
do gás que sairá destas instalações que, inicialmente, se destinavam a suprir
8% das necessidades de sua economia e que Índia e China serão convidadas a
integrar o consórcio com a Gazprom.
A incerteza
trazida pela guerra na Ucrânia marca presença também na China e se soma aos
problemas que a sua economia vinha apresentando. De um lado, o fechamento de
cidades indústrias e portuárias diante das novas ondas de Covid, com todos os
problemas que estas paralisações trouxeram às redes mundiais de abastecimento,
acabou encolhendo o fluxo do comércio com o país entre janeiro e abril de 2022.
Na última semana de maio, a flexibilização parcial das restrições fez com que a
movimentação de containers no porto de Xangai atingisse 95% do normal.
Espera-se que o fim do confinamento decretado em 1 de junho, marque um retorno
progressivo aos patamares de atividade anteriores à pandemia.
Por
outro lado, a partir da invasão da Ucrânia, os investidores estrangeiros retiraram
do país cerca de 150 bilhões de dólares em ativos financeiros. Segundo o
Instituto de Finanças Internacionais, o apoio da China à Rússia pode fazer com
que a saída total de recursos em 2022 chegue aos 300 bilhões de dólares, mais
que o dobro em relação à retirada de 129 bilhões de dólares do ano passado.
Difícil dizer neste momento até que ponto a decisão destes investidores será
seguida por outros e qual será seu efeito em médio prazo na economia chinesa.
Em Pequim, sabendo dos problemas do segundo trimestre de 2022, todos esperavam
um crescimento de, pelo menos, 1% em relação ao mesmo período de 2021.
Considerado baixo para os padrões do gigante asiático, o índice seria apenas um
sinal de inflexão esperado, mas constatar que o crescimento foi de 0,4% acendeu
vários sinais de alerta dentro e fora do país.
Em
termos de política externa, o Ministro das Relações Exteriores de Pequim, Wang
Yi, usou o encontro dos BRICS, ocorrido no dia 19 de maio, para anunciar a
ideia de ampliar o bloco. Deste encontro, participaram como convidados
especiais os chanceleres de Arábia Saudita, Argentina, Cazaquistão, Egito,
Emirados Árabes Unidos, Indonésia, Nigéria, Senegal e Tailândia, países
candidatos a ampliarem o BRICS e o coro dos que não aceitam uma maior influência
de EUA e UE nas relações internacionais. Ter a Arábia Saudita neste bloco
despertou serias preocupações em Washington e levou Biden a se encontrar com a
casa reinante a fim de reduzir os atritos que desgastaram as relações entre
Washington e Riad ao longo dos últimos anos e reafirmar as possibilidades de
uma parceria visando reduzir a influência de China e Rússia na geopolítica do
Oriente Médio.
Enquanto
os grupos no poder tecem as rédeas de um futuro onde a classe trabalhadora
entra como ovelha a ser tosquiada e como bucha de canhão, as lutas contra a
piora das condições de vida que pipocam em vários países precisam ampliar
urgentemente o seu alcance a fim de deter a guerra em curso e as perspectivas
de futuro desenhadas pela OTAN.
Não se
trata de uma tarefa fácil e neste momento, nada indica que esteja no horizonte
de luta dos trabalhadores. O choque com a realidade que a inflação e a
incerteza possibilitam não guarda relação apenas com os problemas do próximo
inverno, mas, sobretudo, com a tormenta econômica que irá se abater sobre o
mundo em 2023. Diante dela, ou a classe consegue romper os limites que mantêm
sua ação no campo econômico-corporativo e impedem um maior grau de organização
e mobilização rumo a outros horizontes ou sequer conseguirá vender a própria
pele por um preço maior.
Emilio
Gennari - Brasil, 18 de julho de 2022.
______________________________________________________________
(1)
O texto A guerra da Ucrânia no tabuleiro da geopolítica mundial está
disponível através do link: https://drive.google.com/file/d/1cHzRwPOjZd1iWKGNHNpOOGisymj7MqAo/view?usp=drivesdk
(2)
Em ordem cronológica, seguem as principais fontes que serviram de base para a
elaboração deste texto:
-
https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-61446847
-
https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-61421242
-
https://www.bbc.com/mundo/noticias-61387963
-
https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-61466540
-
https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-61474437
-
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61488916
-
https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-61514155
-
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61548517
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https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61569149
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https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61591917
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https://elpais.com/opinion/2022-05-23/resistencia-sindical-en-ee-uu.htm
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https://www.bbc.com/mundo/noticias-61641873
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https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-61651308
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https://elpais.com/planeta-futuro/2022-06-03/ya-estamos-frente-a-la-crisis-mundial-del-hambre.html
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https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-61593246
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https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61669507
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https://elpais.com/economia/2022-06-05/repsol-empezara-a-enviar-crudo-desde-venezuela-a-europa.html
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https://ilmanifesto.it/il-salario-minimo-sale-a-12-euro-lora-la-promessa-mantenuta-di-olaf-scholz
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https://elpais.com/opinion/2022-06-07/medias-tintas-en-turquia.html
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https://elpais.com/economia/negocios/2022-06-08/todos-muy-verdes-hasta-que-la-realidad-cambia.html
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https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-61677953
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https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61890519
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https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61930676
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https://www.bbc.com/mundo/noticias-61875111
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https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61952335
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https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-61951722
-
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62007310
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https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-61500082
-
https://elpais.com/internacional/2022-07-03/la-escalada-de-la-inflacion-asfixia-a-america.html
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https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-62024094
-
https://www.bls.gov/news.release/empsit.nr0.htm
-
https://br.investing.com/commodities/us-corn-streaming-chart
-
https://www.esquerda.net/dossier/cresce-onda-criminosa-anti-sindical-na-starbucks-e-amazon/81133
-
https://www.bps.pt/starbucks-fecha-cafe-em-nova-york-no-que-sindicato-chama-de-vinganca/
-
https://br.investing.com/commodities/us-corn-historical-data
-
https://elpais.com/opinion/2022-07-09/putin-intentara-estrangular-a-la-ue.html
-
https://br.investing.com/currencies/rub-usd
-
https://elpais.com/internacional/2022-07-10/estan-fracasando-las-sanciones-occidentales-a-rusia.html
Todos
os acessos foram realizados entre os dias 13 de maio de 2022 e 15 de julho de
2022.
(3)
O índice da FAO acompanha as mudanças mensais nos preços internacionais
destas commodities: cereais (arroz, milho, trigo e outros), óleos vegetais
(soja, canola, girassol e outros), produtos lácteos (leite em pó, queijo,
manteiga), carnes (bovina, frango, suína, ovina) e açúcar.
(4)
As tabelas que descrevem a composição do índice de inflação dos EUA não separam
os aumentos de cada tipo de carne e incluem neste item a variação dos preços
dos ovos.
(5)
Se você estiver interessado no assunto, encontrará dados esclarecedores nas
páginas 13 a 22 da nossa análise "O mundo nos tenebrosos horizontes de
2020" (disponível em: https://drive.google.com/file/d/1txyzJSLon4CZw7YMAtVyn3kLnlzsX9JE/view?usp=drivesdk) e entre as páginas 2 e 12 do estudo "Desigualdade: quanto mais a
escondem, mais aparece" onde trabalhamos especificamente da realidade da
Nigéria e da África do Sul (disponível em: https://drive.google.com/file/d/1dkhKANZOPBgceIPlWkif2w9Z_qxq_1kJ/view?usp=drivesdk).
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