sábado, 2 de março de 2024

Brasil: dois passos à frente, um e meio atrás . . .


 


Isolados de uma análise do cotidiano da população mais sofrida, os números de 2023 recém-divulgados são bastante animadores. Encerrar o primeiro ano do governo Lula com um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 2,9%, três vezes superior ao esperado no primeiro quadrimestre do ano passado, com um dólar médio abaixo dos R$ 5,00, uma taxa anual de desemprego de 7,8% e um aumento real de 7,2% nos rendimentos do trabalho é motivo de alívio e esperança.[i]

Porém, como já observamos em outras ocasiões, o brilho das médias nacionais em relação ao ano anterior ofusca a percepção das contradições que, ao marcar o cotidiano do povo simples, encolhem a esperada melhora nas suas condições de vida. Para perceber este movimento, nem sempre verificável com a mesma abrangência dos grandes números da economia, devemos resgatar as peças da realidade que não costumam ganhar o destaque dos elementos que interessam aos investidores.

Vamos começar nossas reflexões pelo PIB. Em abril de 2023, o Banco Central do Brasil projetava um crescimento anual de 0,9%. As taxas de juros elevadas, a possibilidade de os países ricos entrarem em recessão, o nível de endividamento de pessoas e empresas justificavam o pessimismo retratado nos relatórios da entidade. As intervenções do governo Lula na economia foram essenciais para dar alento aos serviços e à indústria, mas passaram longe de fazer derramar sobre todos os setores da população os benefícios que o crescimento trouxe aos empresários.

Pelo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constatamos que  um terço do PIB de 2023 se deve ao crescimento de 15,1% da agropecuária que, apesar deste ótimo resultado, reduziu em 4,2% a força de trabalho empregada. Longe da grandeza que o agronegócio projeta na mídia, estamos falando de um setor cuja produção, em 2023, representou apenas 7,1% da riqueza produzida no país e cujo desempenho internacional continuou trazendo sérios desafios às contas públicas.[ii] De fato, a isenção de tributos estaduais sobre as exportações do setor e a compensação de parte desta quantia pela União mantiveram viva uma situação por demais conhecida nos anos anteriores: quanto mais os fazendeiros exportam, mais dinheiro o governo federal precisa gastar para repor parte das perdas de arrecadação dos Estados.

Sim, eu sei que as vendas do agronegócio têm um papel fundamental na balança comercial do país que, por sua vez, alimenta a reserva de dólares com as quais o Real consegue manter um valor razoavelmente estável diante das moedas do mundo inteiro. Contudo, no ano passado, esta realidade tão enaltecida pelos analistas da elite acabou crucificando justamente os mais pobres. Vejamos como isso aconteceu.

Numa das raríssima investigações que levantaram os efeitos da valorização da moeda nacional na base da pirâmide social, os jornalistas da BBC chegaram a uma conclusão intrigante: o dólar abaixo dos R$ 5,00 teve um efeito devastador entre os catadores de materiais recicláveis. Com a moeda estadunidense passando dos R$ 5,75 em março de 2021 para R$ 4,75 em julho de 2023, o quilo do papelão, por exemplo, caiu de 1 real para 10 centavo enquanto o quilo da latinha de alumínio passou de 8 reais e 50 centavos para 5 reais. Esta queda no valor pago pelos materiais coletados ocorreu à medida que papel, papelão, garrafas PET, latinhas de alumínio, vidro e plásticos encaminhados à reciclagem são commodities negociadas em dólares no mercado internacional do lixo. [iii]

Com o real mais valorizado, as empresas passaram a importar do exterior os materiais que antes compravam dos entrepostos nacionais abastecidos pelos catadores, levando a um excesso de oferta interna que fez os preços dos recicláveis caírem pelas tabelas. Desta forma, se esfolar puxando um carrinho cheio de materiais catados nas ruas deixou de ser um esforço com o qual era possível completar o orçamento familiar.

