A distância que separa
o dizer do fazer é sempre muito grande. As contradições da realidade desafiam a
coerência e testam a firmeza dos valores nos quais acreditamos. Na seara da
política, o balanço de perdas e ganhos na construção da governabilidade dilui
os compromissos de campanha a ponto de torná-los irreconhecíveis e transforma
esta distância em abismo.
As explicações pela
não realização das promessas veiculadas são sempre as mesmas: não houve
arrecadação suficiente, os juros das dívidas sufocaram o orçamento, não
estávamos em maioria no Legislativo, a herança dos governos anteriores impediu
os avanços desejados, o conservadorismo da sociedade frustrou nossos
propósitos, e assim por diante. É como se o então candidato ao cargo não
soubesse de antemão em que terreno estava pisando, ignorasse que as
alternativas por ele apresentadas deviam corrigir os problemas criados por quem
o antecedeu e, sobretudo, que seu partido não seria a única força no gramado
traiçoeiro dos jogos de poder.
Nas linhas que seguem,
reuniremos promessas, fatos e medidas que permitem pensar criticamente o
mandato de Gabriel Boric à frente do governo do Chile. Se você, como nós, não
se contenta com a explicação de que tudo seria bem pior se a extrema direita
tivesse vencido o pleito, as nossas reflexões são um convite a perceber como as
posições dos setores progressistas podem negar o que se propunham.
1. Quem te viu...e
quem te vê...
Simples e direta, a
expressão do senso comum que usamos como título traduz a mescla de raiva e
decepção de quem se sente traído por alguém em quem depositou a sua confiança.
No Chile, a comprovação deste sentimento é registrada nas pesquisas do
instituto CADEM de agosto deste ano, quando os números mostraram que o atual
Presidente da República tem a aprovação de apenas 24% dos entrevistados, o
segundo pior índice entre os mandatários que o antecederam.[1] As razões desta avaliação estão em
diferentes campos da vida em sociedade. Vamos a alguns deles.
Em primeiro lugar, é
necessário resgatar que, em sua trajetória política, Boric e outros integrantes
da sua equipe criticaram duramente os governos que, entre 1990 e 2010, cederam
aos interesses da elite e mantiveram o
país com um dos maiores índices de desigualdade da América Latina. Na eco dos
protestos de outubro de 2019, a candidatura de Boric às eleições presidenciais
de 2021 lançava a ideia de um “novo Chile” a ser erguido com mudanças que
corrigiriam as injustiças que mais pesavam nos ombros do povo.[2] Nos discursos de campanha, não faltaram
ataques aos grupos econômicos e aos tratados comerciais que relegavam o país a
um papel subordinado no âmbito do capitalismo mundial, à brutalidade da
violência policial e à impunidade dos seus atos em várias regiões do país. As
promessas de resolver a crise habitacional se mesclavam às de viabilizar
mudanças significativas na seguridade social, na educação e na saúde, num
processo que deslancharia uma vez que a nova Constituição tivesse eliminado os
impedimentos legais existentes.
Contudo, desde o
início do mandato, os chilenos assistiram a um filme bem diferente do que
estavam esperando. Dos problemas que cercaram a formatação da nova Constituição
aos que levaram à sua rejeição, em setembro de 2022, a realidade escancarou a
incapacidade de o governo costurar no meio popular as condições que
sustentariam as mudanças alardeadas. As concessões para viabilizar a elaboração
de mais uma Carta Magna mostraram recuos significativos em relação aos
propósitos iniciais do novo governo.[3] Daí em diante, a escolha de apostar todas
as fichas numa negociação pragmática com o Congresso levou a equipe de Boric a
trilhar caminhos que rumavam na direção oposta à de um país mais justo e menos
desigual. Alguns exemplos ajudam a entender este processo.
Em vários momentos de 2023, os noticiários
chilenos reportaram que, em função das cobranças indevidas das Instituições de
Saúde Previdenciária (ISAPRES), em cujas mãos estão os cuidados médicos de 25%
dos chilenos, as mesmas deveriam devolver aos usuários o equivalente a um
bilhão e 155 milhões de dólares. A grita dos empresários de que isso colocaria
em risco o atendimento da população fez com que, graças a um acordo com o
Congresso, o governo perdoasse a dívida com os usuários em nome da saúde
financeira das seguradoras privadas.
Outro caso que atingiu
diretamente a população é o dos preços da energia elétrica. A ser realizado em
três parcelas entre julho de 2024 e janeiro de 2025, o reajuste das tarifas
residenciais (que soma, em média, 60%) se destina a cobrir a dívida de mais de
6 bilhões de dólares do Estado com as empresas de geração e distribuição após o
congelamento dos valores do fornecimento em 2019. Este aumento ocorre num
momento em que a renda de muitas famílias está sob pressão em função da
situação econômica do país e encolherá o poder de compra dos salários. Para ir
ao encontro dos 40% que compõem a população mais vulnerável, o governo oferece
um subsídio temporário.
