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Lições do Chile
Por Emilio Gennari
O resultado da eleição dos representantes que irão escrever a nova Constituição
do Chile surpreendeu jornalistas, parlamentares, governantes, militantes de
partido, mas não quem ouve o descontentamento do povo. Entre os formadores de
opinião, ninguém conseguiu prever o desempenho do Partido Republicano, liderado
pelo ultradireitista Antônio Kast. Paradoxalmente, esta agremiação, que sempre
foi contrária à reforma da Carta Magna vigente recebeu 35,78% dos votos,
enquanto a coligação de esquerda que governa o país, Unidad para Chile, ficou
com apenas 27,85%.[1]
Quando somamos os
votos dos Republicanos aos da aliança formada pela direita tradicional (Chile
Seguro, com 21,45% das preferências dos eleitores), constatamos que os setores
mais conservadores da sociedade terão 33 dos 51 conselheiros. Trata-se de um
número mais que suficiente para aprovar qualquer proposta de redação, impedindo
que os 17 membros da esquerda institucional e o único representante dos povos
indígenas tenham qualquer papel relevante neste processo.[2]
O resultado das urnas
impõe perguntas incômodas: Que elementos explicam o fraco desempenho da
coalizão de governo? Como é possível que a ultradireita, simpatizante do regime
militar de Augusto Pinochet, tenha avançado de forma tão consistente em um país
que conheceu uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina?
As reflexões que
esboçamos nas próximas páginas são parte da busca de respostas a uma eleição
que confirma a capacidade da ultradireita chilena de envolver setores cada vez
mais amplos da população.
1. Entre o inusitado
e o preocupante
A primeira vista,
poderíamos atribuir parte do veredicto das urnas aos recursos investidos na
campanha eleitoral. Mas é justamente aqui que nos deparamos com a primeira
surpresa, à medida que a quantidade de dinheiro gasta por cada grupo em
propaganda, comícios e atividades correlatas é inversamente proporcional ao
número de representantes que conseguiu eleger. De acordo com os dados oficiais
do Serviço Eleitoral (SERVEL), a coligação Chile Seguro teve um dispêndio
correspondente a 6 milhões e 800 mil dólares para eleger 11 conselheiros;
Unidad por Chile desembolsou 4 milhões e 100 mil dólares; e o Partido
Republicano apenas um milhão e 200 mil dólares.[3] Ou seja, se o volume de recursos tivesse
um papel determinante no pleito, o grupo de Antônio Kast obteria um desempenho
pífio em relação às demais agremiações.
Os primeiros passos
da busca de uma resposta convincente começam a aparecer quanto consideramos que
o Chile vive uma situação inusitada. Desde o retorno à democracia, em 1990, o
país tem hoje o governo mais a esquerda dos últimos 33 anos, um Parlamento de
centro-direita e a Comissão Constituinte mais à direita de qualquer outro órgão
institucional da história recente.
Quando consideramos
que a escolha de deputados, senadores e o próprio Presidente da República
ocorreu no mesmo processo eleitoral, em dezembro de 2021, não é difícil
perceber que, majoritariamente, a opção por este ou aquele representante não estava
vinculada à fidelidade da população a um partido político. Longe de estabelecer
vínculos ideológicos e programáticos, grande parte dos chilenos escolheu
candidatos cujas propostas incorporam suas angústias diante dos problemas do
dia a dia e os valores com os quais pensam as soluções que podem melhorar as
suas condições de vida. Na chuva de propostas e promessas que inunda qualquer
processo eleitoral, as pessoas selecionaram as gotas que as encheram de
esperança em dias melhores, independentemente de os candidatos serem de
direita, de centro ou de esquerda, conservadores ou progressistas, moderados ou
radicais, termos que, para o povo simples dizem pouco e nada .
Na apuração do pleito
de 7 de maio deste ano, muitos comentaristas apontaram o descumprimento das
promessa veiculadas na eleição para a Presidência da República como a causa do
voto em candidatos com orientações opostas às da coalizão que governa o país.
