Olhando para a
realidade do seu tempo, Albert Einstein observava com tristeza que era mais
fácil desintegrar o átomo do que acabar com um preconceito. Infelizmente, as
coisas não mudaram. Mas, por que é tão difícil se livrar de algo tão irracional
e nefasto?
Quando observamos
a sua relação com a realidade econômica, percebemos que o preconceito é uma
peça essencial do sistema capitalista. Além de permitir que uma parte
significativa da classe trabalhadora seja submetida a um maior grau de
exploração, a sua presença dificulta a união das pessoas em volta de uma causa
comum.
O fato de
situações condenáveis serem sacramentadas por leis e decretos consolida a
marginalização das vítimas como algo “justo e correto” e transforma o medo das
consequências em cúmplice do desrespeito à dignidade humana. Para abrir uma
brecha nesta realidade, não basta que a indignação se traduza em palavras.
Denúncias, moções de repúdio e críticas devem se encarnar em ações que
questionam o conformismo e abrem o caminho da mudança.
Nas próximas
páginas, resgataremos os passos que a resistência à segregação traçou nas
comunidades negras dos Estados Unidos; seguiremos para a Grã Bretanha, onde a
união entre os trabalhadores das minas de carvão e um grupo de lésbicas e gays
fortaleceu as lutas de ambos; e finalizaremos as nossas reflexões a bordo de um
navio, cuja capitã violou as proibições que a impediam de levar a salvo um
grupo de africanos.
3.1 Rosa Parks: o
NÃO que mina a segregação estadunidense
Quando Rosa
Louise McCauley nasceu em 4 de fevereiro de 1913, em Tuskegee, uma pequena
cidade do Alabama, EUA, a escravidão havia terminado há quase meio século.
Contudo, assim como outros estados do sul do país, o Alabama mantinha políticas
de segregação racial normatizadas pela legislação. Escolas, parques, cuidados
médicos, salas de espera, restaurantes, cinemas, lojas, vagões ferroviários,
ônibus, etc., tinham espaços reservados aos brancos e outros às “pessoas de
cor”. Alguns municípios chegavam a proibir casamentos inter-raciais e a
possibilidade de um negro votar nas eleições dependia de convencer um branco a
efetuar o seu registro nas listas eleitorais.[1]
As diferenças de
tratamento saltavam aos olhos. Como a própria Rosa ilustra em um trecho da sua
autobiografia, no Sul dos EUA, as escolas para os negros eram pequenas,
lotadas, muitas vezes com venezianas de madeira no lugar das janelas de vidro
e, via de regra, as salas de aula não tinham mesas para as crianças apoiarem
livros e cadernos. Além disso, enquanto as instituições destinadas aos brancos
tinham tudo o que precisavam para oferecer um ensino de qualidade e nove meses
de aula, nas regiões rurais como aquela onde ela morava, o ano letivo dos
negros durava apenas cinco meses em função da necessidade de os filhos ajudarem
os pais nas tarefas do plantio e da colheita.[2]
A doutrina pela
qual “as pessoas de cor” eram “separadas, mas iguais” aos demais cidadãos veio
à luz em 1890, na Luisiana. Confirmada seis anos depois pela Suprema Corte dos
Estados Unidos, a legalização da segregação racial abriu as portas para que
outros Estados adotassem medidas semelhantes. Contando com o respaldo das
teorias que afirmavam haver diferentes raças humanas, a elite branca defendia
que a superioridade baseada na cor da pele era condizente com as leis da
natureza e que, portanto, a segregação deitava raízes na evolução da espécie
humana e não no preconceito.[3]
Para sustentar
esta ideia com a força da coerção, grupos supremacistas brancos, como a Ku klux
Klan, atacavam os negros que buscavam romper as barreiras criadas pelas lei
raciais e, a fim de semear o medo e a resignação, promoviam linchamentos por
motivos banais. O clima de violência demandava medidas defensivas que podem
parecer extremas a quem não sabe o que é viver sob constante ameaça pela cor da
pele.
Rosa lembra que,
aos seis anos de idade, já percebia que os negros não eram livres e que as
ações da Ku
Klux Klan queimando igrejas das comunidades negras, espancando e matando
pessoas faziam a violência alcançar um grau tão elevado que o seu avô andava
dentro de casa com uma escopeta de cano duplo ao alcance das mãos a fim de
atirar no primeiro supremacista que passasse pela porta. Nas noites em que o
clima de tensão era maior, ele também recomendava que todos deitassem vestidos
a fim de estarem prontos para fugir, caso um desses ataques tivesse como alvo a
própria família.
Longe de ser uma atitude isolada, buscar a melhor forma de proteger os
entes queridos era uma preocupação constante. Cientes do perigo, era comum que,
por exemplo, os adultos ensinassem às crianças a não reagirem às ofensas e às
agressões dos brancos a fim de evitar que uma simples desavença colocasse em
risco as suas vidas. Rosa lembra de dois fatos que permitem visualizar esta
realidade.
Ao contrário do que acontecia com os negros, cuja falta de recursos
obrigava a percorrer a pé a distância entre a casa e a escola, as crianças
brancas contavam com o transporte escolar. Frequentemente, enquanto caminhavam
à beira da estrada, Rosa e as colegas cruzavam com o veículo e, além dos
insultos, os coetâneos brancos procuravam atingi-las atirando lixo pelas
janelas. Sem ter como pôr fim às agressões sofridas, o grupo simplesmente saía
da estrada e caminhava pelos campos sempre que via o dito ônibus se aproximar.
O segundo fato resgata o seu encontro com Franklin, um garotinho branco,
e a reação da sua avó ao relato que ela fez deste momento, ocorrido aos dez
anos de idade:
“Ele era mais ou menos do meu tamanho, talvez um pouco maior. Ele me
disse alguma coisa e ameaçou me bater — cerrou o punho como se fosse me dar um
soco. Peguei um tijolo e o desafiei a me bater. Ele pensou melhor e foi embora.
Não pensei mais nisso e acho que ele também não. Mas aconteceu de eu
mencionar à minha avó uma manhã: «Eu vi Franklin. Ele ameaçou me bater e eu peguei um tijolo para bater
nele.» Ela me repreendeu
muito severamente sobre como eu devia aprender que os brancos eram brancos e
que simplesmente não se falava com os brancos nem se agia dessa maneira perto
dos brancos. «Você não deve revidar
se eles fazem algo com você».
Fiquei muito chateada com isso. Senti que tinha todo
o direito de tentar me defender, se pudesse. Minha avó comentou que eu era
muito nervosa e que, se não tomasse cuidado, provavelmente seria linchada antes
dos vinte anos.
Não tive mais desentendimentos com Franklin, mas não
porque estivesse com medo. Só não me lembro de ter prestado mais atenção nele,
embora ache que ele passou outras vezes. Mas para mim a atitude da minha avó
foi um pouco dolorosa porque senti que ela estava do lado dele e contra mim. Eu
senti que ela o estava favorecendo mais do que a mim naquela época.
Muito mais tarde, compreendi que minha avó estava me
repreendendo porque temia por mim. Ela sabia que era perigoso para mim agir
como se fosse igual a Franklin ou a qualquer outra pessoa branca. Naquela
época, no Sul, os negros podiam ser espancados ou mortos por terem essa
atitude. Não tive muitos outros desentendimentos com crianças brancas.
Principalmente porque as crianças brancas ficavam sozinhas e as crianças negras
ficavam sozinhas. Frequentávamos escolas e igrejas diferentes e só entrávamos
em contato de vez em quando”.[4]
Durante os anos de 1940, Rosa foi secretária da NAACP e participou ativamente das suas atividades. Uma de suas funções era a de manter o registro das situações de discriminação, tratamento injusto ou violento contra as pessoas negras. Entre os casos que marcaram a sua memória, está o da senhora Recy Taylor, de Abbeville. Ao voltar da igreja em 3 de setembro de 1944, um grupo de seis supremacistas brancos a jogaram num carro para sequestrá-la e estuprá-la. O relato dos acontecimentos relativos à ação judicial impetrada pela Associação ajuda a ter uma ideia do que significava buscar os próprios direitos num ambiente onde tudo era montado para que fossem sistematicamente negados:
“Um Grande Júri do condado de Henry recusou-se a indiciar os seis homens
brancos, embora o motorista do carro que a sequestrou tenha confessado e
identificado seus cúmplices. Muitas pessoas, negros e brancos, ficaram
revoltadas com isso. Algumas pessoas formaram o Comitê para a Justiça
Igualitária para a Sra. Taylor.
Caroline Bellin, a secretária executiva branca do comitê, tentou ajudar
a Sra. Taylor e veio para Montgomery para a NAACP. Isso foi durante o verão de
1945. Tentamos ajudar, mas não havia muito que pudéssemos fazer. A Sra. Bellin
tentou visitar a casa da Sra. Taylor em Abbeville, mas o xerife maltratou-a e
ordenou-lhe que ficasse fora da zona negra da cidade. A NAACP e o comitê
conseguiram que o governador Chauncey Sparks convocasse um Grande Júri especial
para investigar o caso, mas este também
se recusou a indiciar os homens.
É claro que o oposto seria verdadeiro se uma mulher branca denunciasse
um estupro e acusasse um homem negro. Quantas coisas os jovens negros sofreram
por causa das mulheres brancas! Lembro-me do pobre Jeremiah Reeves. Ele era
motorista de entregas, apenas um adolescente. Uma mulher branca costumava
convidá-lo para ir à casa dela (eles estavam tendo um caso), e as pessoas
começaram a perceber isso. Certo dia, um vizinho, ou alguém, espiou pela janela
e os viu se despindo. Assim que a mulher detectou que havia alguém olhando para
dentro, ela começou a gritar que estava sendo estuprada. A polícia veio e o
pegou”.[5]
Na década de 1950, um dos principais objetivos da
NAACP era pôr fim à segregação racial nos ônibus de Montgomery. Pouco menos da
metade da população era composta por afrodescendentes, a maioria dos quais
morava na periferia e utilizava o transporte público para ir ao trabalho, fazer
compras no centro e ter momentos de lazer. Embora os negros representassem mais
de 75% dos passageiros, só podiam sentar na parte traseira do veículo.
As regras impostas pela administração municipal
reservavam os assentos das primeiras quatro fileiras aos brancos. Os negros
podiam ficar no meio do ônibus até que a parte dianteira não tivesse mais
lugares vagos. Neste caso, assim que um branco subia no veículo, os negros
deviam ceder estes assentos sob pena de serem presos e indiciados por violação
da ordem pública.
A definição dos espaços também determinava que o
corredor na área reservada aos brancos não podia ser utilizado para os negros
ficarem em pé durante a viagem e nem para se dirigirem à parte traseira após o
embarque. Desta forma, eles deviam entrar pela porta ao lado do motorista,
pagar a passagem, descer do veículo e subir pela porta traseira, ainda que esta
já tivesse gente se apinhando nos degraus. Aparentemente sem sentido pelos
atrasos que causava à viagem de todos, o cumprimento das regras servia para reafirmar
que os negros deviam se acomodar em seu espaço de inferioridade sem nada
reivindicar.
Durante anos, a comunidade negra se queixou de que a situação era injusta, mas não havia nenhum movimento para pôr fim à segregação. A NAACP esperava poder transformar um caso individual num evento que mobilizasse para um protesto que fosse além dos trâmites jurídicos costumeiramente percorridos sem sucesso pela Associação.
Na primavera de 1955, Claudette Colvin, se recusou a
ceder o seu assento a um branco. A polícia entrou no ônibus, a arrastou para
fora e a colocou na cadeia. Após o fracasso de todas as solicitações
encaminhadas às autoridades municipais e à empresa de transporte pedindo um
tratamento não discriminatório, o advogado da NAACP, Edgar Nixon, ponderou a
possibilidade de levar o caso aos tribunais federais.
