quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Reflexão: Falta empatia ao postar sobre seu 13° nas redes sociais. Será mesmo?


 

                                                                                      Por Beca


Faz tempo que eu não deixo minhas considerações aqui, porque ninguém usa mais o Facebook. Mas o fato é que já tem algumas semanas que o pessoal tem deixado umas reflexões que me fizeram pensar sobre. Falando que "é muita falta de empatia o trabalhador postar sobre o seu 13° chegando, sobre suas férias remuneradas"; "tem muita gente que é autônoma". Bom, eu sou autônoma e não me sinto mal com isso. Talvez porque hoje eu tenha uma estabilidade maior na vida financeira. Entendo o ponto, mas discordo que isso seja uma falta de empatia do trabalhador.

Se vc é um trabalhador contratado por uma empresa e não tem 13°, deve se organizar com seus parça pra ter exatamente isso, que é o mínimo. Foi um direito conquistado pela classe trabalhadora há décadas, mas que só foi concedido aos trabalhadores, porque os proprietários de produção perceberam que poderiam continuar lucrando, afinal, o trabalhador contratado por um empresário trabalha e produz e desse trabalho dele é retirada sua mais-valia, apenas uma parte do trabalho dele é paga, outra parte do trabalho dele não é paga, vai para o patrão. Esse 13° e férias remuneradas não se trata de um privilégio, na realidade ele é só uma ínfima e mínima concessão dada a esse trabalhador, um "regime semi-aberto".

Agora, se vc é autônomo mesmo, e não tá conseguindo ganhar uma grana, a falta de empatia não tá em quem posta sobre as férias remuneradas e o seu 13°, mas no próprio sistema que é desigual.

Tu vai comprar briga com o cara que trabalhou o ano todo e que agora tem dias de descanso com a família dele, sério mesmo?

A falta de empatia não tá no seu semelhante, mas no sistema capitalista mesmo, vai xingar quem vive do trabalho alheio: o dono da Tesla, o dono do banco do Itaú, da Volks... Mas parece que quando esses postam aqueles comerciais nas redes sociais, vc fica aí todo emocionado, dizendo "ai me emocionei com o comercial da Fernanda Montenegro, e depois com aquele outro comercial da Maria Rita"... E não é que vc não pode se emocionar - quem sou eu pra dizer o que vc pode ou não fazer? Um monte de gente se emocionou -, mas, assim, vc percebe o problema e a contradição? As pessoas por detrás disso e que contrataram esses trabalhadores para montar esses comerciais que emocionam boa parte da nossa classe, e que acabam propagando essa ideologia dominante, vivem do seu trabalho, do meu trabalho, do nosso trabalho e "nunca lucraram tanto na história desse país".

Na hora de falar sobre falta de empatia, fala da falta de empatia desses caras, eles têm nome e sobrenome e devem estar contratando gente pra fazer seus bunkers e suas viagens espaciais por aí.

Notas de Conjuntura --- 03 de dezembro de 2023

 



E os argentinos elegeram Milei...





 

Após receber o apoio de Patrícia Bullrich, candidata derrotada da direita tradicional, Javier Gerardo Milei, de A Liberdade Avança, venceu o segundo turno das eleições presidenciais argentinas com 11 pontos percentuais de vantagem sobre Sérgio Massa, da coligação governista União pela Pátria. Enquanto muitos se apressam em projetar as possibilidades de o novo Presidente da República obter a maioria parlamentar para viabilizar as ideias anunciadas na campanha,[1] consideramos fundamental centrar nossas atenções no que levou os eleitores a confiarem nas suas propostas. Este elemento, quase sempre menosprezado depois da contagem dos votos, permite detectar tanto a leitura da realidade de quem votou na ultradireita como as formas pelas quais um candidato com um programa contrário aos interesses populares seduziu a maioria dos votante ao dar voz à sua revolta com gestos e palavras que cativaram corações e mentes.

