sábado, 29 de dezembro de 2018

O Império Ataca Novamente como um Alien:NOTA SOBRE OS SALÁRIOS DOS SERVIDORES APOSENTADOS E ATIVOS DA PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINAS*


O Império Ataca Novamente.  Como um Alien , o capital e seu Estado avançam para cima e para dentro do seu hospedeiro, os trabalhadores, que o criam e ao mesmo tempo alimentam, sem nenhuma preocupação, como sempre,  destrói seu criador sin ira et studio (“sem ódio sem amor”) como bem funciona a burocracia “a la Weber”.

Em Campinas, como nos esclarece o comunicado abaixo, o alvo agora é a previdência municipal (em São Paulo idem). Pelo visto é um ensaio geral para o próximo ano, durante o qual continuarão o ataque a previdência federal.

O Alien, não se contenta com o mais trabalho (lucro) que retira todos os dias da classe trabalhadora, agora ele ataca os salários diretos, por meio da terceirização e os indiretos por meio do desmonte da previdência pública e “reforma trabalhista”. É a arte de esfolar o mesmo boi duas vezes: o capital ganha quando reduz os salários e depois ganha de novo com a venda de títulos privados de previdência para o trabalhador.

Ainda bem que tem resistência com está descrito abaixo:

*NOTA SOBRE OS SALÁRIOS DOS   SERVIDORES APOSENTADOS E ATIVOS DA PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINAS*

Antes de qualquer discussão sobre a temática dos proventos, queremos reforçar que salário é um DIREITO devido ao trabalhador que vendeu sua força de trabalho e jamais pode ser penhorado ou retido por qualquer motivo pelo patrão. Em palavras mais simples, salário é comida, é bebida, é saúde, é diversão,  enfim, é sobrevivência! O calote que estão impondo aos servidores da ativa e aos aposentados da PMC é uma violência sem precedentes. 
  
Dito isto, vamos aos demais fatos:

O Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Público Municipal de Campinas -  STMC, formulou pedido de Tutela Cautelar pleiteando a concessão de medida liminar para que, caso exista receita e ou recursos financeiros para tanto, o Camprev efetive o pagamento integral das aposentadorias e pensões. Esse pedido foi atendido por um juiz de plantão, pois essa ação foi interposta no primeiro dia do recesso judicial em que se encontravam ausentes os juízes das varas especializadas que conhecem bem a dinâmica do Camprev e a PROIBIÇÃO  de comunicação entre os fundos previdenciário e financeiro.

Outra questão que nos causa estranheza é o fato de o STMC não ter feito o mesmo pedido ao poder judiciário obrigando o prefeito caloteiro Jonas Donizette (PSB/PSDB) a pagar os salários dos trabalhadores da ativa, que também estão sendo violentados em seus direitos pois, de acordo com dados publicados no diário oficial do município em 27/09/2018, páginas 11 a 14, dados esses também divulgados em nota por nós da OPOSIÇAO UNIDADE E LUTA, a PMC teve aumento considerável de arrecadação, demonstrando perfeita saúde financeira, o que não justifica esse calote em nossos salários. 

A verdade é que mais uma vez a direção do STMC, que é vinculada ao partido do prefeito, não está preocupada com a violência que está sendo cometida com os trabalhadores da ativa e aposentados, mas sim, está criando condições para justificar que o prefeito  usurpe recursos do Fundo Previdenciário para pagar os aposentados da PMC vinculados ao Fundo Financeiro que é de OBRIGAÇÃO do prefeito pagar.

Usar os recursos do Fundo Previdenciário para pagar os aposentados é um flagrante desrespeito à coisa julgada pois, nas ações, uma sentenciada pela 2ª Vara da Fazenda Pública no *Processo n. 1049997-25.2016.8.26.0114* e a outra em acórdão de *Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2231529-29.2017.8.26.0000*, ficou decidido que o CAMPREV não pode utilizar o dinheiro do Fundo Previdenciário para realizar o pagamento dos servidores vinculados ao Fundo Financeiro.

Por fim, já que o Camprev pagou os salários dos aposentados vinculados ao Fundo Financeiro que é de obrigação da PMC fazer, não se justifica hoje, dia 28/12/2018, dia de pagamento do último salário do ano, os trabalhadores da ativa verificar no saldo da sua conta bancária, somente o valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais) de salário.

