Tá difícil? Te
parece que ninguém faz nada? Que ninguém quer nada? Você mesma está pensando em
desistir?
Nada deve parecer
impossível de mudar. É o que nos mostra a resistência ao nazismo Feita por
pessoas que deviam estar paralisadas pelo medo mas não estavam. Por que?
Descubra lendo esta lição de rebeldia descrita por Emilio Gennari
“Por isso, todo
dia é o dia da memória, mas também o dia de mostrar que a resistência nas
piores condições a que pode ser submetido um ser humano materializa o grito de
liberdade e esperança que desafia a resignação para derrotar o que a opressão
planta no solo do tempo.”(Emilio Genari)
Ecos da
resistência - segunda parte
A primeira parte
do nosso estudo pode ter suscitado a impressão errônea de que, durante a
segunda guerra mundial, a resistência era uma via de mão única a ser percorrida
por quem se dedicava a salvar os judeus das garras de Hitler. O
resgate das ações das pessoas simples que enfrentaram o nazismo nas condições
que a história colocava em suas mãos caminhará agora entre as vítimas do
holocausto que moravam no Gueto de Varsóvia e das que passaram pelo campo de
concentração de Auschwitz.
Em cada um desses
lugares, levantaremos os aspectos essenciais da realidade a fim de entender os
objetivos, as formas e o sentido do resistir cotidiano às investidas da morte.
As vozes destes protagonistas, anônimos em sua ampla maioria, saíram dos
diários que registraram o medo, a angústia e a impossibilidade de entender o
que estava acontecendo; dos depoimentos que divulgaram o que os nazistas
procuravam esconder; dos relatos que mostravam a vontade de reagir através de
ações que, por limitadas e controversas que pudessem parecer, faziam com que
valesse a pena arriscar a vida para alimentar a esperança.
De mãos dadas com
os homens e as mulheres que espalharam as sementes da resistência em condições
extremas, percorreremos os capítulos de uma história cujas páginas muitos negam,
deturpam ou preferem ignorar.
7. O Gueto de Varsóvia: da desumanização à organização da revolta.[1]
Em 16 de novembro
de 1940, a área de Varsóvia que iria abrigar um contingente de pessoas oito
vezes superior ao que podia comportar em condições normais foi hermeticamente
selada por muros altos e arame farpado. A vigilância atenta das tropas de
Hitler e dos policiais poloneses coibia com execuções sumárias qualquer
tentativa de sair daquela prisão a céu aberto.
As atividades
econômicas no interior do Gueto permitiam que, a depender do período
considerado, entre 3,5% e 7%, das pessoas tivessem acesso a uma fonte de renda.
Os comerciantes com maiores recursos subornavam os guardas alemães para
garantir um contrabando regular de alimentos e mercadorias cujos preços só
podiam ser pagos pelos mais abastados. Inúmeras famílias de classe média
vendiam o que tinham para comprar comida. À imensa maioria dos pobres, restavam
apenas as cadernetas com as quais os judeus podiam comprar legalmente uma ração
inferior a 10% do mínimo necessário para a sobrevivência física. Contudo, sem
trabalho e sem dinheiro, muitas famílias não tinham acesso sequer a estas
míseras quantidades de alimentos.
As anotações de Emanuel
Ringelblum, em agosto de 1941, oferecem uma imagem aterradora da situação do
Gueto, castigado pela fome e pelas doenças:
“Os carros estão
repletos de cadáveres. Os caixões dos pobres estão empilhados uns sobre os
outros. Em algumas das casas do setor pobre (por exemplo, na Rua Wolynska),
morrem famílias inteiras. (...) Uma mãe escondeu o seu filho morto para
utilizar a sua caderneta da compra racionada de alimentos durante o maior tempo
possível. (...) Em geral, a morte de famílias inteiras no prazo de um ou dois
dias tem se tornado um evento muito comum. Há um aumento muito grande do número
de órfãos, à medida que os adultos morrem primeiro, sobretudo os homens. (...)
Se as coisas continuarem assim, a “Questão Judaica” estará logo resolvida em Varsóvia”.[2]
No universo do
Gueto, a mendicância crescia a olhos vistos, a prostituição e os furtos
acompanhavam a progressiva degradação humana provocada pela fome. A realidade
corroía rapidamente os valores familiares e comunitários. O fato de as crianças
entre 10 e 14 anos passarem mais facilmente pela rede de esgoto ou pelas
pequenas brechas em alguns pontos do muro que cercava a área reservada aos
judeus fazia com que fossem os pequenos a ter a responsabilidade de encontrar
alimentos no lado ariano de Varsóvia. Não faltavam ocasiões em que os adultos
se aventuravam nesta empreitada buscando alcançar as regiões rurais em volta da
cidade. A possibilidade de voltar de mãos vazias superava a dos filhos terem a
mesma falta de sorte, sem contar os riscos de um encontro fatal com soldados
alemães.
De acordo com
alguns relatos, não faltaram jovens que, desde o final de 1940, levantaram a
necessidade de realizar protestos contra o fechamento do Gueto e os desmandos
das forças de ocupação. Contudo, as lideranças do Conselho Judaico (Judenrat)
consideraram estas ideias imprudentes diante da crueldade dos nazistas e da
mediação que esperavam poder exercer enquanto administradores encarregados
pelos alemães de organizar o cotidiano dos judeus presos entre os muros. O
temor de um massacre em larga escala, sustentado pelas recorrentes execuções
sumárias por motivos banais, aterrorizava a população judaica a ponto de esta
se conformar com o fato de que, por dura que fosse, a aceitação da sua
realidade ainda produziria menos sofrimentos do que qualquer tentativa de
levantar a cabeça.
Por outro lado,
qualquer forma de resistência devia acertar as contas com a polícia do Gueto,
cujos agentes eram judeus moradores da área e que, em função do seu cargo,
contavam com condições de vida melhores em relação às que eram comuns à imensa
maioria da sua gente. As opiniões a respeito deste corpo policial costumavam
traçar um perfil nefasto dos seus integrantes, à medida que, em várias ocasiões
e apesar de estarem armados apenas de cassetetes, haviam incorporado o requinte
de crueldade dos alemães e se valiam dele para mostrar sua confiabilidade aos
olhos dos nazistas.
Poucos relatos
destacam ações favoráveis à população, ora em função dos vínculos familiares
entre os agentes e as pessoas beneficiadas, ora por informarem de antemão os
prédios cujos moradores seriam deportados. Os fragmentos que chegaram até nós
impossibilitam qualquer julgamento em relação a estas ações que podem ser
entendidas tanto como uma forma de proteger os próprios entes queridos ou os
que usavam seus recursos financeiros para escapar das deportações como,
simplesmente, de conter a desconfiança e a revolta pelo fato de policiais
judeus aumentarem os sofrimentos dos próprios judeus.
Se isso não
bastasse, os nazistas contavam com a ação de vários delatores. O recrutamento
deles iniciava com a prisão por violações banais, como a colocação incorreta da
braçadeira com a estrela de Davi. Estas pessoas eram submetidas a sessões de
tortura nas quais a Gestapo estudava as fragilidades de cada preso a fim de
trocar a possibilidade de escapar da morte pelo compromisso de apontar quem
tinha riquezas escondidas no Gueto e quem podia usá-las para sustentar ações de
resistência. Alguns dos delatores eram conhecidos por uma parte da população, mas
o seu número e a sua ação real era sempre uma incógnita cujo perigo não podia
ser menosprezado.
O que fazer
diante de uma realidade onde qualquer pequeno sinal de rebeldia pode levar à
execução de quem apenas buscou um espaço de liberdade? Como barrar a sensação
de impotência que leva a uma completa resignação diante dos acontecimentos e
impossibilita esboçar qualquer reação às humilhações sofridas? Até que ponto é
possível alimentar sentimentos de coletividade quando tudo em volta aponta o
“salve-se quem puder” como a única saída possível?
A primeira
percepção que emerge dos relatos guarda uma relação direta com o fato de a fome
não ser apenas um dos meios para eliminar os judeus, mas também de promover uma
desumanização capaz de destruir qualquer forma de convivência civilizada e de
identidade coletiva. Neste sentido, é importante lembrar que os nazistas já
haviam proibido as escolas judaicas e os rituais religiosos, caçado e matado
vários rabinos, queimado livros e bibliotecas inteiras para impedir a transmissão
da cultura judaica, destruído o que permitia aos judeus de se reconhecerem como
povo e, portanto, de esboçar sobre bases comuns qualquer ensaio de reação a uma
máquina de guerra implacável e supostamente invencível.
Se isso não
bastasse, a composição da população variava à medida que, além do elevado
número de falecimentos, novos grupos de judeus deportados das cidades do
interior repunham abundantemente o contingente que a morte havia levado do
Gueto. Esta rotatividade constante demandava um esforço permanente para
estabelecer contatos e dificultava a realização das ações que percorriam,
necessariamente, o caminho da clandestinidade.
Ainda que os
recém-chegados partilhassem da mesma base cultural e religiosa, a realidade da
guerra havia deteriorado significativamente os seus valores morais e os
critérios que orientavam a busca da sobrevivência. Por isso, das celebrações
religiosas ao ensino de iídiche, da solidariedade possível às atividades
destinadas a minorar a proliferação das epidemias e a deter a desumanização em
curso, tudo dependia de conseguir criar um clima de cumplicidade positiva, de
construir espaços de encontro e convivência que permitisse resgatar centelhas
da dignidade humana destruída pelos nazistas.
Entre os
primeiros passos nesta direção, as associações de assistência judaicas que
agiam na clandestinidade dentro e fora do Gueto se encarregaram de encontrar
alimentos para minorar o problema da fome. A escassez produzida pela guerra e
uma população reclusa que chegou a 480.000 pessoas faziam com que o muito que
se podia encontrar fosse sempre extremamente pouco para uma quantidade de
famintos que aumentava na exata medida que as famílias esgotavam as reservas de
que dispunham e que seguidas levas de judeus deportados do interior da Polônia
chegavam ao Gueto sem recurso algum.
Em 1941, as
organizações judaicas apontavam a proteção da vida como fio condutor da
resistência. Do acesso a uma quantidade adicional de alimentos e do acolhimento
dos desabrigados, aos cuidados com as crianças e, sobretudo, com os órfãos,
passando pela prática de formas de autogestão que visavam ensinar às crianças a
necessidade de cuidarem umas das outras, pela leitura de textos escritos por
autores judaicos, pela música e a poesia, pelas celebrações religiosas, pela
encenação de peças de teatro, etc., a proteção da vida buscava transformar o
indivíduo enclausurado, reprimido e brutalizado em sujeito de alguma ação com
benéficos reflexos coletivos.[3]
Entre as
prioridades de trabalho, estava a criação de lares-escola para as crianças do
Gueto. Longe de uma organização baseada no conteúdo próprio de cada ano letivo,
tratava-se de proporcionar aos pequenos alguns momentos em que pudessem voltar
a ser crianças, o aprendizado de orientações de higiene a serem colocadas em
prática na vida familiar e a vivência de momentos de solidariedade.
Enquanto
moradores do Gueto, educadores e educadoras eram bem mais do que alguém
encarregado de tomar conta da molecada por algumas horas. Cabia a eles fazer o
possível para suprir minimamente as necessidades básicas dos alunos com a ajuda
das famílias que disponham de mais recursos, verificar em loco as condições de
vida das crianças, escolher as mais necessitadas e organizar o lar-escola como
um lugar onde pudessem receber os cuidados possíveis. Por isso, o educador
atuava em vários setores do Gueto, organizava a solidariedade entre os vizinhos
e as comissões encarregadas de tomar conta dos lares que serviam de salas de
aula, recrutava crianças e adolescentes para ações de ajuda no que sempre se
configurava como um oceano de necessidades a serem enfrentadas com uma
constante e profunda insuficiência de meios.
Não ter sapatos
no frio inverno polonês, por exemplo, impedia às crianças de frequentar estes
ambientes. Algumas driblavam esta dificuldade sendo levadas no colo pelos seus
pais. Contudo, esse não era o caso dos órfãos, sempre vestidos de trapos,
descalços e famintos. Mas, como fazer para, por exemplo, oferecer calçados num
ambiente onde falta, literalmente, de tudo e é impossível encontrar os
materiais necessários para fabricá-los?
Um trecho
extraído do diário de Mary Berg relatando o trabalho das garotas na escola
técnica para meninas, criada no Gueto de Varsóvia, ajuda a termos uma ideia do
que significava, neste caso, concretizar o “proteger a vida” que orientava a
resistência:
“Fabricam sapatos
para os órfãos, posto que quase todas as crianças andam descalças. Como não se
pode conseguir couro, se recolhem no Gueto feltros de velhos chapéus e se levam
à escola, onde se lavam e convertem em sapatos diversos.