Ninguém duvida que os reflexos do mau desempenho da economia na vida das pessoas jogou um papel de primeira ordem na escolha dos argentinos. Basta pensar que, em 2015, Maurício Macri, da mesma coalizão de Patrícia Bullrich, assumiu a Presidência com uma inflação de 25,0% e, quatro anos depois, deixou o cargo com o aumento anual dos preços na casa dos 54,0%. Alberto Fernández, de Juntos pela Pátria, herdou todos os desafios criados pelo empréstimo de 44 bilhões de dólares contraído por Macri junto ao Fundo Monetário Internacional, enfrentou os problemas da pandemia ampliando a dívida interna e o deficit público e entregará a faixa presidencial com a inflação anual em 142,0%. Diante deste quadro, o senso comum reage sem deixar espaços para as dúvidas: se com Macri foi ruim, com Fernández foi bem pior; logo, não dá para apostar nas coligações de sempre para mudar os rumos do país.  

É interessante sublinhar que esta conclusão não deitou raízes na compreensão das possibilidades reais e das consequências imediatas das políticas a serem introduzidas pelo líder de A Liberdade Avança. O apoio a Milei nasceu, fundamentalmente, do encontrar em seus discursos eleitorais as expressões do descontentamento que muitos repetiam em voz baixa, em ver refletida nele a raiva que dava voz à mescla de revolta e frustração vivida silenciosamente nas agruras do dia a dia e em se deparar com ideias que expressavam um genuíno desejo de mudança.

Alguns exemplos ajudam a vislumbrar os mecanismos deste processo. Por muito que os economistas tenham afirmado repetidamente que a Argentina não dispõe de uma quantidade suficiente de moeda estadunidense para a dolarização anunciada por Milei, a ideia de ter uma referência estável para pensar a sobrevivência diária e deter a crescente perda do poder de compra dos salários cativou as esperanças populares. Qualquer argentino sabe que, apesar de serem regulados por leis específicas que determinam os reajustes em moeda nacional, os contratos de aluguel, por exemplo, são informalmente cotados em dólares e os proprietários dos imóveis forçam os locatários a engolirem suas condições...se quiserem ter onde morar. Em dólares também estão os preços dos imóveis, dos carros, das diárias de hotel e muitos outros bens e serviços dos quais a população precisa.

Ou seja, para as pessoas comuns, o Peso já é uma referência sem valor até para as necessidades do dia a dia, razão pela qual saber como será a dolarização, quando vai ser implantada, em que medida vai influenciar o crescimento do PIB e se o país precisará recorrer a novos empréstimos para viabilizá-la se apresentam como detalhes insignificantes para quem vê a própria vida desmoronar sob o peso da inflação. Quem está na base da pirâmide não quer saber quanto custará a carne dolarizada e sim quando conseguirá garantir que o seu preço não suba pelo elevador enquanto a renda do trabalho se arrasta por infindáveis lances de escadas. Basta pensar que, no primeiro semestre de 2023, a inflação dos alimentos acumulou uma alta de 55,6%, 8,6% pontos percentuais acima do reajuste médio dos vencimentos dos trabalhadores formais e 14,6 pontos percentuais superior ao aumento da renda média de quem vive na informalidade, levando muita gente a apertar os cintos.[2]

Na falta de perspectivas para o futuro, votar em Milei não foi o que muitos chamaram de “um salto no escuro”, e sim a saída que restava diante de uma crise que deixa os argentinos na lona. A expressão de uma moça de 24 anos que vive na periferia de Buenos Aires resume a postura que levou os jovens a considerar Milei como alguém que, por ruim que seja, não piorará substancialmente a situação atual. Respondendo à indagação da repórter do jornal El País sobre as razões que a levavam a votar no candidato de A Liberdade Avança, ela afirma textualmente: “A minha geração não sabe o que é estar bem. Voto nele porque já estamos feito merda. Quanto mais merda ele pode nos fazer?”.[3]

Concretamente, aqui está o resumo, em linguagem simples, cáustica e direta, da posição do núcleo populacional que vai dos 16 aos 29 anos e que mais sofre com a informalidade, com a precarização do trabalho e com a falta de perspectivas reais para melhorar a sua renda. Falamos de um contingente que representa pouco mais de 27,0% das pessoas com direito a voto e que, no máximo, tem vagas lembranças da crise econômica de 2001 e dos melhores anos do mandato presidencial de Nestor Kirchner. Mas, de uma coisa a juventude têm certeza: foi sob os dois últimos governos que as condições de vida de muitas famílias conheceram uma piora substancial. “Estamos fartos de empobrecer. Queremos uma mudança radical”, diz outro jovem ao repórter do jornal El Mundo que lhe fez a mesma pergunta.[4]

Sendo assim, qual é a causa da crise que a população identificou como sendo a principal responsável pela transformação da economia Argentina num campo minado onde qualquer saída não ocorrerá sem explosões adicionais de sofrimentos e privações?