A burocracia para ter
acesso à ajuda governamental e o valor da mesma despertam dúvidas em relação à
capacidade de esta medida reduzir o impacto da conta de luz no orçamento dos
mais necessitados, ao número de famílias que conseguirão cumprir as exigências
legais e ao que acontecerá quando o valor da conta for integralmente pago
também pelos consumidores beneficiados pelo subsídio. Contudo, para além das
questões “técnicas”, a explicação do aumento das tarifas deixou o gosto amargo
de um governo que se rende às empresas por não ver na estatização dos serviço
uma saída para a situação atual e por não dispor de alternativas que afastem a
faca das geradoras e distribuidoras privadas da garganta dos consumidores
residenciais.[4]
Da energia elétrica passamos à demanda mundial de lítio, mineral
indispensável para a fabricação de baterias, que coloca o Chile numa posição
privilegiada. Segundo maior produtor depois da Austrália, o país definiu a
exploração deste recurso no final de março deste ano, quando o governo anunciou
a entrega de 26 jazidas à iniciativa privada (cerca de 18% das reservas
existentes). No mesmo dia, Boric anunciou que manteria o controle estatal em
outras duas (com a possibilidade de estabelecer parcerias público-privadas) e
realizaria um estudo de viabilidade técnica em mais 38 salinas.
Graças às concessões, a produção de lítio do Chile pode dobrar em uma
década. Porém, a que parece uma boa
notícia desperta dúvidas diante de uma pergunta elementar: quem irá se
beneficiar desta abundante riqueza nacional? O que aconteceu com a exploração
do cobre no início da ditadura, em setembro de 1973, sugere que poucos se
fartarão com a que os empresários descrevem como uma chance de ouro para o
país. Os termos do acordo de livre comércio que o governo Boric assinou com a
União Europeia em dezembro de 2023 agravam as impressões de que os
trabalhadores chilenos terão pouco a ganhar.
Além de escancarar as portas à competição das empresas do bloco em todos
os setores da economia, o texto prevê o fim da venda do lítio a preços menores
dos praticados no mercado mundial para as sediadas no território nacional. Esta
medida proporcionava certa vantagem competitiva à produção interna de produtos
de maior valor agregado. Pôr fim a ela significa correr o risco de perder a
concorrência pela produção da União Europeia, com o consequente fechamento de
indústrias locais. Ou seja, além da possibilidade de os europeus participarem
da exploração de lítio, das concorrências públicas e de outros empreendimentos,
com o respectivo envio de lucros ao exterior, o tratado arma uma arapuca para a
indústria nacional cuja competitividade terá que pressionar os custos do
trabalho e contar com uma modernização dos equipamentos para ter preços e
qualidade à altura das mercadorias oferecidas pelo velho continente.[5]
Se isso não bastasse, as solicitações de novas atividades de extração de
ouro, prata e pedra-pomes em território indígena não ameaçam apenas as belas
paisagens, as antigas florestas nativas e a biodiversidade de regiões
preservadas, mas a própria sobrevivência das comunidades atingidas. Segundo a
interpretação jurídica dominante, as normas que regulam a mineração, estão
acima da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o
Chile é signatário, que obriga as mineradoras a realizarem consultas para
definirem a extensão dos projetos e as compensações pelos estragos produzidos.[6] Vistos como um
estorvo para os interesses do “Deus Capital” e dos que a ele servem, os
indígenas têm sua sobrevivência ameaçada num processo que priva suas
comunidades dos elementos que estão na base de sua existência.
