“Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expulsai os demônios; de graça recebestes, de graça dai”.
Mateus 10.8
No século XVI, o erudito
humanista Erasmo de Roterdã teceu críticas sobre as chamadas “relíquias
sagradas”. Fez ironia sobre a quantidade de ossos fêmures da pata do jumento
que levou a sagrada família para Belém. Visitando as igrejas e capelas onde
tais ossos eram apresentados e venerados, descobriu que esse animal tinha bem
mais que quatro patas. Nesse século manifestava-se uma espécie de coroamento
de um comércio que já acompanhava os arraiais católicos por toda a Europa e o
oeste da Ásia há séculos. Historicamente, conhecemos o caso do comércio ligado
às relíquias sagradas e, principalmente, a prática que o sobrepujou, e que
chamamos de “venda de indulgências”. Cristãos de todas as partes da Europa, e
da Ásia, admiravam objetos que supostamente pertenceram a Jesus ou algum dos
apóstolos e outros “santos” antigos. Chegavam a pagar para que algum contato
com esses objetos lhes fosse proporcionado. Quanto à venda de indulgências, a
Igreja Católica desenvolveu um comércio que, a meu ver, extrapolou a espiritualidade
cristã que se cristalizara desde a Idade Média.
Com o dinheiro arrecadado pela venda de indulgências, setores católicos construiriam
a basílica de São Pedro. Aos fiéis, a justificativa para que pagassem pelas indulgências
fundamentava-se na crença, devidamente apregoada em discursos de parte dos
púlpitos católicos, de que obteriam perdão de seus pecados e a garantia de
acesso ao reino dos céus. Entretanto, a venda de indulgências passou a ser, no
século XVI, uma prática que causou discórdia e debates entre muitos membros do
clero. Os reformadores, ou reformistas, aproveitaram esse contexto,
especialmente o da venda de indulgências, para empreender uma cruzada interna
com vistas à eliminação de práticas que consideravam abusivas na
espiritualidade católica.
A venda/compra de bens
religiosos, e até de cargos eclesiásticos, foi e tem sido uma prática
recorrente no ambiente institucional religioso. Na Bíblia, mais precisamente no
livro de Atos dos Apóstolos, temos o episódio em que um homem chamado Simão, impressionado
com o carisma dos apóstolos ao observar milagres que estes realizaram, ofereceu-lhes
dinheiro para obter o dom de curar. Repreendido por tal postura, acabou ficando
cego. Esse episódio deu origem à expressão “Simonia” aplicada aos casos de
compra de cargos eclesiásticos.
A História da Igreja cristã
é recheada de fatos em que a oferta de bens religiosos se dá mediante trocas financeiras.
Com dinheiro, ou outros bens, comprava-se a salvação, o perdão dos pecados, a
cura de uma enfermidade e por aí vai. Se saltarmos no tempo, chegaremos aos
séculos XX e XXI, quando nos depararemos com um gigantesco comércio religioso
dentro das igrejas de tradição cristã. Agora, as igrejas do segmento chamado
evangélico ultrapassam as antigas práticas mercantis medievais do segmento
católico, ao ponto de eu ouvir, dentro dos ambientes eclesiásticos aos quais
frequento, que é necessária uma nova “Reforma Protestante” nas igrejas
protestantes. Tecerei adiante algumas observações que venho fazendo nos
últimos anos.