Mas isso não é tudo. Para compensar a perda da renda, catadores e catadoras aumentaram fortemente a procura de “bicos” que, na fase anterior, apenas completavam o que não era possível ganhar com os recicláveis. Este fluxo inesperado de gente à procura de qualquer ganha-pão para sobreviver fez cair também os valores pagos por esse tipo de trabalho.

Levantamos esta questão pelo fato de as famílias dos catadores estarem entre os beneficiados pelo Bolsa Família, cujo valor foi ampliado pelo governo Lula a fim de melhorar as condições que permitiriam sair da pobreza extrema (definida por uma renda mensal per capita de até 218 reais). Ninguém duvida de que este dinheiro foi e está sendo uma ajuda essencial para as 18 milhões e 500 mil famílias beneficiadas.[iv] Contudo, estes recursos passam longe de atingir as suas potencialidades na exata medida em que as pessoas perderam o acesso às fontes de renda com as quais completavam a renda doméstica.

As dificuldades sinalizadas no grupo dos catadores foram confirmadas pelos dados do Cadastro Único do município e do Estado de São Paulo. De acordo com os números divulgados, em dezembro de 2023, o número de famílias em situação de pobreza na capital aumentou 6,8% na comparação com o mesmo mês de 2022, sendo que, no mesmo período, o Estado mais rico do país conheceu um aumento de 8,6% dos inscritos no Cadastro Único.[v] Trocado em miúdos, podemos dizer que a economia vai bem, mas os pobres vão mal...e isso num ano em que a ocupação atingiu o recorde da série histórica inciada em 2012 (com 100 milhões e 700 mil pessoas empregadas) e a renda média habitual do trabalho aumentou acima da inflação.[vi]

A porcentagem do PIB destinada aos investimentos é outro fator que chama a nossa atenção. De acordo com o IBGE, em 2023, o investimento em capital fixo ficou em 16,5% do PIB, muito inferior à média de 21,0% e aos 24,0% necessários para que o país conheça um crescimento sustentado.[vii] Á medida que a modernização não dá os passos necessários, o Brasil perde competitividade no cenário internacional.[viii] De acordo com o ranking elaborado pelo Institute for Manegement Development que compara os dados de 64 países, o Brasil ocupa apenas a posição de número 61 com um índice de produtividade de 3,47 pontos, ante 7,43 da China, 7,56 da Alemanha e 8,51 da Suíça que detém o primeiro lugar.[ix]

Na falta de novos maquinários e de investimentos em ciência e tecnologia à altura das necessidades, a competitividade que proporciona os lucros almejados pelos empresários é assegurada, basicamente, por três caminhos. O primeiro dele não é novo em nossas análises. Trata-se de um processo que, em ritmos e formas diferentes, leva a um trabalhador barato e superexplorado. Iniciada bem antes da reforma trabalhista promovida pelo Presidente Michel Temer, a precarização dos contratos de trabalho contou com a omissão do Estado brasileiro no inicio dos anos de 1990 e foi acompanhada por um processo que mesclou o desmonte da fiscalização das condições de trabalho à legalização das violações da CLT.

Para termos uma ideia do que isso significa, basta pensar que, em março de 2023, o Brasil tinha 1.949 auditores-fiscais do trabalho na ativa num total de 3.644 postos.[x] Este contingente, que é o menor  dos últimos 30 anos, se depara com a necessidade de fiscalizar um grande número de empresas. Segundo dados do próprio governo, o Brasil encerrou 2023 com 20 milhões, 798 mil e 291 empresas em atividade. Quando descontamos deste total os 11 milhões 682 mil e 765 micro empreendedores individuais, nos deparamos com 9 milhões, 115 mil e 526 empresas de todos os tipos e tamanhos.[xi] Feitas as contas, se cada auditor-fiscal do trabalho atualmente em atividade demorasse um dia inteiro para realizar suas tarefas em um único local, a chance de ele voltar para uma nova fiscalização ocorreria somente depois de 4.677 dias, quase 13 anos, isso se todos os auditores-fiscais trabalhassem sábados, domingos, feriados, dias santos e sem um único dia de férias.