Diante de tamanha submissão do Governo Boric, não é de estranhar que os
Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) no país estejam na contramão do que
vem acontecendo no continente. De acordo com a Comissão Econômica Para a
América Latina e Caribenha (CEPAL), em 2023, os IED no Chile cresceram 19% em
relação ao ano anterior, enquanto na região por ela representada os 184 bilhões
e 304 milhões de dólares que entraram mostram uma queda de 9,9% na mesma base
de comparação.[7]
Engana-se quem imagina que os reflexos deste indicador na economia
chilena se traduzam numa redução da taxa de desemprego. De fato, a maior parte
da extração do lítio e das demais atividades de mineração demanda um número
reduzido de trabalhadores. As marcas desta realidade são visíveis nas taxas de
desemprego. Em março de 2022, quando Boric foi empossado, 7,5% da força de
trabalho estava desocupada. Desde então, não houve um único mês em que a taxa
de desemprego ficasse abaixo deste índice que chegou a 8,7% em agosto deste
ano.[8]
O balanço da primeira metade do mandato mostra a decepção popular em
relação aos resultados efetivamente apresentados pelo governo Boric. Por muito
que a cobrança de 1% sobre os lucros das grandes mineradoras de cobre leve
algum recurso às comunidades atingidas por suas atividades; que o pagamento da
pensão alimentícia aos pais tenha se tornado obrigatório; que os cidadãos
filiados ao Fundo Nacional de Saúde tenham acesso a cuidados médicos gratuitos
e que o salário mínimo tenha sido gradualmente reajustado dos 440.000 Pesos, em
maio de 2023, para os atuais 500.000 Pesos (um aumento real considerado pequeno
diante da inflação acumulada desde o último reajuste), o fato de o
gerenciamento das contribuições para a aposentadoria não registrar nenhuma
mudança aduba a insatisfação popular na exata medida em que os valores dos
futuros benefícios não sairão dos vergonhosos patamares atuais.[9]
Último, mas não menos importante, está o fato de o aparato policial do
Estado ter sido fortalecido sem passar por nenhum tipo de reformulação de sua
filosofia de ação. Durante a campanha eleitoral, a reforma dos Carabineiros (um
corpo policial com funções semelhantes às da polícia militar brasileira) foi um
dos principais destaques do então candidato Gabriel Boric. Diante dos mais de
400 casos de violações dos direitos humanos na repressão que se abateu sobre os
manifestantes em outubro de 2019, mudar a atuação da corporação foi apresentada
como uma tarefa urgente. Contudo, após dois anos e meio de mandato, a posição
do governo em relação aos carabineiros mudou do vinho para a água.
Para compreender esta mudança, é importante lembrar que, desde 2015, o
Observatório do Narcotráfico do Ministério Público alertava as autoridades de
que o país estava deixando de ser um ponto de passagem do comércio internacional
de entorpecentes para se tornar produtor dos mesmos, o que implicava no
acirramento das disputas territoriais por organizações criminosas
internacionais. Os governos anteriores nada fizeram para conter este avanço que
elevou a violência dos crimes a um patamar que os chilenos não conheciam.[10]
Neste cenário, o governo Boric ponderou que qualquer crítica à atuação
dos carabineiros enfraqueceria a instituição. A reforma deste corpo policial
foi assim colocada no baú do esquecimento e a violência da sua atuação nunca
deixou de ter como alvo os movimentos sociais. O “Boric do passado” que sempre
denunciou a militarização da ordem pública como caminho perverso para enfrentar
os problemas do Chile vestiu a roupa de um Presidente que ampliou este processo
nos territórios indígenas e com as organizações que incomodam o seu caminhar.[11] A seguir, falaremos
mais sobre isso.
2. A injustiça...em nome da lei.
A vitória de Gabriel Boric nas eleições de 2021 soprou ventos de
esperanças entre os os mais pobres. As ocupações de áreas nos perímetros
urbanos recebiam a promessas de que nenhuma delas seria despejada até o Estado
resolver o problema da moradia com a construção de casas populares. Por sua
vez, os indígenas Mapuches esperavam uma ação que freasse a progressiva
apropriação de suas terras por empresas florestais e fazendeiros.[12]
Contudo, poucos meses após a posse, as coisas mudaram. Nas áreas
indígenas, onde a ausência de diálogo e de um mínimo de justiça haviam levado a
ações mais contundentes (como a queima de maquinário das empresas florestais),
a militarização foi reforçada com a mobilização de milhares de policiais. Aos
povos que reivindicavam o reconhecimento de direitos ancestrais, o novo governo
respondeu com repressão, impunidade dos carabineiros, processos judiciais que
despertaram críticas da própria Comissão de Direitos Humano da ONU e ações nas
quais transparece o claro propósito de punir quem luta.[13]
Duas leis se tornaram peças-chave deste processo. A primeira delas, de
abril de 2023, é conhecida como “Lei Naín-Retamal”, do sobrenome de dois
carabineiros mortos em serviço, que exclui a culpabilidade de condutas adotadas
por militares e forças policiais no cumprimento de suas funções. Apesar de
prever a possibilidade de as vítimas questionarem juridicamente os atos
cometidos contra elas, as dificuldades de instaurar um processo desse tipo e os
pressupostos que amparam as condutas das forças de segurança fazem com que
muitos vejam nesta norma um caminho para legalizar a impunidade dos
carabineiros.[14]
A segunda lei foi sancionada em 24 de novembro do ano passado e é
popularmente conhecida como a “Lei da Usurpação”. De acordo com o texto
aprovado, a reintegração de posse de um imóvel pode ocorrer a partir do momento
em que o proprietário comprova a propriedade do mesmo. Os motivos que levaram à
ocupação, os danos causados pelos ocupantes e a resistência ao desalojamento
apenas definem a gravidade das penas que sempre incluem a prisão e o pagamento
de multas.[15]
Vista pelo olhar da elite, trata-se de uma norma que dispensa qualquer
consideração da realidade social subjacente às ocupações. Pobre ou não pobre,
sem teto ou indígena, nas áreas rurais ou na cidade, a regra é clara: ocupou o
que não te pertence, você vai em cana! Vista pelo olhar dos marginalizados,
esta norma criminaliza e persegue aqueles que, vítimas de abusos, da exploração
e da precariedade da renda, querem uma casa para morar ou resistem à
desapropriação de seus territórios ancestrais. Alguns exemplos ajudam a
visualizar os efeitos deste processo. Comecemos pelas áreas urbanas.