Para 76,1% das pessoas entrevistadas pela consultoria em pesquisa e comunicação Trespuntozero e pelo Grupo de Opinión Publica, em agosto de 2023, os políticos são os principais responsáveis pela crise da qual o país não consegue sair. São eles que, para 77,6% dos que responderam aos questionários, transformaram o Estado numa máquina ineficiente e deixaram a economia argentina em frangalhos, sendo que, entre os jovens, esta porcentagem atinge os 84,1%.[5]

A ação desta “casta”, à qual Milei sempre dirigiu as expressões mais duras dos seus ataques verbais, fez com que o Estado deixasse de ser um salva-vida nos momentos difíceis para se transformar num estorvo que impede de realizar os sonhos de ascensão social na exata medida em que políticos corruptos, oportunistas e ladrões se beneficiam de suas estruturas e dos gastos públicos para enriquecer à custa de todos. Neste sentido, ao investir contra a “casta” o líder de A Liberdade Avança apenas expressava a fúria que estava no coração de muitos argentinos. Uma fúria tão grande que permitiu assimilar acriticamente a necessidade de uma redução draconiana da presença do Estado nos serviços públicos, dos subsídios e até dos programas de ajuda aos empobrecidos.

Ninguém duvida da existência de situações de corrupção, superfaturamento e desvios de dinheiro público e, portanto, da necessidade de combater as violações e assaltos aos cofres do Estado com o rigor que a lei exige. Contudo, é justamente a fúria que se concentrou em volta deste elemento da realidade que possibilitou encobrir os elementos estruturais do sistema que aguardam o plano econômico de Milei para aprofundar a acumulação de capitais na Argentina.

A imagem de Milei segurando uma motosserra para simbolizar a determinação de promover um corte radical dos gastos públicos que alimentam a “casta parasitária e ladrona”, levava à loucura os participantes dos comícios que chegavam a pedir insistentemente que o líder de A Liberdade Avança a empunhasse imediatamente diante de todos numa espécie de vingança simbólica contra quem usou e abusou do Estado em prejuízo da maioria. Ao materializar a revolta dos argentinos que participavam dos atos da campanha eleitoral e dos que votariam silenciosa e envergonhadamente nele, Milei conseguiu apagar qualquer reflexão em relação às consequências que a própria população deveria amargar, caso os cortes alardeados viessem a se concretizar. Desta forma, a sensação de ver a própria raiva se transformar em motosserra nas mãos de um candidato decidido a realizar uma mudança efetiva era diretamente proporcional à incapacidade de as pessoas calcularem a conta que deveriam pagar sem que os ladrões e parasitas da casta política devolvessem o que roubaram.

Dois aspectos ajudam a visualizar este processo. O primeiro guarda uma relação direta com o fato de que, em nenhum momento da campanha, o líder de A Liberdade Avança afirmou que os membros da “casta” seriam investigados e punidos por seus crimes. E isso não é por acaso. De fato, sempre que a corrupção vem à tona, encontramos, de um lado, o envolvimento de assessores, políticos e representantes do Estado e, de outro, os empresários que se beneficiaram dos desvios de recursos, do superfaturamento e do parasitismo condenados pelos discursos de Milei. Ou seja, ao colocar os primeiros atrás das grades, os segundos não poderiam continuar impunes.

Do mesmo modo, a casta foi também responsabilizada pelo aumento da pobreza e da indigência até de quem trabalha com um contrato formal. Esta afirmação possibilitou encobrir a ação de um empresariado que usou a defasagem entre a elevação dos preços e os reajustes salariais para ampliar a lucratividade dos seus negócios. De fato, como apontávamos na nossa análise anterior, entre 2017 e o primeiro trimestre de 2023, a participação dos salários na economia caiu de 55,6% para 48,4% do Produto Interno Bruto, enquanto a porcentagem dos lucros empresariais passou de 35,0% para 38,4% do PIB.[6]

Denunciar esta realidade e agir de forma consequente significaria atrair as represálias do empresariado em cujas mãos a própria campanha de Milei ganhou apoios e projeção desde bem antes das eleições presidenciais. Haja vista que, de 2016 em diante, ele foi um assíduo frequentador dos programas de televisão e, em 2018, seus comentários sobre temas econômicos foram solicitados em 235 entrevistas, sendo que nos anos posteriores este número cresceu ainda mais.

