quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Notas de conjuntura: Lições do Chile


Autoria da imagem: Cacinho

                     




Lições do Chile

                                                                                                Por Emilio Gennari


O resultado da eleição dos representantes que irão escrever a nova Constituição do Chile surpreendeu jornalistas, parlamentares, governantes, militantes de partido, mas não quem ouve o descontentamento do povo. Entre os formadores de opinião, ninguém conseguiu prever o desempenho do Partido Republicano, liderado pelo ultradireitista Antônio Kast. Paradoxalmente, esta agremiação, que sempre foi contrária à reforma da Carta Magna vigente recebeu 35,78% dos votos, enquanto a coligação de esquerda que governa o país, Unidad para Chile, ficou com apenas 27,85%.[1]

Quando somamos os votos dos Republicanos aos da aliança formada pela direita tradicional (Chile Seguro, com 21,45% das preferências dos eleitores), constatamos que os setores mais conservadores da sociedade terão 33 dos 51 conselheiros. Trata-se de um número mais que suficiente para aprovar qualquer proposta de redação, impedindo que os 17 membros da esquerda institucional e o único representante dos povos indígenas tenham qualquer papel relevante neste processo.[2]

O resultado das urnas impõe perguntas incômodas: Que elementos explicam o fraco desempenho da coalizão de governo? Como é possível que a ultradireita, simpatizante do regime militar de Augusto Pinochet, tenha avançado de forma tão consistente em um país que conheceu uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina? 

As reflexões que esboçamos nas próximas páginas são parte da busca de respostas a uma eleição que confirma a capacidade da ultradireita chilena de envolver setores cada vez mais amplos da população.

 

1. Entre o inusitado e o preocupante


A primeira vista, poderíamos atribuir parte do veredicto das urnas aos recursos investidos na campanha eleitoral. Mas é justamente aqui que nos deparamos com a primeira surpresa, à medida que a quantidade de dinheiro gasta por cada grupo em propaganda, comícios e atividades correlatas é inversamente proporcional ao número de representantes que conseguiu eleger. De acordo com os dados oficiais do Serviço Eleitoral (SERVEL), a coligação Chile Seguro teve um dispêndio correspondente a 6 milhões e 800 mil dólares para eleger 11 conselheiros; Unidad por Chile desembolsou 4 milhões e 100 mil dólares; e o Partido Republicano apenas um milhão e 200 mil dólares.[3] Ou seja, se o volume de recursos tivesse um papel determinante no pleito, o grupo de Antônio Kast obteria um desempenho pífio em relação às demais agremiações.

Os primeiros passos da busca de uma resposta convincente começam a aparecer quanto consideramos que o Chile vive uma situação inusitada. Desde o retorno à democracia, em 1990, o país tem hoje o governo mais a esquerda dos últimos 33 anos, um Parlamento de centro-direita e a Comissão Constituinte mais à direita de qualquer outro órgão institucional da história recente.

Quando consideramos que a escolha de deputados, senadores e o próprio Presidente da República ocorreu no mesmo processo eleitoral, em dezembro de 2021, não é difícil perceber que, majoritariamente, a opção por este ou aquele representante não estava vinculada à fidelidade da população a um partido político. Longe de estabelecer vínculos ideológicos e programáticos, grande parte dos chilenos escolheu candidatos cujas propostas incorporam suas angústias diante dos problemas do dia a dia e os valores com os quais pensam as soluções que podem melhorar as suas condições de vida. Na chuva de propostas e promessas que inunda qualquer processo eleitoral, as pessoas selecionaram as gotas que as encheram de esperança em dias melhores, independentemente de os candidatos serem de direita, de centro ou de esquerda, conservadores ou progressistas, moderados ou radicais, termos que, para o povo simples dizem pouco e nada .

