“E, levantando ele os olhos para os seus discípulos, dizia: Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus. Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis fartos. Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir”.
Lucas 6:20,21
Pobres.
Pobreza. Empobrecimento. Pior que essas palavras é a realidade que elas
significam. O pobre é destituído de recursos que providenciem bem-estar à vida.
E por bem-estar entendo a experiência de uma vida com abundância, sem
desperdícios. Uma abundância que mata a fome, agasalha e abriga o corpo, cuida
da saúde e garante o trabalho, o descanso, o lazer e a seguridade social, com
uma polpuda e merecida aposentadoria. Sem essa abundância, temos a pobreza.
Ora, ninguém é pobre por querer ser pobre, exceto, é claro, aqueles que seguem
ordens religiosas com voto de pobreza, por opção de foro íntimo ou por algum
ideal em que acreditem. Assim como pode haver alguém na pobreza por falta de
orientação... Mas são exceções. A pobreza não é desejada. Ser pobre não é um
projeto de vida. Empobrecer não é propósito das pessoas. Entretanto, a
realidade é que existem pobres. O fato é que o empobrecimento chega para muita
gente. A pobreza está por aí, grassando (ou desgraçando) a (pobre) vida de
muitas pessoas.
No
relato dos quatro evangelhos do Novo Testamento, deparamo-nos com Jesus cercado
por pessoas destituídas de recursos econômicos, que vão até ele na busca da
supressão de seus anseios. Ele mesmo, proativamente, aproxima-se de tais
pessoas e, em várias passagens bíblicas, dá-lhes atenção especial.
Ora,
o tema da pobreza percorre toda a Sagrada Escritura. No pentateuco, temos leis
específicas que tratam do pobre, providenciando dispositivos legais de socorro,
bem como a proibição da exploração dos mais ricos sobre os mais pobres. Nos profetas, há uma profusão de mensagens que
denunciam a opressão do Estado Monárquico israelita e dos mais abastados sobre
os empobrecidos, afirmando, sempre, que Deus está do lado destes últimos. E no
Novo Testamento, há recomendações epistolares dos apóstolos sobre a atenção a
ser dada aos mais pobres e, principalmente, os relatos evangélicos da atuação
de Jesus, por obras e palavras, em favor dos pobres. Você, caro leitor e prezada
leitora que porventura passar os olhos sobre este texto, poderá valer-se de um
exemplar das Sagradas Escrituras para ali encontrar as abundantes citações
bíblicas sobre isto que afirmei acima. Aqui, por questão de espaço e opção
pessoal, posso oferecer alguns exemplos.
Logo
nos primeiros livros bíblicos, que são os chamados “livros da lei”, são nos apresentadas
listas de normas que organizam a vida em sociedade. Entre as várias espécies de
leis, há algumas que tratam da condição dos mais pobres, estabelecendo regras e
condutas que evitem a exploração e a opressão sobre os despossuídos de bens. A
seguir, selecionei algumas:
“Sempre
haverá pobres na terra. Portanto, eu ordeno a você que abra o coração para o
seu irmão israelita, tanto para o pobre como para o necessitado de sua terra”. Deuteronômio
15:11
"Quando
fizerem a colheita da sua terra, não colham até as extremidades da sua lavoura
nem ajuntem as espigas caídas de sua colheita. Não passem duas vezes pela sua
vinha nem apanhem as uvas que tiverem caído. Deixem-nas para o necessitado e
para o estrangeiro. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês”. Levítico
19:9-10
"Se
alguém do seu povo empobrecer e não puder sustentar-se, ajudem-no como se faz
ao estrangeiro e ao residente temporário, para que possa continuar a viver
entre vocês. Não cobrem dele juro algum, mas temam o seu Deus, para que o seu
próximo continue a viver entre vocês. Vocês não poderão exigir dele juros nem lhe
emprestar mantimento visando a algum lucro. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês,
que os tirou da terra do Egito para dar a vocês a terra de Canaã e para ser o
seu Deus”. Levítico
25-35-38
“Também
seis anos semearás tua terra, e recolherás os seus frutos; mas ao sétimo a
dispensarás e deixarás descansar, para que possam comer os pobres do teu povo,
e da sobra comam os animais do campo. Assim farás com a tua vinha e com o teu
olival”. Êxodo 23.10-11
No
livro de Provérbios, que se trata de uma coletânea de sabedoria popular
coletada, temos: “Oprimir o pobre é ultrajar o seu Criador, mas tratar com
bondade o necessitado é honrar a Deus”. Provérbios 14.31
Já
os profetas são pródigos em mensagem que denunciam a existência da pobreza como
resultado de injustiças.
“Assim
diz o Senhor: Por três transgressões de Israel, e por quatro, não retirarei o
castigo, porque vendem o justo por dinheiro, e o necessitado por um par de
sapatos, suspirando pelo pó da terra, sobre a cabeça dos pobres, pervertem o
caminho dos mansos; e um homem e seu pai entram à mesma moça, para profanarem o
meu santo nome”. Amós 2:6,7
“Eis
que esta foi a iniquidade de Sodoma, tua irmã: Soberba, fartura de pão, e
abundância de ociosidade teve ela e suas filhas; mas nunca fortaleceu a mão do
pobre e do necessitado”. Ezequiel 16:49
No
Novo Testamento, temos recomendações nas cartas apostólicas a respeito da
situação dos pobres e, também, as falas e gestos de Jesus em relação a esse
grupo social, propondo um olhar específico e especial aos “desafortunados” da
terra.