Para fazer as
solas, as estudantes colocam duas ou três capas de feltro ou de couro dos
sapatos velhos que os habitantes ricos do gueto doam com tal propósito. As
meninas trabalham com todo afinco, porque sabem quantos pezinhos gelados
esperam o fruto do seu labor, e nenhuma quer receber pagamento por seu
trabalho”.[4]
Além do que já
dissemos e das necessárias medida de segurança (posto que, no caso de serem
surpreendidas durante a aula, crianças e docentes poderiam ser executadas por
violarem as normas impostas pelos nazistas), o ato de educar nas condições do
Gueto exigia que os mestres olhassem “a vida entre os muros” pelos olhos de uma
criança castigada pela fome e cujas atitudes revelavam que, há tempo, havia deixado
de ser criança. A pergunta que estava na boca de todos os alunos era uma só:
quando vai chegar o pão?
Nenhum educador
podia ignorá-la ao pensar na organização das atividades e todas as pessoas
envolvidas na manutenção do lar-escola tinham claro que o pão era o incentivo
pedagógico por meio do qual se conseguia fazer as crianças brincarem, cantarem,
lerem, contarem histórias, lavarem as mãos, aprenderem práticas de higiene e
levá-las de volta à infância, pelo menos durante o tempo em que permaneciam naquele
ambiente. Mas, quando faltava comida, era praticamente impossível realizar
qualquer plano de aula, à medida que as crianças não tinham condições de se
concentrar em nada ou deixavam de frequentar o lar-escola para procurar alguma
coisa capaz de enganar o estômago. Quanto mais demorada a
Encontrados sob
os escombros do Gueto no final da guerra, os relatórios que os educadores
entregavam às organizações judaicas ajudam a ter uma ideia de como era difícil
usar as atividades em sala de aula para aliviar as tensões do cotidiano, mas
também de como os lares-escolas criavam espaços de solidariedade e de cuidados
entre as próprias crianças. O do Lar da Rua Mila, escrito por N. Daniel,
oferece uma visão de como isso se concretizava: [5]
“As Crianças: 45.
Duas não vêm. Por falta de sapatos e roupas. Crianças do lar levam até elas as
refeições. Segundo uma programação elaborada a partir da lista do lar, crianças
e pais vão, em turno, buscar a comida no refeitório. As refeições são distribuídas
pelas moças do serviço. A ordem é conhecida por todos. Os pequenos órfãos
doentes são prioritários.
Ninguém se
esquece da disciplina. Ninguém reclama, ninguém empurra. Apressamo-nos porque
os da segunda fileira esperam. As crianças sentam em bancos, seus recipientes
na sua frente, tendo colheres para todos. Cortamos o pão. As crianças esperam
com paciência a sua vez de ganhar a crosta, porque é o melhor pedaço e o maior.
Elas nunca atrasam. Os que estão de turno terminam a distribuição das refeições
e todos sabem que o trabalho nos espera. Leitura, conversa, desenho, nos
viramos, mas a falta de material para costura, trabalhos manuais, a falta de
cadernos, de livros, paralisa o nosso trabalho.
O barulho dos
martelos e das serras parou. A ajuda para o conserto de roupa sumiu.
Consolamo-nos com as histórias para crianças e a leitura de livros que
possuímos no lar (uma biblioteca de livros recuperados); os meninos maiores
estão tristes porque devem sair do lar mais cedo para ajudarem seus pais. As
moças maiores ficam tristes, por sua vez, porque compartilham destas
obrigações. E, então, começam os jogos, mas devemos interrompê-los porque um
doente, de tifo, está deitado do lado e pede para não fazermos barulho. As
crianças que já ficaram doentes são as que cuidam das crianças atualmente
doentes. Levam até elas as refeições, cuidam delas, porque suas mães tiveram
que sair por causa da fome. As crianças esperam ansiosamente serem levadas para
o hospital. Vários dias passam até que o centro consiga algum dinheiro para
conduzir os doentes para o hospital por seus próprios meios.
As coisas
melhoram um pouco, mas nosso trabalho é interrompido por brigas e insultos dos
mais velhos. Ninguém se mexe e o nosso canto se eleva: “a tempestade se ouve ao
nosso redor, levantemos alto nossa frente...” e dizíamos de cor ‘Wajin nistz,
ingele’.
O astral volta
nas crianças e elas esperam o dia seguinte.”
Nestes ambientes
onde faltava tudo e nos quais bastava pouco para que o esforço de semanas fosse
aniquilado por eventos inesperados, resistir não era apenas fazer das tripas
coração para oferecer sempre menos que o necessário, mas significava
frequentemente recomeçar do zero, improvisar soluções para poder retomar o
trabalho e enfrentar o embrutecimentos dos moradores. O relatório de S.
Przedborska, do Lar Bagno, datado de dezembro de 1941, traduz a mescla de
sentimentos que acompanha o não desistir de quem vive a resistência como um
aspecto fundamental para si próprio e para o seu povo: [6]
“Comecei meu
trabalho no Lar Bagno 3-5, Praça Grzyboski Nº 1, em junho de 1941. Com a ajuda
de patrocinadores, consegui um cômodo bonito para o lar. As crianças estavam
sujas, magras, em trapos. Sob minha direção, sempre com a ajuda da Comissão
para a Infância, e através de minhas atividades, as crianças foram novamente
vestidas (com os meios limitados disponíveis). Como era verão, não foi difícil.
Conseguimos para cada criança uma camisa, um vestido ou uma calça. Consegui que
nenhuma criança viesse suja para o lar. As que só tinham uma camisa (os
meninos: a camisa de cima), as lavavam e secavam ao sol, cedo pela manhã para
tê-la limpa antes de ir para o lar. A partir de 8.30 as crianças se agrupavam
na sala. Eu verificava sua higiene; as que estavam sujas deviam lavar-se senão
perderiam o direito ao café da manhã. Voltavam limpas.
Enquanto estava
ocupada com as crianças, as senhoras da Comissão para a Infância preparavam o
café da manhã. O café da manhã era às 9h30. Cada criança comia a sua parte na
presença da educadora ou de uma ou duas senhoras da Comissão. É muito
importante proceder desta forma, no interesse da criança. Um café da manhã não
consumido pela criança será parcialmente ou totalmente comido pelos seus pais.
A educadora pode atestar isso, pois é testemunha. Acolhi no meu lar crianças
que se recusavam obstinadamente a engolir seu café da manhã, de tanto medo que
elas tinham de apanhar de suas mães. As mães batiam em seus filhos, os
arranhavam quando tinham comido o café da manhã em vez de tê-lo levado para
elas. Eu também cheguei no meu limite. Uma criança que não comia seu café da
manhã não recebia mais. As mães tiveram que admitir que não havia opção senão
deixarem os seus filhos comerem o café da manhã.
Depois do café da
manhã, seguíamos com conversas educativas, jogos e distrações. As crianças
tinham duas horas de aula por dia. Isto durou até setembro. Em setembro, adoeci
e tive que me afastar durante 3 semanas. A mecânica começou a ter seus
defeitos! A epidemia de tifo começou. Tudo tinha de ser reiniciado. As crianças
estavam difíceis, comiam - mas como! Estavam sujas, choravam, gritavam. As mães
comiam as refeições das crianças. As crianças trocavam o pão com trigo ou
inversamente. Tornou-se difícil manter as crianças dentro do lar: estavam
doentes. A epidemia de tifo voltou. Vários membros do patrocínio ficaram
doentes e, no final, eu também.
Depois de uma
parada de 6 semanas, não reconheci nem as crianças, nem o cômodo do lar. Os
vidros estavam quebrados, tinha água até o tornozelo, migalhas de pão e grãos
de trigo estavam grudados no chão numa espessura de 2 a 3 centímetros. Entendi,
então, a que ponto as crianças precisavam e precisam de mim. As encontrara
nuas, sem calçados, e fedorentas. Estava totalmente sem recurso. O que
aconteceu? O que aconteceu? Tornou-se claro para mim que alguns se aproveitaram
da ausência da educadora e da tutela do patrocínio. A partir do momento que as
crianças estavam hospitalizadas, as mães recuperavam suas refeições. Não
precisavam se lavar porque a educadora não estava. Não tinha ninguém para perceber
que as crianças estavam com sarna. Ninguém para ver que elas não se lavavam,
que o lar não tinha sido limpo há 6 semanas.
Retomei o meu
trabalho indo perguntar ao diretor onde estava a enfermeira. Por que deixou as
coisas se deteriorarem assim? Exigi pomada para curar a sarna. Convoquei uma
reunião do patrocínio. Organizei a Comissão da Infância. Não era possível
trabalhar como antes. Fazia frio na sala, as crianças não estavam cobertas.
Pude conseguir camisetinhas na lavanderia. Peguei emprestado um aquecedor. Mas,
e depois? Onde encontrar sapatos, roupa quente para as crianças?
Hoje em dia, o
lar está mais ou menos limpo, um pouco aquecido. Num todo, as crianças se
curaram da sarna. Casos isolados persistem. As crianças tomaram parcialmente
banho (menos aquelas nuas, mas tinha bastante), e estão limpas. Mas são poucas
as crianças que vêm ao lar. É difícil tirar da cama (ou o que serve de cama)
uma criança nua para que venha ao lar.
Para desenvolver
atividades normais no lar, preciso de crianças vestidas e com sapatos. Preciso
de meu aquecedor, não de um emprestado que ameaçam constantemente pegar de
volta. Devo dispor de uma quantia de dinheiro alocada mensalmente para a
limpeza do lar. Preciso de duas refeições por dia para as crianças. Preciso de
material pedagógico básico. Para o transporte funcional e racional das
refeições desde a cantina, precisaria de uma pessoa para isso. O ideal seria
ter um carrinho cujo preço foi estimado por um profissional em 50 zlotys. Desta
maneira, o café da manhã chegaria, mais tardar, às 9h00 da manhã.
Observo que a
única pessoa que cuida do lar é a educadora. Sem ela, as crianças ficam
completamente abandonadas. Seu estado torna-se então aquele descrito acima.
Gostaria de dar
aula. Se todas não são capazes de seguir as aulas, quero dar aulas ao menos
àquelas que conseguem. Mas para isso preciso dos recursos descritos acima.”
Para nós que conhecemos estes traços da cotidiana resistência no Gueto de Varsóvia através dos diários e testemunhos de quem tentava frear o processo de desumanização em curso, é impossível entender o que significava para educadores e educadoras resgatar o que o nazismo pretendia aniquilar para sempre e, sobretudo, até onde ia o compromisso com as crianças que frequentavam os lares-escolas. A título de exemplo, citamos o caso do professor Janusz Korczak que, com Stefania Wilczyska, conduzia as atividades pedagógicas de um grupo de órfãos do Gueto.
Figuras bem conhecidas na Varsóvia do seu tempo,
receberam do movimento de resistência polonês a proposta de, junto a seus
colaboradores, fugirem com o uso de documentos falsos a fim de escapar da
deportação, uma ideia que foi imediatamente rejeitada. No dia 5 ou 6 de agosto
de 1942, em que soldados e policiais invadiram o orfanato intimando todos a se
dirigirem à estação ferroviária, Janusz pediu às crianças que vestissem suas
melhores roupas e pegassem o brinquedo favorito. Entre os cerca de cinco mil
judeus que seriam deportados, acompanhado por Stefania e outros dez educadores,
ele caminhava à frente do grupo de órfãos.
Ao subir no vagão
que os levaria ao campo de extermínio de Treblinka, um comandante do
destacamento nazista que vigiava os deportados reconheceu o pedagogo e lhe
ofereceu novamente a oportunidade de escapar da morte. Mais uma vez, Janusz se
negou a deixar as crianças e seguiu com elas para a câmara de gás. O pedagogo
que havia dedicado a vida inteira a entender a infância se recusava a deixar
que os órfãos enfrentassem sozinhos o que havia de mais cruel e desumano na
realidade do seu tempo.[7]
Os cenários e as
formas de resistência que conseguimos resgatar ajudam a perceber como ao “não”
dos nazistas à vida, à cultura, à tradição, à memória, ao sonho e à esperança,
um contingente de homens e mulheres cujo número desconhecemos fazia da
clandestinidade o espaço onde uma miríade de pequenas ações diárias devolvia
aos judeus a chance de sentirem que continuavam sendo seres humanos. A
resistência cultural, religiosa e solidária na imensidão das carências que
afligiam a enorme maioria da população materializava o que o próprio Janusz
havia expressado ao partilhar as condições de vida do Gueto: “Trata-se de
resistir ao desespero e à impotência com a esperança”.
Ainda que se
apresentasse como uma missão impossível diante do tamanho dos desafios,
construir a esperança era uma tarefa imprescindível e não podia se limitar à
artificialidade de pensamentos positivos ou, menos ainda, de um otimismo que
seria imediatamente aniquilado pelos acontecimentos.[8] Para Janusz e as pessoas envolvidas com as mais
diferentes feições deste compromisso, tratava-se de materializar em ações o
grito de vida e de liberdade que traziam em si, de viver a dignidade que
desafiava a desumanização imposta pelos nazistas. Por isso, era necessário ir
até o fim, se manter fiéis aos próprios valores, mostrar com o próprio exemplo
o compromisso de combater o desespero e a impotência que haviam se apoderado
dos judeus.
Este desafio se
tornaria ainda complexo à medida que o futuro preparava cenários marcados por
uma violência e uma crueldade ainda maiores. Em janeiro de 1942, enquanto os
lares-escolas seguiam seus planos, em Berlim, os dirigentes da SS e os
representantes do governo alemão se encontravam na Conferência de Wansee. Hitler
já havia tomado a decisão de exterminar os judeus.[9] A Conferência estava apenas acertando os passos
do genocídio apelidado de “solução final”.