Na madrugada do dia 16 de maio deste ano, cerca de 400 policiais
despejaram as 200 famílias da Ocupação do Cerro Navia, uma das mais organizadas
da região metropolitana de Santiago, capital do Chile. Há anos, os sem teto
vinham negociando com o Ministério da Habitação uma solução definitiva para o
problema da moradia que os levou a ocupar aquela área onde havia um grande
lixão e que, após ter sido limpada pelos sem teto, aumentou em cerca de 100
vezes o seu valor comercial. A entrada repentina dos uniformizados, a
destruição dos barracos, o uso de bombas de gás lacrimogêneo e a violência com
a qual se tratou de neutralizar a possível resistência dos moradores não
pouparam adultos e crianças. A reintegração solicitada pela imobiliária Guzmán
Nieto garantiu a “limpeza” de uma terra valorizada com o trabalho alheio a
custo zero. A lei foi cumprida. A propriedade ganhou do direito à moradia e
centenas de famílias ficaram sem um lugar onde se abrigar.[16]
O clima de intimidação e ameaça não atinge apenas as ocupações
existentes. Ao coletar os acontecimentos deste processo, nos deparamos com a
denúncia de invasão de uma rádio comunitária, do refeitório popular Luisa
Toledo e do Clube de Idosos Anos Felizes na cidade de Villa Francia, conhecida
por suas lutas pelos direitos humanos desde os tempos da ditadura e,
atualmente, pelo apoio aos movimentos populares. Pouco depois das 5 da manhã do
dia 6 de julho deste ano, um forte contingente policial levou o transmissor, os
computadores e os documentos contábeis; quebrou pisos, tetos e paredes em busca
de armas supostamente escondidas nestes locais; e inutilizou móveis e
utensílios. Apesar de os registros da operação não apontarem a apreensão de
armamento, nove pessoas foram colocadas em prisão preventiva e outras cinco
tiveram que cumprir medidas cautelares.
A Ministra do Interior, Carolina Toha, felicitou os agentes pelo sucesso
da operação que, somente 24 horas depois, divulgaram imagens de uma sacola com
armas artesanais rudimentares supostamente encontrada numa caixa escondida
embaixo da terra nas proximidades das instalações vasculhadas. De acordo com as
declarações oficiais, este armamento seria usado em ações violentas no âmbito
das comemorações pelos três anos da morte de Luisa Toledo, mãe de dois
militantes assassinados pela ditadura e conhecida por suas lutas contra a
violência policial. Sendo assim, pela versão oficial, a polícia teria evitado
os crimes que estavam a um passo de serem realizados.
A ideia de que tudo não passou de uma montagem para intimidar os
movimentos deita raízes em alguns fatos que a Ministra do Interior prefere
ignorar. O primeiro dele é que as instalações da rádio estavam fechadas há dias
e sem ninguém em seu interior, logo, a busca de armas poderia ter ocorrido bem
antes, mas isso reduziria o impacto midiático da batida policial. Quem entrou
de gaiato de navio foi um grupo de estudantes, vindos de Santiago, que chegaram
em 5 de julho e pernoitaram na rádio para participar das comemorações do dia
seguinte. Quando os policiais chegaram, os rapazes estavam dormindo, sem armas,
sem drogas e sem nada que permitisse presumir que iriam cometer algum crime.