Em
meu entendimento, a partir dos textos bíblicos, a existência de pobres e a
realidade da pobreza manifestam algo ruim e errado na sociedade humana. “Há
algo de podre no reino da Dinamarca”. Aliás, se pensamos em “sociedade humana”,
pensamos em pessoas, humanas, associadas entre si. Associadas para juntas
sobreviverem neste “mundão de Deus.” No entanto, ao logo da história dessa
sociedade humana, ouvimos falar e mesmo presenciamos que pessoas, humanas,
associam-se para empreender guerras, para conspirar contra algo, para repartir
os despojos da rapina, para manter o “status quo”, para formar condomínios e
guetos e para tantas outras “obras” nem sempre louváveis. Pouco ou nada há na
direção de uma associação que nasça e frutifique no empenho, humano, de buscar
meios de superação da pobreza e a retirada de um sem números de pessoas,
humanas, da condição de pobre.
Entendo,
e creio, que a mensagem evangélica, isto é, fundamentada no Evangelho conforme
as Sagradas Escrituras, é uma proclamação libertária que conclama as pessoas,
humanas, a se humanizarem, indicando que não estão sozinhas nesse empenho, mas,
antes, amparadas pela fé NAquele que se manifesta no texto bíblico: “O Senhor despediu
vazios os ricos”. Junto com essa verdade alvissareira, humanizar-se implica e
inclui sair da condição de pobre. A mensagem evangélica, antes de ser um
chamado à santificação, separando pessoas deste “mundão de Deus, é um convite à
humanização das pessoas. A pobreza, consequência direta da ação (des)humana de
exploração, escravização, espoliação e indiferença ao outro, é uma bestialização
de pessoas, humanas, atiradas à sua própria sorte, em um mundo cruel sustentado
pela injustiça social e segregação entre pessoas, humanas, que competem entre
si numa aguerrida batalha por sobrevivência, a qual tem se revelado, ou se
manifestado, dia após dia, como uma massacre de fortes sobre fracos, sem nos
esquecermos de que os fortes, ao longo da longa história da humanidade,
fortaleceram-se às custas dos fracos.
Os
pobres não estão na Bíblia por nada. Não estão nas páginas das Sagradas
Escrituras como alvo de caridade dos filhos de Deus. Os pobres não aparecem no
livro sagrado dos cristãos para serem objeto de misericórdia. Não. Estão ali
para revelar os descaminhos da humanidade. E não devem ser vistos como
desfavorecidos por Deus, ou por Ele não abençoados. A pobreza não é causada por
“demônios da pobreza”, nem é um castigo divino para pessoas desobedientes aos
mandamentos bíblicos. A pobreza não é fruto de pecado ou maldição, mas obra
conjunta da ganância, do individualismo, da falta de empatia, da sede de poder
e do medo de perder um suposto poder.
Na
Bíblia, os pobres têm uma certa primazia na ação de Deus em prol da humanidade.
Jesus andou entre eles e foi um deles: “As raposas têm covis, e as aves do
céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. Mateus
8.20. E até na sua morte, precisou de um túmulo emprestado. Com seus
discípulos, andou pelas beiradas das plantações, colhendo espigas de trigo em
dia de sábado, seguindo leis de Moisés que permitiam que os pobres assim o
fizessem, sem serem importunados por isso pelos agricultores. “Em dia de
sábado, Jesus atravessava umas plantações; seus discípulos iam colhendo espigas
{de trigo}, as debulhavam na mão e comiam. Alguns dos fariseus
lhes diziam: Por que fazeis o que não é permitido no sábado?” Lucas 6.1-2 e
“Quando segardes a messe na vossa terra, não colhereis até as extremidades
da lavoura, tampouco recolhereis as espigas que caem aos vossos pés durante a
colheita. Deixareis essa parte para o pobre e para estrangeiro. Eu Sou Yahweh,
o SENHOR, o vosso Deus!”. Levítico 23.22
Como
escrevi acima, a Bíblia é uma mensagem libertária. Não é uma conclamação à luta
de classes, mas à dissipação da separação entre as pessoas. Assim, a pobreza
não tem lugar no propósito redentor da humanidade apregoado por profetas e
apóstolos. A riqueza também não tem lugar, na mediada em que ela é construída
(e sustentada) sobre a exploração de um homem sobre outro homem. Gosto de um
hino, pouco cantado nas igrejas, intitulado “Que estou fazendo se sou
cristão?”. Em uma das estrofes temos a frase “a vil miséria insulta os céus”. É
isso! Pobreza, miséria e carestia estão na Bíblia, mas não são bíblicas. São,
antes, uma denúncia da falta de fé, de amor e de fidelidade Àquele que “faz
raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos”.
Mateus 5.45
Nas
linhas bem traçadas das Sagradas Escrituras, os “pobres da terra” são
mencionados para que sejam lembrados. Lembrados, vistos, percebidos e
socorridos. Se levarmos com seriedade e consideração que a proclamação bíblica é
uma mensagem de que os seres humanos foram criados à imagem e semelhança” de
Deus, não poderemos fazer vistas grossas para o fato, palpável e tangível, de
que todos somos irmãos. Ora, se assim é, encerro com a recomendação bíblica: “Ora,
aquele que possuir recursos deste mundo, e vir seu a irmão padecer necessidade,
e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor e Deus”? Não é
um versículo bíblico que apoia uma mudança estrutural na sociedade no que se
refere às desigualdades sociais, mas uma atenção consciente ao que ele
preconiza poderia bem ser o começo de uma revolução.
A.L.P.
Nenhum comentário:
Postar um comentário