Na apuração do pleito de 7 de maio deste ano, muitos comentaristas apontaram o descumprimento das promessa veiculadas na eleição para a Presidência da República como a causa do voto em candidatos com orientações opostas às da coalizão que governa o país. Desta forma, os chilenos estariam punindo com o chamado “voto de castigo” o governante que não cumpriu o que prometeu. Ou seja, o apoio ao Partido Republicano de Antônio Kast, derrotado no segundo turno pelo atual Presidente da República Gabriel Boric, não passaria de uma forma de mostrar a frustração popular na esquerda institucional.

Aparentemente, esta explicação faz sentido. Resta saber se ela é suficiente para dar conta da complexidade das relações e das mudanças em curso na sociedade chilena.

A situação econômica do país oferece duas pistas para a nossa análise. A primeira delas é a alta de 11,1% dos preços nos 12 meses até abril deste ano que forçou o Banco Central a aumentar a taxa de juros. E a segunda, a queda de 1,1% do PIB registrada no primeiro trimestre de 2023 que elevou em meio ponto percentual o contingente de desocupados.[4] Não bastasse a perda do poder de compra dos salários, as famílias endividadas se viram obrigadas a retirar uma parcela maior da renda familiar para cobrir o aumento no valor das prestações dos financiamentos contraídos num contexto em que a manutenção do emprego é ameaçada pela recessão. Ou seja, as condições de vida foram se deteriorando num ambiente em que o governo, sem os recursos da reforma tributária, cuja aprovação foi frustrada pelo Parlamento, não tinha condições de intervir à altura dos problemas que a queda do PIB estava criando para uma parte significativa da população.

Se isso não bastasse, o Presidente da República vetou a quarta possibilidade de retirar uma parcela de 10% do saldo sobre o qual é calculada a aposentadoria de cada assalariado a fim de minorar os sacrifícios das famílias com dificuldades financeiras. Ninguém duvida que esta medida buscava proteger de um ulterior encolhimento os valores a serem recebidos no futuro, mas, para muitos, esta era a única forma de sair do aperto em que se encontravam. No balanço do cidadão comum, ainda que seja louvável a preocupação do governo em garantir os recursos para tocar a vida depois do trabalho, neste momento, pesava bem mais o fato de não ter como pagar as conta do presente, o que transformou o veto presidencial numa imperdoável falta de sensibilidade em relação a quem estava no sufoco.

O aumento da violência é, sem dúvida, outra preocupação que alimenta o descontentamento popular. Em março deste ano, a sensação de angústia e desamparo levou 71% dos chilenos a apontarem o combate ao crime como uma prioridade a ser assumida pelo governo.[5] Os números de 2022, divulgados pela Subsecretaria da Prevenção da Criminalidade, traduzem a sensação de insegurança de quem teme perder o pouco que tem. Apesar de o Chile apresentar a menor taxa de homicídios do continente (4,6 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes, em 2022), o aumento de 33,4% desse tipo de crime em relação a 2021, a elevação de 63,1% nos registros dos roubos violentos e de 39,8% nos furtos de autoveículos levaram a população a cobrar ações enérgicas por parte do Estado.[6]

No Parlamento, controlado pelo centro-direita, os deputados aceleraram a tramitação de uma lei que se assemelha ao excludente de ilicitude que o ex-presidente Jair Bolsonaro tentou aprovar no Brasil durante o seu mandato. Desta forma, até as ações policiais de maior letalidade seriam julgadas a partir do pressuposto pelo qual os agentes de segurança pública estariam sempre agindo em legítima defesa, o que, na prática, oferece uma espécie de licença para matar.[7]

Esta realidade colocou Boric diante de um divisor de águas. De um lado, ele se elegeu com um discurso que criticava os excessos cometidos pelos policiais (sobretudo durante os protestos de outubro de 2019). Abrir mão desta posição implica em aumentar os atritos no interior do governo. De outro, se as medidas em andamento não levarem a uma diminuição das ocorrências, ele será acusado de não agir com rigor diante do crime, o que deve desaguar em mais uma queda dos índices de aprovação.