Desta forma, os chilenos estariam punindo com o chamado “voto de castigo” o
governante que não cumpriu o que prometeu. Ou seja, o apoio ao Partido
Republicano de Antônio Kast, derrotado no segundo turno pelo atual Presidente
da República Gabriel Boric, não passaria de uma forma de mostrar a frustração
popular na esquerda institucional.
Aparentemente, esta
explicação faz sentido. Resta saber se ela é suficiente para dar conta da
complexidade das relações e das mudanças em curso na sociedade chilena.
A situação econômica
do país oferece duas pistas para a nossa análise. A primeira delas é a alta de 11,1%
dos preços nos 12 meses até abril deste ano que forçou o Banco Central a
aumentar a taxa de juros. E a segunda, a queda de 1,1% do PIB registrada no
primeiro trimestre de 2023 que elevou em meio ponto percentual o contingente de
desocupados.[4] Não bastasse a perda do poder de compra
dos salários, as famílias endividadas se viram obrigadas a retirar uma parcela
maior da renda familiar para cobrir o aumento no valor das prestações dos
financiamentos contraídos num contexto em que a manutenção do emprego é
ameaçada pela recessão. Ou seja, as condições de vida foram se deteriorando num
ambiente em que o governo, sem os recursos da reforma tributária, cuja aprovação
foi frustrada pelo Parlamento, não tinha condições de intervir à altura dos
problemas que a queda do PIB estava criando para uma parte significativa da
população.
Se isso não bastasse,
o Presidente da República vetou a quarta possibilidade de retirar uma parcela
de 10% do saldo sobre o qual é calculada a aposentadoria de cada assalariado a
fim de minorar os sacrifícios das famílias com dificuldades financeiras.
Ninguém duvida que esta medida buscava proteger de um ulterior encolhimento os
valores a serem recebidos no futuro, mas, para muitos, esta era a única forma
de sair do aperto em que se encontravam. No balanço do cidadão comum, ainda que
seja louvável a preocupação do governo em garantir os recursos para tocar a
vida depois do trabalho, neste momento, pesava bem mais o fato de não ter como
pagar as conta do presente, o que transformou o veto presidencial numa
imperdoável falta de sensibilidade em relação a quem estava no sufoco.
O aumento da
violência é, sem dúvida, outra preocupação que alimenta o descontentamento
popular. Em março deste ano, a sensação de angústia e desamparo levou 71% dos
chilenos a apontarem o combate ao crime como uma prioridade a ser assumida pelo
governo.[5] Os números de 2022, divulgados pela
Subsecretaria da Prevenção da Criminalidade, traduzem a sensação de insegurança
de quem teme perder o pouco que tem. Apesar de o Chile apresentar a menor taxa
de homicídios do continente (4,6 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes,
em 2022), o aumento de 33,4% desse tipo de crime em relação a 2021, a elevação
de 63,1% nos registros dos roubos violentos e de 39,8% nos furtos de
autoveículos levaram a população a cobrar ações enérgicas por parte do Estado.[6]
No Parlamento,
controlado pelo centro-direita, os deputados aceleraram a tramitação de uma lei
que se assemelha ao excludente de ilicitude que o ex-presidente Jair Bolsonaro
tentou aprovar no Brasil durante o seu mandato. Desta forma, até as ações
policiais de maior letalidade seriam julgadas a partir do pressuposto pelo qual
os agentes de segurança pública estariam sempre agindo em legítima defesa, o
que, na prática, oferece uma espécie de licença para matar.[7]
Esta realidade
colocou Boric diante de um divisor de águas. De um lado, ele se elegeu com um
discurso que criticava os excessos cometidos pelos policiais (sobretudo durante
os protestos de outubro de 2019). Abrir mão desta posição implica em aumentar
os atritos no interior do governo. De outro, se as medidas em andamento não
levarem a uma diminuição das ocorrências, ele será acusado de não agir com
rigor diante do crime, o que deve desaguar em mais uma queda dos índices de
aprovação.
