E os argentinos elegeram Milei...
Após receber o apoio de Patrícia Bullrich, candidata derrotada da direita
tradicional, Javier Gerardo Milei, de A Liberdade Avança, venceu o segundo
turno das eleições presidenciais argentinas com 11 pontos percentuais de
vantagem sobre Sérgio Massa, da coligação governista União pela Pátria.
Enquanto muitos se apressam em projetar as possibilidades de o novo Presidente
da República obter a maioria parlamentar para viabilizar as ideias anunciadas
na campanha,[1] consideramos fundamental centrar nossas
atenções no que levou os eleitores a confiarem nas suas propostas. Este
elemento, quase sempre menosprezado depois da contagem dos votos, permite
detectar tanto a leitura da realidade de quem votou na ultradireita como as
formas pelas quais um candidato com um programa contrário aos interesses
populares seduziu a maioria dos votante ao dar voz à sua revolta com gestos e
palavras que cativaram corações e mentes.
Ninguém
duvida que os reflexos do mau desempenho da economia na vida das pessoas jogou
um papel de primeira ordem na escolha dos argentinos. Basta pensar que, em
2015, Maurício Macri, da mesma coalizão de Patrícia Bullrich, assumiu a
Presidência com uma inflação de 25,0% e, quatro anos depois, deixou o cargo com
o aumento anual dos preços na casa dos 54,0%. Alberto Fernández, de Juntos pela
Pátria, herdou todos os desafios criados pelo empréstimo de 44 bilhões de
dólares contraído por Macri junto ao Fundo Monetário Internacional, enfrentou
os problemas da pandemia ampliando a dívida interna e o deficit público e
entregará a faixa presidencial com a inflação anual em 142,0%. Diante deste
quadro, o senso comum reage sem deixar espaços para as dúvidas: se com Macri
foi ruim, com Fernández foi bem pior; logo, não dá para apostar nas coligações
de sempre para mudar os rumos do país.
É
interessante sublinhar que esta conclusão não deitou raízes na compreensão das
possibilidades reais e das consequências imediatas das políticas a serem
introduzidas pelo líder de A Liberdade Avança. O apoio a Milei nasceu,
fundamentalmente, do encontrar em seus discursos eleitorais as expressões do
descontentamento que muitos repetiam em voz baixa, em ver refletida nele a
raiva que dava voz à mescla de revolta e frustração vivida silenciosamente nas
agruras do dia a dia e em se deparar com ideias que expressavam um genuíno
desejo de mudança.
Alguns
exemplos ajudam a vislumbrar os mecanismos deste processo. Por muito que os
economistas tenham afirmado repetidamente que a Argentina não dispõe de uma
quantidade suficiente de moeda estadunidense para a dolarização anunciada por
Milei, a ideia de ter uma referência estável para pensar a sobrevivência diária
e deter a crescente perda do poder de compra dos salários cativou as esperanças
populares. Qualquer argentino sabe que, apesar de serem regulados por leis
específicas que determinam os reajustes em moeda nacional, os contratos de
aluguel, por exemplo, são informalmente cotados em dólares e os proprietários
dos imóveis forçam os locatários a engolirem suas condições...se quiserem ter
onde morar. Em dólares também estão os preços dos imóveis, dos carros, das
diárias de hotel e muitos outros bens e serviços dos quais a população precisa.
Ou seja,
para as pessoas comuns, o Peso já é uma referência sem valor até para as
necessidades do dia a dia, razão pela qual saber como será a dolarização,
quando vai ser implantada, em que medida vai influenciar o crescimento do PIB e
se o país precisará recorrer a novos empréstimos para viabilizá-la se
apresentam como detalhes insignificantes para quem vê a própria vida desmoronar
sob o peso da inflação. Quem está na base da pirâmide não quer saber quanto
custará a carne dolarizada e sim quando conseguirá garantir que o seu preço não
suba pelo elevador enquanto a renda do trabalho se arrasta por infindáveis
lances de escadas. Basta pensar que, no primeiro semestre de 2023, a
inflação dos alimentos acumulou uma alta de 55,6%, 8,6% pontos percentuais acima
do reajuste médio dos vencimentos dos trabalhadores formais e 14,6 pontos
percentuais superior ao aumento da renda média de quem vive na informalidade,
levando muita gente a apertar os cintos.[2]
Na falta de
perspectivas para o futuro, votar em Milei não foi o que muitos chamaram de “um
salto no escuro”, e sim a saída que restava diante de uma crise que deixa os
argentinos na lona. A expressão de uma moça de 24 anos que vive na periferia de
Buenos Aires resume a postura que levou os jovens a considerar Milei como
alguém que, por ruim que seja, não piorará substancialmente a situação atual.