Em meados de maio, os discursos do Presidente da República insinuaram certo apoio à possibilidade de ações policiais mais contundentes, ao dizer que são os criminosos que devem sentir medo, não as instituições, muito menos os cidadãos honestos que são a grande maioria. Mas isso passa longe de convencer os 69,0% dos entrevistados que, um mês antes, desaprovaram a forma com a qual o governo lida com a violência.[8]

A crise da imigração irregular, que elevou as tensões nas cidades do norte do país e a disputa por um emprego no território nacional, alimentou ainda mais a sensação de descontrole da ordem pública causada pela violência e de que as prioridades do governo não respondiam aos desafios que a realidade impõe ao país. Diante da imagem de um Presidente da República que estaria perdendo o controle da situação, não é de estranhar que muita gente tenha apostado nos candidatos que pregam a necessidade de o Estado ter uma legislação que permite agir com mão de ferro para garantir a ordem.[9]

O Partido Republicano capitalizou grande parte deste sentimento popular ao afirmar que a própria direita tradicional do país não estava sendo suficientemente dura em matéria de segurança; que o governo era um completo fracasso; e que os candidatos Republicanos se destacariam no esforço para fazer com que o cidadão de bem pudesse viver em segurança. Em relação à imigração, o discurso de Kast foi no mesmo tom ao afirmar a necessidade de fechar as fronteiras e expulsar qualquer imigrante ilegal. Ainda que as cores carregadas das promessas sejam típicas de uma campanha eleitoral, é fato que a leitura da realidade e as propostas dos Republicanos asseguraram uma quantidade de votos 15 pontos percentuais superior ao esperado pelo próprio partido.

A comprovação desta sintonia de sentido entre a ultradireita e as angústias populares foi confirmada pelo resultado da pesquisa de opinião realizada por Plaza Pública CADEM após as eleições do dia 7 de maio. De acordo com o relatório final, metade das pessoas que votaram no Partido Republicano declararam que a principal razão da sua escolha foi “a mão de ferro contra a delinquência, a criminalidade e a imigração e a defesa da ordem pública”. Outros 18,0% dos que depositaram a confiança neste grupo o fizeram para ter uma constituição em cujos princípios podem concordar e somente 16,0% escolheram a ultradireita como forma de castigar o governo Boric.[10]

Ou seja, os dados mostram que o chamado “voto de castigo” não passou de uma expressão minoritária do eleitorado. O comentário do Ministro da Fazenda do Chile, Mario Marcel, logo após o término da apuração, já havia apontado nesta direção ao dizer que “os resultados mostram que as pessoas esperam mais ação do que palavras”. Um recado que soa ainda mais urgente e preocupante diante de uma ultradireita que teve a maior porcentagem de votos até em redutos tradicionalmente de esquerda.[11]

2. Mas...será que Boric fez tudo errado?


Na análise sobre a rejeição da proposta da nova Constituição, divulgada em outubro do ano passado, mostrávamos tanto os pontos críticos do texto, como as incompreensões dos setores progressistas em relação ao que era realmente importante para as pessoas comuns.[12] Daquele momento em diante, os acontecimentos não levaram a uma aproximação entre as prioridades de governo e o que é fundamental para o povo. Ao contrário, a queda na taxa de aprovação de Gabriel Boric de 39%, em agosto de 2022, para menos de 30%, em abril deste ano, mostra que a coalizão de esquerda se afastou ainda mais do sentimento popular.

O discurso de prestação de contas, proferido pelo Presidente do Chile em 1 de junho,  tratou de resgatar a importância das realizações do primeiro ano de mandato.[13] Entre os “grandes êxitos” anunciados por Boric, constam o salário mínimo de 500 mil Pesos (cerca de 622 dólares) e a redução das atuais 45 para as 40 horas semanais a ser introduzida ao longo dos próximos 5 anos. Ninguém duvida da importância destas medidas, mas há dois problemas que reduzem o seu impacto nos índices de aprovação do governo.

O primeiro diz respeito ao fato de que a diminuição em uma hora semanal ao longo de 2023 ainda não conseguiu fazer sentir seus efeitos positivos entre as famílias dos assalariados, cujo endividamento tende a ampliar a extensão das jornadas de trabalho.[14] O segundo deita raízes no fato de que, tanto as 40 horas semanais como o aumento do salário mínimo, nada dizem aos 27,9% da população economicamente ativa que estão na informalidade e cuja renda está vinculada, fundamentalmente, ao crescimento da economia e a uma jornada cuja duração depende dos caprichos da sorte.

