Publicado em 08/05/2014 por Leonardo
Boff
Interrompo
minha reflexão sobre os vetores da crise sistêmica atual e as eventuais saídas
da crise, em razão da tragédia ambiental ocorrida no Rio Grande do Sul. As
intensas chuvas e as catastróficas enchentes, com as águas invadindo cidades
inteiras, destruindo-as em parte, deslocando centenas de famílias, causando
milhares de refugiados ou de desaparecidos e mortos, nos fazem pensar.
Antes
de mais nada nossa profunda solidariedade às populações atingidas por esta
calamidade de proporções bíblicas. Expressamos nossa compaixão, pois como
ensinava Santo Tomás na Suma Teológica:
“a compaixão em si é a virtude maior. Pois
faz parte da compaixão derramar-se sobre os outros – e o que é mais ainda – ajudar
a fraqueza e a dor dos outros”.
Todo
o país se mobilizou. O povo brasileiro mostrou o melhor de si, sua capacidade
de solidariedade e disposição de ajuda, a despeito dos perversos que exploram a
desgraça para fins particulares e por mentiras e calúnias.
Seria
errôneo pensar que se trata apenas de uma catástrofe natural, pois de tempos em
tempos ocorrem fenômenos semelhantes. Desta vez a natureza da tragédia possui
outra origem. Temos a ver com a nova fase em que entrou o planeta Terra: a
instalação de um novo estágio, caracterizado pelo aumento do aquecimento
global. Tudo isso de origem antropogênica, quer dizer, produzida pelos seres
humanos, mas mais especificamente pelo capitalismo anglo-saxão, devastador dos
equilíbrios naturais.
Há
negacionistas em todos as esferas, especialmente entre os CEOS das grandes
empresas e naqueles que se sentem bem na situação de privilégio, assentados
sobre uma situação de conforto. Mas a avalanche de transtornos nos climas, a
irrupção de eventos extremos, as ondas de calor intenso e de secas severas, os
grandes incêndios, os tornados e as enchentes apavorantes, constituem fenômenos
inegáveis. Está tocando a pele dos mais resistentes. Começaram também eles a
pensar.
Considerando
a história do planeta que já existe há mais de 4 bilhões de anos, constatamos
que aquecimento global participa da evolução e do dinamismo do universo; este
está sempre em movimento e se adaptando às circunvoluções energéticas que
ocorrem no decorrer do processo cosmogênico. Assim o planeta Terra conheceu
muitas fases, algumas de extremo frio, outras de extremo calor como há 14
milhões de anos. Nesta época de calor extremos não existia ainda o ser humano
que somente irrompeu na África há 7-8 milhões de anos e o homo sapiens atual há
apenas 200 mil anos.
O
próprio ser humano percorreu várias etapas em seu diálogo com a natureza:
inicialmente predominava uma interação pacífica com ela; depois passou a uma
intervenção ativa nos seus ritmos, desviando cursos de rios para a irrigação,
cortando territórios para estradas; passou para uma verdadeira agressão da
natureza, precisamente a partir do processo industrialista que se aproveitou
dos recursos naturais para a riqueza de alguns à custa da pobreza das grandes
maiorias; esta agressão foi levada por tecnologias eficientes a uma verdadeira
destruição da natureza, ao devastar inteiros ecossistemas, pelo
desflorestamento em função da produção de commodities, pelo mau uso do solo
impregnando-o de agrotóxicos, contaminando as águas e os ares. Estamos em plena
fase de destruição das bases naturais que sustentam nossa vida. Digamos o nome:
é o modo de produção/devastação do sistema capitalista anglo-saxão hoje
globalizado, com seus mantras: maximização do lucro através da super exploração dos bens e serviços naturais, no quadro de severa competição sem qualquer laivo
de colaboração.
Este
processo teve um pesado custo, sequer tomado em conta pelos operadores deste
sistema. Os danos naturais e sociais eram considerados como efeitos colaterais
que não entravam na contabilidade das empresas. Ao estado e não a eles cabia
enfrentar tais taxas de iniquidade.
A
Terra viva começou a reagir enviando vírus, bactérias, todo tipo de doenças,
tufões, tempestades rigorosas e por fim um aumento de sua temperatura natural.
Ela entrou em ebulição. Iniciamos um caminho sem volta. São os gases de efeito
estufa: o CO2, o metano (28 vezes mais danoso que o CO2), o óxido nitroso e o
enxofre entre outros. Só em 2023 foram lançados na atmosfera 40,8 milhões de
toneladas de dióxido de carbono, com consta no relatório da COP 28, realizada
no Cairo.
Vejamos
os níveis de crescimento desse gás: em 1950 as emissões eram de 6 bilhões de
toneladas; em 2000 já eram 25 bilhões; em 2015 subiu para 35,6 bilhões; em 2022
foram 37,5 bilhões e finalmente em 2023, como referimos, foram 40,9 bilhões de
toneladas anuais. Esse volume de gazes funciona como uma estufa, impedindo que
os raios do sol retornem para o universo, criando uma capa quente, ocasionando
o aquecimento do inteiro planeta. Acresce dizer que o dióxido de carbono, CO2,
permanece na atmosfera por cerca de 100 a 110 anos.
O
que estamos assistindo no Rio Grande do Sul é apenas o começo de um processo
que, mantido o tipo atual de civilização dilapidadora da natureza, tende a
piorar. Os próprios climatólogos alertam: a ciência e a técnica despertaram
tarde demais para essa mudança climática. Agora não poderão evitá-la, apenas
advertir da chegada de eventos extremos e de mitigar seus efeitos danosos.
Terra
e Humanidade deverão adaptar-se a essa mudança climática. Idosos e crianças e
muitos organismos vivos terão dificuldade de adaptação e irão sofrer muito e
até morrer. A Mãe Terra daqui por diante conhecerá transformações nunca dantes
havidas. Algumas podem dizimar as vidas de milhares de pessoas. Se não
cuidarmos, o planeta inteiro poderá ser hostil à vida da natureza e à nossa
vida. No seu termo, poderemos até desaparecer. Seria o preço de nossa
irresponsabilidade, desumanidade e descuido da natureza que tudo nos dá para
viver. Não conseguimos pagar a conta.
Leonardo Boff escreveu:
- Como cuidar da Casa Comum: como protelar o fim do mundo, Vozes 2024;
- O doloroso parto da Mãe Terra, Vozes 2021;
- A busca da justa medida: como
equilibrar o planeta Terra, Vozes 2021.
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