Respondendo à indagação da repórter do jornal El País sobre as razões que a
levavam a votar no candidato de A Liberdade Avança, ela afirma textualmente: “A
minha geração não sabe o que é estar bem. Voto nele porque já estamos feito
merda. Quanto mais merda ele pode nos fazer?”.[3]
Concretamente,
aqui está o resumo, em linguagem simples, cáustica e direta, da posição do
núcleo populacional que vai dos 16 aos 29 anos e que mais sofre com a
informalidade, com a precarização do trabalho e com a falta de perspectivas
reais para melhorar a sua renda. Falamos de um contingente que representa pouco
mais de 27,0% das pessoas com direito a voto e que, no máximo, tem vagas
lembranças da crise econômica de 2001 e dos melhores anos do mandato
presidencial de Nestor Kirchner. Mas, de uma coisa a juventude têm certeza: foi
sob os dois últimos governos que as condições de vida de muitas famílias
conheceram uma piora substancial. “Estamos fartos de empobrecer. Queremos uma
mudança radical”, diz outro jovem ao repórter do jornal El Mundo que lhe fez a
mesma pergunta.[4]
Sendo
assim, qual é a causa da crise que a população identificou como sendo a
principal responsável pela transformação da economia Argentina num campo minado
onde qualquer saída não ocorrerá sem explosões adicionais de sofrimentos e
privações?
Para 76,1%
das pessoas entrevistadas pela consultoria em pesquisa e comunicação
Trespuntozero e pelo Grupo de Opinión Publica, em agosto de 2023, os políticos
são os principais responsáveis pela crise da qual o país não consegue sair. São
eles que, para 77,6% dos que responderam aos questionários, transformaram o
Estado numa máquina ineficiente e deixaram a economia argentina em frangalhos,
sendo que, entre os jovens, esta porcentagem atinge os 84,1%.[5]
A ação
desta “casta”, à qual Milei sempre dirigiu as expressões mais duras dos seus
ataques verbais, fez com que o Estado deixasse de ser um salva-vida nos
momentos difíceis para se transformar num estorvo que impede de realizar os
sonhos de ascensão social na exata medida em que políticos corruptos,
oportunistas e ladrões se beneficiam de suas estruturas e dos gastos públicos
para enriquecer à custa de todos. Neste sentido, ao investir contra a “casta” o
líder de A Liberdade Avança apenas expressava a fúria que estava no coração de
muitos argentinos. Uma fúria tão grande que permitiu assimilar acriticamente a
necessidade de uma redução draconiana da presença do Estado nos serviços
públicos, dos subsídios e até dos programas de ajuda aos empobrecidos.
Ninguém
duvida da existência de situações de corrupção, superfaturamento e desvios de
dinheiro público e, portanto, da necessidade de combater as violações e
assaltos aos cofres do Estado com o rigor que a lei exige. Contudo, é
justamente a fúria que se concentrou em volta deste elemento da realidade que
possibilitou encobrir os elementos estruturais do sistema que aguardam o plano
econômico de Milei para aprofundar a acumulação de capitais na Argentina.