A ocasião certa se apresentou quando Rosa enfrentou
uma situação semelhante ao voltar do trabalho na noite do dia 1 de dezembro do
mesmo ano. Ao ver que permanecia sentada num dos assentos localizados na metade
do ônibus deixando em pé os brancos que acabavam de embarcar, o motorista pediu
que ela se levantasse. Diante da sua recusa, comunicou que mandaria prendê-la.
Rosa permaneceu sentada e respondeu que ele podia fazer isso.
O condutor parou o veículo e chamou a polícia.
Enquanto isso, a maioria dos negros que lotava a parte traseira desceu e, sem
proferir palavra, tratou de embarcar logo no ônibus seguinte. Rosa continuava
sentada no seu lugar tentando não pensar no que iria acontecer com ela. Sabia
que podia ser maltratada, espancada e presa, mas o peso da discriminação
fortalecia a convicção de que não era mais possível baixar a cabeça. Uma
convicção que Rosa resume numa única frase:
“Quanto
mais cedemos e obedecemos, pior eles nos tratam”.[6]
Conforme ela mesma relata, o seu gesto não guardava nenhuma
relação com o caso que a NAACP estava esperando e, menos ainda, com o cansaço
acumulado na longa jornada de trabalho na loja de departamentos onde ajustava a
roupa ao tamanho dos clientes que a haviam comprado:
“As pessoas
sempre dizem que eu não cedi o meu lugar porque estava cansada, mas isso não é
verdade. Eu não estava cansada fisicamente, ou não estava mais cansada do que
normalmente estava no final de um dia de trabalho. Eu não era velha, embora
algumas pessoas têm uma imagem de mim como velha naquela época. Eu tinha 42
anos.
Não, a
única coisa da qual estava cansada, era cansada de ceder”.[7]
Momentos depois, dois policiais brancos entraram no
ônibus, pegaram a sua bolsa e a sacola das compras e a levaram para a
delegacia. Rosa não foi agredida nem na hora de ser retirada do ônibus, nem
durante a trajeto até a delegacia. Apenas teve que suportar as falas dos
agentes que reprovavam o seu gesto. Eles simplesmente não conseguiam entender o
motivo de não ceder o assento, conforme mandava a lei, e questionavam
insistentemente o seu comportamento. Como membros ativos de um sistema
segregacionista, era impossível para os policiais aceitar que alguém estivesse
caçando sarna para se coçar por causa de tão pouco.
A notícia da prisão de Rosa se espalhou como um
rastilho de pólvora. O advogado da NAACP se mobilizou imediatamente e, diante
da recusa do delegado em comunicar a razão da detenção, contou com o apoio de
um colega branco que simpatizava com a Associação. Descoberto o motivo da
prisão e a fiança a ser paga, se desdobrou para agilizar os trâmites legais. No
dia seguinte, Rosa era colocada em liberdade. Na NAACP, todos estavam
indignados com o que havia ocorrido com ela. Obtida a sua concordância, a
Associação lançou a ideia de boicotar os ônibus da cidade na segunda-feira, 5
de dezembro, dia em que Rosa seria julgada.
Na sexta-feira anterior, já estavam prontas 35.000
cópias de um panfleto que convocava os negros a não utilizar o transporte
público no início da semana seguinte. À noite do mesmo dia, haveria uma reunião
para falar sobre o assunto na igreja de Holt Street. Por estar na comunidade
negra, o local ajudaria as pessoas a não terem medo de comparecer. Os jornais
de grande circulação haviam sido avisados e os Pastores mais conhecidos, entre
os quais estava Martin Luther King, convidados a mobilizar o apoio de suas
comunidades.
Os primeiros 15 dias de luta foram essenciais para organizar o transporte alternativo. Quem tinha carro, usava-o para ir ao trabalho e dar carona aos vizinhos. Outros faziam o trajeto com suas bicicletas, em carroças ou caminhando. Os taxistas negros reduziram a tarifa mínima de 45 para 10 centavos de dólar, o mesmo preço da passagem de ônibus, e embarcavam passageiros até completar a lotação máxima dos veículos. Durante os horários de pico, homens e mulheres negras enchiam as calçadas enquanto os ônibus circulavam vazios. Desde o início do boicote, a NAACP se deparou também com um fato totalmente inesperado: muitos empregadores brancos usaram seus próprios carros para ir buscar os funcionários negros nos bairros onde moravam a fim de não perder nem os lucros oriundos do seu trabalho, nem os serviços domésticos aos quais estavam acostumados.
No dia 8 de dezembro, a prefeitura começou a multar
os motoristas de táxi que cobravam menos dos 45 centavos de dólar da tarifa
oficial e, dias depois, a polícia metropolitana realizou algumas prisões pelo
mesmo motivo. Alguns agentes se uniram os supremacistas brancos que agrediam os
negros nos lugares onde aguardavam as caronas ou que se deslocavam com os seus
veículos.
Sabendo que ficariam impunes, em janeiro de 1956, estes mesmos grupos atearam fogo nas casas de Ralph Abernathy, Martin Luther King e na de Edgar Nixon, bem como em quatro igrejas batistas da cidade.[8] A casa de Rosa não foi alvo dos atentados. Perdido o trabalho na loja de departamentos, a pressão sobre ela e os familiares vinha das constantes ameaças de morte que a apontavam como a causa de tudo o que estava acontecendo.
A demissão dos que aderiam ao boicote e as agressões
que infernizavam o cotidiano dos negros não conseguiam quebrar a determinação
de manter vivo o movimento e alimentavam a solidariedade que fortalecia a sua
continuidade. Em todo o país, as igrejas dos negros levantavam dinheiro para
comprar peruas e custear os veículos do transporte alternativo. Muitas juntaram
roupas e, sobretudo, sapatos novos e seminovos a serem doados às pessoas que,
por estarem desempregadas ou percorrerem a pé longas distâncias até o trabalho,
precisavam de calçados para se manterem fiéis ao movimento. Aos poucos, o NÃO
dos negros em Montgomery se espalhava a outras cidades do sul dos Estados
Unidos.
Quanto mais o boicote avançava, mais aprimorada era a
organização para mantê-lo. Segundo o depoimento da própria Rosa, em alguns
meses, o sistema alternativo de transporte contava com 20 carros particulares,
14 peruas e 32 picapes, com locais de embarque e transferência definidos e um
serviço que agendava as corridas entre as cinco e meia da manhã e a meia noite
e meia.
Fracassadas todas as tentativas de negociar com a
prefeitura, no início de fevereiro, a NAACP impetrou uma ação no Tribunal
Distrital dos EUA alegando a inconstitucionalidade da segregação racial nos
ônibus de Montgomery.
|
Enquanto isso, o movimento estava saindo caro tanto para a empresa de ônibus que via seus veículos circularem quase vazios, como para as lojas do centro da cidade, a maioria das quais era de propriedade dos brancos. Para estancar as perdas sofridas, no dia 21 de fevereiro, um grupo de advogados brancos invocou uma norma de 1921 que proibia os boicotes e entrou com uma ação que levou à detenção de 156 pessoas por “frustrarem” o serviço de ônibus, entre elas a própria Rosa. Ao retratar a postura dos presos na delegacia, as matérias que saíram nos jornais do dia seguinte deram ainda mais visibilidade ao movimento e começaram a transformar Martin Luther King numa figura nacionalmente conhecida. Com isso, longe de diminuir, o apoio ao movimento cresceu, o que ajudou a arrecadar a soma necessária para pagar as fianças de todos.
Os julgamentos começaram em março. Os advogados dos
réus não tiveram dificuldades em encontrar as testemunhas de que precisavam.
Apesar da clareza dos depoimentos, Martin Luther King foi condenado a escolher
entre pagar uma multa de 500 dólares (algo próximo a 5.750 dólares atuais) ou a
passar 386 dias na prisão. Os advogados entraram com um recurso e a sentença
foi anulada.
A partir deste momento, Rosa foi convidada por várias
comunidades negras do Alabama e de outros estados para dar o seu depoimento e
informar sobre o andamento da luta. As ações realizadas em Montgomery começavam
a agitar as águas em outras cidades. Campanhas contra a segregação davam os
primeiros passos também em Atlanta, Nova Orleans, Miami e Mobile com o
envolvimento direto das igrejas.
No início do segundo semestre, os brancos tentaram
novamente quebrar o boicote levando as seguradoras do Alabama a não renovarem
as apólices dos veículos do transporte alternativo. Sem a cobertura exigida
pela lei, os carros poderiam ser apreendidos pelos policiais metropolitanos.
Apos várias idas e vindas, um corretor de seguros negro de Atlanta, capital da
Geórgia, se prontificou a regularizar a situação, permitindo assim que o
boicote seguisse o seu curso.
O ódio dos segregacionistas aumentava e a cidade
registrava seguidos ataques a negros que estavam simplesmente caminhando pelas
ruas. Fracassadas as tentativas de cortar as cabeças do movimento, a Ku Klux
Klan optava por espalhar o terror como forma de esvaziá-lo, mas a determinação
da comunidade negra sustentou a sua continuidade.
No dia 13 de novembro, duas novas medidas buscaram
desferir mais um golpe baixo. A primeira vinha do Conselho Municipal de
Montgomery que havia recebido da justiça a permissão de impedir a circulação
das frotas de táxi alegando que os carros estavam trafegando com contratos não
licenciados pela prefeitura. A forte redução da disponibilidade destes veículos
levou os negros a fazer com que as peruas compradas com as doações passassem a
funcionar com a capacidade redobrada. Em curto espaço de tempo, os problemas
gerados pela não circulação dos táxis foram minorados.
A segunda ocorreu a partir de uma iniciativa do
Prefeito que procurou os tribunais para obter uma ordem que impedisse os negros
de se reunirem nos pontos de embarque alegando que incomodavam os demais ao
falarem e cantarem em voz alta. Mas a permissão da justiça local de dissolver
estes grupos veio no mesmo dia em que a Suprema Corte dos Estados Unidos
condenou como inconstitucional a segregação nos ônibus de Montgomery.
A comunidade negra comemorou muito a notícia, mas
decidiu manter o boicote até que a ordem escrita chegasse ao sistema judiciário
do Alabama. No dia 20 de dezembro, os negros voltaram a utilizar o transporte
público em igualdade de tratamento com os brancos. Após 381 dias de luta,
chegava ao fim a primeira ação destinada a abalar o sistema segregacionista
estadunidense.
O fim do boicote em Montgomery coincidiu com o
pipocar de novas ações contra a segregação em outras cidades do país no que
seria o prelúdio das grandes batalhas pelos direitos civis dos negros nas
décadas de 1960 e 1970. Até o dia da sua morte, em 24 de outubro de 2005, aos
92 anos de idade, Rosa participou ativamente de inúmeros momentos de luta. Ao
lembrar da sua recusa em ceder o lugar a um branco, o Pastor Jessie Jackson
resumiu em breves palavras o sentido do seu gesto:
“Ela ficou
sentada para que todos nós pudéssemos levantar. Paradoxalmente, a sua prisão
abriu as portas da nossa longa viagem para a liberdade”.[9]
A legalização da segregação havia chegado ao fim, mas
o preconceito racial na sociedade estadunidense nunca deixou de existir. Como
elemento estrutural do sistema, o racismo se vale da qualidade do emprego e da
renda para que brancos, negros e latinos tenham tratamentos diferenciados. As
condições de vida, o acesso à educação e ao lazer, as oportunidades de evoluir
e a possibilidade real de cuidar da própria saúde seguem levantando barreiras
que segregam, dividem, empobrecem e matam.
Sendo assim, do que valeu a luta de quem, como Rosa, não poupou esforços para combater a segregação?
O NÃO que pronunciaram com suas ações mostrou que nenhum oprimido deve se dobrar à humilhação imposta pelos opressores. Ainda que, de imediato, não reúna as condições de uma resposta à altura das agressões sofridas, este NÃO que expressa a sua indignação deve gerar ações que encontram os NÃO dos seus pares. A corrente que une vontades dispersas numa causa comum dá origem a formas de luta que, passo a passo, abrem uma brecha na ordem que condenava a aceitar a segregação como algo justo e natural.