Do mesmo modo, a progressiva elevação do desemprego (que encerrou o primeiro trimestre de 2023 em 8,8%) impede de ver nestes avanços uma realidade capaz de reverter em curto prazo o corte de vagas em curso. Para estes contingentes que somam cerca de 40% da força de trabalho o fato de o país estar indo ladeira abaixo e de o governo não ter planos para fazer a economia crescer de forma sustentada são motivos mais que suficientes para derreter a confiança na esquerda.[15]

O equilíbrio das contas públicas foi outro “grande êxito” anunciado no discurso de prestação de contas. A disciplina fiscal contribuiu para que, em 2022, o país atraísse o maior volume de investimentos estrangeiros dos últimos 9 anos. Para Boric, esta é a prova de que a  esquerda não assustou o capital externo. Para nós, é, sobretudo, uma amostra de que as crescentes necessidades da população não encontraram respostas à altura do esperado.

Em defesa do seu governo, o Presidente do Chile tentou mostrar que o equilíbrio entre arrecadação e gastos não impediu de ir ao encontro do que o povo precisa. Exemplo disso seria o fato de que, contrariando as perspectivas pessimistas dos agentes de mercado, o governo já entregou 60.222 casas às famílias que não tinham onde morar, está construindo outras 131.077 e até o final do mandato pretende terminar um total de 260.000, reduzindo significativamente o deficit habitacional de 650.000 moradias registrado na época da posse, em março de 2022. A isso deve-se acrescentar a isenção de qualquer cobrança junto ao sistema de saúde pública para 658.000 pessoas, os passos dados para reduzir o tempo de espera de uma cirurgia (de uma média de 330 dias, em março de 2022 rumo aos 200 dias prometidos no final do mandato) e a ampliação de 12% da capacidade do sistema penitenciário.[16] Ninguém duvida de que isso seja algo concreto. O problema é que passa a anos luz de fazer sentir à população que o governo caminha para resolver as angústias que atormentam a sua rotina diária.

Entre os maiores problemas que justificam o não cumprimento das promessas de campanha, Boric culpou a não aprovação da reforma tributária pelo Parlamento, deixando claro que, sem ela, nenhum governo poderá avançar de forma responsável no atendimento das demandas presentes na base da pirâmide social. Do mesmo modo, reconheceu a necessidade de ajustar as prioridades do governo à realidade que atravessa o país e solicitou que todas as forças políticas se unam na defesa da democracia ao lembrar, em setembro deste ano, os 50 anos do golpe que levou à queda de Salvador Allende e à ditadura de Augusto Pinochet.

Boric usou a objetividade dos números que tinha para se dirigir a um país que o olha com desconfiança. A primeira resposta ao seu esforço veio em um recado curto e grosso que o próprio Antônio Kast enviou depois da fala de mais de três horas do mandatário. Sem rodeios e ironias, o líder do Partido Republicano escreveu em um twit: “Em todo o discurso, as palavras crescimento e pobreza são mencionadas apenas 4 vezes. Narcotráfico só duas vezes e nunca se menciona o terrorismo. Um presidente que vive desconectado das verdadeiras urgências do país”.[17] Para bom entendedor, estas palavras bastam.

 

3. O peso da religião e da história.


Pesquisas recentes mostram que, para 48,0% dos chilenos a religião que professam é um elemento muito importante da sua identidade e uma bússola com base na qual orientam as escolhas do dia a dia.[18] As pessoas se orgulham disso, procuram representantes cujas propostas se aproximem dos seus valores e das crenças com as quais interpretam questões como o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o feminismo e toda a agenda de gênero. As discussões sobre estes temas levaram a uma progressiva politização da identidade religiosa.