Por isso, a juíza que tratou inicialmente do caso declarou ilegal a sua detenção
que só foi transformada em prisão preventiva através de um recurso do Governo
junto ao Ministério Público. Último, mas não menos importante, todos os 9
detidos e os 5 atingidos por medidas cautelares pertencem a movimentos
estudantis, a grupos de direitos humanos ou estão entre os que apoiam a luta
por moradia em volta das atividades organizadas em Villa Francia. Em relação ao
armamento supostamente desenterrado, muitos sorriram ao perceberem que, com
ele, não seria possível realizar o que as autoridades deixaram entender. Diante
dos fatos levantados pela defesa, é difícil acreditar na versão do governo que
mantém as acusações apresentadas.[17]
Das cidades, passamos agora aos conflitos em território Mapuche. No
Chile, sobram estudos que descrevem as falcatruas e os assassinatos de
indígenas com os quais a expropriação de suas terras foi realizada durante mais
de um século e meio. De acordo com o historiador
e doutor em antropologia, Martín Correa Cabrera, o
Estado protagonizou um longo período de guerras, violência, perseguições e
mortes do qual os chilenos quase nada conhecem. À medida que o exército
avançava sobre o território indígena, lotes de 500 hectares eram leiloados a
colonos e fazendeiros que se aproveitavam de sua localização para sufocar a
sobrevivência das comunidades remanescentes.
Além da força das armas e dos leilões que começaram
em 1868, os arquivos existentes revelam inúmeras falcatruas graças às quais,
por exemplo, falsos Mapuches vendiam as terras de uma comunidade a um privado
que registrava em cartório as propriedades assim adquiridas e expulsava os
verdadeiros indígenas de seus territórios ancestrais. As suspeitas de
cumplicidade dos cartórios neste processo são alimentadas pelo fato de as
mesmas pessoas atuarem ora como notários, ora como testemunhas do comprador,
ora como procuradores dos futuros proprietários. O processo de “pacificação”
dos conflitos com os indígenas foi feito devastando casas e roças, estuprando
mulheres e crianças, mergulhando os povos originários numa situação caótica de
angústias e incertezas. O golpe foi tão devastador que as comunidades
remanescentes levaram mais de um século para terem condições de lutar para
reaver o que lhes foi tirado.
A partir de 1974, já em plena ditadura, a entrada
das empresas florestais em território indígena contou com o apoio e o
envolvimento dos militares. Todas elas conseguiram títulos legais de
propriedade, mas, na memória dos Mapuches estes papéis não têm legitimidade
alguma por serem fruto de enganação, de coação e de uma legalidade alicerçada
no poder do dinheiro. Por outro lado, em 2020, cerca de 500 comunidades que
cumpriam os requisitos legais para que a ampliação de suas terras fosse
reconhecida pelo Estado assistiram à completa paralisação deste processo. O
motivo é simples: cada hectare pleiteado
vale, em média, sete vezes mais do que a mesma área de um terreno agrícola
qualquer e é disputado pela iniciativa privada.[18]
À medida que, numa perspectiva histórica percebemos
que foi o Estado a instaurar o conflito com os Mapuches, e não o contrário, a
lei de desapropriação dos territórios ocupados pelos indígenas com o intuito de
reintegrá-los às áreas da comunidade ganha as feições de um passo para a
eliminação legal de suas comunidades. Isso dá origem a situações que seriam
cômicas se não fossem trágicas e à constante violação de direitos elementares.
Alguns exemplos ajudam a entender os absurdos que estão sendo cometidos.
Em março deste ano, o líder comunitário Atílio
Huenteman, de 90 anos anos de idade, e cuja família mora no setor El
Infiernillo de Trapa-Trapa bem antes do seu nascimento, se entregou à polícia
ao saber que havia um mandato de prisão contra ele. A empresa de investimentos
TAMA S.A., instalada na mesma região há pouco mais de 22 anos, processou Atílio
por usurpação das terras das quais se diz proprietária em função dos documentos
apresentados ao Tribunal de Justiça de Santa Bárbara que expediu o mandato de prisão.
O líder indígena e a comunidade a que pertence têm
registros históricos, fotográficos e jornalísticos tanto da sua presença na
região como da luta para defender as terras ancestrais das ações da mesma
empresa. Contudo, o fato de não ter a escritura da área objeto de disputa faz
dele o encabeçador de uma invasão que precisa ser removida para que a TAMA
tenha acesso às terras cujo título de propriedade está em suas mãos. Atílio se
entregou para evitar uma invasão dos carabineiros que, a exemplo do que ocorreu
em outras comunidades, costumam destruir casas e roças, matar animais
domésticos, confiscar ferramentas de trabalho e utensílios para dificultar a
continuidade da vida dos seus membros.[19]
Mas isso não é tudo. No governo Boric, ser indígena
em resistência é sinônimo de ver pisoteados direitos processuais elementares.