Dos Estados Unidos, seguimos agora para a Grã
Bretanha onde mineiros, gays e lésbicas abriram caminhos para superar seus
preconceitos e enfrentaram juntos as agressões de um governo que não poupou
esforços para destruí-los.
3.2 Gays, lésbicas e mineiros: juntos para romper
barreiras.
No Reino Unido, o ano de 1984 iniciava sob a égide da reeleição de
Margaret Thatcher para mais um mandato dos conservadores à frente do governo do
país. O resultado do pleito havia mostrado que a postura agressivamente
antissindical da Primeira-Ministra e as pautas por ela defendidas contavam com
a aprovação de uma porcentagem significativa da população. A construção de um
Estado preocupado em criar um ambiente favorável aos negócios em prejuízo das
causas sociais ganhava uma nova e poderosa chance de isolar e silenciar os
movimentos que questionavam os seus rumos.
No dia 6 de março de 1984, O Conselho Nacional do Carvão anunciou o
fechamento de 20 poços. Oficialmente, esta decisão havia sido motivada pelos
elevados custo de extração nas minas mais antigas, pelo declínio do mercado
global do carvão e pela necessidade de equilibrar a produção e a venda de
eletricidade diante da maior participação de outras fontes na matriz energética
do país.
A desconfiança em relação à verdadeira intenção do governo deitava
raízes em dois fatores. O primeiro deles é que os custos de extração dos poços
mais profundos poderiam ser reduzidos com investimentos que tornariam o preço
do carvão local competitivo em relação ao que era produzido em países onde os
salários de fome e os subsídios governamentais permitiam conquistar novas
fatias do mercado mundial. O segundo tinha como base o cálculo pelo qual os
custos das demissões e do salário desemprego eram superiores ao montante
relativo aos investimentos necessários para que os poços a serem fechados
continuassem em atividade.
Com base nestas constatações, não era difícil concluir que a eliminação
de 20.000 postos de trabalho visava enfraquecer o Sindicato Nacional dos
Mineiros (NUM, pela sigla em inglês), historicamente o mais forte da Grã
Bretanha. Ao privar muitos vilarejos da atividade econômica que estava na base
da sua existência, a piora das condições de vida dos moradores ajudaria a
esvaziar a disposição de luta dos mineiros e das demais categorias.
No dia 12 de março, o NUM convocou uma greve nacional. A adesão foi
imediata e no auge da paralisação, cerca de 142.000 trabalhadores participaram
do movimento. Manter viva uma greve que se anunciava longa e desgastante
demandava recursos financeiros consideráveis e uma capacidade de organização
invejável tanto para garantir piquetes diários, como para distribuir cestas de
alimentos às famílias que, sem contar com o salário, seriam forçadas a repensar
a adesão ao movimento.
A situação tornou-se dramática, quando, algumas semanas depois do início
da paralisação os tribunais impediram o acesso do sindicato às contas bancárias
onde estavam depositados os recursos da entidade. Além de não ter dinheiro para
apoiar as famílias dos grevistas, a direção do movimento dispunha de bem poucos
recursos para organizar a resistência diante de uma polícia que não media
esforços para dissolver piquetes e manifestações de protesto.[10]
No mesmo período, os ataques contra os homossexuais vinham de todos os lados. Recheados de histórias que estimulavam o ódio aos gays, os tabloides de direita ajudavam a construir o consenso social tanto em volta das ações do governo (que desqualificava os seus protestos e negava sistematicamente os direitos que estavam sendo reivindicados), como das intervenções policiais nos bares, danceterias e clubes por eles frequentados, onde um simples beijo entre dois homens ou duas mulheres era frequentemente punido com a prisão por “ofensa à decência pública”.
Quanto mais o vírus da AIDS ganhava o estigma de
“doença gay” (que, na época, se supunha possível de ser contraída em qualquer
contato casual), mais aumentavam os comportamentos homofóbicos e maior era o
número de homossexuais que perdiam seus empregos e eram despejados de suas
casas. Na paranoia alimentada pelos dados da epidemia, a brutalidade policial
contra os homossexuais era a mesma que, ao considerar os piquetes dos mineiros
como “atos de terrorismo”, investia sobre eles sem exclusão de golpes.
O diálogo com o seu companheiro Mike Jackson ajudou a
amadurecer a ideia que seria discutida no espaço Gays The World, onde o grupo
de gays e lésbicas ao qual pertenciam havia montado uma pequena biblioteca e
mantinha reuniões regulares. Em julho de 1984, nascia o Lesbian and Gays Men
Support the Miners (Lésbicas e Gays Apoiam os Mineiros) que passaria a ser
conhecido pela sigla LGSM.
Os onze membros de Gays The World eram ligados a
grupos comunistas ou simpatizavam com suas ideias. Por isso, não precisavam de
maiores explicações para construírem juntos esta ponte com os mineiros em luta.
Numa entrevista sobre o tema, Ray Goodspeed, afirma:
“Meu apoio aos mineiros, na verdade, tinha muito
pouco a ver com eu ser gay, mas com minha origem social. Tive a infelicidade de
crescer como uma criança da classe trabalhadora em um bairro de classe média.
Todos os meus amigos eram mais ricos do que eu e eu sempre sofri aquele
esnobismo. Era humilhante. Neste sentido, meu pai foi uma figura formativa.
Como sindicalista apaixonado, ele frequentemente participava de greves e foi
colocado na lista negra cedo. Então, o ativismo não era estranho para mim.
(...) Aos 16 anos, eu já tinha me filiado a um grupo trotskista”.[12]
O problema, então, era convencer gays e lésbicas que
não tinham a mesma visão de mundo a se solidarizarem com a greve de uma
categoria cujos preconceitos conheciam. Além de explicar a necessidade desta
aliança para frear as investidas do governo contra os movimentos, o grupo
precisava vencer as resistências que dificultavam a união entre a luta dos
homossexuais e a dos mineiros. Motivos para os gays ficarem com um pé atrás não
faltavam.
Um deles guardava uma relação direta com o que havia
ocorrido nas greves dos mineiros dos anos de 1970. Algumas das principais
lideranças da Frente de Libertação Gay organizaram uma marcha de apoio aos
mineiros e foram publicamente ridicularizadas por um grupo de grevistas. Diante
desta realidade, os membros de Gays The World avaliavam que enfrentar a
homofobia com uma ação solidária era justamente uma das razões centrais para
não recuar diante do preconceito, para vencê-lo como gays orgulhosos que se uniam
em um coletivo para apoiar uma luta cuja vitória acreditavam ser essencial para
todos.
Na segunda metade de julho, o grupo aprovou quatro diretrizes fundamentais. A primeira delas, descrevia o LGSM como um grupo de solidariedade que não devia fidelidade a nenhum partido político, sendo que os únicos requisitos para integrarem suas fileiras eram que as pessoas fossem lésbicas ou gays e apoiassem o NUM. A segunda diretriz afirmava que o apoio aos mineiros era incondicional, logo se as comunidades carboníferas dos vales de Neath, Swansea e Dulaise, no País de Gales, escolhidas para receberem os recursos, rejeitassem a sua solidariedade, o LGSM continuaria apoiando financeiramente a greve. A terceira determinava que só as pessoas diretamente envolvidas na arrecadação do dinheiro podiam criticar as ações do grupo bem como votar nas propostas e moções que este viesse a elaborar. Finalmente, a última mandava que, por razões de segurança, a coleta devia ser sempre realizada por mais de uma pessoa.[13]
No seu auge, o LGSM chegou a contar com 64 membros com diferentes níveis de envolvimento. Desde o início, ficou claro que a aceitação das pessoas superava as expectativas de todos. Se alguns transeuntes não poupavam xingamentos e expressões homofóbicas, a maioria contribuía de bom grado por ter nascido em famílias de mineiros ou ter algum ente querido que trabalhou ou que ainda trabalhava na extração do carvão.
Responder às críticas também não era um problema
para quem, há tempo, estava a direto contato com a população. Alguns alegavam,
por exemplo, que o grupo deveria se dedicar exclusivamente às causas dos
homossexuais e não dividir as energias de que dispunha apoiando outras pautas.
Na maioria das vezes, bastava que um integrante do LGSM perguntasse o que cada
um desses indivíduos já havia feito pela comunidade para que o seu silêncio
delatasse a ausência de qualquer gesto neste sentido e a coleta criasse um bom
motivo para refletir.
Também não faltavam gays e lésbicas que questionavam
o apoio à greve pelo fato de que os mineiros nunca haviam se solidarizado com
as suas causas. As respostas variavam da possibilidade de que isso poderia
acontecer no futuro (ainda, que naquele momento, ninguém nutria esperanças a
esse respeito) ao encadeamento do trabalho dos mineiros com algum aspecto da
vida cotidiana. Ao responder a esta questão enquanto estava numa discoteca, o
próprio Mark diz:
“O que você quer dizer com «os
mineiros não nos apoiam»? Os mineiros cavam
carvão que é usado como combustível, que faz a eletricidade que aciona as luzes
desta discoteca. Você desceria numa mina para trabalhar? Eu os apoio porque
eles vão lá e fazem isso. Eu não faria!”[14]
A generosidade das contribuições variava a depender
da orientação política das pessoas e das atitudes dos proprietários dos
estabelecimentos. Não foram poucos os casos em que os ativistas do LGSM foram
expulsos da rua em frente à porta de bares e clubes. Alguns gerentes alegavam
que estavam intimidando seus clientes, outros que não gostavam de “bichas
políticos” e, em alguns casos, os próprios clientes ligavam para a polícia para
que removesse quem estava atrapalhando o seu lazer.[15] Ou seja, ter uma aceitação acima do esperado,
passava longe de significar que angariar recursos financeiros para sustentar a
greve fosse algo fácil e sem riscos.
Com o resultado da coleta se aproximando das 500
libras esterlinas, o grupo enviou uma carta pedindo que os representantes das
comunidades carboníferas escolhidas aceitassem o dinheiro que haviam
conseguido. A reunião do sindicato onde o escrito foi lido mergulhou a direção
numa discussão muito acalorada. Alguns mineiros eram abertamente hostis e
sugeriam que aceitar o dinheiro e manter algum vínculo com o LGSM transformaria
aquela sessão sindical em motivo de chacota. Outros argumentavam que nunca haviam
conhecido gays e lésbicas e que esta seria uma oportunidade para saber mais
sobre eles. Outros ainda diziam que sempre haviam virado as costas para gays e
lésbicas por acreditar que não tinham nada a ver com eles e nem eles com a luta
dos mineiros, mas que agora, sem salários e ao terem seus piquetes atacados
pela polícia, pela mídia e pelo governo, precisavam de todo apoio possível.
Na mesma reunião, não faltaram também expressões de
desconfiança alimentadas pela demonização que os noticiários promoviam em
relação aos gays, risadinhas maliciosas e piadas que revelavam os traços
homofóbicos da cultura da época. Contudo, dois elementos foram determinantes na
decisão de enviar alguém a Londres para tecer as primeiras relações com o
grupo: a urgência de assegurar os recursos necessários para apoiar os 3500
mineiros da região que estavam em greve e o fato de que, à medida que os
próprios mineiros eram demonizados pela mídia, ninguém entre eles sentia que
podia confiar no que os meios de comunicação diziam sobre os gays e as
lésbicas. Para evitar situações constrangedoras, os mais preconceituosos do
grupo foram orientados a ficar longe.