Para encobrir os
objetivos das deportações, os nazistas justificavam estes macabros
deslocamentos de pessoas como parte do processo de “recolonização das terras do
leste”. Neste sentido, em várias localidades da Polônia, os soldados alemães se
encarregavam de dizer que, nos novos assentamentos, os judeus não só teriam uma
vida melhor, como poderiam até juntar algum dinheiro com o seu trabalho.
Os cartazes que
anunciavam a iminência das deportações aconselhavam as pessoas a levarem
consigo um pouco de comida para a viagem, joias e objetos pessoais numa bagagem
que não podia superar os 20 kg. O texto deixava no ar a impressão de que os
nazistas cuidariam da alimentação do deslocamento, ajudariam a tocar a vida
após o reassentamento e, sobretudo, de que as coisas iriam melhorar. Para quem
convivia diariamente com a fome, a doença e a morte, as deportações traziam, de
um lado, a angústia e o sofrimento da separação dos próprios familiares e do
ambiente conhecido. De outro, a ilusão de que estariam saindo daquele inferno
para algo melhor acalmava a angústia alimentada pelas incertezas de recomeçar a
vida em um lugar que sequer sabiam onde estava localizado.
Enquanto isso, a
vida no Gueto de Varsóvia conhecia um aumento das execuções sumárias, da
miséria e da mendicância. Entre abril e maio de 1942, ocorreram vários
fuzilamentos de dezenas de judeus. Por outro lado, os temores cotidianos e a
ulterior deterioração das condições de vida eram amenizados pelas notícias que
sugeriam um enfraquecimento do regime nazista, o que elevava as esperanças de
que a guerra estaria próxima do fim. Os relatos referentes ao aumento do descontentamento
popular na Alemanha; a existência de algumas rádios clandestinas cujas
transmissões eram ouvidas no Gueto; a circulação de boletins e jornais que
propunham respostas mais agressivas aos ditames impostos pelos nazistas; e o
assassinato de dois agentes da polícia judaica a serviço dos alemães levavam a
apostar que, em breve, o Terceiro Reich perderia o controle da situação.
A suposta
fragilidade do regime nazista parecia se confirmar também nas novas medidas
impostas pelos alemães na Varsóvia ariana. Em maio de 1942, por exemplo, os
nazistas proibiram de visitar o cemitério de onde muitos não judeus costumavam
observar a imensa vala comum onde eram jogados os cadáveres dos pobres
recolhidos nas ruas do Gueto. Enquanto assistiam àquele espetáculo macabro,
alguns se regozijavam com aquilo que estavam vendo, mas outros expressavam
abertamente a sua repulsa diante da que apelidavam de “consequência da cultura
alemã”. Ou seja, bastava pouco para que o sofrimento levasse a superestimar as
chances de o inferno criado pelos nazistas estar próximo do fim.
É neste clima
que, em 22 de julho de 1942, foi organizada a primeira leva de deportados para
o campo de extermínio de Treblinka. Dias antes, Adam Czerniakow, presidente do
Judenrat, recebeu a ordem de elaborar a lista das 6.000 pessoas que seriam
reassentadas nos territórios do Leste. Mas Adam desconfiou das verdadeiras
razões da deportação e se suicidou tomando cianureto de potássio. Na carta para
a esposa, deixava claro o motivo do seu gesto: “Exigem de mim que mate os
filhos do meu povo com minhas próprias mãos. Não tenho outro caminho a não ser
o de morrer”.[10]
Por que o
suicídio do presidente do Judenrat não fez soar o alarme de que as coisas
podiam ser bem diferentes em relação ao que os alemães buscavam fazer crer?
Não encontramos
uma resposta definitiva para esta pergunta, mas apenas alguns indícios que
permitem explicar a ausência de reação dos judeus diante das deportações. O
primeiro deita raízes no desconhecimento do destino. Ninguém sabia que o trem
dos deportados se dirigia ao pequeno povoado de Treblinka, a 100 km de
Varsóvia, e, ainda que soubesse, a única informação disponível naquele momento
era de que se tratava de um campo de trabalho forçado e não de extermínio.
Hoje, sabemos que as condições de vida de um preso naquela unidade não
permitiam que sobrevivesse mais de dois ou três meses, mas, até então, ninguém
havia conseguido fugir ou repassar informações capazes de anular a narrativa
nazista sobre a vida nos campos de concentração. Do mesmo modo, ninguém sabia
que, em julho de 1942, os alemães completavam a construção de Treblinka 2: uma
estrutura com seis câmaras de gás que seria inaugurada no dia 23 do mesmo mês
para exterminar, justamente, a primeira leva de deportados do Gueto de Varsóvia.
Para dissolver
qualquer desconfiança, os recém-chegados a Treblinka se deparavam com um
ambiente que visava tranquilizar as vítimas. Na entrada do novo campo de
extermínio, havia uma grande estrela de Davi e generais nazistas explicavam aos
deportados que estavam num campo de trânsito, mandavam que as bagagens fossem
identificadas e momentaneamente entregues às autoridades que as devolveriam na
hora de embarcar para o destino final. Os agentes usavam tons bem menos
agressivos em relação aos que as pessoas eram submetidas no Gueto e, em alguns
casos, convidavam-nas a escrever aos familiares para tranquilizá-los em relação
ao seu destino. A boa impressão na hora da chegada costumava ter um impacto
positivo nos conteúdos de muitas cartas.[11]
A segundo indício
é descrito em dois momentos do diário de Wladislaw Zspilman. Ao observar o que
acontecia sob os seus próprios olhos, o famoso pianista usa a metáfora da
destruição de um formigueiro para explicar o comportamento das pessoas cujos
prédios eram esvaziados à força a fim de encaminhar os moradores para a
deportação:
“Quando alguém,
num gesto brutal e desumano, começa a pisar e destruir um formigueiro, as
formigas saem correndo em todas as direções, procurando uma forma ou um caminho
para a salvação. Atordoadas pela violência do ataque, ou ocupadas com a
tentativa de salvar os seus descendentes e os seus bens, correm em círculos,
como se estivessem sob efeito de um veneno e, em lugar de afastar-se do seu
raio de ação, retornam, pelos mesmos caminhos, incapazes de abandonar o círculo
mortal - e morrem”.[12]
Nas páginas
seguintes, ao falar do que ele próprio viveu ao ser parte do contingente que se
encaminhava à estação ferroviária, Wladislaw revela que a incapacidade de
reagir era causada pela percepção de que, diante daquele acontecimento, nada
que ele fizesse poderia subtraí-lo à deportação, razão pela qual não valia a
pena lutar. Era assim que as pessoas se sentiam ao serem arrancadas de suas
casas e do convívio com seus entes querido enquanto caminhavam com a multidão
rumo à estação ferroviária. O músico foi salvo por um agente da polícia judaica
em função do prestígio de que desfrutava e voltou ao seu alojamento no Gueto de
Varsóvia. Os seus familiares e os 254.000 judeus que embarcaram nos trens entre
23 de julho e 12 de setembro de 1942 não tiveram a mesma sorte.
A primeira onda
de deportações foi decisiva na mudança de perspectiva da resistência judaica.
Ainda que sem um conhecimento claro do que, de fato, estava ocorrendo, os
membros dos grupos que agiam na clandestinidade sabiam que, dos nazistas, não era
possível esperar nada de bom. Do mesmo modo, a nova carga de sofrimento imposta
às famílias pelas deportações alimentava a vontade de vingar as injustiças
sofridas, de sacudir os governos do mundo que permaneciam insensíveis diante
dos horrores que estavam sendo praticados desde o início do regime nazista e,
ao se rebelar aos acontecimentos, de escolher a própria forma de morrer, no
lugar de seguir cabisbaixos, como cordeiros que se dirigem ao matadouro.
Mas...como
enfrentar os soldados alemães cujo poder de fogo era infinitamente superior ao
que qualquer grupo de resistência armada poderia reunir?
Em 28 de julho de
1942, cinco dias após a primeira deportação, cerca de 200 jovens fundavam a
Organização Combatente Judaica (ZOB, pela sigla em polonês), liderada por
Mordecai Anieleviwicz, de 24 anos. Por sua vez, o Partido Revisionista (formado
por judeus sionistas de direita) criava a União Militar Judaica (ZZW, pela
sigla em polonês). Embora no início houvesse certa tensão entre as duas
organizações, os seus integrantes decidiram trabalhar juntos. Vontade de lutar
não faltava, mas os dois grupos não só não dispunham de armas, munições,
explosivos e de treinamento militar, como precisavam ganhar urgentemente o
apoio dos moradores do Gueto para garantir que o processo de preparação e as
estratégias de enfrentamento pudessem dar os resultados esperados.
De meados de setembro a janeiro de 1943, o ritmo das deportações deu uma trégua, permitindo que as atividades clandestinas se realizassem num clima relativamente mais tranquilo. É neste período que os militantes da ZOB e da ZZW tentam entrar em contato, sem sucesso, com a resistência polonesa, um objetivo que se realizará entre fevereiro e abril de 1943, mas que não trará os resultados almejados. Basta pensar que, além de alguns explosivos, o maior carregamento de armas vindas dos grupos que agiam fora do Gueto tinha apenas 49 pistolas.
Mordecai com duas combatentes da resistência.[13]
Paralelamente a
estas atividades, os recursos angariados entre os membros das famílias mais
abastadas permitiam elaborar panfletos, cartazes e jornais para as campanhas
que buscavam sensibilizar a população. Pichações e muita conversa de boca em
boca ajudaram na tarefa de preparar o levante. A penetração das mensagens da
resistência no Gueto ganhou corpo com os primeiros boatos em relação aos campos
de extermínio. Ainda assim, o trabalho de convencimento não era nada fácil, à
medida que, além da certeza do esmagamento do levante armado, os nazistas
responderiam com pesadas retaliações que se abateria sobre o que restava da
população do gueto, estimada em 63.000-65.000 pessoas.
Nos primeiros
três meses de 1943, os militantes dos dois grupos cavaram túneis embaixo das
casas, construíram esconderijos onde armazenaram gasolina para as bombas
incendiárias e o pouco armamento que conseguiram reunir, improvisaram
laboratórios para confeccionar granadas caseiras, estocaram comida e água,
treinaram como puderam os cerca de 500 militantes da ZOB e os 250 da ZZW para
os embates que viriam. Da rede de esgoto ao fundo falso do caixão onde era
colocado o corpo de algum defunto passando pelas aparentemente inócuas cestas
carregadas por garotas cuja postura passava longe de levantar suspeitas, tudo o
que poderia servir para enfrentar os soldados alemães era cuidadosamente levado
aos principais bunkers da resistência.
No dia 19 de
abril, destacamentos das tropas nazistas entraram no Gueto para retomar as
deportações. Do alto dos prédios, começaram a chover garrafas incendiárias,
tiros e granadas caseiras, matando nove soldados nazistas. Diante da
resistência inesperada, o general alemão Jürgen Stroop retirou suas tropas a
fim de evitar maiores perdas, poder compreender o que estava acontecendo e
responder de forma avassaladora. Ao receber a notícia, Hitler ordenou a Stroop
de destruir o Gueto. No terceiro dia da revolta, os nazistas usaram canhões e
tanques para atacar os prédios onde se concentravam as forças da resistência. Os
edifícios mais próximos foram incendiados para forçar os judeus remanescentes a
saírem nas ruas, sendo que muitos se jogavam das janelas para escapar das
chamas.
Refugiados nos
túneis e esconderijos, os rebeldes responderam como podiam às investidas cada
vez mais pesadas dos nazistas que, entre outras coisas, injetavam gás na rede
do esgoto e embaixo dos escombros onde acreditavam estarem os esconderijos dos
revoltosos. No dia 8 de maio, os rebeldes foram cercados. Combateram até
esgotar os parcos recursos de que dispunham. As forças alemãs mataram Mordecai
e aqueles que estavam com ele na casamata da rua Mila, sede do comando da ZOB.
A aviação de guerra alemã bombardeou o Gueto. No dia 16 de maio, Stroop
comemorou o fim do levante mandando pelos ares a Grande Sinagoga de Varsóvia.
Em seu relatório, o general reportou ter assassinado cerca de 7.000 judeus e de
ter capturado outros 56.065 que, em seguida, foram deportados e mortos em
vários campos de concentração. Somente um punhado de revoltosos conseguiu se
salvar ao sair do Gueto pela rede de esgoto.
Diante deste
trágico desfecho, há uma pergunta que não quer calar: valeu a pena resistir
durante os quase três anos que separaram a criação da aniquilação do Gueto?
Quando fixamos o
olhar nos números de mortos pela fome, nas execuções sumárias, nas deportações
e no próprio desfecho do levante, a resposta só pode ser negativa. Mas a
importância da resistência não se limita a um balanço quantitativo de perdas e
ganhos.