Em meados de maio, os
discursos do Presidente da República insinuaram certo apoio à possibilidade de
ações policiais mais contundentes, ao dizer que são os criminosos que devem
sentir medo, não as instituições, muito menos os cidadãos honestos que são a
grande maioria. Mas isso passa longe de convencer os 69,0% dos entrevistados
que, um mês antes, desaprovaram a forma com a qual o governo lida com a
violência.[8]
A crise da imigração
irregular, que elevou as tensões nas cidades do norte do país e a disputa por
um emprego no território nacional, alimentou ainda mais a sensação de
descontrole da ordem pública causada pela violência e de que as prioridades do
governo não respondiam aos desafios que a realidade impõe ao país. Diante da
imagem de um Presidente da República que estaria perdendo o controle da
situação, não é de estranhar que muita gente tenha apostado nos candidatos que
pregam a necessidade de o Estado ter uma legislação que permite agir com mão de
ferro para garantir a ordem.[9]
O Partido Republicano
capitalizou grande parte deste sentimento popular ao afirmar que a própria
direita tradicional do país não estava sendo suficientemente dura em matéria de
segurança; que o governo era um completo fracasso; e que os candidatos
Republicanos se destacariam no esforço para fazer com que o cidadão de bem
pudesse viver em segurança. Em relação à imigração, o discurso de Kast foi no
mesmo tom ao afirmar a necessidade de fechar as fronteiras e expulsar qualquer
imigrante ilegal. Ainda que as cores carregadas das promessas sejam típicas de
uma campanha eleitoral, é fato que a leitura da realidade e as propostas dos
Republicanos asseguraram uma quantidade de votos 15 pontos percentuais superior
ao esperado pelo próprio partido.
A comprovação desta
sintonia de sentido entre a ultradireita e as angústias populares foi
confirmada pelo resultado da pesquisa de opinião realizada por Plaza Pública
CADEM após as eleições do dia 7 de maio. De acordo com o relatório final,
metade das pessoas que votaram no Partido Republicano declararam que a
principal razão da sua escolha foi “a mão de ferro contra a delinquência, a
criminalidade e a imigração e a defesa da ordem pública”. Outros 18,0% dos
que depositaram a confiança neste grupo o fizeram para ter uma constituição em
cujos princípios podem concordar e somente 16,0% escolheram a ultradireita como
forma de castigar o governo Boric.[10]
Ou seja, os dados
mostram que o chamado “voto de castigo” não passou de uma expressão minoritária
do eleitorado. O comentário do Ministro da Fazenda do Chile, Mario Marcel, logo
após o término da apuração, já havia apontado nesta direção ao dizer que “os
resultados mostram que as pessoas esperam mais ação do que palavras”. Um
recado que soa ainda mais urgente e preocupante diante de uma ultradireita que
teve a maior porcentagem de votos até em redutos tradicionalmente de esquerda.[11]
2. Mas...será que
Boric fez tudo errado?
Na análise sobre a
rejeição da proposta da nova Constituição, divulgada em outubro do ano passado,
mostrávamos tanto os pontos críticos do texto, como as incompreensões dos
setores progressistas em relação ao que era realmente importante para as
pessoas comuns.[12] Daquele momento em diante, os
acontecimentos não levaram a uma aproximação entre as prioridades de governo e
o que é fundamental para o povo. Ao contrário, a queda na taxa de aprovação de
Gabriel Boric de 39%, em agosto de 2022, para menos de 30%, em abril deste ano,
mostra que a coalizão de esquerda se afastou ainda mais do sentimento popular.
O discurso de
prestação de contas, proferido pelo Presidente do Chile em 1 de
junho, tratou de resgatar a importância das realizações do primeiro
ano de mandato.[13] Entre os “grandes êxitos” anunciados
por Boric, constam o salário mínimo de 500 mil Pesos (cerca de 622 dólares) e a
redução das atuais 45 para as 40 horas semanais a ser introduzida ao longo dos
próximos 5 anos. Ninguém duvida da importância destas medidas, mas há dois
problemas que reduzem o seu impacto nos índices de aprovação do governo.