No dia 6 de setembro de 1984, David Donovan foi a
Londres para estabelecer os primeiros contatos da que seria uma longa e intensa
parceria. Uma mescla de emoção e tensão precedia o encontro. Mike, do LGSM,
assim descreve o que aconteceu:
“Merda como estávamos nervosos...não sabíamos o que
esperar. É uma consequência da opressão que você tende a ser cauteloso, cínico
e a ter baixas expectativas de pessoas que, antes, não tiveram muito a ver com
você, no nosso caso, com lésbicas e gays. Nosso apoio aos mineiros era
incondicional - estávamos preparados para que os mineiros fossem tão
heterossexualistas quanto qualquer outra pessoa podia ser. Podíamos aceitar o
preconceito porque eramos fortes e orgulhosos. O preconceito se alimenta do
medo e da ignorância, mas aqui estava uma oportunidade de fazer algo a
respeito. (...)
Mas as palavras de David superaram todas as nossas expectativas. Ele nos inspirou com sua honestidade sobre a hostilidade que havia contra nós dentro da sua comunidade, mas que também havia apoio para quebrar esse preconceito. Ele nos inspirou com sua clareza e seu comprometimento. Seguimos juntos com maior determinação e mal podíamos esperar para nos reportar aos nossos companheiros na próxima reunião da LGSM.
|
Percebemos nesta fase inicial que aqui estávamos
fazendo história e isso colocou sobre nós um sentimento de responsabilidade e
compromisso. Lésbicas e gays, individualmente, haviam sido corajosamente
pioneiros no esforço para ter reconhecimento e apoio dentro do movimento
trabalhista por anos a fio e com êxito limitado. O grito de que a libertação
lésbica e gay fazia parte da luta pelo socialismo não havia sido compreendido.
Parecia que só agora, durante um confronto amargo com o Estado, quando a polícia
e os tribunais estavam expondo as suas lealdades políticas, quando os barões da
imprensa conservadora fizeram de tudo para desacreditar e deturpar a luta dos
mineiros, só agora tivemos a oportunidade de um entendimento presencial.
Tivemos que contornar a mídia e falar diretamente um
com os outros. Não havia tempo para timidez, reserva ou ingenuidade. Estávamos
comprometidos com a solidariedade e isso só pode ser alcançado entendendo a
vida e o estilo de vida uns dos outros, aprendendo em quem confiar e em quem
não confiar. Ao longo dos meses, grevistas individuais ou suas esposas de
Dulais foram enviados para todo o país para estabelecer contatos com outras
organizações. Falavam de nós por onde passavam, enfrentando preconceitos e mudando
atitudes alheias. Conheci mineiros de outras partes do país que conheceram
pessoas de Dulais e eles me diziam que tinham ouvido falar do LGSM”.[16]
Como todas as pessoas e entidades que apoiavam
financeiramente a luta dos mineiros, as lésbicas e os gays do grupo foram
convidados a conhecerem o ambiente, a vida, o trabalho e a cultura dos mineiros
da região. Além de uma forma de estreitar laços de cooperação e amizade, o
objetivo do sindicato era de levar quem se solidarizava com a greve a conhecer
como estava sendo gasto o dinheiro arrecadado. A hospedagem seria nas próprias
casas dos mineiros, a direto contato com a vida familiar durante a greve, a fim
de tocarem com as mãos cada aspecto da realidade e da própria organização
sindical. Quanto maior a convivência, maior a chance de quebrar barreiras, de
ampliar a visão de mundo com as lutas e enfrentamentos nos quais hóspedes e
anfitriões estavam envolvidos.
Foi assim que, no final de outubro, um grupo de 27
gays e lésbicas realizavam a que seria a primeira de várias visitas às
comunidades mineiras do sul do País de Gales até a encerramento da greve em
março de 1985. Ao falar sobre este momento, Siân James, esposa de um mineiro e
ativista fervorosa na organização dos suprimentos que ajudavam as famílias a
suportar o peso da greve, diz:
“Não
havia ninguém em nossas comunidades que dissesse que era abertamente gay, mas
todos nós conhecíamos pessoas gays. Ninguém nunca disse: 'Ah, bem, ela é
lésbica. Ele é gay'. Simplesmente nunca foi falado.
Meu pai trabalhava com dois caras que eram gays e
tinham apelidos na colônia. Lembro-me de perguntar: 'Por que eles têm esses
apelidos pai?' Ele disse: 'Sabe, eles são um pouco frutados'. Havia todos esses
eufemismos, mas ninguém fazia perguntas. (...)
Não tínhamos visto ninguém sendo abertamente
anti-gay ou anti-lésbica, mas igualmente, não tínhamos visto ninguém ou ouvido
alguém sendo a favor ou admitindo abertamente que era um homem gay ou uma
mulher lésbica. Acho que isso foi o que nos chamou a atenção. O fato é que
estávamos muito envergonhados, realmente, por não termos feito essas perguntas
antes. Foram esses paralelos que vimos que foram incríveis.
Ouvimos sobre as experiências das pessoas, sobre
por que elas tiveram que deixar suas comunidades e ir para cidades como Londres
para viver suas vidas, sobre suas parcerias e sobre os problemas que
enfrentaram. Tínhamos um amigo em particular, Roy, que havia perdido a promoção
várias vezes em seu emprego e dissemos: «O que
você quer dizer...que não foi promovido porque é gay?» Ele disse: «Quando
descobrem que eu sou gay...negam». [17]
Ao comentar as sensações do primeiro encontro nas
comunidades mineiras, Mike escreve:
“Aquela
primeira visita ao vale de Dulais como lésbicas e gays da classe trabalhadora
foi um evento emocionante para cada um de nós. Tudo foi feito para que nos
sentíssemos muito bem-vindos. Bebíamos com os mineiros e suas famílias,
conversamos, dançamos, rimos e nos descobrimos.
Nosso banner [LGSM support the miners] foi exibido por eles na frente do salão.
Eles nos convidaram a fazer um discurso para as duzentas ou trezentas pessoas
lá - algo para o qual não tínhamos nos preparado - e acabamos intimando Andy
Denn a dar conta disso. Os mineiros sabiam que estávamos nervosos e Andy, de 20
anos, tremia quando subiu ao palco. Houve uma tremenda salva de palmas quando
os mineiros o apresentaram; em seguida, um ávido silêncio para ouvir o que ele
tinha a dizer.
Ele falou direto, do coração, em tons ricos, sobre
a solidariedade da classe trabalhadora e a importância de conhecer os
interesses comuns uns dos outros. As pessoas ficaram batendo palmas e
aplaudindo quando ele terminou. Mais tarde, naquela noite, eles leram poesias e
cantaram para nós.
Ficamos em suas casas, fomos passear com seus
filhos na antiga paisagem escarpada que cerca os vilarejos próximos aos poços,
fomos para a mesma reunião de grupos de apoio onde eles nos presentearam com
troféus. E tudo isso como lésbicas e gays - isso é tudo o que eles sabiam sobre
nós no início. (...). A luta pelo socialismo, incluindo a libertação de
lésbicas e gays, os aspectos mais pessoais da vida e da cultura da classe
trabalhadora, estavam todos reunidos em um único momento.
Por isso senti que era como voltar para casa!
David nos disse que a greve estava ensinando muito
a eles; eles agora sabiam o que era assédio policial, o que eram mentiras e
distorções da mídia. «Coisas que pessoas negras,
lésbicas e gays experimentam há muito mais tempo do que nós». Até aquele momento, ele tinha sido apenas um
membro do partido trabalhista local, mas a greve estava mostrando a ele de onde
vinha seu verdadeiro apoio; eles estavam profundamente decepcionados com a
resposta da liderança do partido à greve. Agora era importante fazer ligações
com novos aliados e combater juntos a opressão de um inimigo comum. Foi por
isso que ele foi enviado para nos encontrar. As pessoas queriam saber mais
sobre nós. Ele sentou e nos ouviu falando sobre nossa política e nossas
experiências recentes da greve dos mineiros.
Não fomos ingênuos quanto ao fato de que haveria homofobia na comunidade mineira assim como havia em qualquer lugar. Contamos a ele sobre a tremenda recepção que tivemos quando desfraldamos nossa bandeira na manifestação nacional feminina três semanas antes. Estávamos otimistas de que uma grande parte da comunidade lésbica e gay estava se identificando cada vez mais com as comunidades mineiras.”[18]
Outras visitas vieram em seguida, tanto dos membros do LGSM às comunidades mineiras, como dos mineiros em greve e suas famílias à entidade em Londres, onde se hospedavam nas residências dos integrantes do grupo. Numa das visitas, o LGSM presenteou os mineiros com uma van na qual eles mesmo fizeram questão de colocar o logotipo do grupo. O veículo era usado tanto para entregar alimentos às famílias dos grevistas, como para levar as pessoas para os piquetes.
|
A mobilização para o evento reuniu artistas gays
conhecidos que se dispuseram a atuar gratuitamente. Camisetas foram estampadas
com o desenho do cartaz que convocava para o evento e foi cobrado um ingresso
de 4,50 libras que seria integralmente revertido em apoio à luta dos mineiros.
O evento reuniu cerca de 1.500 “pervertidos” orgulhosos de contribuírem para a
continuidade da greve.
A arrecadação de 5.650 libras foi imediatamente
entregue aos mineiros. Mas esta não foi a única boa notícia do baile no
Electric Ballroom de Londres. Entre uma atração e outra, David Donovan,
convidado a falar, resumiu o sentido de um evento que ia muito além da coleta
de fundos:
“Vocês usaram o nosso adesivo, Coal Not Dole, e
sabem o que significa assédio, como nós. Agora, nós vamos fixar o seu
distintivo em nós, vamos apoiá-los. Não vai mudar da noite para o dia, mas
agora 140.000 mineiros sabem que existem outras causas e outros problemas.
Sabemos de negros e gays e do desarmamento nuclear e nunca mais seremos os
mesmos”.[19]
As palavras de David não compunham frases de
ocasião, mas expressavam o compromisso de aprofundar uma luta conjunta cujos
primeiros sinais haviam se manifestado timidamente na Conferência do Partido
Trabalhista, em outubro de 1984. Nesta ocasião, o NUM enviou uma mensagem de
solidariedade aos companheiros e companheiras da Campanha Trabalhista pelos
Direitos Legais das Lésbicas e Gays:
“Apoiar as liberdades civis e a luta de lésbicas e
gays. Congratulamo-nos com os laços
estabelecidos com o Sul do País de Gales e outras regiões. Nossa luta é sua.
Vitória para os mineiros”.[20]
De um lado, a greve havia dado voz às mulheres das
comunidades do País de Gales. A indignação de verem seus maridos serem tratados
pelo governo, não como trabalhadores que arriscam suas vidas nas entranhas da
terra e sim como “inimigos internos”, despertou um envolvimento com o qual
conquistaram voz e voto nas decisões que diziam respeito à greve. Siân James
resume em breves palavras a mudança que a participação do movimento havia
introduzido nas relações de gênero:
Siân James, em 1984 |
De outro, os
vínculos criados entre os mineiros e o LGSM haviam iniciado uma mudança
duradoura. De acordo com a própria Siân:
“Amigos meus de outros campos de carvão no sul do País de Gales estavam encontrando nossos amigos e vindo para ficar com eles e socializar. Eles então estavam voltando para suas comunidades, dizendo: 'Quer saber? Isso aí sobre os gays não é verdade. Isso aí sobre as lésbicas não é verdade, porque conhecemos homens gays e mulheres lésbicas e eles são como nós." Foi uma bolinha que começou a rolar.