Pois bem. Pela TV ou pelo
testemunho pessoal de conhecidos que frequentam ambientes de igrejas
evangélicas, deparo-me com a prática recorrente da entrega, pelos pregadores e
seus auxiliares, de artigos e objetos que prometem solucionar problemas e
dificuldades dos fiéis que procuram esses cultos. Rosas ungidas, lenços
abençoados, frascos contendo (SIC) água do rio Jordão, porções de terra
extraídas do chão de Israel (a Terra Santa) e uma infinidade de coisas que, de certa
forma, substituem as antigas “relíquias sagradas”. Comparando com o tempo dos
reformadores, os fiéis são estimulados a realizar ofertas em dinheiro, em
discursos que afirmam, e “garantem”, que ofertar é um ato de fé e de sacrifício
e, por isso mesmo, seu praticante será recompensado com a benção atribuída a
essas novas “relíquias”. A novidade é que, além de “curas”, a pregação
contemporânea acrescenta a ideia da quitação de dívidas e enriquecimento, “antevendo”
a aquisição de casas grandes e bonitas, automóveis caros, empregos com salários
polpudos e o sucesso de sua empresa.
Certa feita, pela miraculosa
imagem da TV, vi um pregador com seu poderoso microfone, debruçado sobre um
monte feito de embalagens com meias azuis. Ele orava sobre esse monte,
invocando bênçãos que recairiam em pessoas que adquirissem essas meias azuis.
Aquele que as usasse, teria a promessa bíblica de “Todo lugar que pisar a
planta do vosso pé será vosso, desde o deserto, desde o Líbano, desde o rio, o
rio Eufrates, até ao mar ocidental, será o vosso termo”. Deuteronômio 11.24
- Versão ARC (Almeida Revista e Corrigida). A ideia era, e é, a de “dar a
volta por cima”, sair da crise, subir na vida, vencer dificuldades até então
insolúveis.
Conversando com pessoas
conhecidas que frequentaram ou frequentam esses cultos, e, também, vendo pela TV
ou ouvindo pelo rádio, e agora, pela fabulosa internet, observo um grande
comércio de bens religiosos. Vi e vejo a venda (isso mesmo, “venda” é a palavra
certa) de objetos das mais variedades formas e procedências.
Ora, indo além dessas
“relíquias” que pululam nos salões de culto, há, e aqui destaco isso, um enorme
comércio de produtos religiosos no que muitos tem chamado de “mercado gospel”.
Cantores e cantoras, bandas, gravadoras, músicas, livros, DVDs, canais no
YouTube, sites, blogs, lives, palestras, roupas de “grife evangélica” e
tantas coisas mais preenchem todos os cantos e recantos de almas ávidas por
novidades e, principalmente, por alcançar uma feliz, segura e recheada vida de
perspectivas positivas. Buscar a felicidade, a segurança e uma vida repleta de
boas perspectivas é o ideal de todos nós. Contudo, os meios para se obter isso
precisam ser avaliados. Se para alguns os fins justificam os meios, entendo e
penso que, para se buscar tais coisas deve-se criar meios coerentes com tais
fins.
Entendam-me bem. Uma coisa é
o desejo legítimo e genuíno de sair de condições ruins nas quais se vive. Outra
coisa é a oferta inescrupulosa de objetos, coisas e serviços com promessas
infundadas de melhoria de vida. Sabemos que as coisas não funcionam assim. Filas
enormes nas lotéricas são um sinal do que também acontecem nesses salões de
culto. Por sua vez, muitos pregadores e diversas instituições fundamentam todos
o seu serviço na elaboração de um emaranhado de teias que prendem o desejo de
muita gente. Trocam o ensino sensato e a elucidação racional por misticismos e
obscurantismos, contribuindo com o fortalecimento da ignorância e de uma ingenuidade
nada santa.
Quero frisar, aqui, algo
pior do que a busca frenética por bens religiosos que ajudem aqueles que os
buscam. Trata-se da exploração da fé! É o que vejo nestes casos do atual
comércio religioso ou mercado gospel! Mercado! Comércio! Tudo isso, dentro da
igreja. Não vejo nada além de negócios e negociatas. Lembro-me do episódio
bíblico em que Jesus expulsou os vendilhões que faziam comércio ao redor do
templo de Jerusalém. O comércio era de artigos próprios para os rituais cúlticos
judaicos. Vendiam animais e objetos utilizados para os sacrifícios. Quem tinha
dinheiro poderia participar. E quem não tinha dinheiro? As palavras proferidas
por Jesus na ocasião não foram suaves: “vocês transformaram a casa de Deus
em um covil de salteadores”. E a atitude física de Jesus também não foi
suave: fez um chicote para espantar os vendedores e derrubou as barracas!