O primeiro diz
respeito ao fato de que a diminuição em uma hora semanal ao longo de 2023 ainda
não conseguiu fazer sentir seus efeitos positivos entre as famílias dos
assalariados, cujo endividamento tende a ampliar a extensão das jornadas de
trabalho.[14] O segundo deita raízes no fato de que,
tanto as 40 horas semanais como o aumento do salário mínimo, nada dizem aos
27,9% da população economicamente ativa que estão na informalidade e cuja renda
está vinculada, fundamentalmente, ao crescimento da economia e a uma jornada
cuja duração depende dos caprichos da sorte.
Do mesmo modo, a
progressiva elevação do desemprego (que encerrou o primeiro trimestre de 2023
em 8,8%) impede de ver nestes avanços uma realidade capaz de reverter em curto
prazo o corte de vagas em curso. Para estes contingentes que somam cerca de 40%
da força de trabalho o fato de o país estar indo ladeira abaixo e de o governo
não ter planos para fazer a economia crescer de forma sustentada são motivos
mais que suficientes para derreter a confiança na esquerda.[15]
O equilíbrio das
contas públicas foi outro “grande êxito” anunciado no discurso de prestação de
contas. A disciplina fiscal contribuiu para que, em 2022, o país atraísse o
maior volume de investimentos estrangeiros dos últimos 9 anos. Para Boric, esta
é a prova de que a esquerda não assustou o capital externo. Para
nós, é, sobretudo, uma amostra de que as crescentes necessidades da população
não encontraram respostas à altura do esperado.
Em defesa do seu
governo, o Presidente do Chile tentou mostrar que o equilíbrio entre
arrecadação e gastos não impediu de ir ao encontro do que o povo precisa.
Exemplo disso seria o fato de que, contrariando as perspectivas pessimistas dos
agentes de mercado, o governo já entregou 60.222 casas às famílias que não
tinham onde morar, está construindo outras 131.077 e até o final do mandato
pretende terminar um total de 260.000, reduzindo significativamente o deficit
habitacional de 650.000 moradias registrado na época da posse, em março de
2022. A isso deve-se acrescentar a isenção de qualquer cobrança junto ao
sistema de saúde pública para 658.000 pessoas, os passos dados para reduzir o
tempo de espera de uma cirurgia (de uma média de 330 dias, em março de 2022
rumo aos 200 dias prometidos no final do mandato) e a ampliação de 12% da
capacidade do sistema penitenciário.[16] Ninguém duvida de que isso seja algo
concreto. O problema é que passa a anos luz de fazer sentir à população que o
governo caminha para resolver as angústias que atormentam a sua rotina diária.
Entre os maiores
problemas que justificam o não cumprimento das promessas de campanha, Boric
culpou a não aprovação da reforma tributária pelo Parlamento, deixando claro
que, sem ela, nenhum governo poderá avançar de forma responsável no atendimento
das demandas presentes na base da pirâmide social. Do mesmo modo, reconheceu a
necessidade de ajustar as prioridades do governo à realidade que atravessa o
país e solicitou que todas as forças políticas se unam na defesa da democracia
ao lembrar, em setembro deste ano, os 50 anos do golpe que levou à queda de
Salvador Allende e à ditadura de Augusto Pinochet.
Boric usou a
objetividade dos números que tinha para se dirigir a um país que o olha com
desconfiança. A primeira resposta ao seu esforço veio em um recado curto e
grosso que o próprio Antônio Kast enviou depois da fala de mais de três horas
do mandatário. Sem rodeios e ironias, o líder do Partido Republicano escreveu
em um twit: “Em todo o discurso, as palavras crescimento e pobreza são
mencionadas apenas 4 vezes. Narcotráfico só duas vezes e nunca se menciona o
terrorismo. Um presidente que vive desconectado das verdadeiras urgências do
país”.[17] Para bom entendedor, estas palavras
bastam.
3. O peso da religião
e da história.
Pesquisas recentes
mostram que, para 48,0% dos chilenos a religião que professam é um elemento
muito importante da sua identidade e uma bússola com base na qual orientam as
escolhas do dia a dia.[18] As pessoas se orgulham disso, procuram
representantes cujas propostas se aproximem dos seus valores e das crenças com
as quais interpretam questões como o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo
sexo, o feminismo e toda a agenda de gênero. As discussões sobre estes temas
levaram a uma progressiva politização da identidade religiosa.