A frequente presença na mídia levou o líder de A Liberdade Avança a abandonar a frieza dos termos técnicos e dos raciocínios econômicos (tão distantes da linguagem popular) para evidenciar suas críticas às políticas governamentais rumo a uma postura mais performática que espelhasse o sentir do povo com expressões que mostravam a sua sintonia com a inconformidade da maioria. Passo a passo, a agressividade, os exageros verbais, os momentos de fúria e de escárnio dos seus comentários na mídia começaram a transformá-lo no depositário do descontentamento popular na exata medida em que a raiva dos simples não encontrava formas de traduzir a sua intensidade.[7]

Contudo, a mesma raiva que permitiu entrar em sintonia com o sentimento popular é justamente o elemento que impossibilitou uma reflexão crítica do povo em relação às  propostas de campanha. De fato, ao se sentirem representadas e valentes nas palavras de ordem de Milei, as pessoas não perceberam que a raiva conseguia turvar seus pensamentos e fazer com que coisas difíceis e complexas parecessem simples e ao alcance da mão. Por exemplo, ninguém duvida da possibilidade de uma canetada presidencial acabar com todos os subsídios que elevam o deficit público e alimentam a inflação. O problema é que, ao detonar tudo para começar supostamente do zero, não é possível evitar que a maioria da população mergulhe numa situação ainda pior.

O caso do transporte público ajuda a ilustrar quanto acabamos de afirmar. Graças aos subsídios, a passagem dos trens metropolitanos pode ser adquirida por 33,2 Pesos. Eliminar o dinheiro aplicado pelo governo implicaria em aumentar o preço de cada viagem para nada menos do que 1.100 Pesos, algo insustentável para a classe trabalhadora argentina. Do mesmo modo, é importante lembrar que, no final de 2022, 51,7% da população vivia em famílias que recebiam algum tipo de assistência econômica do Estado que, por limitada que fosse, contribuía para conter a elevação do número de pobres e miseráveis. Basta isso para perceber que o fim dos subsídios e a liberação total dos preços dariam vida a um pico de inflação que mergulharia o país numa dura recessão que, por sua vez, encolheria a arrecadação, dificultaria a redução do deficit e aumentaria a pobreza, piorando o que já está bem ruim.[8]

Contudo, nenhuma reflexão ou projeção neste sentido foi capaz de questionar a convicção de que as ideias de Milei iriam melhorar a vida de todos. No máximo, quando a lógica dos números conseguia incomodar as certezas populares, o senso comum respondia que o líder de A Liberdade Avança não deixaria isso acontecer ou que, sabendo das consequências, não faria o que alardeava em todos os seus discursos. A esperança em um futuro melhor tornava as pessoas impermeáveis a qualquer reflexão que projetasse a possibilidade de um custo social superior aos supostos benefícios das mudanças propostas.

A retórica inflamada com a qual Milei soube se conectar com uma maioria disposta a mandar tudo às favas, mas não a continuar vivendo nas condições atuais, conseguiu introduzir um elemento essencial à nova fase da acumulação que Milei inaugurará com o seu governo: a naturalização da perda de direitos em troca da estabilidade econômica. Convencer as pessoas de que sem uma forte redução do envolvimento do Estado na economia não será possível tirar o país da crise, levou parte considerável do eleitorado a assimilar que é necessário renunciar a alguma coisa nos 18 a 24 meses que Milei prevê como período necessário para que suas propostas surtam o efeito desejado.[9]

Das mudanças na saúde pública e na educação, passando pela redução dos subsídios e a revogação do aborto há uma longa lista de direitos sociais que serão colocados na berlinda. Mas o que chamou a atenção neste pleito foi também o fato de a negação de um direito ter sido a peça-chave da campanha que elegeu alguns parlamentares de A Liberdade Avança. É o caso, por exemplo, de Lilia Lemoine que se consagrou deputada nacional pela província de Buenos Aires.

Partindo do pressuposto que muitas mulheres furam os preservativos ou garantem estar tomando a pílula anticoncepcional para “fisgarem seus parceiros” com uma gravidez indesejada, Lilia afirmava que um dos seus primeiros projetos de lei possibilitará ao homem abrir mão da paternidade para não pagar nenhum tipo de pensão alimentícia desde que ele alegue ter sido enganado pela parceira que engravidou. Desta forma, segundo a deputada recém-eleita, assim como a mulher tem o privilégio de matar o próprio filho com um aborto legal, o homem asseguraria legalmente a própria liberdade de assumir ou não a paternidade de uma criança que não planejou ter.