Apesar de todos esses ataques, desejamos aos trabalhadores do serviço público municipal muita força e animo para as lutas que se avizinham nesse 2019. Feliz Novo Ano!

Vamos à luta!!

*OPOSIÇÃO UNIDADE E LUTA!*



terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Clitóris, o Prazer proibido


Temos certeza, que ainda no século XXI, vão te sabotar ou achar este documentário ofensivo ou da ideologia de gênero.

Não dê ouvidos a esta bobagem e assista como quem assiste uma aula ou uma orientação de uma família bem humana ou de religiosos sensatos que sabem que, quer seja Deus quer seja natureza, que tenham criado o clitóris, não o fariam pra depois proibir seu uso.

Que crueldade sem tamanho, inominável seria, dotar uma pessoa de algo tão fantástico, tão perfeito e adorável e porque não, tão divino e proibir o ser que o detém e o possui de sentir o que proporciona?

A humanidade tem que pedir perdão e corrigir imediatamente a crueldade já feita com as mulheres e com os homens nestes séculos todos.

E não adianta pôr a culpa no diabo, porque a proibição não vem dele. Ao contrário, religiosos já condenaram mulheres por satanismo, bruxaria e por feitiçaria, o que dá no mesmo, por viver ou por estimular a vivermos o prazer que ele proporciona. E ainda hoje são feitas incisões femininas, pra amputar mulheres retirando o clitóris, numa espécie de castração feminina.
Que o prazer, como a comida e a bebida e o ar, e portanto, a vida,  sejam um eterno direito da humanidade vivente

Boa aula!





terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Reflexões sobre o trabalho policial




Por Emílio Gennari


         Os números da violência assustam. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2016, 58.383 pessoas foram assassinadas ao longo do ano passado, uma a cada 9 minutos. De 2011 a 2015, as mortes violentas somaram 278.839, quantidade que supera as 256.124 da guerra na Síria.
         Em termos estatísticos, o Brasil se destaca também pelo alto número de policiais que matam, que morrem e que tentam tirar a própria vida. Sempre em 2015, a atuação da polícia brasileira acumulou 3.345 mortes, 45% das quais ocorreram nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente com 848 e 645 pessoas alvejadas. 
         De 2009 a 2015, 733 agentes foram assassinados em serviço e outros 1839 durante as folgas ou trabalhando em bicos. Em relação aos suicídios, apesar de não existirem estudos de âmbito nacional, a pesquisa realizada pelo Centro Latino-Americano de Estudos da Violência e Saúde da Fundação Osvaldo Cruz, com policiais fluminenses, civis e militares, constatou que o sofrimento psíquico atingia níveis preocupantes em 33,6% dos soldados da PM entrevistados e em 20,3% dos agentes da Polícia Civil, sendo que na PM a taxa de suicídios era 7,2 vezes maior do que a média da população brasileira.[1]
         Na mídia, criminalidade, violência e segurança pública são temas que andam de mãos dadas. Em volta deles, reportagens e debates de todos os tipos invocam mais treinamento e rigor das forças policiais. Sob a pressão dos acontecimentos, vítimas e culpados trocam de lugar no banco dos réus. Os holofotes apontados para o dedo que aperta o gatilho focam a gota que faz o vaso transbordar e mergulham nas sombras por ela produzidas os complexos problemas que encheram o vaso e prometem gerar ocorrências ainda mais assustadoras.
         Bastam poucas perguntas para visualizar o tamanho do abismo que permanece intocado: Qual é a eficácia real de uma segurança pública baseada na força em áreas onde o Estado prima pela ausência na hora de garantir os direitos básicos à saúde, trabalho, moradia e educação? É possível resolver “à bala” a violência cuja origem deita raízes na marginalização social? Em que medida, ao apresentar o cotidiano como uma guerra de todos contra todos, a mídia banaliza a violência a ponto de contagiar as relações entre as pessoas?
         Em que referência simbólica se baseia a imagem do policial ideal, preparado, destemido e que nunca erra? O que significa para um agente em carne e osso viver em situação de risco e obedecer a ordens superiores mesmo quando estas contrariam sua percepção do cotidiano? Que parâmetros lhe permitem optar pelo uso da força e dosar a intensidade com a qual vai empregá-la? Como demarcar a fronteira entre a legitimidade da coação, autorizada pelo Estado, e a violência policial numa realidade ameaçadora e imprevisível? Quantas são as chances de um policial sob pressão fazer a “escolha certa”?
         Responder a estas, e outras, perguntas não é parte de um esforço que visa justificar o comportamento deste ou daquele ator social, seja ele policial, criminoso ou manifestante, e, menos ainda, procura fazer com que o culpado mude apenas de endereço ao passar de quem apertou o gatilho a quem deu as ordens.
         Perguntar o porquê do por que da realidade é um passo necessário para trazer à tona aspectos que costumam permanecer nas sombras e sustentam os acontecimentos que condenamos. Sem a pretensão de esgotar o debate, nossas breves reflexões buscam apenas trazer à luz algumas peças deste imenso quebra-cabeça.
         1.  Violência, mídia e senso comum.