Enquanto a direita
tradicional cedia algum espaço às demandas da esquerda, afastando de si o apoio
deste grupo que reúne quase metade da população,[19] o Partido Republicano foi em direção ao
“voto religioso” com propostas que defendiam os ideias de Pátria e família,
rechaçavam o aborto e obstaculizavam qualquer avanço institucional das questões
de gênero. Neste processo, a esquerda se mostrou totalmente incapaz de
construir um diálogo com esta parcela significativa dos chilenos, o que deu a
Kast todo o terreno de que precisava para traçar as linhas mestras de uma
identidade de valores e sentidos com católicos e evangélicos.[20] Não por acaso, Luis Alejandro Silva
Irarrázaval, de 45 anos, advogado constitucionalista e quadro da Opus Dei,
candidato Republicano ao Conselho Constituinte pela região metropolitana de
Santiago, recebeu mais de 700.000 votos, uma quantidade maior do que os
postulantes do Partido Socialista obtiveram no país inteiro.[21]
Mas será que ninguém
lembra que Antônio Kast, Luis Alejandro e outros membros do partido declararam
publicamente sua admiração por Pinochet? Ou devemos pensar que um número
expressivo de pessoas votou ingenuamente em representantes de um partido que
aplaude este passado autoritário?
A pesquisa realizada
pela cientista política Cláudia Heiss, pelo ex-senador do Partido Socialista
Carlos Ominani e pelo escritor Patrício Fernández com uma amostra de mil
chilenos de diferentes gerações levantou elementos que ajudam a responder a
estas perguntas.[22] Os autores constataram que os acontecimentos
de cada momento histórico produzem mudanças na forma como as pessoas olham para
o passado. Ou seja, não há um um julgamento categórico e permanente nem da
ditadura de Pinochet, nem do desempenho de qualquer outro mandatário. Há, sim,
uma avaliação que muda a depender dos problemas que marcam o presente e das
soluções tidas como necessárias para resolvê-los. Vamos aos números mais
expressivos do relatório final.
Nas entrevistas
realizadas este ano, 36,0% afirmaram que os militares tinham razão em dar um
golpe de Estado, enquanto outros 41,0% disseram que eles nunca têm razão de
fazer isso e 19,0% não expressaram nenhuma opinião a respeito. Em 2013, apenas
16,0% apoiava o golpe, ao passo que a recusa em reconhecer qualquer razão para
este ato contava com 68,0% das manifestações dos entrevistados. Esta
discrepância significativa em relação aos dados de dez anos atrás, parece ter
um vínculo direto com a urgência de restabelecer uma ordem social deturpada e
ameaçada pela criminalidade e a imigração ilegal, sem estar diretamente
vinculada à figura de Pinochet.
Haja vista que, em
2013, o ditador era apontado como um dos melhores governantes que o Chile teve
no século XX por 55,0% das pessoas consultadas, ante 20,0% do levantamento
atual. Por outro lado, o lema “ordem e segurança”, típico da época da ditadura,
estaria na base dos motivos pelos quais, em 2023, o regime militar foi avaliado
como sendo em parte bom e em parte ruim por 47,0% das pessoas (40,0% entre os
jovens até os 35 de idade e 51,0% entre os que viveram a época do golpe), sendo
que outras 25,0% consideram que ele só fez o mal e 11,0% que só fez o bem.
Ao olhar para o
passado com as lentes moldadas pelo presente, as graves violações dos direitos
humanos caem em segundo plano, o número de pessoas que defendem o autoritarismo
cresce e, com ele, o de quem aponta a necessidade de ações duras, mas sem
instaurar um regime de exceção. Entre os sinais que apontam nesta direção temos
a caracterização da figura de Pinochet. Se, em 2013, só 18,0% dos entrevistados
diziam que o general passaria à história como um ditador, este ano, a
porcentagem subiu para 64,0%.
