sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Meu pai . . .

 



São vívidas em minha memória as lembranças dos passeios ao riozinho que havia em algum ponto próximo à pequena casa de fundo que nos era alugada, formada por cozinha, banheiro e um quarto. Costumava me levar aos botecos do bairro junto de si nos fins de semana que tirava para descansar. E durante bom tempo, meu pai abriu mão de muitos fins de semana para que nada nos faltasse.

 

Na transição da infância para adolescência, apesar de já estar em vias de adquirir gostos distintos dos dele, no que se referia à música, programas de TV, projeto de futuro, opiniões, por nunca perder a admiração, esforçava-me para não distanciar-me tanto daquilo que me apresentara como sendo as coisas boas da vida, como sendo o correto, apesar da inevitabilidade desse afastamento moral, cultural, na formação de uma subjetividade – a minha – que se constituía num outro mundo, regido por outra geração, por outra tecnologia.

 

Com ele, aprendi certas manhas necessárias para a condução da vida no dia-a-dia de um operário. O trato para com os camaradas, o gosto pelo costelão ou pelo pernil assado, a maestria no truco, os palpites do jogo do bicho. Compreender a cultura proletária e vivê-la.

 

Na auto-escola, não tive dificuldade alguma em absorver os conteúdos de meu instrutor de direção e em realizar a prova que habilitar-me-ia a motorista; o velho me ensinara praticamente tudo anteriormente, no seu antigo Fusca 68, nas ruas do condomínio onde seu lado da família possuiu por algum tempo uma chácara muito usada para nossas confraternizações.

 

Tive o prazer de conhecer sua terra original, minúscula cidade, até certo ponto privilegiada por ser demasiadamente afastada do restante da “civilização”, o que permitia a preservação de suas belezas naturais e da simplicidade do povo que a constituía. E como meu pai falava com carinho de tal lugar, sem nunca deixar de reconhecer a aspereza da existência onde escola, posto de saúde, hospital, mercado, enfim, no qual toda a estrutura ficava a quilômetros de distância do local de moradia e que só poderiam ser acessados após longas caminhadas embaixo de sol forte, ou de chuva, ou raramente sob uma condição climática agradável.

 

Claro, nem tudo entre nós, foram flores. Estamos falando de um homem nascido e crescido nos confins da zona rural e que precisou se fortalecer intensa e rapidamente para não ser engolido pelas exigências da vida urbana. Católico Apostólico Romano, de ética e maneiras conservadoras, ao longo de nossos 36 anos de convivência, tivemos nossos arranca-rabos. Mas nada que não tenha sido facilmente superado, a tempo de muito mais nos curtirmos do que de nos desprezarmos.

 

Aliás, desprezo de uns pelos outros, em nossa família, é algo que factualmente nunca existiu. Mesmo vivendo sempre financeiramente no fio da navalha, sobretudo, nos últimos oito anos, como tivemos resiliência, resistência, para sermos felizes nas tardes de domingo.

 

Trabalhador em plantações de tomate, em obras, na indústria química, metalúrgico, pôde ao fim da vida, mesmo sem nunca ter tido o direito de cessar do trabalho, usufruir do Golzinho quadrado prateado, modelo 94, para o qual tinha grande esmero; pôde assar-nos churrascos na churrasqueira de alvenaria; pôde assistir aos vídeos religiosos e de filmes antigos na enorme TV; pôde manipular via controle o portão basculante que tirava a necessidade de ter de descer do carro para o guardá-lo ou tirá-lo da garagem.

 

Viu seu filho mais velho, um inveterado rebelde, tornar-se psicólogo; sua filha do meio se casar com um bom marido e juntos conquistarem a casa própria; viu sua filha mais nova crescer com a promessa de futuro brilhante devido ao seu gosto por livros e à sua inteligência; pôde ser cuidado da forma mais humana possível por sua fiel e abnegada esposa que dedicou-se cento e dez por cento na saúde e na doença.

 

Meu pai foi a prova viva de quão o SUS é precioso e de como nós, trabalhadores, em hipótese alguma, podemos dele abrir mão.

 

Vendeu sua força de trabalho, teve sua mais-valia expropriada e sequer teve o direito de aposentar-se para aproveitar a reta final da vida em ócio, apesar de cumprir rigorosamente todos os requisitos para tal. Seria afastado via INSS pela empresa e por não ter garantia alguma de que os “peritos” aprovassem seu afastamento remunerado – afinal, câncer na próstata e no fígado não desabilitam ninguém de suas atividades laborais – precisou tirar férias para se cuidar... E para morrer...

 

O capital espremeu meu pai até onde pôde – como o faz com todos nós – e depois o descartou sem pudor algum, quando “perdeu sua utilidade” – como o faz com todos nós. Mas os trabalhadores, ao longo da vida, nos momentos finais, no velório e no enterro, não se esqueceram de meu velho. Amigos, vizinhos, parentes, companheiros de trabalho, camaradas da luta... Uma centena de pessoas disponibilizaram um tempinho ou mesmo um tempão para prestar-lhe a devida homenagem. Sou eternamente grato a todos vocês que se dispuseram, inclusive, a conduzir o caixão pelas mãos no momento da derradeira saudação. O velho teve uma digníssima despedida; a altura da vida que levou; que ensinou... A altura de seu legado.

 

Resistência, Luta, Felicidade, Amor...

 

Um grande beijo no coração, muito obrigado por tudo e fique com Deus, meu eterno parceiro de truco, costelão e cerveja.

 

IN MEMORIAN

 

JAIR RODRIGUES DA SILVA

 05/09/1963

 31/01/2024

 

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