Basta isso para percebermos que, como se dizia antigamente, quando o gato não está, os ratos fazem a festa. Uma festa de arromba, sem hora para acabar e com consequências assustadoras em termos de abusos, acidentes, adoecimentos e falcatruas que vitimam os trabalhadores. O aumento ininterrupto das denúncias de trabalho análogo à escravidão é uma das amostras mais gritantes deste processo. Nos últimos três anos, por exemplo, o Brasil passou de 1.915 casos denunciados, em 2021, para 2.119 no ano seguinte e encerrou 2023 com 3.422 denúncias, 61,5% a mais em relação a 2022.[xii] O mínimo que podemos dizer é que a exploração do trabalho está aproveitando das brechas deixadas pela ausência de fiscalização para viabilizar situações condenáveis sob todos os pontos de vista...mas que fazem a felicidade dos empresários que apostam na ampliação do contingente de trabalhadores desprovidos de qualquer proteção legal para assegurar a lucratividade dos seus negócios.

Mas você não acredite que é só a iniciativa privada a se aproveitar desta ausência. Faz tempo que o próprio Estado contraria a lei para obter a força de trabalho necessária ao funcionamento da sua estrutura. Podemos constatar isso nas tabelas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD-Contínua) do IBGE, onde, há anos, o número de servidores públicos informalmente contratados gira em torno dos 21% do total estimado. Bom...quando o próprio Estado deslegitima as normas que deveria fazer cumprir, o que podemos esperar dos empregadores que apostam suas fichas numa força de trabalho sem direitos?

O segundo elemento tem na pilhagem dos recursos naturais e nas consequências diretas sobre as populações atingidas o ponto de apoio da lucratividade. Todos sabem, por exemplo, que 95% da madeira extraída das florestas é de origem ilegal e que os madeireiros apertados pela fiscalização numa determinada região mudam para outra com a facilidade de quem tem pouco ou nada a perder.[xiii]

Os dados do desmatamento de 2023 ajudam a visualizar esta realidade. Com a Amazônia recebendo mais atenção das autoridades, a destruição da floresta caiu de 10.278 Km2, em 2022, para 5.152 Km2, no ano passado. Por outro lado, o cerrado registrou o recorde de desmatamento com um aumento de 43% em relação ao ano anterior, passando de 5.463 Km2 para 7.828 Km2. E a situação de outros biomas passa longe de ser confortável.[xiv]

No que diz respeito à mineração, o rastro de problemas ambientais e sociais deixado pelas tragédias de Bento Rodrigues e Brumadinho mantém abertas as feridas provocadas pela ruptura das barragens da Samarco e da Vale do Rio Doce. Longe de uma reparação efetiva dos danos provocados e de realizar investimentos capazes de evitar novas catástrofes, as corporações da extração mineral usam o medo de novas ocorrências para ampliar seus projetos de exploração. Marca registrada de uma política empresarial que se destaca no Quadrilátero Aquífero-Ferrífero de Minas Gerais, o “terrorismo das barragens” une Estado e iniciativa privada em volta da necessidade de reduzir as resistências da população em deixar o lugar onde vive como condição básica para ampliar os investimentos com custos bem menores e com os mesmos riscos ambientais e humanos.[xv]

Último, mas não menos importante para garantir a competitividade das mercadorias elaboradas com baixo grau de produtividade, é o processo de renúncia fiscal que foi se ampliando ainda no governo Dilma.  Em 2023, o montante que o Estado deixou de arrecadar em função deste incentivo (inicialmente oferecido a empreendedores e empresários para modernizar suas estruturas produtivas) foi estimado em 450 bilhões de reais, quatro vezes e meia o total de gastos da União com a manutenção e o desenvolvimento do ensino no país inteiro (100 bilhões e 800 milhões de reais).[xvi]

Usado fundamentalmente para assegurar lucros compensatórios, o dinheiro da renúncia fiscal não só encolhe fortemente a capacidade de investimento do Estado, como põe em movimento uma situação que seria cômica se não fosse trágica. Dirigidos ao mercado financeiro, estes montantes são emprestados pelos empresários ao próprio governo que, devido à falta de arrecadação promovida pela renúncia fiscal, vai aumentar tanto o tamanho da dívida interna quanto o montante dos juros e amortizações a ser desembolsado. Trocado em miúdos, os ricos saem com ainda mais dinheiro, enquanto a população é seguidamente chamada a lidar com a precariedade dos serviços destinados a melhorar as suas condições de vida.