Cada gesto, do
mais simples ao que demandava um elevado dispêndio de meios e energias, foi
importante para que as pessoas se sentissem vivas e recuperassem parte da
dignidade destruída pelos nazistas. Resistir era acreditar na vida num cenário
infernal de violência, fome, desumanização e morte. Era acender uma esperança
na escuridão da resignação. Era ludibriar os nazistas em sua pretensão de
domínio total sobre as pessoas e a história. Era resgatar o sentido de ser povo
e, sobretudo, de construir paciente e incessantemente a capacidade de dizer “NÃO”
ao opressor nas formas que a realidade permitia em cada um de seus momentos.
Coincidência ou
não, foi após o levante judaico do Gueto de Varsóvia que os grupos partisans
marcaram com um número crescente de unidades de combate e ações de guerrilha o
mapa de muitos países europeus. Os homens e as mulheres que se armaram para
enfrentar os nazistas plantaram a mesma esperança semeada nas escolas, nos
orfanatos, nas atividades culturais e em tudo o que, ao violar as proibições
dos nazistas, combatia o sentimento de impotência e abria brechas numa
dominação aparentemente perfeita e inabalável.
A seu modo, cada
integrante deste processo extremamente limitado e sofrido começava a
transformar em realidade o principal legado de Mordecai:
“De todas as
batalhas, a mais difícil é aquela que combatemos em nós mesmos. Não podemos nos
acostumar e adaptar a estas condições [de
vida]. Quem se molda a isso cessa de separar o bem do mal. O seu corpo e a
sua alma se tornam escravos. Seja o que for que aconteça contigo, lembre
sempre: Não se conforme! Revolte-se contra a realidade!”.[14]
Esmagado pelos
soldados de Hitler, o levante mostrava ao mundo que era possível enfrentar os
alemães. O que para os combatentes da ZOB e da ZZW era uma forma de morrer como
seres humanos que não se curvam ao opressor, para os partisans que seguiram
suas pegadas se tornaria o grito com o qual a liberdade começava a sacudir as
pessoas da resignação na qual o nazifascismo havia mergulhado as suas vidas.
De Varsóvia,
descemos agora para o maior dos campos de concentração da segunda guerra
mundial, situado a 72 km de Cracóvia, sul da Polônia, para entender o que é
resistir num ambiente que reduz os seres humanos à sua condição animal.
8. Auschwitz:
onde a crueldade não tem limites.[15]
Nenhuma foto,
nenhum relato dos sobreviventes, nenhum dado estatístico, nenhum esforço de
imaginação pode reproduzir o que os reclusos viveram em Auschwitz. Em 1944, a
área deste campo de concentração era de, aproximadamente, 40 km2
divididos em três blocos: Oswiecim (sede dos escritórios e dos alojamentos de
soldados e graduados da SS nazista), Birkenau (onde chegavam os trens dos
deportados e estavam localizadas as câmaras de gás) e Monowitz (que abrigava
prisioneiros destinados a trabalharem como escravos em ocupações que
sustentavam o esforço de guerra dos alemães).
Os testemunhos
dos sobreviventes são unânimes em afirmar que o desembarque no campo gerava nos
deportados uma sensação de alívio. Aparentemente, nada podia ser pior da
viagem, que em alguns casos durava mais de uma semana, em vagões de carga
apinhados de gente a ponto de não ter espaço para deitar, experimentando a fome
e a sede, em meio ao fedor dos excrementos e das pessoas falecidas no
deslocamento. Esta sensação era corroborada pela orquestra do campo de
concentração, cujos músicos eram detentos, que tocava temas melodiosos para dar
as boas-vindas aos recém-chegados.
Abertas as portas
dos vagões, generais alemães explicavam detalhadamente os procedimentos que
ocorreriam a partir daquele momento. A tradução em várias línguas e o fato de
os nazistas não demonstrarem a costumeira sordidez em relação aos judeus faziam
com que, depois dos horrores da viagem, todos tivessem a sensação de que os
piores sofrimentos haviam chegado ao fim e que cumprir as ordens era o caminho
natural para evitar problemas. E, como ninguém desconfiava de estar a um passo
da morte, bastava um punhado de soldados para controlar milhares de condenados.
A primeira
seleção ocorria logo após o desembarque e separava os idosos, as crianças
menores de 12 anos, os doentes, as mulheres grávidas e todos aqueles que, pela
fragilidade de sua constituição física não serviam para o trabalho forçado.
Este grupo, era imediatamente enviado às câmaras de gás, mas nada no ambiente
circunstante deixava entrever que este era o seu destino.
Como ocorria em
Treblinka, todos eram convidados a deixarem as bagagens para retirá-las depois
do banho ao qual seriam dirigidos. Os discursos dos nazistas davam a entender
que os doentes seriam encaminhados para os cuidados médicos necessários, que as
famílias se reencontrariam após finalizarem os procedimentos iniciais e que os
mais velhos se encarregariam das crianças. Episódios angustiantes aconteciam
durante a separação dos familiares, mas os nazistas agiam sempre de forma a
evitar incidentes capazes de suscitar um clima de revolta. Por exemplo, quando
uma jovem insistia em não se separar de sua velha mãe, quase sempre deixavam a
deportada se juntar àquela a quem não queria abandonar. Juntas, ambas iam para
o grupo destinado à morte imediata. A violência se restringia aos casos em que
em que os alemães buscavam mostrar que obedecer às ordens era a melhor forma de
facilitar as coisas para si e para todos.
A foto que segue
foi tirada por um soldado da SS e mostra o clima de tranquilidade que reinava
em um grupo de judeus húngaros, recém-chegados a Auschwitz-Birkenau, enquanto
aguardavam o fim da seleção dos que, com eles, iriam para as câmaras de gás. No detalhe, uma cena de partir o coração: um
bebê mostra uma flor à criança diante dele. Todos ignoravam estar a poucas
horas de serem assassinados.
O Calvário
começaria instantes depois também para o contingente de deportados cujos corpos
seriam consumidos por um trabalho extenuante em condições desumanas. As
informações nas quais baseamos o nosso texto foram extraídas, sobretudo, das
reflexões de Primo Levi, judeu italiano e membro da resistência partisan, preso
no campo de Auschwitz-Monowitz, onde trabalhou em várias tarefas entre final de
janeiro de 1944 e o mesmo mês de 1945, e que ele próprio relata nos livros “É
isto um homem?” e “Os sobreviventes e os afogados”; e do testemunho vivo e
impactante de Olga Lengyel, enfermeira de centro cirúrgico da cidade de Cluj,
hoje em território húngaro, deportada com toda a sua família para
Auschwitz-Birkenau e que descreveu a vida no campo de concentração no livro “Os
fornos de Hitler”. Usaremos as palavras destas duas testemunhas para esboçar o
que significava viver e resistir neste lugar onde um milhão e cem mil judeus
perderam a vida.
A leitura dos
textos impossibilita que chamemos de “sortudo” quem havia escapado da primeira
seleção para as câmaras de gás. A iniciação para os
trabalhos forçados começava na hora em que as cabeças dos prisioneiros eram
raspadas. Em seguida, trocavam as roupas usadas na viagem por trapos fornecidos
pelos guardas e faziam fila para receber a marca do tatuador. Segundo Primo,
esta operação
“Era pouco dolorosa e não durava mais que um
minuto, mas era traumática. Seu significado simbólico estava claro para todos:
este é um sinal indelével, daqui não sairão mais; esta é a marca que se imprime
nos escravos e nos animais destinados ao matadouro, e vocês se tornaram isso.
Vocês não têm mais nome: este é seu nome”.[16]
De fato, partir
deste instante, o prisioneiro seria chamado e deveria se identificar sempre
pelo número de seis a oito algarismos tatuado no seu braço.
A ração alimentar
dos detentos não passava de 650 calorias diárias, um quarto do que o corpo
humano precisa em condição de repouso. Olga descreve o que era oferecido:
“Ao meio-dia,
recebíamos sopa. Era difícil dizer quais ingredientes havia naquele caldo. Em
condições normais, seria absolutamente intragável. O cheiro era nauseabundo.
Muitas vezes, só conseguíamos comer nossas porções tampando o nariz. Mas era
preciso comer e, de algum jeito, superávamos o nojo. Cada mulher engolia sua
parte do conteúdo da tigela dando um grande gole – é claro que não tínhamos
colheres –, como crianças engolindo um remédio amargo.
Os ingredientes
da sopa variavam conforme a estação. Mas o sabor nunca mudava. O que não
impedia que fosse uma “sopa surpresa”. No caldeirão, pescávamos botões, tufos
de cabelo, trapos, latas de conserva vazias, chaves e até camundongos. Um belo
dia, alguém encontrou um minúsculo estojo de costura de metal, com linha e um
conjunto de agulhas. À tarde, recebíamos o pão de cada dia, uma ração de 200
gramas. O pão era preto, com um percentual alto de serragem. Aquilo era
dolorosamente irritante para nossas gengivas, que já estavam sensíveis pela
desnutrição. (...) Além da ração diária de pão à tarde, recebíamos um pedacinho
de geleia de beterraba, ou uma colher de margarina. Como favor excepcional,
ganhávamos, às vezes, uma fatia quase transparente de salsicha de origem um
tanto duvidosa. Ninguém matava a fome”.[17]
Além disso, havia
o problema dos recipientes onde a sopa era despejada. A este respeito, Olga
diz:
“No segundo dia,
recebemos cerca de vinte tigelas – vinte tigelas para 1,5 mil pessoas! Em cada
tigela cabia cerca de 1,5 litro. Também nos deram um balde e uma caldeira com
capacidade para 5 litros. A prisioneira escolhida pela chefe do barracão, ou
blocova, requisitou, na mesma hora, a caldeira como urinol. Suas comparsas logo
se apoderaram das outras tigelas, para o mesmo uso. (...) De manhã, tínhamos
que nos contentar em lavar as tigelas do jeito que podíamos, antes de pôr
dentro delas nossas ínfimas rações de açúcar de beterraba ou margarina.
Nos primeiros
dias, nossos estômagos embrulhavam ao pensar em usar o que, à noite, fora
utilizado como urinol. Mas a fome fala mais alto, e estávamos tão famintas que
nos dispúnhamos a comer qualquer coisa”.[18]
A sede era outra
tortura constante:
“Nossa cota de
água era absurdamente ínfima. Torturadas pela sede, nunca perdíamos a chance de
trocar nossas magras provisões de pão ou margarina por um copo de água. Melhor
passar fome do que sentir aquele fogo do inferno a nos consumir permanentemente
a garganta. A água que corria pela tubulação enferrujada do lavatório cheirava
mal, tinha uma cor muito estranha e dificilmente era potável. Mas nem por isso
deixava de ser uma alegria dar alguns goles, mesmo que tivéssemos que pagar o
alívio temporário com uma crise de disenteria, ou qualquer outra doença. Aquela
era melhor que a água da chuva estagnada nas poças; algumas prisioneiras a
sorviam como cães e morriam”.[19]
A distância entre
a realidade, as regras e a impossibilidade de cumpri-las era um dos tantos
absurdos diariamente vivenciados pelos prisioneiros.
“A sujeira [do barracão] suplantava qualquer imaginação.
Nossa obrigação principal era cuidar da limpeza. Qualquer infração das regras
de higiene estava sujeita a severas sanções. Era ridículo, entretanto, esperar
limpeza em galpões que abrigavam de 1,4 a 1,5 mil mulheres, sem vassouras,
esfregões, baldes, nem sequer um pano de pó. Tivemos que enfrentar o problema.
Decidimos que uma de nós, cujo vestido fosse especialmente longo, deveria
cortar um pedaço da parte de baixo. Com aquele trapo, fizemos um arremedo de
esfregão. Já não era sem tempo, pois a imundície do chão contaminava o ar
deplorável que respirávamos”.[20]
Além das seleções
periódicas que enviavam centenas de detentos para a câmara de gás, as duas
chamadas diárias para a contagem dos presos contribuíam para agravar as
condições de saúde e levá-los à morte. E não era para menos.
“Nessas horas,
tínhamos que estar presentes. Antes que a chamada realmente acontecesse,
esperávamos por várias horas. Enquanto esperávamos, não importava que tempo
fizesse, tínhamos que ficar em pé; 1,4 mil mulheres diante de cada barracão, 35
mil em todo o campo, 200 mil em todos os campos da região de
Auschwitz-Birkenau. Quando nos acusavam de infringir alguma regra, devíamos nos
ajoelhar e esperar na lama e na sujeira. De madrugada, tremíamos de frio,
sobretudo quando chovia, o que era bem frequente. Durante o inverno, a chamada
era sempre feita nas mesmas condições, sob neve ou geada. Tentávamos nos
comprimir umas nas outras, como um bando de ovelhas, mas nossas guardas
encasacadas estavam atentas. Chamadas à atenção, devíamos observar as
distâncias regulamentares.
Nas tardes de
verão, prevalecia o outro extremo, e o sol nos escaldava com raios ardentes.