A confusão pela qual
o povo aponta a necessidade de intervenções autoritárias em plena democracia
parlamentar, é amplamente aproveitada por Kast que, em seus discursos, não
ataca o regime de governo, mas propõe medidas contundentes para colocar logo o
país nos trilhos. O fato de ele ser tachado de “pinochetista” pelas demais
representações parlamentares diz pouco e nada a um povo que está em apuros, olha
com medo para o amanhã e é sensível a quem, partilhando dos seus mesmos
valores, anseios e critérios de análise, promete resolver logo os seus
problemas imediatos.
Nos próximos meses
veremos até que ponto a ultradireita consegue o apoio desejado. À medida que
seus representantes devem transformar ideias de palanque em artigos e
parágrafos de uma Constituição que serão submetidos à aprovação popular no
referendo a ser realizado em dezembro deste ano, será mais difícil esconder os
interesses que mais serão beneficiados pela nova Carta Magna do país.
4. Nas sendas do
amanhã.
Enquanto escrevemos
estas breves reflexões, os 51 conselheiros eleitos no início de maio estão
dando os primeiros passos na elaboração da nova Constituição do país. Em suas
mãos, os especialistas das principais forças políticas colocaram o anteprojeto
no qual vinham trabalhando desde o final do ano passado. O texto que servirá de
base às discussões aponta alguns avanços em relação à legislação vigente e
inúmeros recuos diante dos direitos que constavam da proposta rejeitada em
setembro do ano passado.
Entre as questões
mais polêmicas, está, sem dúvida, a definição do papel do Estado. Hoje, o
Estado é subsidiário da iniciativa privada. Cabe a ele garantir o funcionamento
da economia e o crescimento do PIB com medidas que aplanam caminhos aos
interesses empresariais, mas não pode assumir a responsabilidade de oferecer
serviços que atendam plenamente às necessidades de todos.
Na proposta que serve
de base ao Conselho Constituinte, a reivindicação do Estado Social do
centro-esquerda ganhou uma expressão bastante tímida: “O Chile se organiza
em um Estado Social e de direito, que reconhece direitos e liberdades
fundamentais e promove o desenvolvimento progressivo dos direitos sociais,
submetido ao princípio da responsabilidade fiscal e através de instituições
estatais e privadas”. Em outras palavras, oferecer serviços públicos é um
processo que será sempre limitado pelo equilíbrio das contas e pela
coparticipação de instituições privadas. Uma situação, portanto, bem diferente
daquela que, na proposta rejeitada no ano passado, definia o Estado de
bem-estar social chileno como capaz de oferecer bens e serviços públicos
abrangentes, cujo papel era de zelar pela moradia, saúde, educação, previdência,
trabalho e pela criação de um Sistema de Atenção Integral às pessoas que fosse
universal e solidário.
No momento em que
escrevemos, tudo indica que os representantes do Partido Republicano tendem a
dar mais liberdade de ação ao mercado, obrigando o Estado a assumir um papel
ainda mais subsidiário, o que, de fato, inviabilizaria a implantação de
políticas públicas com um alcance maior em relação ao atual. Esta posição não é
nova, à medida que Kast não cansa de dizer que é melhor reduzir os impostos e
os gastos públicos para que a estabilidade econômica e o crescimento do PIB
coloquem o bem-estar de todos num patamar superior ao que pode ser alcançado
com a ampliação do atendimento da população por parte do Estado. Com mais
investimentos, empregos e o consequente aumento na renda das famílias, as
pessoas teriam condições de escolherem o que consideram melhor para si e os
seus entes queridos.
Em relação a outros
temas, a hipótese mais provável é que direita e extrema direita cedam alguns
espaço a pequenas mudanças que, apesar de representarem um avanço em relação
aos postulados da Constituição vigente, apenas introduzem na nova Carta Magna
uma versão muito próxima do que já pertence ao âmbito da legislação nacional e
das convenções internacionais das quais o Chile é signatário.[23]
O semestre que
antecede o novo plebiscito promete debates e enfrentamentos entre os
conselheiros e a busca de formas pelas quais os postulados da nova Carta Magna
serão veiculados e trabalhados junto à população a fim de levá-la a aprovar o
texto. Ninguém quer ser surpreendido pela realidade ao assumir ideias e
proposições que não conseguem plantar no povo as sementes que sua orientação
ideológica deseja. O apoio dos chilenos ao trabalho dos constituintes depende
desta capacidade em relação à qual, infelizmente, a ultradireita sai
quilômetros à frente da coalizão de esquerda que governa o país.