Embora
a derrota dos mineiros tenha sido um golpe na época, ironicamente, acho que
energizou muita gente a perceber que você não pode simplesmente aceitar que
essas coisas aconteçam. Sim, são um golpe, mas você precisa se reunir,
organizar e redobrar seus esforços. Para as lésbicas e os gays, houve coisas
que saíram da derrota e que, na época, provavelmente eram difíceis de
antecipar. Mas, não muito depois do fim da greve, o NUM apoiou movimentos
dentro do Partido Trabalhista para adotar um compromisso com os direitos de
lésbicas e gays como parte de suas linhas de ação. Isso foi o resultado direto
do envolvimento de lésbicas e gays no apoio aos mineiros durante a greve.”[22]
A
primeira forma de solidariedade com os homossexuais levou os mineiros a
apoiarem instituições que lutavam contra a AIDS, a escrever cartas para a
imprensa local explicando o que era o HIV e a falar sobre o LGSM em todas as
reuniões e eventos dos quais estavam participando. Em junho de 1985, o NUM e as
comunidades mineiras do sul do País de Gales enviaram centenas de pessoas à
marcha do Orgulho Gay em Londres. Além de suas faixas, estendartes e da banda
musical, os mineiros levaram ao evento o compromisso de continuar apoiando as
lutas que haviam conhecido através dos contatos com o LGSM.[23]
A sessão do NUM do sul do País de Gales
apoiou os direitos à igualdade de lésbica e gay na Conferência do Partido
Trabalhista e no Congresso Sindical de 1985, inscrevendo nas resoluções finais
o compromisso de apoiar as lutas dentro e fora do âmbito parlamentar. Em 1988,
o NUM participou ativamente das mobilizações contra a aprovação do artigo 28
pelo qual o governo do Reino Unido proibia as autoridades locais de dar
visibilidade à homossexualidade e que as escolas sob sua jurisdição falassem da
aceitabilidade de uma família composta por gays e lésbicas.[24]
A
posição do NUM levou os demais sindicatos a apoiarem as reivindicações dos
homossexuais. No entanto, para além do estímulo oriundo da reciprocidade da
ajuda que os mineiros haviam recebido durante a greve, demorou anos para que
este apoio se consolidasse e ganhasse pernas próprias no movimento sindical.
Por outro lado, o grupo que mantinha como ponto de encontro a pequena
biblioteca Gays The World, não cessou de se solidarizar com as lutas dos
trabalhadores. Em 27 de janeiro de 1987, por exemplo, Mark Ashton estava num
piquete em frente à gráfica Wapping, em Londres.
Mark
viria a falecer no dia 11 de fevereiro do mesmo ano, vítima de uma pneumonia relacionada à
AIDS. Seu funeral contou com a presença de uma muitas
figuras da política, da música e do mundo gay em Londres, bem como de mineiros
e suas famílias, em reconhecimento ao papel transformador desempenhado
pelo LGSM durante a greve.[25]
Felizmente,
o legado de Mark e dos demais membros da LGSM não se perdeu nas páginas
empoeiradas do tempo. As provas de que esta semente continua alimentando lutas
e compromissos contra o preconceito está na inspiração que outros grupos de
lésbicas e gays encontraram no LGSM para se solidarizem com os migrantes,
vítimas das políticas de Estado e do racismo que marca presença na sociedade
europeia. O que era Lesbian and Gays Support The Miners se tornou Lesbian and
Gays Support The Migrants, a mesma sigla e o mesmo compromisso para que a luta
continue em novas frentes.
Os
novos LGSM se tornaram conhecidos tanto pelas coletas que realizam, como pelas
ações que marcam sua posição em defesa destes marginalizados. Na noite de 28 de
março de 2017, por exemplo, 15 ativistas abriram um buraco na cerca do
Aeroporto Standsted, de Londres e se acorrentaram a um boeing 767 estacionado
no pátio. O bloqueio destinado a impedir um voo que iria deportar migrantes
africanos para Gana e Nigéria atingiu o seu objetivo, mas todos os ativistas
foram presos.
O
Ministério Público acusou os membros do LGSM de colocarem em risco o aeroporto,
um crime que, em função da lei aprovada em 1988 após o atentado de Lockerbie,
poderia levar à prisão perpétua. No dia 18 de dezembro, o juri considerou o
grupo culpado deste crime. O veredicto despertou uma campanha de protestos em
apoio aos ativistas. O recurso foi julgado em 6 de fevereiro do ano seguinte.
Na ocasião, o juiz decidiu não prendê-los por entender que o seu gesto não
guardava nenhuma relação com o terrorismo, mas, sim, com razões genuinamente
humanitárias.
Tempos
depois, realizaram a queima pública de 35.000 notas de Libras esterlinas nas
quais havia sido impresso o rosto de Teresa May, a Primeira-Ministra da época.
Coberta pela revista Newsweek e pelo jornal The Independent, a ação condenava a
norma do governo conservador pela qual os trabalhadores e as trabalhadoras não
originários da União Europeia e do Reino Unido poderiam ser deportados após 5
anos de permanência no país a menos que conseguissem provar uma renda anual de
35.000 libras.[26]
A
razão disso tudo?
Simples.
Como pessoas LGBTQIA+, todos e todas sabem ó que serem rotuladas como ilegais,
conhecem na própria pele o que significa ser alvo da polícia e da mídia, o que
se experimenta ao serem colocadas sistematicamente do lado do mal e a angústia
de quem é transformado em bode expiatório pelo simples fato de ser quem é.
O
sofrimento e a resistência coletiva vividos pelos seus grupos e comunidades
constituem o pilar da ponte que constroem com aqueles que são vítimas da
opressão do Estado e marginalizados pela sociedade. Das coletas às ações mais
contundentes ou performáticas, o objetivo dos novos LGSM é o de inspirar outras
pessoas a somarem forças com os discriminados a fim de derrubar as divisões
erguidas pelos interesses dominantes.[27]
Da
Grã Bretanha, descemos agora até a Itália e, mais precisamente, à região do Mar
Mediterrâneo entre a África e a ilha de Lampedusa para conhecer a comandante de
um navio de salvamento, cuja coragem colocou o dedo numa ferida que os europeus
escondem.
3.3 Carola Rackete:
presa por salvar vidas
As embarcações
superlotadas de migrantes que chegam ao território italiano já não fazem
notícia como há vinte anos atrás. As atenções da população se voltam
momentaneamente para elas quando as imagens chocantes de um naufrágio abrem uma
brecha na insensibilidade na população. Os cadáveres na praia despertam
instantes de compaixão, orações, lamentações e reprovações, mas nenhuma
reflexão sobre o porquê das migrações.
Considerada um
capricho da vontade pelo senso comum, a decisão de atravessar o Mediterrâneo
ganha as feições de um gesto intempestivo e irresponsável. Mas quem conhece a
realidade através das histórias das pessoas que resgatou tem uma visão nua e
crua do que leva homens, mulheres e crianças a arriscarem a vida naquelas
águas. É assim que a capitã, Carola Rackete, alemã, de 31 anos de idade,
descreve o que os países ricos se negam a reconhecer:
“Há muito tempo, a ânsia por prosperidade e crescimento
permanente faz com que os países industrializados se sirvam dos países e das
pessoas nas regiões menos abastadas do planeta. No período colonial, esses
povos foram roubados em sua autonomia política, econômica e cultural. O sinal
mais visível disso são as fronteiras estabelecidas de forma arbitrária, gerando
conflitos até hoje.
A hegemonia econômica também permanece: criam-se
monoculturas que exaurem a terra e exigem fertilizantes sintéticos e
pesticidas. O resultado é a desertificação crescente e a piora do solo, além da
diminuição da diversidade das espécies. Além disso, diversas vezes, essas
monoculturas ocupam áreas das quais a população local precisaria urgentemente
para o cultivo de alimentos básicos.
Como se não bastasse, países que investem numa
variedade pequena de produtos agrícolas são mais dependentes do mercado
mundial. O café e o cacau, por exemplo, são produtos de exportação suscetíveis
a crises: seus preços são frequentemente definidos por especuladores.
(...) Para poder falar dos refugiados nos botes,
primeiro devemos falar da injustiça global: a prosperidade de alguns países, de
empresas multinacionais e de pessoas ricas tem como base a mão de obra e os
recursos minerais dos países pobres sem nenhuma perspectiva. Os países
industrializados na Europa e em outras regiões carregam uma grande
responsabilidade pela existência de guerras civis, dificuldades econômicas
exploração e maus tratos. Mais até: eles ganham dinheiro com isso. Vivemos num
mundo globalizado, e nós, nos países europeus, pertencemos ao pequeno grupo que
tira proveito da situação.
Nosso lixo eletrônico é exportado em navios para
Gana; nossas camisetas são produzidas em países de baixa renda, como
Bangladesh; cobalto e coltan - matéria-prima para nossos celulares - são
extraídos em condições desumanas no Congo, em parte, por crianças. Nosso estilo
de vida tem influência direta no cotidiano das pessoas no sul global,
levando-lhes doenças, poluição e trabalho sem seguridade social. Com nossa alta
demanda por energia e as emissões resultantes, estamos destruindo até mesmo o
clima, e isso se reflete, antes de tudo - de forma massiva -, nos países que
menos contribuíram para o aquecimento do planeta.
Desse jeito, também estamos fomentando a pobreza
global, criando razões para as pessoas fugirem de seus países.
Enquanto esse sistema econômico continuar
produzindo uma desigualdade social tão severa e a exploração da natureza em
todas as regiões da Terra seguir em frente, seres humanos continuarão confiando
suas vidas a botes nos quais, sem dúvida, ninguém ousaria embarcar por vontade
própria. É por isso que não se trata de uma crise dos refugiados. É uma crise
de justiça global”.[28]
A breve descrição que Carola faz dos riscos de percorrer esta rota em um bote inflável ajuda a entender a gravidade da situação:
“O Mar
Mediterrâneo é mais perigoso do que a maioria dos turistas
pensa: o tempo pode virar repentinamente, e aí um bote inflável com quatro
câmaras de ar não oferece muita proteção. Basta que uma dessas câmaras comece a
esvaziar para que o bote superlotado afunde.
(...) Quase ninguém aí sabe nadar, e, com o mar
agitado, é muito grande o risco de arrebentar uma das câmaras ou até o chão do
bote. O resgate fica então ainda mais difícil, porque, como era de se esperar,
o pânico aumenta.
Os galões com gasolina que eles recebem para a
viagem muitas vezes não têm tampa, e, quando o bote vira, o combustível vaza no
mar em torno das pessoas que se debatem na água. Basta um pequeno gole que a
pessoa já desmaia e se afoga. Os refugiados viajam sentados nas bordas do bote
inflável; no meio, mulheres grávidas e crianças pequenas. Sempre que vejo essa
cena, fica evidente para mim o risco que correm”.[29]
Além de carregar o estigma da cor
e da clandestinidade, todos os africanos deixam o continente de mãos abanando e
desembarcam no litoral italiano no limite de suas forças e sem documentos. O
cotidiano nos campos de acolhida não tarda em mostrar que, para os autóctones,
eles não passam de um problema que adorariam não ter que enfrentar. Ao sair
destes espaços de confinamento, a discriminação e a necessidade de sobreviver
em um ambiente hostil fazem com que ter um emprego por um salário bem inferior
ao que um italiano receberia por um trabalho igualmente duro, insalubre e
desgastante, seja visto pelos imigrantes como uma benção e como uma dívida de
gratidão a ser constantemente cobrada por quem ofereceu a vaga. E isso apesar
de as estatísticas oficiais mostrarem que, há quase uma década, a economia do
país não pode dispensar esta força de trabalho pelo simples fato de que os
empregadores não encontrariam nenhum autóctone para colocar em seu lugar.[30]
De braços abertos à imigração nos momentos em que a Itália precisava
urgentemente de pessoas que se submetessem a qualquer sacrifício, o governo
começou a criar obstáculos à chegada dos africanos à medida que a economia
atingia o nível “ideal” de desocupação em volta do qual era possível manter os
salários em patamares que favoreciam a ampliação dos lucros sem agravar os
problemas sociais. Ultrapassado esse limite de segurança, a legislação começou
a construir os pressupostos que limitavam as condições de asilo a casos que
dificilmente englobariam quem estava fugindo da pobreza e da guerra.