A ação impiedosa das leis de mercado também não dá trégua a quantos dependem do salário para ter um lugar onde morar. No caso da habitação, por exemplo, já faz anos que, apesar do crescimento econômico e da melhora da renda do trabalho experimentada em vários momentos deste período, assistimos à confluência de fatores que forçam um número cada vez maior de pessoas a precarizarem suas condições de moradia.

De um lado, os custos da habitação nunca integraram o cálculo do salário mínimo. De outro, a especulação imobiliária que mantém milhares de imóveis vazios submete um número considerável de pessoas aos caprichos dos novos contratos de aluguel. Com reajustes acima da inflação oficial, as novas locações não só impedem que muitos tenham acesso a uma casa merecedora deste nome, como fazem com que outros tantos não contem com a continuidade dos contratos vigentes, à medida que os proprietários desejam se livrar dos velhos inquilinos para ganhar mais com os novos locatários.

Para termos uma ideia do que isso significa, basta pensar que, em 2022, os novos contratos subiram, em média 16,55%, 10,76 pontos percentuais acima da inflação oficial de 5,79%. Em 2023, as coisas pioraram mais um pouco, pois a alta do valor das novas locações teve, em média, um aumento real de 11,54 pontos percentuais.[xvii] É possível vislumbrar o impacto desta elevação no orçamento familiar quando lembramos que, entre 2020 e 2021, a renda média habitual do trabalho sofreu uma queda de 7,9% do seu poder de compra, sendo que a mesma perderia mais 1% em 2022.[xviii] De acordo com o IBGE, no ano passado, esta renda registrou um aumento real de 7,2% em relação a 2022, uma porcentagem que ainda coloca estes ganhos abaixo do patamar de 2019.[xix] Nesta altura, não é preciso sermos economistas para entender que um aumento acima da inflação no preço dos novos aluguéis diante de um poder de compra que não recuperou o terreno perdido produz um impacto considerável no orçamento familiar que deve levar as pessoas a optarem por casas menores, mais precárias e em bairros mais distantes do centro.

Os números que acabamos de apresentar poderiam nos levar a atribuir a responsabilidade deste processo aos efeitos da pandemia no emprego e nos salários ou nas negociações entre proprietários e inquilinos que, em 2021, reduziram os reajustes dos contratos vigentes. Mas os dados dos três últimos censos mostram uma realidade que vai além dos acidentes conjunturais. De acordo com o IBGE, no ano 2000, 6 milhões e 530 pessoas moravam em condições precárias.  

Nos dois mandatos do governo Lula, entre 2003 e 2010, houve uma forte recuperação do emprego e do crescimento; o salário mínimo teve ganhos reais; a política econômica reduziu fortemente os efeitos da crise de 2008 e, em 2010, a alta do PIB foi de 7,5%. Diante deste cenário, seria lógico esperar uma redução do contingente populacional que morava em condições precárias. Contudo, o censo de 2010 revelou exatamente o contrário: o número de pessoas em favelas, palafitas ou outros assentamentos irregulares havia subido para 11 milhões e 420 mil pessoas, quase o dobro em relação a dez anos antes.

Os dados já publicados do Censo de 2022 revelam que este grupo é de 12 milhões e 400 mil pessoas, mais um aumento em relação ao levantamento anterior. Mas este mesmo Censo aponta também um indício de resposta às nossas inquietações: o número de domicílios vazios representa 11,4% dos existentes no território nacional. No município de São Paulo, por exemplo, temos 588.978 imóveis nestas condições, quase o dobro em relação aos 290.317 do censo de 2010 e com espaço suficiente para abrigar uma população de rua 12 vezes maior da que foi registrada pelo último censo (48.261 pessoas).[xx]

Isso significa que a especulação imobiliária, a valorização dos aluguéis quando do aumento da procura e a deterioração progressivas dos imóveis mantidos vazios encolhem o potencial de mudança das políticas públicas que procuram melhorar a vida das pessoas comuns. Desta forma, o Brasil se depara com uma situação desconcertante: o país cresce, a renda média aumenta acima da inflação, mas a porcentagem da população em moradias precárias atinge patamares cada vez mais altos.