Prisões preventivas com base em provas inacessíveis aos advogados de defesa,
nenhuma consideração para o status de quem vê sua luta sendo colocada no banco
dos réus, ações que buscam aumentar o sofrimento físico e psíquico dos presos,
acusações de associação a organizações criminosas baseadas em testemunhas sem
nomes e sem rosto, manutenção da prisão após o cancelamento de uma condenação
pelo tribunal e sentenças com base em leis que não eram invocadas desde o fim
da ditadura militar integram o cardápio que submete a resistência indígena a
uma nova prova de fogo. Três casos ilustram o que acabamos de escrever.
O primeiro deles é o da líder Cláudia Nahuelan
Llempi, 30 anos de idade, da comunidade de Pacuno, mãe de três filhos, sendo
que o menor tem apenas 5 anos, detida em janeiro de 2024 por associação a
organização criminosa. Na audiência que antecedeu a prisão, a advogada de
defesa foi impedida de conhecer as provas apresentadas pela promotoria e
Cláudia, no lugar de ser internada na prisão de Arauco, próximo da sua casa,
foi enviada ao distante presídio de Concepción, o que dificulta as visitas da
família, dos integrantes da comunidade e de quantos desejem manifestar a
própria solidariedade. O processo foi movido pela empresa florestal Arauco que,
há anos, tenta se apropriar de terrenos de cultivos defendidos pelos indígenas
sob a liderança de Claudia e já apresentou denúncias contra vários integrantes
da comunidade.
Em nenhum momento, o fato de ser “mãe cuidadora”
foi levado em consideração nem em relação à prisão, nem ao local onde esta
seria efetivada. Se isso não bastasse, parte dos funcionários do presídio
ampliam o sofrimento psíquico com insinuações que procuram dobrar a líder
indígena. Não foram poucos os agentes penitenciários que, diante da esperada
ausência de visitas, diziam que ela já havia sido esquecida, que sua advogada
deve ter negociado por baixo dos panos a fim de não correr riscos e que era
melhor ela se acostumar com a ideia de que não tinha mais filhos. Nos dias em
que familiares ou integrantes da comunidade reuniam as condições para ir ao
presídio, sofriam um tratamento discriminatório em relação ao reservado a
outros presos: chegavam às 11.00 da manhã, esperavam até às 14.30 para
conseguir despachar o que haviam trazido e eram submetidos a vistorias
demoradas e humilhantes. Finalizados os procedimentos, o tempo de visita não
passava de meia-hora.
Ao falar do caso de Cláudia, a advogada de defesa,
Daniela Sierra, afirmou com todas as letras que a sua prisão “Viola as
normas nacionais e internacionais que regulam como devem ser os processos
penais contra aqueles que estão sendo investigados, e que usa o direito penal
para subjugar e aplicar tormento psicológico”. E acrescenta: “É uma
resposta do Estado, na qual utiliza sua ferramenta mais brutal, o direito penal
e a privação da liberdade, para fugir de sua responsabilidade para com o povo
Mapuche”.[20]
Diante dos absurdos que levaram à condenação de
Ernesto Llaitul, Esteban Henríquez, Nicolás Alcamán e Ricardo Reinao a 15 anos
e meio de reclusão por suposta participação em um incêndio criminoso, a greve
de fome dos 4 líderes indígenas e as pressões ininterruptas das comunidades
fizeram com que, em 9 de fevereiro deste ano, o Tribunal de Apelações de
Concepción anulasse por unanimidade a sentença que motivou sua detenção e
ordenou um novo julgamento. Diante do veredicto e da inconsistência das provas,
as empresas florestais retiraram o processo, mas, surpreendentemente, a
promotoria manteve as acusações, fazendo o mesmo voltar à primeira instância.
Desta forma, os 4 presos Mapuches viram rejeitadas suas demandas de aguardar o
novo julgamento em liberdade.
No dia 23 de julho, após passarem quase dois anos
na cadeia, o Tribunal Penal Oral de Los Angeles absolveu os quatro indígenas.