As portas da
legalização dos imigrantes foram quase completamente fechada em dezembro de
2018. A aprovação da lei número 132 instituiu uma lista de países que,
teoricamente, não ofereciam motivos para uma solicitação de asilo e decretou o
fim da proteção por razões humanitárias. Com esta medida, a Itália não só
deixaria de acolher pessoas que fugiam de conflitos, catástrofes naturais ou de
outras situações de emergência fora da União Europeia, como deportaria homens e
mulheres que, em seus países de origem, corriam o risco de serem perseguidos e
escravizados.
Ao mesmo tempo, a
estrutura municipal destinada a prestar serviços aos imigrantes passava a ser
disponibilizada apenas para quem já contava com o reconhecimento internacional
do status de refugiado e para os estrangeiros menores de idade não acompanhados
pelos pais. Quem tivesse a sorte de não sair dos centros de acolhimento para a
deportação não poderia ter acesso a um trabalho formal, aos serviços públicos e
aos aluguéis subsidiados das casas populares.
Basta pouco para entender que, ao colocar o imigrante na necessidade de
enfrentar a luta pela sobrevivência sem nenhuma das ajudas com as quais contava
no período anterior, o governo o empurrava a atravessar a fronteira entre a
legalidade e o crime. O tempo revelaria que isso servia como uma luva para que
as estatísticas fornecessem à direita os dados da segurança pública dos quais
precisavam para restringir ainda mais a aceitação dos imigrantes.
Em 2019, o Ministro do Interior do governo italiano, Matteo Salvini,
emitiu um decreto que previa multas entre 20.000 e 50.000 euros a qualquer
embarcação que violasse a proibição de entrar nas águas territoriais do país.
Apresentada como uma medida para combater os traficantes de seres humanos e
conter a imigração clandestina, a sua aplicação ao longo do primeiro semestre
daquele ano levou a uma sucessão de situações que contradiziam os objetivos da
medida. De fato, o fechamento dos portos italianos era imposto somente aos
navios das ONGs comprometidas com as operações de busca e salvamento em mar
aberto e não aos traficantes que continuavam agindo impunemente.[31]
Prova disso é que, de acordo com os dados do próprio Ministério do
Interior, 50% dos desembarques eram constituídos por embarcações de todos os
tipos e tamanhos que conseguiam completar a travessia; 38% eram fruto dos
resgates efetuados por navios mercantes, barcos de pescadores, embarcações da
Guarda Costeira italiana e da Agência Europeia da Guarda de Fronteira e
Costeira (Frontex); e apenas 12% dos salvamentos anuais eram realizados por
navios de ONGs.[32]
|
A situação a bordo do Sea-Watch 3 tornava-se cada dia mais difícil. Segundo o próprio depoimento de Carola:
“Todos os dias, eu recebia relatórios da equipe médica, dos psicólogos e da tripulação. Tudo estava piorando. O navio não está preparado para ter 40 pessoas a bordo durante tantos dias. Não havia privacidade. Eles não podiam tomar uma ducha e os banheiros químicos não funcionavam. Toda essa gente vem de um país em guerra civil, tinham sofrido abusos e torturas. Não tínhamos uma perspectiva clara do que iria acontecer no futuro próximo e isso aumentou a ansiedade a ponto de algumas pessoas ameaçarem se suicidar. Eram pessoas que já tinham tentado fazer isso. A equipe médica nos deixou muito claro que já não podia garantir a segurança delas por mais tempo”.[33]
Após 15 dias de
espera sob um sol escaldante, sem nenhuma
esperança de uma resposta positiva e diante dos relatórios que sinalizavam a
crescente possibilidade de as pessoas se lançarem ao mar, Carola toma uma
decisão que pode lhe custar muito caro. Por volta da uma e meia da madrugada do
dia 29 de junho de 2019, a capitã entra na sala de comando e grava uma mensagem
em vídeo destinada à direção da ONG:
“Sei que é arriscado e
que provavelmente vou perder o navio, mas os 42 náufragos estão exaustos. Vou
levá-los para um lugar seguro. Estou certa que a justiça italiana reconhecerá
que o direito marítimo e os direitos humanos superam a segurança e a jurisdição
da Itália sobre as águas territoriais. Por isso, enfrentarei tudo o que vier.
Mas agora só quero que estas pessoas possam ir para terra”. [34]
Em seguida, avisa o
pessoal de bordo da sua decisão, levanta a âncora, liga os motores e coloca a
proa em direção ao porto de Lampedusa. Instantes depois, a lancha da Guarda
Costeira envia a ordem de parada imediata. Esta mensagem será repetida outras
duas vezes, sem obter resposta. Mais rápida, a embarcação da Guarda Costeira
entra no porto antes do navio e ocupa o único espaço onde o mesmo poderia
atracar. Comandando pessoalmente as operações de aproximação, Carola não detém
a manobra. Lancha e navio se tocam. A primeira acaba batendo no cais, mas
consegue sair do aperto sem consequências para a embarcação e os agentes que a
tripulavam.
Avisado do ocorrido,
Salvini aciona o judiciário que, menos de uma hora depois, emite uma ordem de
prisão da comandante por favorecer a imigração clandestina, resistir e agir com
violência contra um navio de guerra. São acusações que podem custar a Carola
entre 3 e 12 anos de prisão em regime fechado e uma multa de 50.000 euros, além
da apreensão do navio. Às 2.50 hs, os policiais efetuam a prisão em flagrante.
No cais do porto, poucos aplaudem o gesto da
capitã. Uma turma insolitamente numerosa, se aglomera pedindo que os agentes a
algemem enquanto proferem todo tipo de insulto. No que se configura como o
retrato de um racismo que muitos praticam, mas negam verbalmente, parte dos
presentes chama Carola de “vendida” pelo fato de ser uma branca que salva
migrantes negros. Outro grupo grita que ela deveria ter vergonha do que fez. E,
no meio da multidão, alguém levanta a voz para desejar que seja estuprada por cada
um dos africanos que salvou.[35]
No rosto de Carola, os sinais de cansaço e de incerteza diante do que virá cedem o lugar à serenidade de quem sabe ter feito a coisa certa e cujo único incômodo está no fato de desembarcar antes dos imigrantes. A preocupação el relação ao que aconteceria com eles a acompanhará durante o interrogatório na delegacia, noite adentro. A insistência com a qual perguntava se haviam desembarcado se acalmará ao receber a notícia de que estavam em terra firme pela boca do comandante da Polícia Aduaneira, por volta das 5 da manhã, duas horas antes de ser levada à prisão domiciliar, já que, em Lampedusa, não há presídios e nem celas de detenção provisória.
Neste contexto, mais o Ministro do Interior,
Matteo Salvini, atacava Carola com todo tipo de acusação e baixaria, mais gente
se solidarizava com a capitã. Até meados de julho, a coleta organizada na
Itália e na Alemanha entregou à Sea-Watch cerca de um milhão e 400 mil euros
para custear os gastos do processo e pagar as multas correspondentes.[37] Informada das diferentes expressões de
solidariedade que estava recebendo, Carola fez sair da prisão domiciliar uma
mensagem escrita numa folha de caderno:
“Amo muito vocês,
mantenham-se firmes. Não se preocupem”.[38]
No dia 2 de julho de 2019, o veredicto do
magistrado encarregado de analisar as acusações contra a comandante no processo
que convalidaria a sua prisão destruiu as principais acusações contra ela. Para
o juiz, não havia nenhum crime de resistência à ordem de um público oficial e
nem violência contra um navio de guerra, pelo simples fato de que Carola agiu
no cumprimento do seu dever e a sua ação de socorro às vítimas terminava apenas
quando os migrantes estivessem em um porto seguro. Do mesmo modo, o magistrado
afirmava com todas as letras que a lancha da Guarda Costeira não podia ser
considerada uma embarcação de guerra e as explicações da manobra que a capitã
ofereceu foram mais que suficientes para mostrar que não havia a menor intenção
de afundá-la e nem de colocar em perigo a vida dos seus ocupantes.
A sentença que livrava Carola do processo
criminal foi saudada como uma vitória da solidariedade. Todos tinham bons
motivos para voltar a sorrir...à exceção de Matteo Salvini que, irritado com a
soltura da Capitã, decretou a sua imediata expulsão do país.
Mas o próprio judiciário fez ele engolir o
desejo de vingança. Horas depois do pronunciamento do Ministro, o tribunal
vetava a expulsão até completar o julgamento do segundo processo, promovido
pelo próprio Salvini e marcado para o dia 9 de julho. Nele, a Capitã era
acusada de favorecimento à imigração clandestina pelo fato de ter escolhido o
porto de Lampedusa como destino final no lugar de levar os refugiados para
Trípoli, cujas autoridades portuárias haviam aberto a possibilidade do
desembarque.
Inconformado com o desenrolar dos
acontecimentos, o Ministro do Interior instilava o seu ódio nas redes sociais
numa sequência de investidas que deveriam envergonhar qualquer cidadão comum,
que dirá um Ministro de Estado, católico praticante e devoto de Nossa Senhora a
ponto de andar sempre com o terço pendurado no pescoço. Acirradas pelas
intervenções do próprio Salvini nas redes sociais, as ameaças contra Carola,
iniciadas logo após o desembarque, se agravaram. Os advogados de defesa
decidiram escondê-la em lugar seguro para preservar a sua incolumidade até o
dia do segundo julgamento.[39]
Na sessão que analisou o favorecimento à
imigração clandestina, o juiz viu cada elemento da acusação derreter diante do
depoimento da Capitã e da impossibilidade de os Promotores sustentarem os
argumentos com os quais buscavam incriminá-la. O veredicto reconheceu que a
escolha de Lampedusa não foi instrumental e sim obrigatória, à medida que o
porto de Trípoli, na Líbia, não poderia ser considerado seguro, conforme
mostrava o relatório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, no
qual sublinhava-se que milhares de seres humanos entre solicitantes de asilo,
refugiados e migrantes que desembarcavam no país eram detidos arbitrariamente e
torturados. Do mesmo modo, a acusação de favorecer o tráfico ilegal de pessoas
entre a África e a Itália desabava diante da simples constatação que a
atividade de salvamento não proporcionava nenhum tipo de lucro ou dividendo.
Numa declaração aos meios de comunicação, o juiz
comentou que a escolha da Capitã havia se baseado num princípio tão simples e
evidente que se explicava por si só, mas que o Ministro do Interior conseguiu
colocar publicamente de cabeça para baixo: o princípio segundo o qual pegar um
barco civil para entrar no mar a fim de salvar a vida dos migrantes não podia
ser considerado um ato criminoso.[40]
Enquanto a comandante provava na justiça que as
razões do seu gesto eram superiores às proibições de um Estado que expunha os
migrantes africanos à morte, o debate sobre o tema continuava na mídia, nas
redes sociais e nos fóruns internacionais. Em 3 de outubro de 2019, dia do
migrante e data em que se lembram as 368 vítimas do naufrágio ocorrido nas
proximidades de Lampedusa em 2013, Carola foi convidada a participar do evento
sobre os fluxos migratórios organizado pela Comissão das Liberdades Civis do Parlamento
Europeu.
O Ministro do Interior da Itália também marcou
presença e foi o primeiro a falar. Após expor a sua posição sobre os
acontecimentos do final de junho, encerrou a intervenção dizendo que a atitude
da Sea-Watch e da Capitã haviam sido uma ofensa para o seu país. E,
dirigindo-se diretamente a Carola, sentenciou:
“Você não deveria
estar aqui, e sim numa cadeia!”.
Os deputados de direita do Parlamento Europeu
aplaudiram as suas palavras. Mas a alegria durou pouco. Após a intervenção de
Salvini, a Capitã leu um discurso breve e contundente. Carola se dirigiu aos
presentes com a mesma determinação, simplicidade e clareza que a levaram a
desobedecer a uma proibição que colocava em riscos vidas humanas. Um trecho da
sua fala atingiu em cheio a hipocrisia que possibilitava à Europa-das-palavras
ocultar a Europa-dos-fatos:
“Nenhuma das
minhas experiências anteriores foi tão frustrante como estar no meio do mar
durante 17 dias, tendo que explicar às pessoas que nós as havíamos salvado, mas
que os países não as queriam. O berço dos direitos humanos, a Europa, não
achava que podíamos colocar os pés no seu território. Só recebi muitas atenções
por parte das instituições dos seus países depois de entrar no porto.