Emilio Gennari.
Brasil, junho de 2023.
[1] Em: https://elpais.com/chile/2023-05-08/como-logro-kast-la-mayoria-en-una-constitucion-que-nunca-quiso.html em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-65522480 e em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd14qzd8nkro Acessos realizados em 10/05/2023.
[2] Os agrupamentos “Todo por Chile” e “Partido de la Gente”
obtiveram, respectivamente 9,09% e 5,33% da preferência dos eleitores, uma
porcentagem insuficiente para ter direito a um único representante.
Em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy90j087v35o e em: https://elpais.com/chile/2023-05-10/los-partidos-de-centroizquierda-de-chile-agonizan-bajo-la-polarizacion-entre-el-gobierno-y-los-republicanos.html
e em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-65521714 Acessos realizados em 14/05/2023.
[3] Em: https://elpais.com/chile/2023-06-10/como-se-financiaron-las-campanas-del-consejo-constitucional-en-chile.html Acesso realizado em 11/06/2023.
[4] Em: https://elpais.com/chile/2023-06-02/un-mensaje-de-realismo-politico.html Acesso realizado em 05/06/2023
[5] Em https://headtopics.com/br/america-s-quarterly-viol-ncia-urbana-cresce-no-chile-e-gabriel-boric-pende-para-a-direita-38419757 Acesso realizado em 31/05/2023.
[6] Em: https://correiodopovo-al.com.br/geral/violencia-urbana-cresce-no-chile-e-pressiona-governo-de-gabriel-boric
e em: https://headtopics.com/br/america-s-quarterly-viol-ncia-urbana-cresce-no-chile-e-gabriel-boric-pende-para-a-direita-38419757 Acessos realizados em 11/05/2023.
Para termos uma ideia da evolução dos tipos de homicídio, dos desafios
que impõem às investigações policiais e do impacto no cotidiano das pessoas,
vale a pena ler a matéria divulgada em: https://elpais.com/chile/2023-06-10/cien-balas-en-la-escena-del-crimen-como-cambiaron-los-homicidios-de-chile.html Acesso realizado em 10/06/2023.
[7] Em: https://correiodopovo-al.com.br/geral/violencia-urbana-cresce-no-chile-e-pressiona-governo-de-gabriel-boric Acesso em 31/05/2023.
[8] Em https://headtopics.com/br/america-s-quarterly-viol-ncia-urbana-cresce-no-chile-e-gabriel-boric-pende-para-a-direita-38419757 Acesso realizado em 31/05/2023.
[9] Maiores informações podem ser em: https://elpais.com/chile/2022-12-26/quienes-son-los-nuevos-vecinos-chile-destripa-el-mayor-flujo-migratorio-regular-de-su-historia.html Acesso realizado em 10/01/2023
[10] Em: https://elpais.com/chile/2023-05-18/kast-capitaliza-el-voto-republicano-las-esquirlas-de-la-eleccion-en-la-que-la-extrema-derecha-se-convirtio-en-el-primer-partido-de-chile.html Acesso realizado em 01/06/2023
[11] A afirmação do Ministro de Fazenda foi divulgada em: https://www.radiohc.cu/pt/noticias/internacionales/322075-chilenos-esperam-mais-acao-do-que-palavras-afirma-ministro Acesso realizado em 08/05/2023.
Os eleitores do município de Cabildo, 180 km a norte de Santiago, estão
entre os que romperam o voto histórico da maioria nos candidatos de esquerda.
Os detalhes desta guinada foram divulgados em: https://elpais.com/chile/2023-05-21/cabildo-el-feudo-izquierdista-donde-arraso-la-extrema-derecha-boric-no-ha-cumplido-lo-que-prometio.html
O mapa eleitoral oferece uma ideia do apoio à ultradireita no país
inteiro. Disponível em: https://elpais.com/chile/2023-05-08/mapa-el-resultado-de-las-elecciones-al-consejo-constitucional-municipio-a-municipio.html
Acessos realizados em 23/05/2023.