Transpirávamos até que os trapos imundos se colassem à nossa pele. Éramos
sempre torturadas pela sede, mas não ousávamos sair da fila em busca de uma
gota de água. (...) Todas tinham que estar presentes à chamada, incluindo as
enfermas. Mesmo as que estivessem com escarlatina ou pneumonia. Todas as
internas doentes que não conseguiam ficar em pé eram colocadas num cobertor na
primeira fileira, ao lado das mortas. Os SS não abriam exceção nem mesmo para
as que haviam morrido”.[21]
As contagens
diárias verificavam a possível evasão de algum prisioneiro. Primo lista alguns
motivos pelos quais a fuga era considerada um evento intolerável para os
nazistas:
“A fuga tinha um
elevado valor simbólico à medida que representava a vitória daquele que era
derrotado por definição, um arranhão no mito; e também, mais realisticamente,
um dano objetivo, porque cada prisioneiro vira coisas que o mundo não deveria
saber. Como consequência, quando um prisioneiro faltava à chamada (coisa não
raríssima: muitas vezes se tratava de um simples erro de contagem ou de um
prisioneiro exausto até o desfalecimento), desencadeava-se o apocalipse, o
campo todo era posto em estado de alarme; além dos SS encarregados da
vigilância, intervinham patrulhas da Gestapo; Lager,[22] locais de trabalho; casas de colonos,
habitações dos arredores eram revistados.
Ao arbítrio do
comandante do campo, tomavam-se providências de emergência. Os compatriotas, os
amigos notórios e os vizinhos de leito do fugitivo eram interrogados sob
tortura e depois assassinados; com efeito, uma fuga representava um
empreendimento difícil, sendo inverossímil que o fugitivo não tivesse cúmplices
ou que ninguém se desse conta dos preparativos. Seus companheiros de alojamento
ou, às vezes, todos os prisioneiros do campo eram obrigados a ficar em pé, no
local da chamada, sem limite de tempo, (...), até que o fugitivo fosse
recapturado vivo ou morto. Se fosse recapturado vivo, era punido,
invariavelmente, com a morte por enforcamento público, mas sua morte se fazia
preceder de um cerimonial que variava caso a caso, sempre de ferocidade
inaudita, no qual se desencadeava a crueldade fantasiosa dos SS”.[23]
As represálias
que podiam se abater sobre os detentos em função das fugas ou de qualquer ato
que buscasse pôr fim a uma situação aviltante eram parte essencial dos motivos
que levavam os presos a não agir. Ao falar dela própria, Olga narra o que
aconteceu durante uma visita do dr. Mengele à unidade onde ela estava
trabalhando:
“No final da
inspeção, o dr. Mengele decidia qual dos dois grupos, à direita ou à esquerda,
ia para as câmaras de gás. Como odiávamos esse charlatão! Ele profanou o
verdadeiro sentido da palavra “ciência”! Como desprezávamos seu ar presunçoso e
arrogante, seus contínuos assobios, suas ordens absurdas, sua crueldade fria!
Se tive vontade de matar alguém algum dia, foi quando a pasta de Mengele estava
sobre a mesa e vi o contorno de um revólver. Ele estava fazendo uma seleção no
hospital. Pegar a arma e abater aquele assassino seria uma questão de segundos.
Por que não fiz isso? Por que temi a punição que se seguiria? Porque sabia que
atos individuais de revolta sempre provocavam represálias em massa em
Auschwitz. Acho que outros internos reprimiram desejos semelhantes pelo mesmo
motivo”.[24]
As relações entre
os prisioneiros espelhavam a degradação à qual a vida no campo de concentração
submetia as pessoas. Um momento deste cotidiano ajuda a visualizar o resultado
do embrutecimento humano em Auschwitz:
“O lavatório
seria um bom campo de observação para um moralista. Às vezes, uma interna
conseguia se limpar um pouco melhor, ultrapassando todas as dificuldades. Mas
quase sempre se dava mal. Na maior parte das vezes, não era capaz de encontrar
as roupas onde as havia deixado por terem sido roubadas. No campo, roubar se
tornara uma ciência, uma arte. A ladra sabia que suas vítimas seriam obrigadas
a sair nuas, e teriam de se sujeitar a terríveis surras pelos alemães. Mulheres
que tinham sido mães de famílias honestas, que jamais roubaram um alfinete,
tornaram-se rematadas e insensíveis ladras, sem um pingo de remorso”. [25]
A impressão de
Olga é partilhada e aprofundada por Primo ao descrever os primeiros contatos
com os internos do campo de concentração.
“Entrava-se
esperando pelo menos a solidariedade dos companheiros de desventura, mas os
aliados esperados, salvo casos especiais, não existiam; existiam, ao contrário,
mil mônadas impermeáveis, e, entre elas, uma luta desesperada, oculta e
contínua. Esta revelação brusca, que se manifestava desde as primeiras horas de
cativeiro, muitas vezes sob a forma imediata de uma agressão concêntrica por
parte daqueles em que se esperava encontrar os futuros aliados. Era tão dura
que logo derrubava a capacidade de resistir. Para muitos foi mortal, diretamente
ou indiretamente: é difícil se defender de um golpe para o qual não se está
preparado”.[26]
O fato de não
entender o alemão e de não conseguir se comunicar com os presos procedentes dos
mais diversos países europeus, impedia de compreender as ordens, abria alas a
gozações e espancamentos, contribuía fortemente para que muitos sentissem que
haviam mergulhado em um mundo totalmente absurdo e propositadamente cruel. A
pressão desta realidade era agravada pelas atitudes dos prisioneiros que
cumpriam tarefas de comando designadas pelas autoridades nazistas. Sobre eles,
Primo escreve:
“O nazismo dos
últimos anos não podia prescindir dos prisioneiros-funcionários em função do
esforço de guerra destinado a manter a ocupação dos territórios colocados sob o
próprio domínio. Era indispensável buscar nos países ocupados não só mão de
obra escrava, mas também forças da ordem, delegados e administradores do poder
alemão, então empenhado em outros lugares até o ponto de exaustão. Mas os
colaboradores que provêm do campo adversário, os ex-inimigos, não são dignos de
confiança. Por isso, não basta relegá-los às tarefas marginais, o modo melhor
de comprometê-los é carregá-los de crimes, manchá-los de sangue, expô-los tanto
quanto é possível, assim contraem com os mandantes o vínculo da cumplicidade e
não podem mais voltar atrás.
Em segundo lugar,
quanto mais feroz a opressão, tanto mais se difunde entre os oprimidos a
disponibilidade de colaborar com o poder. Também essa disponibilidade é
matizada por nuanças e diferenciações infinitas: terror, engodo ideológico,
imitação barata do vencedor, ânsia míope por um poder qualquer, mesmo que
ridiculamente circunscrito no espaço e no tempo, covardia, e até lúcido cálculo
dirigido para escapar das regras e da ordem imposta.[27]
Quem esboçasse
qualquer tipo de resistência aos maus tratos estava perdido. Ao contar uma
situação ocorrida antes da sua chegada, Primo diz:
“Me foi narrada a
história de um “novato” italiano, um militantes da resistência, jogado em um
Lager de trabalho com a etiqueta de prisioneiro político enquanto ainda estava
no vigor de suas forças. Fora maltratado durante a distribuição da sopa e havia
ousado dar um empurrão no funcionário-distribuidor: acorreram os colegas deste
último e o réu foi afogado exemplarmente com a cabeça afundada na panela da
própria sopa”.[28]
Olga acrescenta
alguns aspectos que ajudam a explicitar e aprofundar o cenário traçado por
Primo:
“Talvez o maior
crime que os ‘super-homens’ cometeram contra nós fosse sua campanha, muitas
vezes bem-sucedida, para nos transformar em bestas monstruosas. Para alcançar
tal degradação, empregaram uma disciplina estúpida, brutal e inútil, incríveis
humilhações, privações desumanas, constantes ameaças de morte e, por fim, uma
promiscuidade aviltante. Toda essa política foi calculada para nos reduzir ao
nível moral mais baixo. E podiam se gabar dos resultados: homens que foram
amigos a vida inteira acabaram se odiando com total repugnância; irmão lutava
contra irmão por um pedaço de pão; homens de integridade antes irrepreensível
roubavam tudo que podiam; e muitas vezes era o kapo [chefe de equipe] judeu que espancava seu
companheiro judeu. Em Birkenau, como na sociedade preconizada pelos filósofos
nazistas, prevaleceu a teoria de que ‘o poder faz o certo’. O poder sozinho
incute respeito. Os fracos e os velhos não podiam pedir misericórdia.
Cada campo, cada
barracão, cada koia [beliche] era
uma pequena selva à parte, mas todos estavam sujeitos aos padrões canibalescos.
Para alcançar o topo da pirâmide em cada uma dessas selvas, era preciso se
tornar uma criatura segundo a imagem dos nazistas, desprovida de quaisquer
escrúpulos, especialmente dos sentimentos de amizade, solidariedade e
humanidade.
No Egito, os
escravos que construíram as pirâmides e morreram trabalhando podiam ao menos
ver sua estrutura, o resultado do trabalho de suas mãos, elevando-se cada vez
mais alto. Os prisioneiros de Auschwitz-Birkenau, que carregavam pilhas de
pedras, apenas para arrastá-las de volta ao mesmo lugar de antes no dia
seguinte, só viam uma coisa: a inutilidade revoltante de seus esforços. Os
indivíduos mais fracos afundavam cada vez mais em uma existência animal, em que
não ousavam sonhar com fartura de comida, mas somente suportar o pior de uma
fome que roía suas entranhas. Só pediam que fizesse menos frio, que fossem
menos espancados, que tivessem um pouco de palha para forrar as tábuas rústicas
de sua koia e, vez por outra, beber um copo inteiro de água, mesmo do
reservatório poluído do campo. Era necessário ter uma força moral
extraordinária para chegar à beira da infâmia nazista e não mergulhar no fosso.
Vi muitos internos se apegarem à sua dignidade até o fim. Os nazistas
conseguiram degradá-los fisicamente, mas não rebaixá-los moralmente. Por causa
desses poucos, não perdi inteiramente minha fé na humanidade”.[29]
A exemplo do
campo de trabalhos forçados de Treblinka, o tempo médio de vida dos
prisioneiros não selecionados para a câmara de gás na chegada em Auschwitz não
passava de três meses. Qualquer possibilidade de
aumentar esse prazo estava baseada fundamentalmente em algum tipo de atividade
ilegal ou era fruto de um raro privilégio em função da tarefa desempenhada no
campo. As atividades ilegais iam do usar algum papel para se proteger do frio,
ao trabalho na cozinha que dava acesso a um pouco mais de comida usada como
moeda de troca para obter algum favor, ou, por exemplo, ao fato de trabalhar no
setor apelidado de Canadá. Nele, eram recolhidas e abertas as bagagens dos
recém-chegados e os funcionários que separavam os itens de valor para serem
entregues aos alemães costumavam pegar para si, ou para algum conhecido, peças
de roupa, restos de comida ou mesmo pequenas joias que serviam de moeda de
troca.
Por
outro lado, em Auschwitz, falar em “privilégios” demanda sempre levar em
consideração que não se tratava de nada excepcional, mas tão somente de ter
acesso a um pouco mais de alimento, a um barracão menos lotado, a um local de
trabalho que não fosse exposto às intempéries, à possibilidade de relaxar as restrições
para ir ao banheiro ou para se deslocar no interior do campo de concentração em
função do exercício de uma profissão. Após passar por uma série de apuros,
Primo, que era formado em química, foi assumido no laboratório de Auschwitz
onde, durante o inverno, a temperatura era de “deliciosos 24 graus”, enquanto
Olga, trabalhou na enfermaria de Birkenau.
Contudo,
além de se tratar sempre de um trabalho que podia ultrapassar as 12 horas de
diárias, cada pequena “vantagem” enfrentava desvantagens que seguiam minando a
integridade física e psíquica de ambos. No caso de Primo, o fato de trabalhar
em um ambiente aquecido durante o inverno fazia com que lhe fosse negada a
roupa um pouco mais encorpada que era entregue no outono aos presos cujas
equipes trabalhavam expostas às intempéries. Ou seja, em pleno inverno, ele
devia enfrentar as contagens dos presos ao ar livre com os mesmos trapos leves
da primavera, o que implicava em aumentar os riscos que o frio deteriorasse
ainda mais a sua saúde.
Para
Olga, os desafios da profissão eram bem mais complexos, sobretudo quando se
tratava de fazer o parto de alguma detenta que entrou no campo de concentração
sem saber que estava grávida ou cuja gravidez não foi percebida pelos alemães
encarregados de selecionar as deportadas a serem imediatamente enviadas às
câmaras de gás. Ao falar sobre o assunto, ela escreve:
“O problema mais angustiante que enfrentávamos
para cuidar de nossas companheiras era na hora do parto. Assim que um bebê
nascia na enfermaria, mãe e filho eram mandados para a câmara de gás. Essa era
a implacável determinação de nossos captores. Só quando a sobrevivência do bebê
não fosse provável, ou ele fosse natimorto, a mãe era poupada e recebia
permissão para retornar ao barracão. Nossa conclusão foi simples: os alemães
não queriam os recém-nascidos vivos. Se vivessem, as mães deviam morrer também.