Mas onde vocês
estavam quando pedíamos ajuda em todos os canais diplomáticos e midiáticos
possíveis? Onde vocês estavam quando a única a responder foi Trípoli, a capital
do país onde as pessoas sofrem abusos sistemáticos contra seus direitos
fundamentais? Depois de 17 dias tive que entrar no porto, não como provocação,
mas sim como ato de responsabilidade em relação às pessoas embarcadas e em
relação à mim mesma”.[41]
A prolongada salva de palmas da maioria dos
presentes não baixou a guarda desta mulher que, dois meses antes, viu a União Europeia
erguer o muro da rejeição aos seus pedidos de socorro como se os imigrantes
africanos fossem portadores de uma epidemia de peste e não náufragos em busca
de um porto seguro.[42] Carola sabia que, passada a comoção despertada
pela sua desobediência, tudo voltaria ao que era antes e que isso não era por
acaso. Numa entrevista ao jornal El Mundo, em 30 de outubro do mesmo ano, ela
afirmou com todas as letras:
“Na missão para a
qual me ofereci como voluntária na Sea-Watch por falta de pessoas que tivessem
estudado náutica e estivessem dispostas a assumir riscos legais, comprovei que
a essência do debate não está no resgate em si mesmo e sim em quem se resgata.
Isto é racismo”.[43]
Um ano depois da sua prisão, diante da
persistente criminalização dos resgates no Mediterrâneo, a Capitã reafirmaria
com palavras mais duras o mesmo conceito:
“A nossa tripulação estava no mar porque sabemos que os Direitos Humanos são universais e que as leis do mar não ligam para passaportes.
As pessoas que
resgatamos podem ter perdido muitas coisas em suas vidas, mas não perderam suas
próprias vozes e são elas que, com suas próprias experiências, são as
especialistas. Se queremos superar o racismo estrutural, devemos nos colocar de
lado e ouvi-las”.[44]
O processo contra Carola Rackete foi arquivado
em 23 de dezembro de 2021, quando foi contestado o último recurso do Ministério
Público para o qual as condições do navio e dos embarcados não justificavam que
a Capitã violasse a proibição de entrar no porto de Lampedusa. Para convencer o
juiz do contrário, bastou que Carola lembrasse que não havia tomado aquela
decisão no calor dos acontecimentos e sim, como havia seguidamente declarado à
justiça italiana e à mídia, em função dos relatórios alarmantes dos
profissionais e voluntários que cuidavam dos imigrantes. O veredicto que
colocava um ponto final às ações impetradas contra Carola Rackete, afirmava que
um navio em mar aberto não podia ser considerado um lugar seguro. Além de estar
submetido a eventos meteorológicos adversos, as suas condições reais não
permitiam que se respeitassem os direitos fundamentais das pessoas socorridas.
Por isso, ela tinha o dever de desembarcar os imigrantes.
Nesta altura das nossas reflexões, há uma
pergunta que ainda precisa ser respondida. Se as coisas eram tão evidentes, por
que o Ministro do Interior da Itália insistiu nas suas posições apesar das
seguidas derrotas?
A razão é muito simples. Na madrugada do dia 29
de junho, a entrada do Sea-Watch 3 em Lampedusa tornava visível quem estava
defendendo a vida e quem aprovava normas que violavam direitos humanos
fundamentais e a legislação internacional. Ao assumir todos os riscos e ao
repetir que voltaria a tomar as mesmas decisões, Carola restabelecia a primazia
da vida sobre qualquer outro interesse. O seu gesto funcionava como uma espécie
de antídoto ao veneno que os preconceitos contra os imigrantes haviam injetado
na população ao mesmo tempo em que despia a realidade dos disfarces que a
cobriam.
Um antídoto que aumentava a sua eficácia na
exata medida em que a desobediência da capitã se tornava objeto do ódio de quem
precisava do preconceito para manter a confiança de uma população ensinada a
apontar nos imigrantes, e não no avanço da exploração capitalista, a explicação
dos males que a afligem. Por isso, quanto mais Salvini agia para destruir
Carola, mais as breves respostas da Capitã o desmascaravam e cobriam de
vergonha quem, ao defender o governo, acabava justificando que os náufragos
africanos deviam ser abandonados à própria sorte.
Reconhecer
que Carola estava certa, decretaria a morte política de Salvini como um dos
líderes da direita italiana da época. Restava a ele a escolha de aumentar a
dose de ódio na esperança de que o tempo apagasse a memória dos fatos e que a
diminuição do efeito do antídoto permitisse que as vítimas do capitalismo
mundial fossem novamente relegadas ao papel de bode expiatório das políticas
antissociais dos países onde buscam refúgio.
Ciente
desta realidade, Carola usa as palavras finais do seu livro para convidar à
desobediência civil. Convencida de que a possibilidade de um mundo mais justo nasce da
nossa capacidade de perturbar a ordem, a Capitã escreve:
“Muitas pessoas acham que a desobediência civil é
um problema, porque causa tumulto e perturba a ordem.
Vivemos numa época em que a ordem está errada e é
destrutiva.
Essa ordem precisa ser perturbada, caso contrário
pessoas morrem.
Se não a perturbamos, continuaremos permitindo que
o sistema - com sua crença no crescimento constante - nos roube algo que é
incrivelmente precioso e irrecuperável.
Porque não vão parar por decisão própria.
E porque não podemos aceitar que, em nome da ordem,
o sistema faça com que a maioria seja roubada, iludida e oprimida.
Só precisamos entrar em ação de verdade, ao invés
de seguir acreditando que, se fizermos a vontade daqueles que estão no poder,
nossos direitos e nosso futuro estarão garantidos.
O problema é a obediência civil, não a
desobediência civil.
Em vez de ter falsas esperanças, vamos agir.” [45]
É com
estas palavras que seguimos a viagem pela resistência que, na quarta parte do
nosso resgate, percorrerá os enfrentamentos que, tendo a música e a poesia como
expressão da revolta, fazem a sua eco chegar até nós.[46]
[1] Mais informações sobre este período podem ser encontradas em: Leandro
Karnal, Marcus Vinícius de Morais, Luiz Estevam Fernandes e Sean Purdy, História
dos Estados Unidos , das origens ao século XXI. Ed. Contexto, São Paulo,
2012.
[2] Todos os trechos aos quais faremos referência ou que citaremos
literalmente de agora em diante foram extraído do livro de Rosa Parks, My
Story, Ed. Dial Book, Nova Iorque, edição digitalizada de 2012, disponível em: https://www.dirzon.com/Doc/Details/telegram%3ARosa%20Parks%20-%20My%20Story%20by%20Rosa%20Parks.pdf
Do mesmo
modo, as imagens utilizadas nesta parte do estudo foram divulgadas no próprio
livro de Rosa Parks e nas páginas eletrônicas: https://vein.es/rosa-parks/ e https://www.hypeness.com.br/2017/02/imagens-de-quando-a-segregacao-racial-era-legal-nos-eua-nos-lembram-a-importancia-de-se-combater-o-racismo-hoje/
Acessos
realizados em 09/10/2023.
[3] Entre o final do século XVIII e o início do XIX, a segregação racial
ganhou o apoio da ciência. Joseph Arthurde Gobineau (1816-1882), filósofo
francês e principal defensor da ideia de superioridade da raça branca é
considerado o pai do racismo moderno. A partir de suas teorias, foram
produzidos vários trabalhos que defendiam a ideia de raças diferentes entre a
espécie humana. As teorias raciais surgiram e ganharam força à medida que os
países europeus se tornavam nações imperialistas que submetiam outros territórios
e suas populações a uma dura dominação. A ideia foi adotada no mundo todo e
ganhou proporções astronômicas com o surgimento do nazismo. As descobertas
científicas das últimas décadas destruíram cientificamente os pressupostos que
sustentavam as teorias de Gobineau. A genética mostrou que todos os seres
humanos têm a mesma coleção de genes. As diferenças mais aparentes (cor da
pele, textura dos cabelos, formato do nariz) entre um negro africano e um
branco nórdico são determinadas por apenas 0,005% do genoma humano. Há um amplo
consenso entre antropólogos e geneticistas que, do ponto de vista biológico,
não é possível falar em raças humanas, mas tão somente em etnias. A segunda
verdade fundamental que está na base desta amplíssima igualdade dos 25.000
genes humanos deita raízes no fato de que somos todos de origem africana. A
nossa espécie (Homo Sapiens) evoluiu na África – ainda que ninguém possa dizer
com exatidão em que época e região. O achado fóssil mais recente, no Marrocos,
indica que os traços anatômicos dos seres humanos modernos apareceram por volta
de 300 mil anos atrás. No período seguinte, alguns grupos humanos começaram a
se deslocar para outras regiões da África e do planeta. Ao ficarem isolados uns
dos outros, as adaptações ao ambiente externo deram origem a populações com
novas características somáticas.
Mais
elementos sobre esta questão podem ser levantados nos estudos que seguem:
- FLEMING ,
C. M. ; MORRIS , A. Theorizing Ethnic and Racial Movements in the Global Age:
Lessons from the Civil Rights Movement. Sociology of race and ethnicity ,
jan . 2015.
- STEINBERG,
S. The ethnic myth: race, ethnicity, and class in America. 3. ed. Nova York:
Beacon Press, 2001.
[4] Rosa Parks, My Story, pg. 22
[5] Idem, pgs 52-53.
[6] Idem, pg. 67.
[7] Idem, pg. 67- 68.
[8] Ralph Abernathy era
ministro da igreja batista, amigo e mentor de Martin Luther King na luta pelos
direitos civis dos negros.
[9] Em: https://vein.es/rosa-parks/ Acesso em 26/10/2023.
[10] Para termos uma ideia da repressão desencadeada pela polícia, basta
pensar que, durante os quase doze meses de paralisação, os agentes prenderam
11.291 pessoas. Maiores detalhes sobre a greve dos Mineiros de 1984 podem ser
obtidos em: https://en.m.wikipedia.org/wiki/UK_miners%27_strike_(1984%E2%80%9385)#:~:text=The%20miners'%20strike%20of%201984,NCB)%2C%20a%20government%20agency
Acesso
realizado em 04/11/2023
[11] Resumimos em breves palavras o conteúdo da matéria sobre o assunto
publicada no Morning Star, no dia 21 de março de 1986, e disponível em: https://morningstaronline.co.uk/a-772e-pits-and-perverts-the-legacy-of-communist-mark-ashton Acesso realizado em
05/11/2023.
[12] Em: https://www.leftvoice.org/the-true-story-of-pride-lesbians-and-gays-support-the-miners-were-communists/
Acesso em 30/10/2023.
[13] Em: http://lgsm.org/our-history/228-lesbians-and-gays-support-the-miners Acessos realizado 26/10/2023.
[14] Em: http://lgsm.org/our-history/228-lesbians-and-gays-support-the-miners e em: https://www.youtube.com/watch?v=lHJhbwEcgrA
Acessos realizados em 26/10/2023.
[15] Idem.
[16] Idem.
[17] Em: https://workingclasshistory.com/podcast/e23-25-lesbians-gays-support-the-miners/ Acesso realizado em
08/10/2023.
[18] Em: http://lgsm.org/our-history/228-lesbians-and-gays-support-the-miners Acessos realizado 26/10/2023.
Vale lembrar que, nesta altura dos acontecimentos,
outros dez grupos de lésbicas e gays de outras cidades do país já haviam
seguido o modelo do LGSM, coletando e enviando fundos para sustentar os
grevistas de outras comunidades mineiras próximas ao local onde atuavam.