Antes de encerrarmos nossas reflexões queremos chamar a atenção para a mensagem que os parlamentares enviaram à nação ao aprovar o orçamento de 2024.[xxi] Muitos analistas atribuíram ao fisiologismo da maioria dos congressistas o aumento do valor das emendas parlamentares (que passou de 37 bilhões e 300 milhões de reais, no orçamento 2023, para 53 bilhões de reais, no de 2024) e das verbas para a campanha eleitoral deste ano (que quintuplicou em relação à anterior ao passar de 940 milhões de reais para 4 bilhões e 940 milhões de reais). Longe de menosprezar este fenômeno que marca a história do país, queremos chamar a atenção para dois elementos que, a nosso ver, são pouco considerados.

O primeiro é revelado pelo próprio orçamento: ao aumentar o valor das emendas para a realização de obras em suas bases eleitorais, os parlamentares encolheram de 61 para pouco mais de 55 bilhões de reais o dinheiro que o governo terá para realizar investimentos. Se as verbas do Programa de Aceleração do Crescimento já eram escassas na proposta de orçamento enviada ao Congresso, a sua redução piora ainda mais as coisas. De fato, encolher o montante a ser investido aumenta a impossibilidade de o Estado realizar obras de grandes envergadura que beneficiam as pessoas na base da pirâmide social.

Para termos uma ideia do que isso significa, vamos nos debruçar sobre a meta de, até 2033, 99% da população ter água tratada e 90% dela poder contar com a rede de esgoto. Para atingir este objetivo tão importante para a saúde é necessário um investimento de 893 bilhões de reais, ou seja, de quase 90 bilhões de reais ao ano. Ainda que o Estado entre com metade deste montante, isso representaria um gasto público anual de 45 bilhões de reais.

Levando em consideração o orçamento de 2024, se isso, de fato acontecesse, restariam apenas 10 bilhões de reais para as demais necessidade do país, algo inviável diante dos desafios com os quais o Brasil se depara. Sabendo que, nos últimos 5 anos, a média anual de investimentos em saneamento ficou por volta dos 20 bilhões de reais, cabe perguntar quando os 33 milhões de brasileiros que, em julho de 2023, não tinham água tratada e os 93 milhões sem esgoto verão o saneamento básico chegar às suas casas.[xxii] Cada bilhão a menos gasto neste fim atrasa o momento no qual esta necessidade será atendida.

Um segundo elemento igualmente preocupante, deita raízes na tentativa de a direita manter sua representação parlamentar atual diante dos golpes sofridos pelo bolsonarismo. Ao financiar obras e projetos nos Estados e municípios de origem e ao ter mais recursos para a propaganda, a direita cria as condições para que candidatos e partidos com posições e programas contrários ao governo Lula continuem ocupando os espaços obtidos nas eleições de 2022. Dito de outra forma, para o Centrão e seus aliados, o “negócio” é garantir desde já que este e o próximo governo sejam reféns de suas demandas, reduzindo assim a possibilidade de mudanças na composição do Parlamento e, de consequência, em sua orientação ideológica majoritária.

Resumindo, podemos dizer que os paliativos destinados a minorar os sofrimentos da população mais pobre e a redirecionar levemente os rumos do país têm seu potencial bloqueado por mecanismos que são próprios do funcionamento do sistema capitalista e do papel que a direita vem assumindo na manutenção de uma ordem favorável à sua expansão. Será que isso ajudará a população a acordar? Ou será que a gravidade da situação vivida em várias regiões de país está transformando o “Seja o que Deus quiser” na expressão de quem desiste da luta?