Enquanto a direita tradicional cedia algum espaço às demandas da esquerda, afastando de si o apoio deste grupo que reúne quase metade da população,[19] o Partido Republicano foi em direção ao “voto religioso” com propostas que defendiam os ideias de Pátria e família, rechaçavam o aborto e obstaculizavam qualquer avanço institucional das questões de gênero. Neste processo, a esquerda se mostrou totalmente incapaz de construir um diálogo com esta parcela significativa dos chilenos, o que deu a Kast todo o terreno de que precisava para traçar as linhas mestras de uma identidade de valores e sentidos com católicos e evangélicos.[20] Não por acaso, Luis Alejandro Silva Irarrázaval, de 45 anos, advogado constitucionalista e quadro da Opus Dei, candidato Republicano ao Conselho Constituinte pela região metropolitana de Santiago, recebeu mais de 700.000 votos, uma quantidade maior do que os postulantes do Partido Socialista obtiveram no país inteiro.[21]

Mas será que ninguém lembra que Antônio Kast, Luis Alejandro e outros membros do partido declararam publicamente sua admiração por Pinochet? Ou devemos pensar que um número expressivo de pessoas votou ingenuamente em representantes de um partido que aplaude este passado autoritário?

A pesquisa realizada pela cientista política Cláudia Heiss, pelo ex-senador do Partido Socialista Carlos Ominani e pelo escritor Patrício Fernández com uma amostra de mil chilenos de diferentes gerações levantou elementos que ajudam a responder a estas perguntas.[22] Os autores constataram que os acontecimentos de cada momento histórico produzem mudanças na forma como as pessoas olham para o passado. Ou seja, não há um um julgamento categórico e permanente nem da ditadura de Pinochet, nem do desempenho de qualquer outro mandatário. Há, sim, uma avaliação que muda a depender dos problemas que marcam o presente e das soluções tidas como necessárias para resolvê-los. Vamos aos números mais expressivos do relatório final.

Nas entrevistas realizadas este ano, 36,0% afirmaram que os militares tinham razão em dar um golpe de Estado, enquanto outros 41,0% disseram que eles nunca têm razão de fazer isso e 19,0% não expressaram nenhuma opinião a respeito. Em 2013, apenas 16,0% apoiava o golpe, ao passo que a recusa em reconhecer qualquer razão para este ato contava com 68,0% das manifestações dos entrevistados. Esta discrepância significativa em relação aos dados de dez anos atrás, parece ter um vínculo direto com a urgência de restabelecer uma ordem social deturpada e ameaçada pela criminalidade e a imigração ilegal, sem estar diretamente vinculada à figura de Pinochet.

Haja vista que, em 2013, o ditador era apontado como um dos melhores governantes que o Chile teve no século XX por 55,0% das pessoas consultadas, ante 20,0% do levantamento atual. Por outro lado, o lema “ordem e segurança”, típico da época da ditadura, estaria na base dos motivos pelos quais, em 2023, o regime militar foi avaliado como sendo em parte bom e em parte ruim por 47,0% das pessoas (40,0% entre os jovens até os 35 de idade e 51,0% entre os que viveram a época do golpe), sendo que outras 25,0% consideram que ele só fez o mal e 11,0% que só fez o bem.

Ao olhar para o passado com as lentes moldadas pelo presente, as graves violações dos direitos humanos caem em segundo plano, o número de pessoas que defendem o autoritarismo cresce e, com ele, o de quem aponta a necessidade de ações duras, mas sem instaurar um regime de exceção. Entre os sinais que apontam nesta direção temos a caracterização da figura de Pinochet. Se, em 2013, só 18,0% dos entrevistados diziam que o general passaria à história como um ditador, este ano, a porcentagem subiu para 64,0%.

A confusão pela qual o povo aponta a necessidade de intervenções autoritárias em plena democracia parlamentar, é amplamente aproveitada por Kast que, em seus discursos, não ataca o regime de governo, mas propõe medidas contundentes para colocar logo o país nos trilhos. O fato de ele ser tachado de “pinochetista” pelas demais representações parlamentares diz pouco e nada a um povo que está em apuros, olha com medo para o amanhã e é sensível a quem, partilhando dos seus mesmos valores, anseios e critérios de análise, promete resolver logo os seus problemas imediatos.