[19] Em: https://www.theguardian.com/film/2014/aug/31/pride-film-gay-activists-miners-strike-interview Acesso realizado em
26/10/2023.
[20] Em: https://www.bishopsgate.org.uk/collections/lesbians-and-gays-support-the-miners-bishopsgate-archive Acesso realizado em 28/10/2023.
[21] Ian MacGregor e Arthur Scargill eram as principais lideranças do NUM,
o Sindicato Nacional dos Mineiros. A citação foi extraída de: https://workingclasshistory.com/podcast/e23-25-lesbians-gays-support-the-miners/ Acesso realizado em
08/10/2023.
[22] Idem.
[23] Maiores detalhes sobre estas participações podem ser encontrados em:
- https://www.bishopsgate.org.uk/collections/lesbians-and-gays-support-the-miners-bishopsgate-archive
- https://workingclasshistory.com/podcast/e23-25-lesbians-gays-support-the-miners/
[24] A forma como o decreto era redigido e divulgado levou muitas pessoas
a entenderem que o seu conteúdo proibia que os
governos locais distribuíssem qualquer material (livros, folhetos, peças de
teatro, etc.) que não mostrassem as relações homossexuais como algo anormal e
condenável. Professores e professoras tinham medo de discutir a
homossexualidade com seus alunos e muitos grupos de apoio a estudantes gays e
lésbicas foram fechados pelas direções de escolas e universidade por medo de
atentar contra a lei. Ou seja, a aprovação do artigo 28, revogado pelo governo
trabalhista em julho de 2000, representou um verdadeiro revés em relação aos
avanços que as organizações de lésbicas e gays haviam conseguido introduzir na
sociedade britânica. Maiores informações sobre o tema podem ser encontradas em:
https://en.wikipedia.org/wiki/Section_28 Acesso realizado
em 13/10/2023.
[25] Em: https://www.oxforddnb.com/display/10.1093/odnb/9780198614128.001.0001/odnb-9780198614128-e-111326 Acesso realizado em 07/11/2023.
[26] Maiores informações sobre as ações de Lesbian and Gays Support the
Migrant podem ser encontradas acessos os sites:
- https://en.wikipedia.org/wiki/Lesbians_and_Gays_support_the_Migrants
- https://www.lgsmigrants.com/
- https://foe.scot/why-climate-change-is-an-lgbtq-issue/cc-by-sa-2-0/
- https://www.antiatlas-journal.net/05-lesbians-and-gays-support-migrants-dear-british-airways/
Todos os
acessos foram realizados em 07/11/2023.
[27] Além das fontes citadas nas notas anteriores, a construção deste
capítulo do estudo consultou:
- Carla Elizabeth Gaynor, Affect,
Coalitional Politics, and Pride: Imagining Activism through Lesbians and Gays
Support the Miners and the United Kingdom Miners’ Strike of 1984-5,
Dissertação de mestrado em Artes da Comunicação e Estudos de Retórica,
Universidade de Siracusa, 2017
- https://www.bbc.com/news/uk-wales-62998313
- https://tribunemag.co.uk/2022/06/lesbians-and-gays-support-the-miners-strike-pride-1984-mike-jackson
- https://wvminewars.org/news/2023/7/7/pride-and-solidarity-lesbians-and-gays-support-the-miners
- https://review.gale.com/2017/05/03/lesbians-and-gays-support-the-miners/
- https://lgbtlawyers.co.uk/2021/02/23/mark-ashton-life-and-legacy/
- https://www.coaltowncoffee.co.uk/blogs/news/pride-and-solidarity
- https://epicchq.com/story/remembering-mark-ashton-a-proud-advocate-of-socialism-and-gay-rights/
- https://dailyyonder.com/women-miners-history-of-1980s-labor-strikes/2021/09/06/
- https://www.youtube.com/watch?v=lHJhbwEcgrA (documentário)
Todos os acessos foram realizados entre
24/09/2023 e 07/11/2023.
[28] Idem. Pg. 41-43.
[29] Em: Carola
Rackete, É hora de agir - um apelo à última geração, Ed. Arquipélago,
Porto Alegre, 2019. Pg. 33.
[30] Dados e maiores
informações sobre o tema podem ser obtidos em: Una panoramica delle
migrazioni per lavoro in Italia - nota tennica, Escritório da OIT para a
Itália e San Marino, 2022, divulgado em: https://www.laboratoriofuturo.it/ricerche/gli-immigrati-nelleconomia-italiana-tra-necessita-e-opportunita/ OIT Acesso realizado em
01/10/2023.
[31] O aprofundamento
deste tema pode ser realizado consultando os textos que seguem:
- Benedetta Possamai, La porta é aperta, ma
sul retro: le politiche migratorie europee e l’integrazione dei migranti in
Italia, trabalho de graduação em Mediação Linguística e Cultural,
Universidade de Bolonha, 2018.
- Eva Garau, Gli
studi sull’immigrazione: il caso italiano. Em: Rivista dell’Istituto di
Storia dell’Europa Mediterranea, Nº 5/11 dezembro de 2019 pg. 123-148.
- Giuliano
Tardivo, Il caso Italia tra boom migratorio e crisi politica - riflessioni
su un paese malato. Em: Revista Castellano-Manchega de Ciencias Sociales,
Nº 9, pg. 205-216, 2008.
- Luca Gatto Le
politiche d’asilo fra Unione Europea e Italia, Dissertação de Mestrado
apresentada à faculdade de Ciências Políticas e sociais da Universidade de
Bolonha, 2019.
- María Coco,
Políticas migratorias en Italia y España: dos paises en comparación
(Punto de vista romanista), tese de doutorado apresentada no departamento de
Ciências Sociais e Jurídicas da Universidade de Córdoba, 2022.
- Maurizio
Ambrosini, Politiche Migratorie, Universidade de Milão, Departamento de
Ciências Políticas e Sociais, sem data
-
Associazione per gli Studi Giuridici sull’Immigrazione, Analisi critica del
c.d. “Decreto sicurezza bis” relativamente alle disposizioni inerenti il
diritto dell’immigrazione, ASGI, setembro de 2019, em: https://www.studocu.com/it/document/universita-degli-studi-della-campania-luigi-vanvitelli/diritto-pubblico-e-costituzionale/2019-commento-decreto-sicurezza-bis-13-9/6433862
- Íntegra do
Decreto Sicurezza bis está disponível em: https://images.go.wolterskluwer.com/Web/WoltersKluwer/%7B97ec704f-1881-4aa7-9327-53646f683c4b%7D_decreto-legge-53-2019.pdf?_ga=2.32502398.1158212881.1699553077-184971624.1699553077&_gl=1*mxj4b4*_ga*MTg0OTcxNjI0LjE2OTk1NTMwNzc.*_ga_B95LYZ7CD4*MTY5OTU1MzA3Ni4xLjAuMTY5OTU1MzA3Ni4wLjAuMA
- Politiche
di Immigrazione em: https://www.voltitalia.it/wp-content/uploads/2022/05/politiche-immigrazione.pdf
- https://www.lenius.it/politiche-immigrazione-ue/
Todos os acessos foram realizados entre 01/09/2023 e 13/10/2023.
[32] Dados divulgados em: https://www.vita.it/per-una-politica-migratoria-fuori-dallemergenza/ Acesso realizado em
15/11/2023.
[33] Em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/10/internacional/1562776886_469320.html Acesso realizado em 15/11/2023.
[34] Em: https://www.publico.pt/2019/06/29/mundo/noticia/carola-rackete-capita-desafiou-salvini-resgatar-migrantes-presa-italia-1878157 Acesso realizado em
09/09/2023.
[35] O vídeo com a gravação deste momento encontra-se na página
eletrônica: https://twitter.com/davidefaraone/status/1144884337114066946?s=20 Acesso realizado em
09/09/2023.
[36] Em: https://www.agi.it/politica/mattarella_salisburgo_carola_reckete-5760301/news/2019-07-02/ Acesso realizado em
09/09/2023.
[37] Em: https://www.agrigentonotizie.it/cronaca/arresto-lampedusa-carola-rackete-sea-watch-donazioni-soldi-distribuire-ong.html Acesso realizado em
09/09/2023.
[38] Em: https://www.repubblica.it/cronaca/2019/07/01/news/carola-230033015/ Acesso realizado em
09/09/2023.
[39] Em: https://www.agi.it/cronaca/sea_watch_incolumita_carola_rackete-5823220/news/2019-07-12/ e em: https://www.agi.it/cronaca/carola_rakete_minacce_luogo_sicuro-5764680/news/2019-07-03/ Acessos realizados em
31/10/2023.
[40] Em: https://www.agi.it/politica/sassoli_migranti_salvare_vite-5789122/news/2019-07-07/ e em https://www.repubblica.it/cronaca/2019/07/02/news/caso_sea_watch_non_c_e_reato_per_carola_salvare_i_migranti_era_suo_dovere_-301001399/
Acessos
realizados em 31/10/2023.
[41] Em: https://video.corriere.it/esteri/migranti-carola-rackete-parlamento-europeo-dove-eravate-quando-chiedevamo-aiuto/29cdeeaa-e607-11e9-b5eb-dc1ff9a38071 Acesso realizado em
15/11/2013.
[42] Esta afirmação consta de uma mensagem que Carola divulgou pelo
Twitter após o evento, mas a cujo texto original não conseguimos ter acesso.
[43] Em: https://www.elmundo.es/internacional/2019/10/30/5db9960821efa0c3568b460d.html Acesso realizado em
09/09/2023.
[44] Em: https://www.elsaltodiario.com/fronteras/carola-rackete-ano-despues-continua-criminalizacion-rescates-mediterraneo-sea-watch Acesso realizado em
09/09/2023.
[45] Em: Carola Rackete, É hora de
agir - um apelo à última geração, Ed. Arquipélago, Porto Alegre, 2019. Pg.
166-167.
[46] Além das fontes citadas nas notas anteriores, a construção deste
capítulo do estudo consultou:
- https://www.dw.com/pt-br/a-capit%C3%A3-que-desafiou-autoridades-para-salvar-refugiados/a-49420934
- https://www.elconfidencial.com/mundo/2019-06-27/ong-salvamento-maritimo-se-rebelan_2092650/
- https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/19/internacional/1547907496_895013.html#?rel=mas
- https://www.repubblica.it/cronaca/2019/07/02/news/inchiesta_carola_sea_watch_agrigento-230128225/
- https://www.repubblica.it/cronaca/2019/07/01/news/inchiesta_agrigento_carola_espulsione-301001387/
- https://www.repubblica.it/cronaca/2019/07/01/news/carola-230033015/
- https://www.forestalinews.it/carola-rackete-capitana-della-nave-sea-watch/
- https://www.agi.it/cronaca/sea_watch_capitana_arrestata-5741999/news/2019-06-29/amp/
-
https://www.agi.it/cronaca/arrestata_comandante_rackete_sea_watch-5743629/news/2019-06-29/
- https://www.agi.it/cronaca/carola_rackete_piazzapulita_salvini-6214715/news/2019-09-19/
- https://www.agi.it/cronaca/carola_rackete_querela_salvini-5818550/news/2019-07-11/
- https://www.agi.it/cronaca/sea_watch_nessun_pentimento-5749991/news/2019-07-01/
- https://www.agi.it/estero/raccolta_fondi_per_carola_sea_watch-5748221/news/2019-06-30/
- https://www.agi.it/cronaca/sea_watch_carola_rackete_scuse-5747551/news/2019-06-30/
- https://www.agi.it/cronaca/sea_watch_olanda_scarica_comandante_carola-5747398/news/2019-06-30/
- https://www.ilpost.it/2019/06/27/capitana-seawatch-carola-rackete/?amp=1
- https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-48833864
- https://www.eldiario.es/desalambre/salvini-carola-rackete-actuo-cumpliendo_1_1459264.html
Todos os acessos foram realizados entre
01/07/2023 e 30/11/2023.
Nenhum comentário:
Postar um comentário