De um lado, a quantidade de votos que possibilitou a sua eleição traduz as dimensões de uma compreensão da liberdade que seria cômica se não fosse trágica, mas que serve como uma luva aos mais diferentes grupos que viram em Milei um aliados de primeira hora. De outro, desperta uma clara sensação de desconcerto saber que a proposta de Lilia teve tanta adesão em um país onde há cerca de um milhão e seiscentas mil mães que tomam conta sozinhas de três milhões de crianças, metade das quais não recebe um único centavo por parte dos pais biológicos.[10] Ou seja, trata-se de uma ideia que legaliza um retrocesso brutal numa realidade onde a vida das mulheres passa bem longe de ter mais flores do que espinhos graças à suposta “esperteza” com a qual fisgaram seus parceiros.

Mas isso não é tudo. Como bom ilusionista, Milei conseguiu convencer o respeitável público em relação ao poder mágico de suas propostas a ponto de levar as redes sociais a criarem um clima adverso a quantos prometem desmascarar os seus truques e lutar para não perder direitos. Mas, o que acontecerá com aqueles que, por algum motivo, ocuparão as ruas e praças das cidades argentinas para protestar contra as medidas governamentais? A resposta dada por Milei em algumas entrevistas é clara: serão duramente reprimidos.[11]

No momento em que escrevemos, as lideranças dos movimentos estão movendo os primeiros passos de uma articulação que deverá ser cada vez mais abrangente para enfrentar o desmonte prometido pelo novo Presidente da República e para transformar em mobilização efetiva o discurso da defesa dos direitos que hoje soa vazio aos ouvidos de uma  população que vê a própria vida degringolar semana após semana. Trata-se de um desafio considerável diante de corações e mentes que foram encantados pelos discursos de Milei e o veem como o único capaz de construir um futuro melhor para todos.

Para dissuadir os que ameaçam acordar as pessoas em tempo hábil para uma reação capaz de evitar o pior, Milei já anunciou que o Ministério da Segurança e da Defesa Nacional não só não sofrerá nenhum corte orçamentário, como receberá ainda mais recursos para que as forças policiais estejam prontas para defender a ordem. Se isso não bastasse, a vice-presidente, Victoria Villarruel, está engajada numa batalha que, ao melhorar a imagem do exército, busca criar as condições para entregar aos militares um papel mais efetivo na manutenção da ordem. O primeiro passo deste processo questionou frontalmente o número oficial de desaparecidos a fim de fortalecer a ideia pela qual a ditadura militar apenas reagiu às agressões da luta armada, organizada pela esquerda revolucionária. Para ela, esquecer disso seria sinônimo de usar os direitos humanos para garantir a impunidade de quem queria derrubar violentamente as estruturas do Estado.

Com base neste pressuposto, entre agosto e novembro, não foram poucos os momentos em que Villarruel defendeu publicamente que o número de vítimas da ditadura não passaria de 8.753 pessoas, conforme consta de um relatório incompleto dos primeiros anos da redemocratização. Este contingente contraria tanto o conteúdo de informes posteriores do próprio Estado argentino (que estimavam serem mais do que o dobro do inicialmente contabilizado), como os 30.000 mortos e desaparecidos apontados pelas organizações de direitos humanos. Ao reduzir fortemente o número das vítimas, a Vice-Presidente busca fixar a ideia de que a ditadura do general Jorge Rafael Videla lançou mão de uma “violência compreensível” diante da necessidade de aniquilar as ameaças revolucionárias, como se, independentemente do motivo da prisão, não fosse obrigação do Estado zelar pela vida de quem está sob a sua custódia.