A imagem de
Milei segurando uma motosserra para simbolizar a determinação de promover um
corte radical dos gastos públicos que alimentam a “casta parasitária e
ladrona”, levava à loucura os participantes dos comícios que chegavam a pedir
insistentemente que o líder de A Liberdade Avança a empunhasse imediatamente
diante de todos numa espécie de vingança simbólica contra quem usou e abusou do
Estado em prejuízo da maioria. Ao materializar a revolta dos argentinos que
participavam dos atos da campanha eleitoral e dos que votariam silenciosa e
envergonhadamente nele, Milei conseguiu apagar qualquer reflexão em relação às
consequências que a própria população deveria amargar, caso os cortes
alardeados viessem a se concretizar. Desta forma, a sensação de ver a própria
raiva se transformar em motosserra nas mãos de um candidato decidido a realizar
uma mudança efetiva era diretamente proporcional à incapacidade de as pessoas
calcularem a conta que deveriam pagar sem que os ladrões e parasitas da casta
política devolvessem o que roubaram.
Dois
aspectos ajudam a visualizar este processo. O primeiro guarda uma relação
direta com o fato de que, em nenhum momento da campanha, o líder de A Liberdade
Avança afirmou que os membros da “casta” seriam investigados e punidos por seus
crimes. E isso não é por acaso. De fato, sempre que a corrupção vem à tona,
encontramos, de um lado, o envolvimento de assessores, políticos e
representantes do Estado e, de outro, os empresários que se beneficiaram dos
desvios de recursos, do superfaturamento e do parasitismo condenados pelos
discursos de Milei. Ou seja, ao colocar os primeiros atrás das grades, os
segundos não poderiam continuar impunes.
Do mesmo
modo, a casta foi também responsabilizada pelo aumento da pobreza e da
indigência até de quem trabalha com um contrato formal. Esta afirmação
possibilitou encobrir a ação de um empresariado que usou a defasagem entre a
elevação dos preços e os reajustes salariais para ampliar a lucratividade dos
seus negócios. De fato, como apontávamos na nossa análise anterior, entre 2017
e o primeiro trimestre de 2023, a participação dos salários na economia caiu de
55,6% para 48,4% do Produto Interno Bruto, enquanto a porcentagem dos lucros
empresariais passou de 35,0% para 38,4% do PIB.[6]
Denunciar
esta realidade e agir de forma consequente significaria atrair as represálias
do empresariado em cujas mãos a própria campanha de Milei ganhou apoios e
projeção desde bem antes das eleições presidenciais. Haja vista que, de 2016 em
diante, ele foi um assíduo frequentador dos programas de televisão e, em 2018,
seus comentários sobre temas econômicos foram solicitados em 235 entrevistas,
sendo que nos anos posteriores este número cresceu ainda mais.
A frequente
presença na mídia levou o líder de A Liberdade Avança a abandonar a frieza dos
termos técnicos e dos raciocínios econômicos (tão distantes da linguagem
popular) para evidenciar suas críticas às políticas governamentais rumo a uma
postura mais performática que espelhasse o sentir do povo com expressões que
mostravam a sua sintonia com a inconformidade da maioria. Passo a passo, a
agressividade, os exageros verbais, os momentos de fúria e de escárnio dos seus
comentários na mídia começaram a transformá-lo no depositário do
descontentamento popular na exata medida em que a raiva dos simples não
encontrava formas de traduzir a sua intensidade.[7]
Contudo, a
mesma raiva que permitiu entrar em sintonia com o sentimento popular é
justamente o elemento que impossibilitou uma reflexão crítica do povo em
relação às propostas de campanha. De fato, ao se sentirem
representadas e valentes nas palavras de ordem de Milei, as pessoas não
perceberam que a raiva conseguia turvar seus pensamentos e fazer com que coisas
difíceis e complexas parecessem simples e ao alcance da mão. Por exemplo,
ninguém duvida da possibilidade de uma canetada presidencial acabar com todos
os subsídios que elevam o deficit público e alimentam a inflação. O problema é
que, ao detonar tudo para começar supostamente do zero, não é possível evitar
que a maioria da população mergulhe numa situação ainda pior.