Nos próximos meses veremos até que ponto a ultradireita consegue o apoio desejado. À medida que seus representantes devem transformar ideias de palanque em artigos e parágrafos de uma Constituição que serão submetidos à aprovação popular no referendo a ser realizado em dezembro deste ano, será mais difícil esconder os interesses que mais serão beneficiados pela nova Carta Magna do país.

 

4. Nas sendas do amanhã.


Enquanto escrevemos estas breves reflexões, os 51 conselheiros eleitos no início de maio estão dando os primeiros passos na elaboração da nova Constituição do país. Em suas mãos, os especialistas das principais forças políticas colocaram o anteprojeto no qual vinham trabalhando desde o final do ano passado. O texto que servirá de base às discussões aponta alguns avanços em relação à legislação vigente e inúmeros recuos diante dos direitos que constavam da proposta rejeitada em setembro do ano passado.

Entre as questões mais polêmicas, está, sem dúvida, a definição do papel do Estado. Hoje, o Estado é subsidiário da iniciativa privada. Cabe a ele garantir o funcionamento da economia e o crescimento do PIB com medidas que aplanam caminhos aos interesses empresariais, mas não pode assumir a responsabilidade de oferecer serviços que atendam plenamente às necessidades de todos.

Na proposta que serve de base ao Conselho Constituinte, a reivindicação do Estado Social do centro-esquerda ganhou uma expressão bastante tímida: “O Chile se organiza em um Estado Social e de direito, que reconhece direitos e liberdades fundamentais e promove o desenvolvimento progressivo dos direitos sociais, submetido ao princípio da responsabilidade fiscal e através de instituições estatais e privadas”. Em outras palavras, oferecer serviços públicos é um processo que será sempre limitado pelo equilíbrio das contas e pela coparticipação de instituições privadas. Uma situação, portanto, bem diferente daquela que, na proposta rejeitada no ano passado, definia o Estado de bem-estar social chileno como capaz de oferecer bens e serviços públicos abrangentes, cujo papel era de zelar pela moradia, saúde, educação, previdência, trabalho e pela criação de um Sistema de Atenção Integral às pessoas que fosse universal e solidário.

No momento em que escrevemos, tudo indica que os representantes do Partido Republicano tendem a dar mais liberdade de ação ao mercado, obrigando o Estado a assumir um papel ainda mais subsidiário, o que, de fato, inviabilizaria a implantação de políticas públicas com um alcance maior em relação ao atual. Esta posição não é nova, à medida que Kast não cansa de dizer que é melhor reduzir os impostos e os gastos públicos para que a estabilidade econômica e o crescimento do PIB coloquem o bem-estar de todos num patamar superior ao que pode ser alcançado com a ampliação do atendimento da população por parte do Estado. Com mais investimentos, empregos e o consequente aumento na renda das famílias, as pessoas teriam condições de escolherem o que consideram melhor para si e os seus entes queridos.

Em relação a outros temas, a hipótese mais provável é que direita e extrema direita cedam alguns espaço a pequenas mudanças que, apesar de representarem um avanço em relação aos postulados da Constituição vigente, apenas introduzem na nova Carta Magna uma versão muito próxima do que já pertence ao âmbito da legislação nacional e das convenções internacionais das quais o Chile é signatário.[23]

 O semestre que antecede o novo plebiscito promete debates e enfrentamentos entre os conselheiros e a busca de formas pelas quais os postulados da nova Carta Magna serão veiculados e trabalhados junto à população a fim de levá-la a aprovar o texto. Ninguém quer ser surpreendido pela realidade ao assumir ideias e proposições que não conseguem plantar no povo as sementes que sua orientação ideológica deseja. O apoio dos chilenos ao trabalho dos constituintes depende desta capacidade em relação à qual, infelizmente, a ultradireita sai quilômetros à frente da coalizão de esquerda que governa o país.