         Não é de hoje que as pessoas encontram nos meios de comunicação um espaço no qual se identificam em termos de ideias, valores e critérios que permitem compreender a realidade. A sintonia que se estabelece entre leitores, ouvintes e telespectadores com determinadas publicações e programas tem como elo o perceber que as próprias ideias e vivências são parte de um universo mais amplo. Constatar que há mais gente pensando ou fazendo a mesma coisa é fonte de segurança e atua como critério de “verdade”. Assim, dizer que “deu no rádio, no jornal, na TV ou na internet” acrescenta às convicções do indivíduo uma comprovação quase indiscutível de que se trata de algo partilhado e veraz.
         Para obter este resultado, é importante que as manifestações e posições de um determinado veículo de comunicação dialoguem com o senso comum, o façam evoluir sem provocar reações frontais e criem uma sensação de identidade que desativa a capacidade de refletir criticamente sobre o conteúdo apresentado. Fisgar um determinado público alvo e fazê-lo sentir “em casa” impede que o indivíduo sequer perceba os três crivos pelos quais passam as notícias desde a narração primária, produzida pelas testemunhas, ao momento em que são divulgadas:
1.    O interesse da fonte em relatar e omitir determinados aspectos do ocorrido;
2.    A ideologia e a política do grupo editorial que definem o que deve ser sublinhado e omitido;
3.    As características do leitor, ouvinte ou telespectador que acompanha programas e produções e que, como assinalamos acima, precisa encontrar no sentido divulgado de um acontecimento os elementos que renovam sua fidelidade à mídia em questão.
         A “verdade”, comprovada por imagens, sons e afirmações devidamente montadas, é o resultado da mescla de elementos que se descolam do acontecimento inicial e, ao reforçar ou relativizar determinados aspectos, torna dispensável a busca das causas profundas que lhe deram origem ou define como inaceitáveis as explicações obtidas a partir delas.
         O nível de ambiguidade aumenta quando o que está em foco são as cenas de violência e brutalidade criadas pela atuação do tráfico, pelas incursões policiais nos seus territórios ou pelas agressões a manifestações de protesto. Frequentemente mesclado a imagens e diálogos impactantes que alimentam a sensação de desamparo, o sentido dado às notícias procura qualificar a mídia como intérprete do sentimento coletivo que pede ao Estado medidas enérgicas para resolver os problemas apresentados. E, como as aparências sempre dão razão às aparências, a solução não pode ser outra: uma polícia que não dá moleza, bem treinada, equipada com o que tem de melhor, capaz de distinguir os “bons” dos “maus” em qualquer teatro de operações, que não erra em sua tarefa de proteger o cidadão honesto e cujos membros são controlados de perto por instituições destinadas a impedir vacilos e desvios de conduta. Sem dúvida, um corpo de segurança utópico, inexistente em qualquer lugar do mundo, mas que entra como uma luva no imaginário do senso comum.
         E, aqui, duas observações se fazem necessárias:
1.    Os aspectos negativos das ações policiais e os vínculos com o crime de alguns de seus membros, também são utilizados para afirmar a necessidade de uma polícia ideal. A desqualificação nunca é motivo para uma análise criteriosa da realidade que levou a determinado desfecho, mas apenas reafirma, sob outro enfoque, o refrão utópico apresentado;
2.    Por sua vez, as apreensões de armas e drogas, as detenções e os flagrantes comprovam que os agentes de segurança poderiam atingir o patamar ideal se contassem com mais poder de agir, meios avançados e eficientes.
         Nos sucessos e nos fracassos, o foco da mídia não se afasta dos elementos imediatos, dando a impressão de que é possível construir uma segurança pública que se sustenta apenas na força policial.