O caso do
transporte público ajuda a ilustrar quanto acabamos de afirmar. Graças aos
subsídios, a passagem dos trens metropolitanos pode ser adquirida por 33,2
Pesos. Eliminar o dinheiro aplicado pelo governo implicaria em aumentar o preço
de cada viagem para nada menos do que 1.100 Pesos, algo insustentável para a
classe trabalhadora argentina. Do mesmo modo, é importante lembrar que, no
final de 2022, 51,7% da população vivia em famílias que recebiam algum tipo de
assistência econômica do Estado que, por limitada que fosse, contribuía para
conter a elevação do número de pobres e miseráveis. Basta isso para perceber
que o fim dos subsídios e a liberação total dos preços dariam vida a um pico de
inflação que mergulharia o país numa dura recessão que, por sua vez, encolheria
a arrecadação, dificultaria a redução do deficit e aumentaria a pobreza,
piorando o que já está bem ruim.[8]
Contudo,
nenhuma reflexão ou projeção neste sentido foi capaz de questionar a convicção
de que as ideias de Milei iriam melhorar a vida de todos. No máximo, quando a
lógica dos números conseguia incomodar as certezas populares, o senso comum
respondia que o líder de A Liberdade Avança não deixaria isso acontecer ou que,
sabendo das consequências, não faria o que alardeava em todos os seus
discursos. A esperança em um futuro melhor tornava as pessoas impermeáveis a
qualquer reflexão que projetasse a possibilidade de um custo social superior
aos supostos benefícios das mudanças propostas.
A retórica
inflamada com a qual Milei soube se conectar com uma maioria disposta a mandar
tudo às favas, mas não a continuar vivendo nas condições atuais, conseguiu
introduzir um elemento essencial à nova fase da acumulação que Milei inaugurará
com o seu governo: a naturalização da perda de direitos em troca da
estabilidade econômica. Convencer as pessoas de que sem uma forte redução do
envolvimento do Estado na economia não será possível tirar o país da crise,
levou parte considerável do eleitorado a assimilar que é necessário renunciar a
alguma coisa nos 18 a 24 meses que Milei prevê como período necessário para que
suas propostas surtam o efeito desejado.[9]
Das
mudanças na saúde pública e na educação, passando pela redução dos subsídios e
a revogação do aborto há uma longa lista de direitos sociais que serão
colocados na berlinda. Mas o que chamou a atenção neste pleito foi também o
fato de a negação de um direito ter sido a peça-chave da campanha que elegeu
alguns parlamentares de A Liberdade Avança. É o caso, por exemplo, de Lilia
Lemoine que se consagrou deputada nacional pela província de Buenos Aires.
Partindo do
pressuposto que muitas mulheres furam os preservativos ou garantem estar
tomando a pílula anticoncepcional para “fisgarem seus parceiros” com uma
gravidez indesejada, Lilia afirmava que um dos seus primeiros projetos de lei
possibilitará ao homem abrir mão da paternidade para não pagar nenhum tipo de
pensão alimentícia desde que ele alegue ter sido enganado pela parceira que
engravidou. Desta forma, segundo a deputada recém-eleita, assim como a mulher
tem o privilégio de matar o próprio filho com um aborto legal, o homem
asseguraria legalmente a própria liberdade de assumir ou não a paternidade de
uma criança que não planejou ter.
De um lado,
a quantidade de votos que possibilitou a sua eleição traduz as dimensões de uma
compreensão da liberdade que seria cômica se não fosse trágica, mas que serve
como uma luva aos mais diferentes grupos que viram em Milei um aliados de
primeira hora. De outro, desperta uma clara sensação de desconcerto saber que a
proposta de Lilia teve tanta adesão em um país onde há cerca de um milhão e
seiscentas mil mães que tomam conta sozinhas de três milhões de crianças,
metade das quais não recebe um único centavo por parte dos pais biológicos.[10] Ou seja, trata-se de uma ideia que
legaliza um retrocesso brutal numa realidade onde a vida das mulheres passa bem
longe de ter mais flores do que espinhos graças à suposta “esperteza” com a
qual fisgaram seus parceiros.