Nós cinco [da
enfermaria], cuja responsabilidade era trazer aquelas crianças ao mundo - ao
mundo de Auschwitz-Birkenau - sentíamos o ônus dessa monstruosa conclusão que
desafiava qualquer lei humana e moral. Que fosse absurda do ponto de vista
médico era o que menos importava ali. Quantas noites insones vivemos devido a
esse trágico dilema. E, pela manhã, tanto as mães como seus bebês iam ao
encontro da morte.
Um dia, decidimos
que tínhamos sido fracas por tempo demais. Precisávamos, ao menos, salvar as
mães. Para levar a cabo nosso plano, tínhamos que fazer os bebês passarem por
natimortos. Mesmo assim, muitas precauções deviam ser tomadas, porque se os
alemães suspeitassem, seríamos mandadas para a câmara de gás – e antes, talvez,
para a de tortura.
(...)
Infelizmente, o destino do bebê era sempre o mesmo. Depois de tomar todas as
precauções, tampávamos as narinas do pequenino e, quando ele abria a boca para
respirar, dávamos-lhe uma dose da substância letal. O efeito de uma injeção
teria sido mais rápido, mas a picada deixaria uma marca e não podíamos correr o
risco de os alemães suspeitarem da verdade. Para a administração do campo,
aquela criança era natimorta.
E, assim, os
alemães conseguiram nos transformar em assassinas. Até hoje, a imagem daqueles
bebês mortos me assombra. Nossos próprios filhos morreram nas câmaras de gás e
foram cremados nos fornos de Birkenau, e nós exterminamos a vida de outros
tantos antes que seus primeiros vagidos saíssem de seus minúsculos pulmões.
(...) O único tímido consolo é que, com aqueles assassinatos, conseguimos
salvar as mães. Sem nossa intervenção, seu sofrimento teria sido ainda maior,
já que veriam seus bebês serem jogados ainda vivos nos fornos crematórios.
Tento em vão aplacar minha consciência. Ainda vejo as crianças saindo de dentro
de suas mães. Posso sentir seus corpinhos quentes, enquanto os segurava. Fico
perplexa com os abismos em que aqueles alemães nos lançaram!”.[30]
Por outro lado,
os contatos com os presos das unidades do campo de concentração faziam com que
a enfermaria se tornasse um centro nevrálgico de disseminação de notícias que
elevavam a moral de todos os prisioneiros.
“Durante o
período de descanso dos trabalhadores em 26 de agosto de 1944, um interno
francês apareceu na enfermaria. Eu já o tinha visto antes, um homem de olhos
escuros e rosto fino, com expressão amarga típica de todos em Birkenau. Ele era
o mesmo homem mas, ao mesmo tempo, não era. Eu não conseguia entender seu
sorriso malicioso, o brilho no olhar, a satisfação no rosto, a segurança, o
modo como estendia a mão para receber o tratamento. Olhei para ele de modo
inquisitivo. O que isso queria dizer?, perguntei-me. (...) Ele percebeu minha
reação e inclinou a cabeça em minha direção. ‘Paris foi libertada’, ele
sussurrou. Fiquei estática e tão assustada que nem consegui responder. Olhei
para ele e me esqueci de lhe ministrar o tratamento. Eu me recompus e logo
entendi a estranha felicidade do francesinho. Eu ainda não conseguia acreditar.
Sempre que
recebia informações de que os Aliados haviam sofrido algum revés, eu me
esforçava para esconder a tristeza e inventava boas notícias, pois o moral dos
internos precisava ser mantido alto. Que felicidade poder sussurrar finalmente
aos pacientes que os Aliados tinham de fato ocupado Paris. ‘Paris foi
libertada!’ A primeira paciente para quem contei a notícia foi uma mulher que
estava com os pés inchados. Ela ouviu, arregalou os olhos, admirada, e tirou os
pés do banquinho. Sem dizer uma palavra, começou a chorar. Choramos juntas. A
notícia era maravilhosa demais para ser recebida sem uma demonstração da mais
profunda alegria. Com que rapidez a notícia se espalhou! Nos banheiros e nas
latrinas, os internos se abraçavam e se beijavam. No hospital, os acamados se
erguiam nos cotovelos e sorriam. Todos acrescentavam algo à notícia original. À
noite, imaginávamos toda a Europa libertada pelos ‘Tommies’. Todos os soldados
de língua inglesa eram ‘Tommies’ para nós. (...) Sentíamo-nos exultantes e,
durante a chamada, piscávamos um olho para expressar nosso sinal de alegria.
Todos sabiam o que a piscadela significava. A reação alemã veio imediatamente.
A sopa tornou-se pior do que antes, como se fosse possível. Um polonês e três
franceses foram enforcados por disseminar “notícias falsas”.[31]
O primeiro
contato de Olga com a resistência no interior do campo de concentração ocorreu
através de um preso que ela identifica apenas como “L” e que visitava
frequentemente a enfermaria devido a uma ferida feia no pé.
“L era uma pessoa
encantadora e nós o recebíamos com alegria. Ele sempre nos trazia notícias
reconfortantes sobre a situação militar e política na Europa. Enquanto
cuidávamos de suas feridas, ele acalmava nossas almas perturbadas. L era
praticamente a única fonte de notícias do mundo externo que tínhamos. Pelo
menos, dava-nos informações confiáveis e não boatos fantásticos. (...) Por eu
estar passando por uma séria depressão nervosa, as notícias trazidas por L
serviam de estímulo para meu espírito. No aspecto material, minha condição
melhorara desde que eu começara a trabalhar na enfermaria. Ainda assim, minha
vida parecia uma carga insuportável. Eu perdera meus pais e filhos, e nada
sabia sobre meu marido, a única pessoa cuja existência poderia me manter na
terra dos vivos. Eu estava mentalmente à beira do suicídio. Minhas companheiras
viam que eu definhava a olhos vistos.
Um dia, L me
chamou de lado. ‘Você não tem o direito de jogar fora a sua vida’, ele me
censurou. ‘Se esta existência não faz mais sentido para você, pessoalmente
precisa continuar, para ao menos tentar minimizar o sofrimento dos outros ao
seu redor. Sua posição é perfeita para prestar serviços de várias maneiras.’
Ele me lançou um olhar penetrante. ‘É óbvio’, continuou, ‘que isso não
acontecerá sem riscos. Mas o perigo não é nosso pão de cada dia aqui? O
essencial é ter um objetivo, um propósito.’ Foi a minha vez de encará-lo.
‘Estou às suas ordens. O que devo fazer?’
‘Você pode fazer
duas coisas para nós’, respondeu ele. ‘Primeiro, pode, com cuidado, repassar as
notícias que eu lhe trouxer. Isso é da maior importância para manter o moral de
nossos internos. Concorda?’ A disseminação de ‘notícias falsas’ era proibida
pelos alemães, sob pena de morte. Mas o que era a morte? Nem ao menos pensei
nisso. ‘Segundo’, prosseguiu ele, ‘seu trabalho a torna ideal para servir de
correio. As pessoas lhe trarão cartas e embrulhos. Você os entregará conforme
as instruções que receber. E nem uma palavra a ninguém, nem mesmo às suas
melhores amigas. Porque, se for apanhada, ela será interrogada, e não queremos
ninguém testemunhando contra você. Nem todo mundo consegue resistir à tortura.
Acha que seria forte o suficiente para suportar a tortura?’
Fiquei em
silêncio. Existiriam mais sofrimentos do que alguém poderia suportar? ‘Eu posso
tentar ser forte.’ Ele refletiu, depois acrescentou: ‘Outra coisa, precisamos
observar tudo o que acontece por aqui. Mais tarde, escreveremos sobre tudo que
vimos. Quando a guerra acabar, o mundo precisa saber sobre isso. Precisam
conhecer a verdade’.
Daquele momento
em diante, tive uma nova razão para viver. Eu passei a fazer parte da
Resistência. E tive a oportunidade de conhecer outros do movimento. Ainda
assim, limitávamos nossas relações ao trabalho, não tentávamos saber o nome de
ninguém. Essa advertência soava quase como obrigação para que, caso fôssemos
apanhados e torturados, evitássemos trair os outros. Por intermédio desses
novos contatos, conheci os pormenores sobre as câmaras de gás e os
crematórios”.[32]
Mas...como fazer
a resistência dar passos significativos em um ambiente de uma crueldade
indescritível, em meio a pessoas que perderam qualquer traço de humanidade,
onde os controles eram constantes e muito invasivos e a vida estava sempre por
um fio? A própria Olga vai responder a esta pergunta em um capítulo inteiro do
seu livro.
“Uma opressão tão
intensa como a que fomos submetidas provocava automaticamente uma resistência.
Todo o nosso tempo vivido no campo foi marcado pelo ato de reagir. Quando os
funcionários do ‘Canadá’ faziam o desvio de itens destinados à Alemanha em
benefício de seus companheiros internos foi uma resistência. Quando os
trabalhadores dos moinhos de fiar ousavam relaxar o ritmo de trabalho foi uma
resistência. Quando, no Natal, organizamos um pequeno ‘festival’ debaixo dos
narizes dos nossos captores foi uma resistência. Quando, clandestinamente,
passamos cartas de um campo para outro foi uma resistência. Quando nos
esforçávamos e, às vezes, tínhamos sucesso para reunir duas pessoas da mesma
família – substituindo um interno por outro em um grupo de carregadores de
macas – foi uma resistência.
Essas eram as
principais manifestações de nossa atividade clandestina. Não era prudente ir
mais longe. No entanto, houve muitos atos de rebelião. Um dia, um selecionado
tirou um revólver de um SS e começou a espancá-lo com ele. Seu ato de coragem
desesperada causou esse gesto, mas não produziu nenhum outro efeito senão
provocar represálias em massa. Os alemães nos consideravam culpados; chamavam
isso de ‘responsabilidade coletiva’. As surras e as câmaras de gás explicam, em
parte, por que a história do campo inclui poucas revoltas, mesmo quando as mães
eram obrigadas a entregar os filhos à morte. (...).
Uma resistência
organizada, porém, prosperava. Procurava se expressar de inúmeras formas –
desde a transmissão de um ‘jornal falado’ à sabotagem praticada nas oficinas
dedicadas às indústrias bélicas e, mais tarde, à destruição dos fornos
crematórios com explosivos.
O termo ‘jornal
falado’ talvez seja presunçoso. Precisávamos divulgar notícias de guerra que
reforçassem o moral dos internos. Depois de resolver problemas técnicos de
enorme dificuldade, nosso amigo L, graças à cooperação do ‘Canadá’, conseguiu
montar um pequeno equipamento de rádio. O rádio foi enterrado. Às vezes, tarde
da noite, alguns internos de confiança corriam para ouvir o noticiário dos Aliados.
Essa notícia era então espalhada de boca em boca o mais rapidamente possível.
Os principais centros de nossa comunicação eram as latrinas, que ocupavam o
mesmo papel ‘social’ que o banheiro e a enfermaria desempenhavam anteriormente.
Era interessante
observar as reações dos nossos supervisores quando tais notícias de guerra
chegavam a eles, mas raramente era agradável para nós ouvirmos o que estava
acontecendo. No dia seguinte, após um pesado bombardeio de uma cidade alemã, a
rádio do Reich anunciara ‘represálias’. Onde quer que o Reich buscasse
vingança, a tomavam primeiro em nosso campo a partir de uma monstruosa seleção.
Os soldados, por conta das contínuas derrotas da Wehrmacht, tornavam-se cada
vez mais desconfiados, e multiplicavam os controles e as buscas. Até os chefes
ficavam nervosos e preocupados.
Alguns membros da
Resistência no campo procuravam passar notícias de nossa situação desesperada
aos Aliados. Esperávamos que a Royal Air Force, ou os aviões soviéticos
surgissem para destruir os fornos crematórios, e que, ao menos, houvesse uma
redução na taxa de extermínio. Um interno tcheco, ex-vidraceiro e esquerdista
militante, conseguiu passar vários relatórios ao exército soviético.
Como havia alguns
partisans na região, entendi que, de alguma forma, haviam estabelecido contato
com o campo. Disseram-me que o explosivo usado mais tarde para destruir os
fornos crematórios fora fornecido por esses guerrilheiros. Os pacotes de
explosivos não eram maiores que dois maços de cigarro e podiam ser facilmente
escondidos dentro da blusa. Mas como o explosivo entrara no campo?
Soube que os
guerrilheiros russos, escondidos nas montanhas, enviavam vários pacotes às
redondezas de Auschwitz. Falavam com um interno de Auschwitz que trabalhava
fora do campo e que pertencia à nossa Resistência. Os prisioneiros que
trabalhavam nos campos desencavavam os pacotes onde tinham sido enterrados e os
traziam para dentro.
Por que os
explosivos foram enviados para lá? O objetivo era claro para todos os membros
da Resistência – explodir o temido crematório.
Alguns desses
pequenos pacotes caíram nas mãos da SS. Foi quase inevitável e provocou uma
reação brutal. Montaram uma forca e executaram prisioneiros todos os dias.
Sempre que os alemães suspeitavam de algo, uma ordem frenética era dada: ‘Façam
uma busca!’, e um grupo de guardas da SS invadia nossos barracões. Eles
destruíam tudo e vasculhavam cada centímetro quadrado do campo, procurando mais
explosivos. Apesar de todas as precauções, nossa Resistência continuou a existir
e a operar. Os membros mudavam, pois os alemães nos dizimavam sem saber se
fazíamos parte da Resistência ou não, mas o ideal continuou inalterado.