[12] Estamos nos referindo ao texto “Chile: por que a nova Constituição
foi rejeitata”, divulgado no dia 03 de outubro de 2022 e disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1YoRRdUt1RVr31bNvhMPvIFt8pBwWYoJA?usp=sharing
[13] Os principais tópicos do discursos foram divulgados em: https://elpais.com/chile/2023-06-01/cuenta-publica-2023-en-vivo-el-discurso-de-gabriel-boric-a-la-nacion.html e em: https://elpais.com/chile/2023-06-01/boric-intenta-en-la-cuenta-publica-un-relato-de-unidad-para-navegar-en-un-chile-pesimista-con-problemas-economicos-y-de-seguridad.html
Acesso realizado em 02/06/2023
[14] Maiores informações em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-65235477 Acesso em 01/05/2023.
[15] Vale lembrar que, graças ao forte crescimento dos preços das
commodities, entre 2004 e 2013, o país cresceu 37%, alimentando as esperanças
dos setores mais empobrecidos da população. Contudo, no período que vai de 2014
a 2022, entre os efeitos nefastos da pandemia e as dificuldades impostas pela
economia mundial, o PIB chileno aumentou apenas 8,3% em relação a 2014, uma
média anual baixa demais para uma população que cresce e enfrenta desafios bem
maiores do que suas visões mais pessimistas podiam imaginar nove anos
atrás. Dados publicados em: https://elpais.com/chile/2023-05-29/sergio-urzua-economista-en-chile-esta-truncado-el-sueno-de-progreso-tanto-en-la-clase-media-como-en-los-mas-vulnerables.html
Os números do mercado de trabalho foram extraídos de: https://pt.fxempire.com/macro/chile/unemployment-rate e de: https://csa-csi.org/observatoriolaboral/wp-content/uploads/2022/02/Chile-POR-v1.pdf
Acessos realizados em 07/06/2023.
[16] Em: https://elpais.com/chile/2023-06-01/cuenta-publica-2023-en-vivo-el-discurso-de-gabriel-boric-a-la-nacion.html Acesso realizado em 02/06/2023.
[17] Idem.
[18] Em: https://elpais.com/chile/2023-05-28/cuanto-pesa-la-religion-a-la-hora-de-votar-en-chile.html Acesso realizado em 30/05/2023.
[19] Em: https://elpais.com/internacional/2023-05-14/auge-de-la-extrema-derecha-y-declive-de-la-derecha-tradicional-chile-y-el-efecto-contagio-en-latinoamerica.html Acesso realizado em 17/05/2023.
[20] Em: Valor Econômico, edição impressa dos dias 13 a 15 de maio de
2023 e em: https://elpais.com/chile/2023-05-22/noam-titelman-academico-del-frente-amplio-el-progresismo-chileno-abandono-al-sujeto-popular-de-identidad-cristiana.html Acesso realizado em 25/05/2023.
[21] Em: https://elpais.com/chile/2023-05-12/luis-silva-numerario-del-opus-dei-el-consejero-constitucional-de-la-extrema-derecha-que-arraso-en-las-elecciones-en-chile.html Acesso realizado em 15/05/2023.
[22] Os dados que seguem foram divulgados em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-65818270 e em: https://elpais.com/chile/2023-05-30/un-36-de-los-chilenos-cree-que-los-militares-tuvieron-razon-en-dar-el-golpe-de-estado-que-lidero-pinochet.html Acessos realizados em 03/06/2023.
[23] Algumas das principais diferenças entre a Constituição vigente e o
anteprojeto que está sendo analisado pelo Conselho Constituinte constam da
matéria divulgada em https://elpais.com/chile/2023-05-24/los-grandes-acuerdos-marcan-el-ultimo-paso-del-borrador-de-la-constitucion-en-chile.html e em: https://elpais.com/chile/2023-06-01/las-diferencias-entre-el-borrador-para-una-nueva-constitucion-chilena-y-el-texto-que-nacio-en-1980-y-que-la-democracia-reformo-64-veces.html Acesso realizado em 03/06/2023.
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