No século XVI, no contexto
da Reforma Protestante, a prática mais questionada por Lutero foi a da venda de
indulgências. De fato, não se compra o perdão. Aliás, não se compra a fé, não
se compra a espiritualidade, não se compra a razão, não se compra o amor, não
se compra o relacionamento interpessoal...
Voltando para as minhas
observações pessoais. Há muitos anos eu estava à frente da TV, em um sábado de
manhã. Começava o programa religioso de um ministério evangélico originado de
um grupo musical famoso que posteriormente fundou sua própria igreja. A primeira
imagem naquele dia foi de uma vista urbana, com prédios residenciais. Sobreposto
à imagem, surgiu o dedo indicador de um dos apresentadores, e a voz dele a
dizer: “Isso pode ser seu!”. O restante do programa enfatizou a prosperidade daqueles
que, com fé, fazem “sacrifícios de fé” para obterem riquezas materiais. Mais ou
menos na mesma época, em uma programação religiosa da madrugada, pela emissora
pertencente a um líder religioso de uma grande denominação evangélica, na
chamada para uma reunião a locução disse em alto e bom som: “Se você quer
ficar rico, venha para esta reunião”. Eu vi e ouvi isso!
É claro que, como já afirmei
acima, uma coisa é o desejo da pessoa e as suas necessidades. Outra, é o que
tais pregadores e igrejas apregoam por aí. Há uma gigantesca exploração da fé
do povo. E há um gigantesco empreendimento eclesiástico que gerou e continua a
gerar verdadeiros impérios de poder econômico, enriquecimento de seus líderes e
de influência na esfera política. Sim. Hoje, temos igrejas que são
empreendimentos, isto é, não deixam nada a desejar se comparadas a uma
organização empresarial. É um centro, ou antro, de negócios que eu chamo de
escusos, pois, se alicerçam na boa fé de muita gente.
Caminhando para o final
deste texto, quero apontar uma possível motivação para esse quando do “mundo
evangélico brasileiro”. É algo além dos desejos dos frequentadores e da
ambição dos pregadores e donos de igrejas. Para mim, esse quadro
demostra muito bem a onipresença, a onipotência e a onisciência do Mercado e
seus tentáculos publicitários. O sistema
capitalista estrutura-se na exploração do trabalho, bem como na intensa e
intrincada rede de compra e venda de bens. Se não houver essa troca mercantil o
negócio não vai para frente. O Mercado é pródigo em atender as variadas
tendências e diversas aspirações das pessoas e de grupos específicos. O mundo
evangélico segue essa mentalidade. Mas, tem mais!
Além de cumprir com seu
nicho econômico, entendo que essa prática mercadológica exala a formatação
mental que o capitalismo forjou ao longo dos anos, domesticando grupos sociais
e pessoas ao seu “modo de vida padrão”, obviamente caracterizado pelo
individualismo, consumismo, alienação e falta de consciência de classe. Com
isso, ele afugenta para bem longe, dentro das igrejas, a possibilidade do florescimento
de uma visão mais crítica da realidade econômica, bem como formata a sujeição
do pensamento ao raciocínio capitalista do trabalho árduo que será meritoriamente
recompensado. Assim, mais uma vez, religião e poder dão as mãos. Ir para o Céu
deixou de ser uma crença pautada pela ética da comunhão, da partilha e da
solidariedade, tornando-se em um anseio frenético pelo crescimento de seus
negócios pessoais. Nunca o versículo das Sagradas Escrituras que abriu este
ensaio foi tão importante e tão “bíblico”.
ALP
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