São vívidas em
minha memória as lembranças dos passeios ao riozinho que havia em algum ponto
próximo à pequena casa de fundo que nos era alugada, formada por cozinha,
banheiro e um quarto. Costumava me levar aos botecos do bairro junto de si nos
fins de semana que tirava para descansar. E durante bom tempo, meu pai abriu
mão de muitos fins de semana para que nada nos faltasse.
Na transição da
infância para adolescência, apesar de já estar em vias de adquirir gostos
distintos dos dele, no que se referia à música, programas de TV, projeto de
futuro, opiniões, por nunca perder a admiração, esforçava-me para não
distanciar-me tanto daquilo que me apresentara como sendo as coisas boas da
vida, como sendo o correto, apesar da inevitabilidade desse afastamento moral,
cultural, na formação de uma subjetividade – a minha – que se constituía num
outro mundo, regido por outra geração, por outra tecnologia.
Com ele, aprendi
certas manhas necessárias para a condução da vida no dia-a-dia de um operário.
O trato para com os camaradas, o gosto pelo costelão ou pelo pernil assado, a
maestria no truco, os palpites do jogo do bicho. Compreender a cultura
proletária e vivê-la.
Na auto-escola,
não tive dificuldade alguma em absorver os conteúdos de meu instrutor de
direção e em realizar a prova que habilitar-me-ia a motorista; o velho me
ensinara praticamente tudo anteriormente, no seu antigo Fusca 68, nas ruas do
condomínio onde seu lado da família possuiu por algum tempo uma chácara muito
usada para nossas confraternizações.
Tive o prazer de
conhecer sua terra original, minúscula cidade, até certo ponto privilegiada por
ser demasiadamente afastada do restante da “civilização”, o que permitia a
preservação de suas belezas naturais e da simplicidade do povo que a
constituía. E como meu pai falava com carinho de tal lugar, sem nunca deixar de
reconhecer a aspereza da existência onde escola, posto de saúde, hospital,
mercado, enfim, no qual toda a estrutura ficava a quilômetros de distância do
local de moradia e que só poderiam ser acessados após longas caminhadas embaixo
de sol forte, ou de chuva, ou raramente sob uma condição climática agradável.
Claro, nem tudo
entre nós, foram flores. Estamos falando de um homem nascido e crescido nos
confins da zona rural e que precisou se fortalecer intensa e rapidamente para
não ser engolido pelas exigências da vida urbana. Católico Apostólico Romano,
de ética e maneiras conservadoras, ao longo de nossos 36 anos de convivência,
tivemos nossos arranca-rabos. Mas nada que não tenha sido facilmente superado,
a tempo de muito mais nos curtirmos do que de nos desprezarmos.
Aliás, desprezo
de uns pelos outros, em nossa família, é algo que factualmente nunca existiu.
Mesmo vivendo sempre financeiramente no fio da navalha, sobretudo, nos últimos
oito anos, como tivemos resiliência, resistência, para sermos felizes nas
tardes de domingo.
Trabalhador em
plantações de tomate, em obras, na indústria química, metalúrgico, pôde ao fim
da vida, mesmo sem nunca ter tido o direito de cessar do trabalho, usufruir do
Golzinho quadrado prateado, modelo 94, para o qual tinha grande esmero; pôde
assar-nos churrascos na churrasqueira de alvenaria; pôde assistir aos vídeos
religiosos e de filmes antigos na enorme TV; pôde manipular via controle o
portão basculante que tirava a necessidade de ter de descer do carro para o
guardá-lo ou tirá-lo da garagem.
Viu seu filho
mais velho, um inveterado rebelde, tornar-se psicólogo; sua filha do meio se
casar com um bom marido e juntos conquistarem a casa própria; viu sua filha
mais nova crescer com a promessa de futuro brilhante devido ao seu gosto por
livros e à sua inteligência; pôde ser cuidado da forma mais humana possível por
sua fiel e abnegada esposa que dedicou-se cento e dez por cento na saúde e na
doença.
Meu pai foi a
prova viva de quão o SUS é precioso e de como nós, trabalhadores, em hipótese
alguma, podemos dele abrir mão.
Vendeu sua força
de trabalho, teve sua mais-valia expropriada e sequer teve o direito de
aposentar-se para aproveitar a reta final da vida em ócio, apesar de cumprir
rigorosamente todos os requisitos para tal. Seria afastado via INSS pela
empresa e por não ter garantia alguma de que os “peritos” aprovassem seu
afastamento remunerado – afinal, câncer na próstata e no fígado não desabilitam
ninguém de suas atividades laborais – precisou tirar férias para se cuidar... E
para morrer...
O capital
espremeu meu pai até onde pôde – como o faz com todos nós – e depois o
descartou sem pudor algum, quando “perdeu sua utilidade” – como o faz com todos
nós. Mas os trabalhadores, ao longo da vida, nos momentos finais, no velório e
no enterro, não se esqueceram de meu velho. Amigos, vizinhos, parentes,
companheiros de trabalho, camaradas da luta... Uma centena de pessoas
disponibilizaram um tempinho ou mesmo um tempão para prestar-lhe a devida
homenagem. Sou eternamente grato a todos vocês que se dispuseram, inclusive, a
conduzir o caixão pelas mãos no momento da derradeira saudação. O velho teve
uma digníssima despedida; a altura da vida que levou; que ensinou... A altura
de seu legado.
Resistência,
Luta, Felicidade, Amor...
Um grande beijo
no coração, muito obrigado por tudo e fique com Deus, meu eterno parceiro de
truco, costelão e cerveja.
IN MEMORIAN
JAIR RODRIGUES DA SILVA
✩ 05/09/1963
† 31/01/2024
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