Além do que já escrevemos em várias análises desde a eleição de Bolsonaro em 2018, há um dado do Censo de 2022 que ensaia uma resposta preocupante às duas perguntas. De acordo com este levantamento, o Brasil tem uma média de 268 igrejas, templos, sinagogas e estabelecimentos religiosos para cada grupo de 100.000 habitantes enquanto, para o mesmo contingente de pessoas, temos apenas 122 postos de atendimento à saúde (hospitais, clínicas e pronto socorros) e 130 estabelecimentos de ensino (creche, escolas e universidades). Tudo indica que, na falta de serviços públicos à altura das necessidades, só resta às pessoas recorrerem a Jesus como o “médico dos médicos” e o “mestre dos mestres” para encontrar orientação e alívio às suas angústias. Neste contexto, não é de estranhar que o pensamento mágico ocupe o espaço da ciência e que, de consequência, o conformismo e a resignação acabem entregando “ao Deus dará” o que só as lutas dos de baixo podem construir para que haja tudo para todos.[xxiii]

Sendo assim, quais são as possibilidades reais de a revolta despertada pelos sofrimentos diários darem vida a ações de resistência que ensaiem uma resposta ao projeto de país dos grupo de poder? Até que ponto os esforços do governo atual têm condições reais de progredir na difícil tarefa de alterar o Brasil que as elites continuam construindo? Em que medida as pessoas simples têm noção deste projeto e estariam disposta a participar de algumas lutas comuns caso o fermento da revolta presente nos debates teóricos de muitos militantes se mesclasse, de fato, a uma população pobre que caminha para diferentes estágios de conformismo?

A dinâmica da realidade e as tempestades que 2024 projeta em seus horizontes demandam respostas cada vez mais precisas e urgentes.

 

Emilio Gennari. Brasil 01 de março de 2024.



[i] Todos os dados relativos ao emprego e à renda média do trabalho em 2023 foram extraídos da Pesquisa Nacional por amostra de Domicílio (PNAD-Contínua) do IBGE e encontram-se disponíveis em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/39025-pnad-continua-em-2023-taxa-anual-de-desocupacao-foi-de-7-8-enquanto-de-taxa-de-subutilizacao-foi-de-18-0  e em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-detalhe-de-midia.html?view=mediaibge&catid=2102&id=7038 Acessos realizados, respectivamente, em 12/02/2024 e 01/03/2024.

[ii] De acordo com o IBGE, a riqueza produzida pela indústria representa 25,5% do PIB e a dos serviços os 67,4% restantes. Todos os dados citados foram divulgados em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-detalhe-de-midia.html?view=mediaibge&catid=2102&id=7038

  e em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/39306-com-alta-recorde-da-agropecuaria-pib-fecha-2023-em-2-9  Acessos em 01/03/2024.

[iii] Estas e mais informações sobre o tema encontram-se em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n25n573epo Acesso em 30/09/2023. No momento em que escrevemos, segundo informações obtidas junto aos próprios catadores, o preço do kg do papelão na Grande São Paulo caiu de 10 para 4 centavos.

[iv] Em: jornal Valor Econômico, edição impressa de 13 de julho de 2023.

[vii] É importante sublinhar que, em 2023, a taxa de investimentos sobre o capital fixo foi 1,3 ponto percentual menor em relação à que foi registrada em 2022 (17,8%). Este e outros dados sobre estes investimentos podem ser encontrados em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-detalhe-de-midia.html?view=mediaibge&catid=2102&id=7038  Acesso em 01/03/2024.

[viii] Podemos ter uma ideia da idade do parque produtivo instalado no país pelos dados da Confederação Nacional das Indústrias (CNI) divulgados em janeiro do ano passado. De acordo com o relatório apresentado, 12,0% do parque industrial brasileiro é herança das décadas de 1980 e 1990; e 20% do período entre 1998 e 2008. O pico de aquisições de máquinas e equipamentos ocorreu no período de 2008 e 2013, que concentra 28,0% das aquisições. Apenas 22,0% são de 2016 em diante. 