Trata-se de uma pequena vitória que só foi possível graças a três elementos
igualmente importantes: a tenacidade dos advogados de defesa que não tiveram
medo de enfrentar o Ministério Público, a greve de fome dos detidos, a
resistência indígena que ergueu a bandeira da sua libertação em todos os fóruns
e com todos os meios.[21]
O caso mais complexo e que melhor explicita a
postura do Estado é o de Héctor Llaitul Carrillanca, porta-voz da Coordenação
Arauco Malleco (CAM). Diante dos ouvidos moucos das autoridades e das seguidas
perdas de território pelos efeitos nefastos dos bosques de pinus e eucalipto
nos cultivos das comunidades, os Órgãos de Resistência Territorial que a
integram fizeram da queima de equipamentos das empresas um dos caminhos de suas
lutas. De acordo com as declarações do próprio Héctor, à medida que o povo Mapuche
foi definido como “inimigo interno” a ser combatido com a militarização dos
seus territórios, que as investidas do capital se tornaram cada vez mais
violentas e que as instituições nada fizeram para bloquear este avanço, a opção
de unir luta pacífica a ações contundentes se impôs diante da força dos
acontecimentos e da sequência de assassinatos impunes de lideranças indígenas
ocorridos depois da volta da democracia.[22]
Preso inicialmente pelas declarações dadas durante
uma entrevista na qual, ao apresentar as ideias da CAM como porta-voz da mesma,
reivindicou o direito de os Mapuches se
oporem com todos os meios ao genocídio e ao roubo de suas terras, Héctor passou
a ser acusado também de roubar madeira. Sem que se apresentassem provas
conclusivas ou antecedentes que pudessem incriminá-lo, o trabalho da mídia e do
Ministério Público se destinava a tecer a imagem de um terrorista disposto a
tudo. Com base em laudos periciais vagos e nos testemunhos de 5 pessoas cuja
identidade não foi revelada, no dia 7 de maio de 2024, Héctor foi condenado a
23 anos de reclusão. A sentença detalha que a pena é dividida em 15 anos de
prisão por crimes previstos na Lei de Segurança Interna do Estado (criada em
1975, durante a ditadura), cinco por furto simples e três por ataque à
autoridade.
Ao tomar conhecimento do veredicto, a advogada de defesa, Josefa AInardi, apontou o
seu caráter altamente político, à medida que, após a volta da democracia
ninguém havia sido condenado pela Lei de Segurança, uma vez que o seu conteúdo
contraria várias leis que definem como deve ser o processo legal e as normas
internacionais relacionadas com os direitos humanos. Por outro lado, como
porta-voz, Héctor não podia se omitir nem mentir em relação às posições da CAM,
pois, ao fazer isso, estaria traindo a causa dos Mapuches.
Em relação ao roubo de madeira, não só esta prática
não integra as ações da CAM como a jurisprudência mostra, por si só, a
diferença de tratamento dos sentenciados por este crime. O empresário Walter
Araneda Parra, por exemplo, confessou ter desembolsado 130 milhões de Pesos a
grupos paramilitares para roubar madeira e pagar a “proteção” para o seu
embarque. Nesse “investimento” Walter lucrou 614 milhões de Pesos entre 2019 e
2021. Por ter confessado o crime, foi condenado a 5 anos em liberdade vigiada.[23]
Olhando para o quebra-cabeça da realidade chilena
temos a impressão de que Boric está fazendo o impossível para enviar aos
investidores um sinal claro de que se mantém firme no esforço de submeter quem
pode obstaculizar os seus interesses rumo a um projeto de país do qual pobres e
indígenas continuam sendo excluídos. Apesar da força desse compromisso no qual
a lei perpetua a injustiça, ventos de resistência começam a soprar em várias
regiões do país. Entre os indígenas, a decisão de seguir recuperando as terras
que lhes foram roubadas se traduz numa palavra de ordem que ressoa nas
comunidades: “Livres ou mortos, jamais escravos!”.[24] Para
bom entendedor, meia palavra basta...
Emilio Gennari, Brasil, 5 de outubro de 2024.
[1] Em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/08/28/chile-el-gobierno-chileno-sin-adjetivos/
Acesso realizado em
01/09/2024.
[2] Maiores informações a este respeito podem ser
encontradas em:
- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/05/28/chile-permitido-virar-solo-a-la-derecha/
- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/09/20/chile-el-modelo-neoliberal-extremo/
Acessos realizados em
22/09/2024.
[3] Falamos sobre isso em
três análises de conjuntura: “Chile: por que a nova Constituição foi
rejeitada?” (de 03/10/2022), “Lições do Chile” (de 13/06/2023) e “Chile: uma
vitória com gosto de derrota” (de 22/12/2023), disponíveis no drive: https://drive.google.com/drive/folders/1YoRRdUt1RVr31bNvhMPvIFt8pBwWYoJA?usp=sharing
[4] Estas e outras informações podem ser obtidas em:
- https://energia.gob.cl/noticias/atacama/comenzaron-las-postulaciones-al-subsidio-electrico
- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/08/28/chile-el-gobierno-chileno-sin-adjetivos/
Acessos realizados em
01/09/2024.
[5] Estas e outras informações podem ser obtidas em:
- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/08/28/chile-el-gobierno-chileno-sin-adjetivos/
- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/09/20/chile-el-modelo-neoliberal-extremo/
Acessos realizados em
01/09/2024.
[6] Em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/02/28/nacion-mapuche-comunidades-en-alerta-por-proyectos-mineros-que-pretenden-instalarse-en-el-territorio-pewenche/ Acesso
realizado em 18/03/2024.