Além disso, a menos de dez dias do segundo turno, Villarruel criticou a manutenção do Museu da Memória dos Crimes da Ditadura que funciona nas instalações da Escola de Mecânica da Marinha (ESMA) em cujos porões, após o golpe militar de 1976, cerca de 5.000 militantes teriam sido detidos, torturados e assassinados. Contrariando a decisão da UNESCO que, em setembro deste ano, declarou o Museu da Memória como parte do Patrimônio Cultural da Humanidade, a Vice-Presidente defende que suas instalações sejam transformadas numa escola para as crianças das famílias argentinas. Coberta pelo manto das boas intenções, esta proposta não consegue disfarçar o fato de que se destina, fundamentalmente, a apagar uma parte da memória histórica do país.[12]

No ano em que a Argentina celebra quatro décadas de redemocratização, as pressões das forças armadas para que Milei liberte os militares condenados durante o governo de Nestor Kirchner ressuscitam um fantasma que parecia ter sido enterrado para sempre e cuja ação silenciosa promete apoiar as duras medidas que o novo governo viabilizará a partir da posse, no dia 10 de dezembro.[13] Infelizmente, estas movimentações não acendem nenhum sinal de alerta na maioria da população argentina. Para quem não chegou aos 50 anos de idade, a ditadura militar não passa de um conto que se refere a um período distantes e as ações dos grupos que sempre denunciaram as torturas e os desaparecimentos forçados acabam não encontrando neles uma caixa de ressonância capaz de entender a importância dos alertas que já começaram a disparar.

Nesta altura dos acontecimentos, pouco importam os adjetivos com os quais muitos desqualificam Milei. O fato é que ele ganhou as eleições e que o voto na sua candidatura perpassou todas as classes sociais. A aliança da direita tradicional com a ultradireita levou setores expressivos da próprio operariado a confiar nas suas propostas e na sua capacidade de melhorar a vida em sociedade. Mais uma vez, o projeto de país proposto por uma das formas mais radicais do liberalismo econômico dialogou com o povo, entrou em sintonia com a sua raiva, traduziu em palavras e gestos o que a esquerda se mostrou incapaz de capitalizar e conseguiu unir a maioria do eleitorado em volta dos seus princípios.

As lideranças dos movimentos apostam que a classe trabalhadora acordará rapidamente do torpor em que se encontra. Resta saber em que bases e em quanto tempo isso irá de fato acontecer.[14]

Emilio Gennari. Brasil, 3 de dezembro de 2023.

 



[1] Vale lembrar que, após a recomposição do Parlamento nas eleições do dia 22 de outubro, o partido de Milei, A Liberdade Avança, conta com apenas 38 assentos na Câmara dos Deputados (onde União pela Pátria tem 108 deputados; Juntos pela Mudança 93; e as 18 vagas restantes são ocupadas pelos representantes de outros partidos) e 8 senadores (ante 34 da União pela Pátria, 24 de Juntos pela Mudança e 6 das demais agremiações). Em:  https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/10/23/partido-de-javier-milei-tem-a-terceira-maior-bancada-do-congresso-apos-eleicoes.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias   Acesso realizado em 30/11/2023.

[2] Dados publicados na edição impressa do jornal Valor Econômico do dia 03/10/2023 e em: https://elpais.com/argentina/2023-09-28/auge-de-la-pobreza-en-argentina-ya-no-pienso-en-llegar-a-fin-de-mes-pienso-en-llegar-a-fin-de-semana.html  acesso realizado em 07/10/2023.

[3] Em: El País, edição impressa do dia 25/10/2023.

[4] Em: El Mundo edição impressa do dia 27/09/2023.

[5] Em: https://marcelofalak.wordpress.com/2023/09/13/viaje-al-centro-de-la-mente-y-el-corazon-del-electorado-de-javier-milei/  Acesso realizado em 22/11/2023.

[6] As porcentagens referentes à participação dos salários e dos lucros no Produto Interno Bruto constam das estatísticas oficiais e foram publicadas em: https://noticiashoy.app/blogs/politica/el-plan-de-argentina-para-aliviar-el-golpe-de-la-inflacion-genera-una-rebelion-de-empresarios-y-gobernadores  Acesso realizado em 05/09/2023.

[7] Em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2023/11/22/argentina-atilio-boron-analiza-el-triunfo-de-milei-fue-una-construccion-mediatica-prolijamente-planificada/  Acesso realizado em 28/11/2023.

[8] Dados publicados em: https://www.bbc.com/mundo/articles/cyd121pd8q7o  Acesso realizado em 27/10/2023.