Em:https://www.iedi.org.br/artigos/imprensa/2023/iedi_na_imprensa_20231006_cenario_adverso_leva_setor_de_bens_de_capital_a_estagnacao.html  Acesso em 09/01/2024.

[ix] Em: Jornal O Estado de São Paulo, edição impressa do dia 30/06/2023.

[xii] Em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/01/05/brasil-registrou-maior-numero-de-denuncias-de-trabalho-escravo-da-historia-em-2023-diz-governo.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias   Acesso em 07/01/2024

[xiii] Os resultados das investigações lideradas pelo delegado da polícia federal Alexandre Saraiva durante o governo de Jair Bolsonaro ajudam a entender a complexa rede de relações que sustenta mandantes e executores dos crimes ambientais na região amazônicas. As principais ações policiais deste período e as conclusões a que permitiram chegar são relatadas em: Alexandre Saraiva, Selva, madeireiros, garimpeiros e corruptos na Amazônia sem lei, Ed. História Real, Rio de Janeiro, 2023.

[xiv] Em: https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2024/01/05/area-sob-alerta-de-desmatamento-amazonia-cerrado-em-2023-inpe.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias Acesso em 08/01/2024

[xv] Este processo foi evidenciado por um levantamento criterioso e profundo dos elementos que o sustentam na Tese de Doutorado elaborada por Daniel da Mota Neri, Terrorismo de barragens: estratégias de despossessão produzidas pela mineração de ferro em Minas Gerais, Universidade Estadual de Campinas - Instituto de Geociência, dezembro de 2023. Você pode baixar o texto através do link: https://drive.google.com/file/d/1Nj0tghqEmQ0eIn18ZP7vE-SV0uDXzGX5/view?usp=drivesdk

[xvi] Em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/11/12/alvos-de-criticas-de-haddad-beneficios-fiscais-devem-superar-os-r-500-bilhoes-em-2024-maior-nivel-em-9-anos.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias  e em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2024/janeiro/gasto-da-uniao-com-manutencao-e-desenvolvimento-do-ensino-atinge-151-9-do-minimo-constitucional-em-2023  Acesso em 15/11/2023

[xx] As informações sobre os censos e outros dados sobre o tema encontram-se em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/07/01/censo-2022-imoveis-desocupados-representam-12-vezes-a-populacao-de-rua-da-cidade-de-sp.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias   e em: https://www.terra.com.br/nos/moradia-propria-ainda-e-uma-realidade-distante-para-a-populacao-negra,ce03006c813ebbcee729467017141b0fih3s3x6q.html

  e em:  https://www.conjur.com.br/2023-jul-16/edesio-fernandes-modelo-perverso-urbanizacao-brasileira/

  e em: https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/geral/brasil-tem-mais-de-5-milh%C3%B5es-de-moradias-irregulares-diz-ibge-1.424317  e em: https://sismmac.org.br/brasil-tem-1142-milhoes-vivendo-em-moradias-irregulares/  

Acesso em 27/12/2023

[xxi] Os dados que se referem ao orçamento de 2024 constam da matéria disponível no link: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/12/22/5-pontos-para-entender-o-que-significa-politicamente-o-orcamento-aprovado-pelo-congresso.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias

Acesso em 23/12/2023.

[xxii] Estes e mais dados referentes à questão do saneamento estão disponíveis nas páginas eletrônicas: https://www.poder360.com.br/brasil/brasil-precisa-investir-r-893-bi-em-saneamento-diz-pesquisa/ 

  e em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/brasil-precisa-dobrar-investimento-em-saneamento-para-atingir-universalizacao-diz-especialista/ e em: https://www.camara.leg.br/noticias/1000584-ritmo-de-investimentos-em-saneamento-basico-ainda-e-insuficiente-para-universalizacao-ate-2033-alerta-economista/ e em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/07/12/marco-do-saneamento-investimento-no-setor-precisa-mais-que-dobrar-para-cumprir-metas-de-universalizacao-aponta-estudo.ghtml 

 Acessos em 03/01/2024.