[7] Em: https://elpais.com/america/2024-08-01/la-cepal-calcula-que-la-inversion-extranjera-hacia-latinoamerica-cayo-un-10-en-2023.html Acesso
realizado em 07/08/2024.
[8] Ainda não é possível calcular qual será o impacto
efetivo da redução gradual da jornada semanal de trabalho das 45 para 40 horas
semanais aprovada no primeiro semestre do ano passado. De fato, há poucos
meses, o Chile passou das 45 para as 44 horas semanais; até o final de 2026, as
empresas deverão ter uma jornada de semanal de, no máximo, 42 horas, sendo que
as 40 horas serão alcançadas somente até o final de 2028. O efeito real na
qualidade dos empregos, porém, mostra uma clara tendência ao aumento da precarização,
à medida que esta mesma lei oferece aos empresários a possibilidade de aprofundar a flexibilização do trabalho para
reduzir os custos trabalhistas. Estas e
outras informações estão disponíveis em:
- https://br.investing.com/economic-calendar/chilean-unemployment-rate-488
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1y59v4g5ko
Acessos realizados em
09/09/2024.
[9] Estas e outras
informações sobre os temas citados podem ser encontradas em:
[10] Maiores informações sobre o tema podem ser encontradas
em:
Acessos realizados em
01/09/2024.
[11] Estas e outras informações sobre o tema podem ser
encontradas em:
- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/01/14/nacion-mapuche-temuco-ppm-cam-en-huelga-de-hambre/
Acessos realizados em
31/08/2024.
[12] Em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/08/28/chile-el-gobierno-chileno-sin-adjetivos/ e em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/01/14/nacion-mapuche-temuco-ppm-cam-en-huelga-de-hambre/
Acessos realizados em
01/09/2024.
[13] Infelizmente, a abrangência e o detalhamento deste
processo não encontrará nestas reflexões o espaço do qual precisa para um
acompanhamento cronológico e fatual detalhado em função da grande quantidade de
material que a ele se refere. Isso nos colocou diante da necessidade de
escolher apenas alguns exemplos entre os inúmeros casos aos quais tivemos
acessos. Nada impede que, se desejar aprofundar o tema, você percorra as
páginas dos arquivos eletrônicos divulgados em:
- https://www.resumenlatinoamericano.org/category/latinoamerica/chile/
- https://www.resumenlatinoamericano.org/category/latinoamerica/nacion-mapuche/
[14] Estas e outras
informações podem ser acessadas em:
-
https://www.bcn.cl/leychile/navegar?idNorma=1191005
-
https://www.londres38.cl/1937/w3-article-109443.html
-
https://www.prensalatina.com.br/2023/04/10/polemica-lei-de-seguranca-entra-em-vigor-no-chile/
Acessos
realizados em 01/09/2024.
[15] Uma síntese dos principais artigos da lei pode ser
encontrada em:
- https://www.24horas.cl/data/ley-chile/ley-de-usurpaciones-que-dice-sobre-toma-inmuebles
Acessos realizados em
01/09/2024.
[16] Em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/05/22/el-desalojo-de-la-toma-17-de-mayo-es-un-acto-de-terror-de-estado/ Acesso em 31/05/2024
[17] Estas e outras informações sobre o caso podem ser
obtidas em:
Acessos realizados em
15/09/2024.
[18] Maiores informações sobre
este processo podem ser obtidas em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/09/01/nacion-mapuche-martin-correa-el-despojo-forma-parte-de-la-memoria-mapuche-y-constituye-la-base-para-los-procesos-de-recuperacion-territorial/ Acesso realizado em 03/09/2024
[19] Maiores informações sobre este processo podem ser
obtidas em:
Acessos realizados em
01/05/2024.
[20] Estas e outras informações sobre o caso estão
disponíveis em:
Acessos realizados em
31/08/2028.
[21] Estas e outras informações sobre o caso estão
disponíveis em:
Acessos realizados em
13/08/2024.
[22] De
acordo com um levantamento divulgado em 21 de julho deste ano, de 1999 ao
primeiro semestre de 2024, foram assassinadas 24 lideranças indígenas. Em todos
os casos, executores e mandantes continuam impunes.
Acesso realizado em
31/07/2024.
[23] Estas e outras informações sobre o caso estão
disponíveis em:
- https://www.redalyc.org/journal/5350/535062214007/535062214007.pdf
- https://www.resumenlatinoamericano.org/2024/01/13/nacion-mapuche-a-62-dias-de-una-huelga-de-hambre/
Acessos realizados em
09/09/2024.
[24] Em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2023/11/29/nacion-mapuche-accion-urgente-para-evitar-el-envio-de-facundo-jones-huala-a-chile/ Acesso
realizado em 01/05/2024.
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