Um rapaz que
apenas um dia antes pegara um pacote comigo foi enforcado. Uma das minhas
companheiras, apavorada, me sussurrou: ‘Diga, não é o mesmo rapaz que esteve na
enfermaria ontem?’.
‘Não’, respondi.
‘Nunca o vi antes’.
Essa era a regra.
Quem caía era esquecido.
Não éramos heróis
e nunca dissemos isso. Não merecemos nenhuma medalha do Congresso, condecoração
de guerra ou de vitória. É verdade que empreendemos missões perigosas. Mas a
morte e o chamado perigo mortal tinham um significado diferente para nós que
vivíamos em Auschwitz-Birkenau. A morte esteve sempre conosco, pois éramos
elegíveis para as seleções diárias. Um aceno podia significar o fim para
qualquer um de nós. Chegar atrasado para a chamada podia significar apenas um
tapa na cara, ou, se o SS estivesse furioso, pegar sua Luger e atirar. A ideia
da morte se infiltrara em nosso sangue. Nós iríamos morrer, de qualquer forma,
não importava o que acontecesse. Seríamos envenenados com gás, cremados,
enforcados ou baleados. Os membros da Resistência pelo menos sabiam que, se
morressem, morreriam lutando por algo.
Já disse que
servi como uma espécie de correio para cartas e encomendas. Um dia, corri para
a enfermaria para colocar um pacote sob a mesa. Enquanto eu fazia isso, um
guarda da SS entrou sem avisar.
‘O que está
escondendo aí?’, perguntou, fechando a cara.
Acho que fiquei
lívida. Consegui me controlar e respondi: ‘Acabei de pegar alguns curativos.
Estou colocando o resto em ordem’.
‘Vamos dar uma
olhada nisso’, exclamou o SS, desconfiado.
Com as mãos
trêmulas, puxei uma caixa de curativos cirúrgicos que estava embaixo da mesa e
mostrei a ele. Eu tive sorte. Ele não insistiu em ver o conteúdo. Deu uma
olhada e foi embora. Se tivesse verificado a caixa, eu estaria perdida.
Muitas vezes
tinha que aceitar cartas ou pacotes trazidos por internos que trabalhavam no
campo. O intermediário sempre era diferente. Para ser reconhecida, eu usava uma
fita de seda em torno do pescoço, como um colar. E eu tinha que passar a carta
ou pacote a um homem que usasse o mesmo símbolo. Várias vezes tive que
procurá-lo no banheiro ou na estrada onde os homens estivessem trabalhando.
No começo, não
conhecia muito bem o esquema do qual eu participava. Mas sabia que estava
fazendo algo muito útil. Isso foi o suficiente para me dar forças. Eu não
sofria mais crises de depressão. Até me forcei a comer o bastante para
continuar lutando. Comer e não se deixar enfraquecer – era também uma forma de
resistir. Vivíamos para resistir e resistíamos para viver.
Eu conhecia
mulheres de vários países e estava ansiosa para saber como eram as mulheres da
União Soviética – a dra. Mitrovna, cirurgiã do nosso hospital, foi a primeira
russa que encontrei no campo. Era uma mulher forte, rechonchuda, de cabelos
escuros, com olhos castanhos tão expressivos que pareciam atravessar o
interlocutor. Era uma médica de verdade, que gostava muito de seus pacientes e
lutava por eles. A médica criou uma aura de respeito. Era a pessoa mais
espontânea e calorosa que já conheci. Ninguém tinha uma capacidade de trabalho
tão grande quanto essa mulher de 50 anos. Quando via que eu estava pálida de
cansaço e ainda trabalhando, ela dizia: ‘Você daria uma boa russa’. Este era o
maior elogio que ela poderia me fazer.
Quando os russos
bombardearam as cozinhas da SS em Birkenau, muitos detentos se feriram. Eu a
observei com cuidado: ela demonstraria preferência por seus compatriotas? Não!
Ela tratou cada um com imparcialidade e repetiu palavras de acolhimento para
todos, sem distinção. Na véspera de Natal, participou das festividades e dançou
com as enfermeiras. Embora não tivesse voz, cantava como uma criança, sem se
sentir envergonhada. Ela nos contou que, em casa, gostava da época de férias,
porque a comida era sempre melhor. E pudemos ver como ela respeitava o espírito
religioso de suas companheiras dentro do campo. ‘Devemos nos lembrar desta
véspera de Natal no cativeiro’, ela nos disse. ‘Pessoas de todos os países da
Europa estão juntas e esperando a mesma coisa...liberdade’.
Mais tarde,
conheci outras russas: algumas agressivas e outras boas, de alma gentil. Com
elas, percebi que o comunismo é como uma religião para o povo russo. Talvez sua
fé os tenha ajudado a suportar as dificuldades de viver em Auschwitz-Birkenau
melhor que outros internos.
Cada vez que um
paciente tinha que ser enviado para o hospital no Campo F, a dra. Mitrovna
decidia quem deveria levá-lo de maca. A primeira vez que saí do campo com essa
função, e os portões se fecharam atrás de mim, eu comecei a chorar. Estávamos
sendo seguidas pelos nossos soldados, mas os odiosos arames farpados não
estavam mais tão perto de nós. Havia um pouco mais de espaço, e podíamos respirar
livremente. Por essa razão, valeu a pena ter sido escolhida para a tarefa.
Levávamos quinze
minutos para as cinco carregarem as doentes para o barracão cirúrgico. Ali
assisti a outro drama. Os médicos salvaram muitos dos internos durante a
cirurgia, e os alemães mandavam os pacientes direto para as câmaras de gás. Mas
os médicos desempenhavam seus papéis com calma e dignidade. Olhei em volta
dentro da sala de cirurgia. A visão dos instrumentos e das pessoas de branco e
o cheiro de éter fizeram eu me lembrar do meu marido e do nosso hospital em
Cluj. Eu estava com a mente perdida em minhas lembranças quando de repente
alguém me sussurrou no ouvido: ‘Não se mexa! Não faça perguntas! Entre em
contato com Jacques, Stubendienst francês, no Barracão hospitalar 30’.
Fiquei surpresa.
Como sabiam que eu fazia parte da Resistência? Então me dei conta – meu colar
de seda. Eu tinha recebido uma ordem e precisaria cumpri-la. Mas como? Eu
estava em um campo hospitalar estranho de homens, e eu era uma mulher.
De repente, uma
enfermeira anunciou que o dr. Mengele estava por perto. Os médicos tentaram
disfarçar o medo. Houve um burburinho excitado. ‘Escondam as luvas de borracha
imediatamente!’...‘Abram a porta! Ele vai sentir o cheiro de éter!’ Então
compreendi o que estava acontecendo. Aqueles que eram bons tinham comprado
instrumentos e anestésicos com suas rações de alimentos. Agora precisavam
esconder tudo, se quisessem evitar ser punidos ou mortos por demonstrar
compaixão. (...).
‘Preciso ir até o
Barracão 30!’ Virei-me para sair quando vi cobertores em cima da maca. Doentes
envoltos em cobertores não eram raros no campo hospitalar. Foi a solução que
encontrei. Embrulhei-me num cobertor e saí correndo. Encontrei Jacques, o
enfermeiro francês, no Barracão 30. Disse que tinha recebido ordem para vir até
ele. Jacques subiu na koia superior e pegou um pequeno pacote sob a cabeça de
um doente. ‘Dê isto ao vidraceiro do seu campo!’, ele ordenou.
Quando voltei ao
barracão cirúrgico, meus companheiros não estavam mais lá. A maca havia sumido.
Corri até a entrada do campo. A médica russa estava discutindo com um alemão.
Tínhamos ficado no campo dos homens por tempo demais. E eu havia sumido. Quando
a russa me viu chegar com o cobertor na cabeça, ela entendeu. Mas continuou a discutir
com o soldado. ‘Eu lhe disse que alguém havia tirado nossos cobertores e enviei
esta prisioneira para trazê-los de volta. O que não consegue entender em
relação a isto?’, argumentou. Ela falava apenas um pouco de alemão, porém,
talvez isso nos tenha salvado. Ela misturava palavras em russo com palavras em
alemão. De alguma forma, o assunto se resolveu. Enquanto corríamos de volta,
perguntei-me se Mitrovna me pediria uma explicação sobre onde eu estivera. Ela
não fez nenhuma pergunta.
Quando chegamos
ao campo, descobri que o vidraceiro tinha ido embora! Mas, no dia seguinte,
Jacques enviou outra pessoa, e eu finalmente me livrei do pacote de explosivos
que complicara a minha vida.
Fiquei me
perguntando o que a dra. Mitrovna de fato pensou sobre o que havia acontecido.
Ela poderia ter dito ao soldado que eu deixara o grupo sem permissão e ter
lavado as mãos em relação ao assunto. Em vez disso, esperou por mim. Ao
perceber que estavam faltando cobertores na maca, achou que seria uma boa
desculpa e me salvou. Ela, de fato, era uma boa companheira.
Lembro-me de ter
visto várias vezes o mesmo trabalhador que me trazia os pacotes discutindo
muito com ela. Posso presumir por isso que ela também fizesse parte da
Resistência dentro do campo. Essa mulher viva e silente deveria saber que eu
também era um membro da Resistência. Talvez por isso não tenha protestado
quando saí da cirurgia no Campo F e tenha me salvado do soldado alemão.
Conhecíamos poucos membros da Resistência, porque, se fôssemos descobertos, era
mais seguro. A dra. Mitrovna não devia pertencer, de fato, à Resistência. Mas
havia algo digno em seu caráter que me fez acreditar que ela estaria conosco –
em tudo.
Por volta das 03h
da tarde no dia 7 de outubro de 1944, uma tremenda explosão abalou o campo. Os
internos se entreolharam estupefatos. Uma imensa coluna de fogo subiu de onde
ficava o crematório. A notícia se espalhou como rastilho de pólvora. O forno
explodira! Pegos cochilando, os alemães enlouqueceram. Correram em todas as
direções, gritando ordens e contraordens. Era óbvio que temiam um levante.
Ameaçando-nos com as armas, fizeram-nos voltar ao nosso barracão.
Mas o que de fato
aconteceu? Aproveitei a relativa impunidade que minha blusa de enfermeira me
assegurava e deixei o hospital para me esgueirar até as cozinhas. Elas ficavam
a cerca de dez metros da entrada do campo, de frente ao caminho que levava aos
crematórios. Era um excelente posto de observação. Vários destacamentos já
estavam vindo em direção ao campo, alguns em caminhões, outros em motocicletas.
Então, a infantaria da Wehrmacht chegou, seguida por caminhões carregados com
munições. Os soldados cercaram o crematório e abriram fogo com metralhadoras.
Estremeci. Alguns tiros de revólver responderam. Seria uma rebelião? Mais alguns
tiros de metralhadora, e a Wehrmacht e a SS invadiram o local.
O grupo da
Resistência do Sonderkommando, os escravos das câmaras de gás, fez um plano
para explodir os fornos.[33] Através de membros do grupo Pasche, conseguiram
uma quantidade de explosivos suficiente para levar adiante a ideia. Mas várias
coisas deram errado, e a explosão destruiu apenas um dos quatro prédios.
A revolta fora
organizada por um jovem judeu francês chamado David. Sabendo que seria
condenado à morte, uma vez que todos os membros do Sonderkommando eram
exterminados a cada três ou quatro meses, decidiu usar o pouco tempo de vida
que lhe restava. Obteve os explosivos e os escondeu. Mas imprevistos acabaram
por frustrar os planos.
Os alemães
anteciparam a data da execução do Sonderkommando. Um dia, receberam ordens para
estarem prontos para o transporte e saírem do crematório. O primeiro grupo,
cerca de cem homens, obedeceu. Mas o segundo grupo protestou. A atitude desses
Sonderkommando, a maioria robusta, tornou-se ameaçadora. Os poucos SS ficaram
tão surpresos que prudentemente se retiraram para receber ordens e reforços.
Quando retornaram, um forno que, no meio-tempo, foi enchido com explosivos e
encharcado com gasolina explodiu. Os rebeldes não tiveram tempo de explodir os
outros três. No entanto, o Sonderkommando do quarto forno aproveitou a bagunça,
cortou o arame farpado e conseguiu fugir do campo. Alguns deles foram
alcançados, mas o restante escapou.
Na luta que se
seguiu, o Sonderkommando resistiu ferozmente. Estavam munidos apenas com paus,
pedras e alguns revólveres para revidar contra os assassinos treinados e
armados com pistolas automáticas. Quatrocentos e trinta foram capturados com
vida, incluindo David, seu líder, que recebera ferimentos fatais.
A retaliação foi
terrível. Os SS obrigaram os prisioneiros a ficar de joelhos. Dois ou três SS
atiraram em cada um na nuca com precisão diabólica. Aqueles que levantavam a
cabeça para ver se chegara sua vez recebiam 25 chicotadas antes de serem
baleados. Depois dessa revolta, houve várias represálias dentro do campo. Os
espancamentos tornaram-se mais frequentes, assim como as seleções em massa. O
dr. Mengele, zangado, usou o revólver para abater vários refugiados que
tentaram fugir dele. Seus subordinados seguiam o exemplo. Até a próxima chuva,
o chão de terra do campo ficou coberto de sangue.