Mas isso
não é tudo. Como bom ilusionista, Milei conseguiu convencer o respeitável
público em relação ao poder mágico de suas propostas a ponto de levar as redes
sociais a criarem um clima adverso a quantos prometem desmascarar os seus
truques e lutar para não perder direitos. Mas, o que acontecerá com aqueles
que, por algum motivo, ocuparão as ruas e praças das cidades argentinas para
protestar contra as medidas governamentais? A resposta dada por Milei em
algumas entrevistas é clara: serão duramente reprimidos.[11]
No momento
em que escrevemos, as lideranças dos movimentos estão movendo os primeiros
passos de uma articulação que deverá ser cada vez mais abrangente para
enfrentar o desmonte prometido pelo novo Presidente da República e para
transformar em mobilização efetiva o discurso da defesa dos direitos que hoje
soa vazio aos ouvidos de uma população que vê a própria vida
degringolar semana após semana. Trata-se de um desafio considerável diante de
corações e mentes que foram encantados pelos discursos de Milei e o veem como o
único capaz de construir um futuro melhor para todos.
Para
dissuadir os que ameaçam acordar as pessoas em tempo hábil para uma reação
capaz de evitar o pior, Milei já anunciou que o Ministério da Segurança e da
Defesa Nacional não só não sofrerá nenhum corte orçamentário, como receberá
ainda mais recursos para que as forças policiais estejam prontas para defender
a ordem. Se isso não bastasse, a vice-presidente, Victoria Villarruel, está
engajada numa batalha que, ao melhorar a imagem do exército, busca criar as
condições para entregar aos militares um papel mais efetivo na manutenção da
ordem. O primeiro passo deste processo questionou frontalmente o número oficial
de desaparecidos a fim de fortalecer a ideia pela qual a ditadura militar
apenas reagiu às agressões da luta armada, organizada pela esquerda revolucionária.
Para ela, esquecer disso seria sinônimo de usar os direitos humanos para
garantir a impunidade de quem queria derrubar violentamente as estruturas do
Estado.
Com base
neste pressuposto, entre agosto e novembro, não foram poucos os momentos em que
Villarruel defendeu publicamente que o número de vítimas da ditadura não
passaria de 8.753 pessoas, conforme consta de um relatório incompleto dos
primeiros anos da redemocratização. Este contingente contraria tanto o conteúdo
de informes posteriores do próprio Estado argentino (que estimavam serem mais
do que o dobro do inicialmente contabilizado), como os 30.000 mortos e
desaparecidos apontados pelas organizações de direitos humanos. Ao reduzir
fortemente o número das vítimas, a Vice-Presidente busca fixar a ideia de que a
ditadura do general Jorge Rafael Videla lançou mão de uma “violência
compreensível” diante da necessidade de aniquilar as ameaças revolucionárias,
como se, independentemente do motivo da prisão, não fosse obrigação do Estado
zelar pela vida de quem está sob a sua custódia.
Além disso,
a menos de dez dias do segundo turno, Villarruel criticou a manutenção do Museu
da Memória dos Crimes da Ditadura que funciona nas instalações da Escola de
Mecânica da Marinha (ESMA) em cujos porões, após o golpe militar de 1976, cerca
de 5.000 militantes teriam sido detidos, torturados e assassinados.
Contrariando a decisão da UNESCO que, em setembro deste ano, declarou o Museu
da Memória como parte do Patrimônio Cultural da Humanidade, a Vice-Presidente
defende que suas instalações sejam transformadas numa escola para as crianças
das famílias argentinas. Coberta pelo manto das boas intenções, esta proposta
não consegue disfarçar o fato de que se destina, fundamentalmente, a
apagar uma parte da memória histórica do país.[12]
No ano em
que a Argentina celebra quatro décadas de redemocratização, as pressões das
forças armadas para que Milei liberte os militares condenados durante o governo
de Nestor Kirchner ressuscitam um fantasma que parecia ter sido enterrado para
sempre e cuja ação silenciosa promete apoiar as duras medidas que o novo
governo viabilizará a partir da posse, no dia 10 de dezembro.[13] Infelizmente, estas movimentações não
acendem nenhum sinal de alerta na maioria da população argentina. Para quem não
chegou aos 50 anos de idade, a ditadura militar não passa de um conto que se
refere a um período distantes e as ações dos grupos que sempre denunciaram as
torturas e os desaparecimentos forçados acabam não encontrando neles uma caixa
de ressonância capaz de entender a importância dos alertas que já começaram a
disparar.