 

Emilio Gennari. Brasil, junho de 2023.

 

 



[1] Em: https://elpais.com/chile/2023-05-08/como-logro-kast-la-mayoria-en-una-constitucion-que-nunca-quiso.html em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-65522480 e em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd14qzd8nkro Acessos realizados em 10/05/2023.

[2] Os agrupamentos “Todo por Chile” e “Partido de la Gente” obtiveram, respectivamente 9,09% e 5,33% da preferência dos eleitores, uma porcentagem insuficiente para ter direito a um único representante.

Em:  https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy90j087v35o e em: https://elpais.com/chile/2023-05-10/los-partidos-de-centroizquierda-de-chile-agonizan-bajo-la-polarizacion-entre-el-gobierno-y-los-republicanos.html

e em:  https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-65521714 Acessos realizados em 14/05/2023.

[3] Em: https://elpais.com/chile/2023-06-10/como-se-financiaron-las-campanas-del-consejo-constitucional-en-chile.html  Acesso realizado em 11/06/2023.

[4] Em: https://elpais.com/chile/2023-06-02/un-mensaje-de-realismo-politico.html Acesso realizado em 05/06/2023

[5] Em https://headtopics.com/br/america-s-quarterly-viol-ncia-urbana-cresce-no-chile-e-gabriel-boric-pende-para-a-direita-38419757  Acesso realizado em 31/05/2023.

[6] Em: https://correiodopovo-al.com.br/geral/violencia-urbana-cresce-no-chile-e-pressiona-governo-de-gabriel-boric

e em:  https://headtopics.com/br/america-s-quarterly-viol-ncia-urbana-cresce-no-chile-e-gabriel-boric-pende-para-a-direita-38419757 Acessos realizados em 11/05/2023.

Para termos uma ideia da evolução dos tipos de homicídio, dos desafios que impõem às investigações policiais e do impacto no cotidiano das pessoas, vale a pena ler a matéria divulgada em: https://elpais.com/chile/2023-06-10/cien-balas-en-la-escena-del-crimen-como-cambiaron-los-homicidios-de-chile.html Acesso realizado em 10/06/2023.

[7] Em: https://correiodopovo-al.com.br/geral/violencia-urbana-cresce-no-chile-e-pressiona-governo-de-gabriel-boric  Acesso em 31/05/2023.

[8] Em https://headtopics.com/br/america-s-quarterly-viol-ncia-urbana-cresce-no-chile-e-gabriel-boric-pende-para-a-direita-38419757  Acesso realizado em 31/05/2023.

[9] Maiores informações podem ser em: https://elpais.com/chile/2022-12-26/quienes-son-los-nuevos-vecinos-chile-destripa-el-mayor-flujo-migratorio-regular-de-su-historia.html Acesso realizado em 10/01/2023

[10] Em: https://elpais.com/chile/2023-05-18/kast-capitaliza-el-voto-republicano-las-esquirlas-de-la-eleccion-en-la-que-la-extrema-derecha-se-convirtio-en-el-primer-partido-de-chile.html  Acesso realizado em 01/06/2023

[11] A afirmação do Ministro de Fazenda foi divulgada em: https://www.radiohc.cu/pt/noticias/internacionales/322075-chilenos-esperam-mais-acao-do-que-palavras-afirma-ministro  Acesso realizado em 08/05/2023.

Os eleitores do município de Cabildo, 180 km a norte de Santiago, estão entre os que romperam o voto histórico da maioria nos candidatos de esquerda. Os detalhes desta guinada foram divulgados em: https://elpais.com/chile/2023-05-21/cabildo-el-feudo-izquierdista-donde-arraso-la-extrema-derecha-boric-no-ha-cumplido-lo-que-prometio.html 

O mapa eleitoral oferece uma ideia do apoio à ultradireita no país inteiro. Disponível em: https://elpais.com/chile/2023-05-08/mapa-el-resultado-de-las-elecciones-al-consejo-constitucional-municipio-a-municipio.html

Acessos realizados em 23/05/2023.