[9] Em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/11/20/milei-diz-que-tardara-entre-18-e-24-meses-para-controlar-a-inflacao-da-argentina.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias e em: https://elpais.com/argentina/2023-11-21/los-votantes-de-milei-se-preparan-para-pagar-el-precio-de-sus-recetas-economicas-va-a-ser-sufrido-pero-saldremos-enteros.html Acessos realizados em: 22/11/2023

[10] Em:  https://elpais.com/argentina/2023-10-18/una-candidata-de-milei-impulsa-un-proyecto-para-renunciar-a-la-paternidad-si-te-pinchan-un-preservativo.html e em: https://revistaforum.com.br/global/2023/10/24/carla-zambelli-de-milei-saiba-quem-lilia-lemoine-piv-do-fracasso-do-ultradireitista-na-argentina-146418.html  Acessos realizados em 30/10/2023.

[11] Em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2023/11/20/argentina-las-definiciones-del-ultraderechista-javier-milei-dolar-privatizaciones-y-represion/ Acesso realizado em 22/11/2023.

[12] Estas e mais informações podem ser encontradas em:

https://elpais.com/argentina/2023-09-18/victoria-villarruel-la-cruzada-de-javier-milei-en-la-batalla-cultural-de-la-derecha-en-argentina.html

https://www.bbc.com/mundo/articles/cg3pr3vq98vo

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxw1x1x4njxo

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cekm45e3rypo

https://elpais.com/argentina/2023-11-15/la-candidata-de-milei-a-la-vicepresidencia-propone-desarmar-el-museo-de-la-memoria-de-la-esma.html  Acessos realizados em 29/11/2023.

[13] Em: https://elpais.com/argentina/2023-11-16/el-negacionismo-de-la-dictadura-que-propone-milei-no-cala-en-los-cuarteles-argentinos.html  e em:  https://www.resumenlatinoamericano.org/2023/11/28/argentina-militares-le-piden-a-javier-milei-una-solucion-definitiva-para-los-represores-presos/  Acessos realizados em 29/11/2023.

[14] Para elaborar as nossas reflexões, além dos materiais citados, consultamos as matérias publicadas em:

https://elpais.com/argentina/2023-09-15/sobra-el-ejercito.html 

https://elpais.com/argentina/2023-09-22/javier-milei-y-el-riesgo-de-revertir-las-reivindicaciones-de-las-mujeres-argentinas.html

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/09/28/na-argentina-onde-aborto-e-legal-passeata-reune-milhares-que-temem-mudanca-caso-milei-seja-eleito.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias 

https://elpais.com/argentina/2023-09-29/el-feminismo-argentino-se-moviliza-contra-javier-milei.html 

https://elpais.com/argentina/2023-10-01/milei-impone-su-agenda-ultra-en-la-campana-argentina.html 

https://elpais.com/argentina/2023-10-01/milei-encabeza-las-encuestas-pero-sin-bastarle-para-ganar-en-primera-vuelta.html

https://elpais.com/argentina/2023-10-01/un-escandalo-golpea-al-kirchnerismo-a-tres-semanas-de-las-elecciones-en-argentina.html 

https://elpais.com/argentina/2023-10-02/javier-milei-sale-con-vida-del-primer-debate-de-candidatos-presidenciales-de-argentina.html 

https://elpais.com/argentina/2023-10-01/milei-encabeza-las-encuestas-pero-sin-bastarle-para-ganar-en-primera-vuelta.html#?rel=mas 

https://elpais.com/opinion/2023-10-02/las-diez-lecciones-que-nos-dejo-el-primer-debate-presidencial-en-la-argentina.html 

https://elpais.com/argentina/2023-10-02/el-papa-la-dictadura-y-el-gatito-mimoso-el-color-de-un-debate-presidencial-argentino-sin-sopresas.html

https://elpais.com/argentina/2023-10-03/carolina-piparo-candidata-de-la-ultraderecha-milei-cambio-la-agenda-politica-argentina-para-siempre.html e em: https://elpais.com/argentina/2023-10-16/campana-sucia-en-argentina.html

https://elpais.com/argentina/2023-10-04/la-argentina-que-no.html

https://elpais.com/argentina/2023-10-04/la-campana-electoral-argentina-sube-la-temperatura-entre-escandalos-y-acusaciones-falsas.html e em: https://elpais.com/opinion/2023-10-11/la-piedra-de-la-locura.html

https://elpais.com/argentina/2023-10-12/la-inflacion-argentina-se-sale-de-control-y-se-acerca-al-140-interanual.html 

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Acessos realizados entre 09/08/2023 e 30/11/2023.