Nesta
altura dos acontecimentos, pouco importam os adjetivos com os quais muitos
desqualificam Milei. O fato é que ele ganhou as eleições e que o voto na sua
candidatura perpassou todas as classes sociais. A aliança da direita
tradicional com a ultradireita levou setores expressivos da próprio operariado
a confiar nas suas propostas e na sua capacidade de melhorar a vida em
sociedade. Mais uma vez, o projeto de país proposto por uma das formas mais
radicais do liberalismo econômico dialogou com o povo, entrou em sintonia com a
sua raiva, traduziu em palavras e gestos o que a esquerda se mostrou incapaz de
capitalizar e conseguiu unir a maioria do eleitorado em volta dos seus
princípios.
As
lideranças dos movimentos apostam que a classe trabalhadora acordará
rapidamente do torpor em que se encontra. Resta saber em que bases e em quanto
tempo isso irá de fato acontecer.[14]
Emilio
Gennari. Brasil, 3 de dezembro de 2023.
[1] Vale lembrar que, após a recomposição do
Parlamento nas eleições do dia 22 de outubro, o partido de Milei, A Liberdade
Avança, conta com apenas 38 assentos na Câmara dos Deputados (onde União pela
Pátria tem 108 deputados; Juntos pela Mudança 93; e as 18 vagas restantes são
ocupadas pelos representantes de outros partidos) e 8 senadores (ante 34 da
União pela Pátria, 24 de Juntos pela Mudança e 6 das demais agremiações).
Em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/10/23/partido-de-javier-milei-tem-a-terceira-maior-bancada-do-congresso-apos-eleicoes.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias Acesso
realizado em 30/11/2023.
[2] Dados publicados na edição impressa do
jornal Valor Econômico do dia 03/10/2023 e em: https://elpais.com/argentina/2023-09-28/auge-de-la-pobreza-en-argentina-ya-no-pienso-en-llegar-a-fin-de-mes-pienso-en-llegar-a-fin-de-semana.html acesso realizado em
07/10/2023.
[3] Em: El País, edição impressa do dia
25/10/2023.
[4] Em: El Mundo edição impressa do dia
27/09/2023.
[5] Em: https://marcelofalak.wordpress.com/2023/09/13/viaje-al-centro-de-la-mente-y-el-corazon-del-electorado-de-javier-milei/ Acesso
realizado em 22/11/2023.
[6] As porcentagens referentes à
participação dos salários e dos lucros no Produto Interno Bruto constam das
estatísticas oficiais e foram publicadas em: https://noticiashoy.app/blogs/politica/el-plan-de-argentina-para-aliviar-el-golpe-de-la-inflacion-genera-una-rebelion-de-empresarios-y-gobernadores Acesso
realizado em 05/09/2023.
[7] Em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2023/11/22/argentina-atilio-boron-analiza-el-triunfo-de-milei-fue-una-construccion-mediatica-prolijamente-planificada/ Acesso realizado em
28/11/2023.
[8] Dados publicados em: https://www.bbc.com/mundo/articles/cyd121pd8q7o Acesso
realizado em 27/10/2023.
[9] Em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/11/20/milei-diz-que-tardara-entre-18-e-24-meses-para-controlar-a-inflacao-da-argentina.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias e em: https://elpais.com/argentina/2023-11-21/los-votantes-de-milei-se-preparan-para-pagar-el-precio-de-sus-recetas-economicas-va-a-ser-sufrido-pero-saldremos-enteros.html Acessos
realizados em: 22/11/2023
[10] Em: https://elpais.com/argentina/2023-10-18/una-candidata-de-milei-impulsa-un-proyecto-para-renunciar-a-la-paternidad-si-te-pinchan-un-preservativo.html e
em: https://revistaforum.com.br/global/2023/10/24/carla-zambelli-de-milei-saiba-quem-lilia-lemoine-piv-do-fracasso-do-ultradireitista-na-argentina-146418.html Acessos
realizados em 30/10/2023.