[12] Estamos nos referindo ao texto “Chile: por que a nova Constituição foi rejeitata”, divulgado no dia 03 de outubro de 2022 e disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1YoRRdUt1RVr31bNvhMPvIFt8pBwWYoJA?usp=sharing

[13] Os principais tópicos do discursos foram divulgados em: https://elpais.com/chile/2023-06-01/cuenta-publica-2023-en-vivo-el-discurso-de-gabriel-boric-a-la-nacion.html  e em: https://elpais.com/chile/2023-06-01/boric-intenta-en-la-cuenta-publica-un-relato-de-unidad-para-navegar-en-un-chile-pesimista-con-problemas-economicos-y-de-seguridad.html

Acesso realizado em 02/06/2023

[14] Maiores informações em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-65235477  Acesso em 01/05/2023.

[15] Vale lembrar que, graças ao forte crescimento dos preços das commodities, entre 2004 e 2013, o país cresceu 37%, alimentando as esperanças dos setores mais empobrecidos da população. Contudo, no período que vai de 2014 a 2022, entre os efeitos nefastos da pandemia e as dificuldades impostas pela economia mundial, o PIB chileno aumentou apenas 8,3% em relação a 2014, uma média anual baixa demais para uma população que cresce e enfrenta desafios bem maiores do que suas visões mais pessimistas podiam imaginar nove anos atrás. Dados publicados em: https://elpais.com/chile/2023-05-29/sergio-urzua-economista-en-chile-esta-truncado-el-sueno-de-progreso-tanto-en-la-clase-media-como-en-los-mas-vulnerables.html

Os números do mercado de trabalho foram extraídos de: https://pt.fxempire.com/macro/chile/unemployment-rate  e de: https://csa-csi.org/observatoriolaboral/wp-content/uploads/2022/02/Chile-POR-v1.pdf 

Acessos realizados em 07/06/2023.

[16] Em: https://elpais.com/chile/2023-06-01/cuenta-publica-2023-en-vivo-el-discurso-de-gabriel-boric-a-la-nacion.html  Acesso realizado em 02/06/2023.

[17] Idem.

[18] Em: https://elpais.com/chile/2023-05-28/cuanto-pesa-la-religion-a-la-hora-de-votar-en-chile.html  Acesso realizado em 30/05/2023.

[19] Em: https://elpais.com/internacional/2023-05-14/auge-de-la-extrema-derecha-y-declive-de-la-derecha-tradicional-chile-y-el-efecto-contagio-en-latinoamerica.html Acesso realizado em 17/05/2023.

[20] Em: Valor Econômico, edição impressa dos dias 13 a 15 de maio de 2023 e em: https://elpais.com/chile/2023-05-22/noam-titelman-academico-del-frente-amplio-el-progresismo-chileno-abandono-al-sujeto-popular-de-identidad-cristiana.html  Acesso realizado em 25/05/2023.

[21] Em: https://elpais.com/chile/2023-05-12/luis-silva-numerario-del-opus-dei-el-consejero-constitucional-de-la-extrema-derecha-que-arraso-en-las-elecciones-en-chile.html Acesso realizado em 15/05/2023.

[22] Os dados que seguem foram divulgados em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-65818270  e em: https://elpais.com/chile/2023-05-30/un-36-de-los-chilenos-cree-que-los-militares-tuvieron-razon-en-dar-el-golpe-de-estado-que-lidero-pinochet.html  Acessos realizados em 03/06/2023.

[23] Algumas das principais diferenças entre a Constituição vigente e o anteprojeto que está sendo analisado pelo Conselho Constituinte constam da matéria divulgada em https://elpais.com/chile/2023-05-24/los-grandes-acuerdos-marcan-el-ultimo-paso-del-borrador-de-la-constitucion-en-chile.html e em: https://elpais.com/chile/2023-06-01/las-diferencias-entre-el-borrador-para-una-nueva-constitucion-chilena-y-el-texto-que-nacio-en-1980-y-que-la-democracia-reformo-64-veces.html  Acesso realizado em 03/06/2023.

 


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