As várias
centenas de Sonderkommando que não participaram da rebelião foram baleadas em
grupos nas florestas vizinhas. Dessa forma, o dr. Pasche, o médico francês do
Sonderkommando e membro ativo da Resistência no campo, morreu. Foi ele quem nos
forneceu os dados sobre as atividades do Sonderkommando. L, que o viu pouco
antes de morrer, contou-nos sobre a coragem com que enfrentou a morte que se
aproximava. Fomos desencorajados porque a explosão fracassara? Ficamos com
raiva, é claro, mas o fato de ter acontecido era uma prova de que os tempos
haviam mudado, até mesmo em Auschwitz-Birkenau”.[34]
Dos escritos de Primo, sabemos que a resistência
estava presente também entre os prisioneiros que trabalhavam no Escritório do
campo de concentração. Ao descrever as atitudes do novo chefe da sua turma de
trabalho diz:
“O novo Kapo
espancava de modo diferente, de modo convulsivo, maligno, perverso: no nariz,
nas canelas, nos genitais. Batia para fazer mal, para produzir dor e
humilhação, nem era, como muitos outros, por cego ódio racial, mas pela vontade
declarada de infligir dor, indiscriminadamente e sem um pretexto, em todos os
seus subordinados. É provável que fosse um doente mental, mas está claro que,
naquelas condições, a indulgência que sentimos hoje diante desse tipo de
doentes seria desprovida de sentido.
Falei disso com
um colega, um comunista judeu da Croácia: o que fazer? Como defender-se? Agir
coletivamente? Ele sorriu estranhamente e apenas me disse: ‘Você verá que ele
não vai durar muito’. De fato, o espancador desapareceu em uma semana. Anos
mais tarde, num simpósio de sobreviventes, soube que alguns prisioneiros
políticos com funções no Escritório do Trabalho dentro do campo tinham o poder
terrível de substituir os números de identificação nas listas dos prisioneiros
destinados ao gás”.[35]
Ao deitar um
olhar panorâmico nos testemunhos de Primo e Olga, percebemos que, entre as
razões para sobreviver ao holocausto nazista nos campos de concentração de
Auschwitz, há bem mais do que uma simples junção de condições materiais
“privilegiadas” que permitiam resistir ao frio, à fome, à crueldade cujas
manifestações apareciam a toda hora e em qualquer lugar. Há em cada um deles
uma força interior que não cede à medida que encontra nos próprios valores e
nos motivos de sua resistência a energia que permite desafiar diariamente o
medo e a morte.
Para Primo, todos aqueles que esquecem o próprio
passado são condenados a revivê-lo. Cada época tem o seu fascismo e este seduz
as consciências de muitos. Lembrar, então, é uma forma de fazer refletir, de
ajudar a fazer com que a humanidade mude.
Olga partilha
esta ideia dizendo que as memórias não servem apenas para nos lembrarmos do que
aconteceu, mas que elas devem guiar nossas ações no futuro, levar as pessoas a
se unirem nos momentos de perigo e a perceberem que, ao colocar em risco a vida
de um grupo, é a vida de todos que está sendo ameaçada.
Por isso, todo
dia é o dia da memória, mas também o dia de mostrar que a resistência nas
piores condições a que pode ser submetido um ser humano materializa o grito de
liberdade e esperança que desafia a resignação para derrotar o que a opressão
planta no solo do tempo.
Na terceira parte
das nossas reflexões, recolheremos alguns dos ecos da resistência ao racismo
que, em formas e situações diferentes, sacudiram a realidade com ações que se
tornaram uma crítica real ao sistema vigente.
Emilio Gennari, 10 de agosto de 2023.
[1] Para elaborar este capítulo, contamos, sobretudo, com os textos que
seguem:
- Emanuel Ringelblum. Notes from the Warsaw Gueto. Tradução de
Jacob Sloan. Ed. Mc-Grow Hill Book Company, Nova Iorque/Toronto/Londres, 1958,
1ª edição.
- Israel Gutman. Resistência: o levante do gueto de Varsóvia.
Tradução Alexandre Lissovsky. Rio de Janeiro: Imago Ed. 1995.
- Marcos Paulo dos Santos Coelho. Nem cordeiros, nem heróis: um
estudo sobre as classificações de ações judaicas durante a Shoah em testemunho
de sobreviventes. Dissertação para
obter o título de Mestre em História no Instituto de Ciências Humanas e
Sociais, Departamento de História e Relações Internacionais, Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2020.
- Nanci Nascimento de Souza, Gueto de Varsóvia: educação clandestina
e resistência. Dissertação de mestrado para a obtenção do título de Mestre
em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013.
- Vários Autores. Nuestra Memoria - 1993-2003, 10º aniversário de la
fundación Memoria del Holocausto. Ano X, Número 21, abril de 2003.
- Wladislaw Zspilman. O pianista. Tradução Tomasz Barcinski. Rio
de Janeiro. Record, 2003
- https://segundaguerra.blog.br/campo-concentracao-treblinka/
- https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/the-warsaw-ghetto-uprising
- https://www.dw.com/pt-br/1943-levante-no-gueto-de-vars%C3%B3via/a-500871
- https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/gallery/warsaw-ghetto-uprising
- https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64413588
- https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/warsaw-ghetto-uprising
- http://almadeeducador.blogspot.com/2015/03/janusz-korczak-martir-na-educacao.html
- https://gredos.usal.es/bitstream/handle/10366/79419/Janusz_Korczak,_un_inescuchado_testimoni.pdf;jsessionid=237C3429444F47139F39C5638D26C38E?sequence=1
- https://www.redalyc.org/journal/5258/525867920018/html/
- http://educa.fcc.org.br/pdf/rfe/v14n1/v14n1a09.pdf
- https://seer.ufrgs.br/webmosaica/article/download/45021/28502
[2] Em: Vários Autores. Nuestra Memoria - 1993-2003, 10º aniversário de
la fundación Memoria del Holocausto. Ano X, Número 21, abril de 2003., Pag.
28
[3] Para termos uma ideia mais detalhada deste processo, sugerimos a
leitura de Silvia Rosa Nossek Lerner, A música como memória de um drama: o
Holocausto. Ed. Garamond, Rio de Janeiro, 2017.
[4] Trecho extraído de: Nanci Nascimento de Souza, Gueto de Varsóvia:
educação clandestina e resistência.
pag. 106.
[5] Idem, pag. 151.
[6] Idem, pag. 152-153.
[7] Em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/ele-poderia-ser-salvo-mas-preferiu-ir-com-suas-criancas-para-a-morte/
Acesso realizado em 07/07/2023
[8] Em: https://www.redalyc.org/journal/5258/525867920018/html/ Acesso realizado em 08/07/2023.
[9] Maiores informações sobre a Conferência de Wansee podem ser encontradas
em:
- http://www.morasha.com.br/holocausto/wannsee-janeiro-de-3.html
- https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/the-wannsee-conference-and-the-final-solution
[10] Em: https://www.yadvashem.org/es/education/educational-materials/proposals/freedom-in-times-of-holocaust/adam-czerniakow.html Acesso realizado em 09/07/2023.
[11] É importante lembrar que só os textos que mais ajudavam a sustentar a
narrativa nazista sobre as deportações eram enviados aos destinatários. Mas
todos os endereços escritos nos envelopes eram encaminhados aos destacamentos
nazistas das cidades onde as cartas deveriam chegar. Além de apontar aos
alemães onde moravam os judeus que, possivelmente, viviam escondidos ou
protegidos por documentos falsos, frequentemente, o conteúdo das mensagens
permitia identificar as famílias que, por disporem de uma maior quantidade de
bens, se tornariam um alvo preferencial das tropas de ocupação.
[12] Em: Wladislaw Zspilman. O pianista. Tradução Tomasz Barcinski.
Rio de Janeiro. Record, 2003, pag. 98.
[13] A foto foi extraída do site: https://www.radiosefarad.com/mordechai-anielewicz-el-heroe-del-levantamiento-del-gueto-de-varsovia/
As fotos e um breve relato sobre a história e o papel de algumas figuras
que se destacaram na organização do levante podem ser encontradas em:
- https://www.polin.pl/en/heroes-warsaw-ghetto-uprising
- https://www.polin.pl/en/women-warsaw-ghetto-uprising
Acessos realizados em 15/07/2023.
[14] Em: https://theculturetome.wordpress.com/2018/01/14/historical-heroes-remembering-the-bravery-of-mordechai-anielewicz/ Acesso realizado em 15/07/2023.
[15] As reflexões que seguem se baseiam fundamentalmente nos testemunhos
escritos em:
- Olga Lengyel, Os fornos de Hitler - a história de uma sobrevivente
de Auschwitz. Ed. Planeta, São Paulo, 2018.
- Primo Levi, É isto um homem? Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1988.
- Primo Levi, Os afogados e os sobreviventes - os delitos, os
castigos, as penas e as impunidades. Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1990.
Outros materiais consultados encontram-se disponíveis em:
- https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/jewish-uprisings-in-ghettos-and-camps-1941-44
- https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/gallery/auschwitz-camp-complex-maps
- https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42603030
- https://profmatheus.com/2015/01/28/visita-a-auschwitz/
- https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51230256
- https://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/1893/1/409583.pdf
- https://repositorio.ispa.pt/bitstream/10400.12/5385/1/20982.pdf
- Acessos realizados em 13/07/2023.
[16] Em Primo Levi (1990), pag. 103. Como lembra o próprio autor algumas
linhas depois, é importante levar em consideração que, além de o inocente
sentir escrita na própria carne a sua condenação, “tratava-se também de um
retorno à barbárie tanto mais perturbador para os judeus ortodoxos; de fato,
justamente para distinguir os judeus dos ‘bárbaros’, a tatuagem é vetada pela
Lei Mosáica (Levítico, 19,28)”.
[17] Em: Olga Engyel (2018), pag. 46-47.
[18] Idem, pag. 44-45.
[19] Idem, pag. 71.
[20] Idem, pag. 44.
[21] Idem, pag. 61.
[22] Em seus testemunhos, Primo costuma usar a palavra alemã “lager” no
lugar de “campo de concentração”.
[23] Em Primo Levi (1990), pag. 127.
[24] Em: Olga Engyel (2018), pag. 209-210.
[25] Idem, pag. 71-72.
[26] Em Primo Levi (1990), pag. 27-28.
[27] Idem, pag. 31-32.
[28] Idem, pag. 30-31.
[29] Em: Olga Engyel (2018), pag. 300-302.
[30] Idem, pag. 147-149.
[31] Idem, pag. 236-238.
[32] Idem, pag. 100-103.
[33] Em 1944, os Sonderkommandos, ou Esquadrões Especiais, eram compostos
por prisioneiros aos quais estava confiada a gestão dos fornos crematórios. A
eles cabia manter a ordem entre os recém-chegados que deviam ser introduzidos
nas câmaras de gás; tirar os cadáveres e extrair o ouro dos dentes antes de
colocá-los nos fornos crematórios; cortar os cabelos das mulheres; separar e
classificar as roupas e os sapatos deixados antes de entrar nas câmaras de gás;
cuidar do funcionamento dos fornos; retirar e eliminar as cinzas. Os esquadrões
especiais de Auschwitz contavam, dependendo da época, com um efetivo entre
setecentos e mil prisioneiros e trabalhavam em dois turnos de 12 horas.
Os integrantes dos Sonderkommandos não escapavam do destino de todos. As
SS zelavam para que nenhum homem que deles havia participado pudesse sobreviver
e contar o que acontecia no campo de extermínio. Em Auschwitz, se sucederam
doze esquadrões; cada qual atuava alguns meses. Em seguida era eliminado,
sempre com um artifício diferente para prevenir eventuais resistências, e o
esquadrão sucessivo, como iniciação, queimava os cadáveres dos predecessores.
Quem integrava este contingente só era privilegiado na medida em que, por
alguns meses, comia suficientemente, tinha acesso a bebidas alcoólicas para
suportar os traumas produzidos pelas tarefas que devia realizar e era alojado
em aposentos separados dos demais prisioneiros. O contato com os internos era
estritamente proibido. Às vezes, eram obrigados a viver no prédio que abrigava
os crematórios. A vida dos membros do sonderkommando era desumana. Muitos
enlouqueciam. Inúmeras vezes um marido era obrigado a queimar a própria esposa;
um pai, os seus filhos; um filho, os seus pais; um irmão, a sua irmã.
Os Esquadrões Especiais eram constituídos em sua maior parte pelos
judeus. Por um lado, isso não pode espantar, uma vez que, a partir de 1943, a
população de Auschwitz era constituída por judeus numa proporção entre 90 e
95%. De outro, o fato de serem os judeus a pôr nos fomos outros judeus era uma
forma de demonstrar que se dobravam a qualquer humilhação, inclusive à
destruição de si mesmos.
[34] Em: Olga Engyel (2018), pag. 222-236.
[35] Em Primo
Levi (1990), pag. 59-60.
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