[11] Em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2023/11/20/argentina-las-definiciones-del-ultraderechista-javier-milei-dolar-privatizaciones-y-represion/ Acesso
realizado em 22/11/2023.
[12] Estas e mais informações podem ser
encontradas em:
- https://www.bbc.com/mundo/articles/cg3pr3vq98vo
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxw1x1x4njxo
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/cekm45e3rypo
- https://elpais.com/argentina/2023-11-15/la-candidata-de-milei-a-la-vicepresidencia-propone-desarmar-el-museo-de-la-memoria-de-la-esma.html Acessos
realizados em 29/11/2023.
[13] Em: https://elpais.com/argentina/2023-11-16/el-negacionismo-de-la-dictadura-que-propone-milei-no-cala-en-los-cuarteles-argentinos.html e
em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2023/11/28/argentina-militares-le-piden-a-javier-milei-una-solucion-definitiva-para-los-represores-presos/
Acessos realizados em 29/11/2023.
[14] Para elaborar as nossas reflexões, além
dos materiais citados, consultamos as matérias publicadas em:
- https://elpais.com/argentina/2023-09-15/sobra-el-ejercito.html
- https://elpais.com/argentina/2023-09-29/el-feminismo-argentino-se-moviliza-contra-javier-milei.html
- https://elpais.com/argentina/2023-10-01/milei-impone-su-agenda-ultra-en-la-campana-argentina.html
- https://elpais.com/argentina/2023-10-03/carolina-piparo-candidata-de-la-ultraderecha-milei-cambio-la-agenda-politica-argentina-para-siempre.html e em: https://elpais.com/argentina/2023-10-16/campana-sucia-en-argentina.html
- https://elpais.com/argentina/2023-10-04/la-argentina-que-no.html
- https://elpais.com/argentina/2023-10-04/la-campana-electoral-argentina-sube-la-temperatura-entre-escandalos-y-acusaciones-falsas.html e
em: https://elpais.com/opinion/2023-10-11/la-piedra-de-la-locura.html
- https://elpais.com/opinion/2023-10-18/elecciones-en-la-argentina-caminar-entre-extranos.html
- https://elpais.com/argentina/2023-10-20/el-karma-argentino.html
- https://elpais.com/argentina/2023-10-21/javier-milei-el-candidato-del-caos.html
- https://www.bbc.com/mundo/articles/crg1eyzj0eeo
- https://elpais.com/opinion/2023-10-25/elecciones-en-la-argentina-las-estrategias-del-miedo.html
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2q32dp2rw5o
- https://elpais.com/argentina/2023-10-26/el-apoyo-electoral-de-bullrich-al-ultra-milei-dinamita-al-principal-frente-opositor-argentino.html e em: https://elpais.com/opinion/2023-11-18/argentina-un-pais-desconocido.html
- https://elpais.com/opinion/2023-10-29/el-microactivismo-electoral.html
- https://elpais.com/argentina/2023-11-01/la-acrobacia-discursiva-de-milei-del-macri-repugnante-y-fascista-de-ayer-a-coincidir-hoy-en-un-90.html e em: https://www.bbc.com/mundo/articles/cv20zq1ww9no
- https://elpais.com/argentina/2023-11-02/votar-en-contra.html
- https://elpais.com/opinion/2023-11-08/un-cambio-volver-a-las-cavernas.html
- https://elpais.com/argentina/2023-11-10/un-pais-cabreado.html
- https://elpais.com/argentina/2023-11-11/guillermo-francos-si-la-sociedad-le-esta-diciendo-a-milei-no-me-gusta-que-grites-todo-el-tiempo-el-lo-asume.html e
em: https://www.bbc.com/mundo/articles/cxe17kpk8p7o
- https://elpais.com/argentina/2023-11-12/sergio-massa-la-segunda-vuelta-es-milei-si-o-milei-no.html
- https://elpais.com/argentina/2023-11-14/puede-morir-la-democracia-argentina.html
- https://elpais.com/argentina/2023-11-21/no-gano-milei-perdio-la-casta.html
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