         Ao excluir, parcial ou totalmente, as relações econômicas e sociais, a situação real dos territórios que abrigam o caldo de cultura para o desenvolvimento da criminalidade simplesmente desaparece. Nomes de ruas, bairros e morros se tornam sinônimo de violência indiscriminada, terra de ninguém, lugar sem lei, símbolo de risco iminente, a qualquer hora do dia e da noite. Em volta deles, a parcialidade da mídia cria fantasias, medos, fobias e representações da realidade que concentram a percepção coletiva nos elementos que sustentam sua visão de segurança pública. Concretamente, ninguém se pergunta por que, em determinado lugar, as pessoas se armam e arriscam suas vidas para vender substâncias ilícitas, quem são os compradores preferenciais dos entorpecentes, que condições alimentam o crescimento do tráfico nestes ambientes e qual é a trajetória de quem se envolve com o crime.
         A marginalização e a invisibilidade a que são condenados os moradores das periferias parecem não guardar nenhuma relação com o reconhecimento, a valorização, a autoestima, o acesso a recursos materiais e simbólicos proporcionados pelo tráfico e que servem de passaporte para a visibilidade e o pertencimento ainda que no ambiente limitado de uma favela. Quem era humilhado e discriminado a ponto de sentir vergonha ao informar o endereço de residência, no interior da organização criminosa, ganha respeitabilidade pela arma que carrega e a fama que o acompanha; tem acesso a bens que antes pertenciam a sonhos distantes, ainda que isso implique em correr o risco de ter sua vida ceifada por uma morte prematura e violenta. A fronteira que separa o passar necessidade e ser marginalizado, apesar de se esfolar num trabalho honesto, do sair do aperto e obter centelhas de reconhecimento graças ao crime é sempre muito tênue e porosa. Os mecanismos que permitem atravessá-la em ambas as direções são complexos e não imediatamente visíveis, mas conhecê-los e tratá-los como questões sociais é o passo indispensável para privar a criminalidade das condições que hoje permitem sua expansão.
         Neste contexto, as medidas de segurança pública são apenas parte do processo e, por sinal, uma parte bem pequena em relação ao tamanho da tarefa. Mas, ampliar o foco da análise leva a questionar a ordem social, a investigar a rede de relações que produzem a desigualdade e a marginalização, a atingir os interesses das elites e a incomodar os setores médios que, com elas, alimentam o coro da limpeza étnica. Sem resolver questões de fundo, a segurança pública é e será sempre uma forma de tapar o sol com a peneira, ainda que, de imediato, o impacto de algumas medidas produza efeitos superficiais cuja duração tem prazo de vencimento marcado pela capacidade que a criminalidade tem de reorganizar suas fileiras graças aos meios incessantemente produzidos pela realidade social.
         Sob os holofotes da mídia, o policial passa de herói a vilão a depender dos acontecimentos, da realidade que ocultam e do processo pelo qual a identificação do dedo que aperta o gatilho dispensa qualquer reflexão sobre a complexidade das questões que explicam o seu gesto. Assim, os traficantes que dominam os morros, os policiais que matam inocentes, ou se corrompem, são transformados em bodes expiatórios de um sistema que precisa ocultar os problemas que ele próprio criou.  
         Mas isso não é tudo. À medida que a falta de segurança é sistematicamente vinculada a uma legislação permissiva, às falhas da polícia e à expansão da criminalidade, a ideia pela qual “bandido bom é bandido morto” ganha feições de uma autorização social para matar a fim de evitar que os “maus” ameacem os “bons”. Ao fazer isso, as imagens e estereótipos criados pela mídia colocam as forças policiais entre o prego e o martelo por razões que guardam uma relação direta com o setor da sociedade que está com a palavra. Não faltam pesquisas que, por motivos opostos, apontam como ruins e malquistos os serviços de segurança pública de uma mesma cidade. Da classe média pra cima, as queixas se concentram na insegurança e na ineficiência policial, à medida que falta rigor e vigilância em relação aos pobres “criminógenos” que circulam pelos bairros onde os ricos moram ou desfrutam dos momentos de lazer. Do lado oposto, a população das favelas e periferias se sente discriminada, maltratada e profundamente insegura diante das atitudes e práticas dos agentes da lei.
         A pergunta natural que nasce desta percepção não guarda relação ao como conciliar duas posições contrastantes num ideal de segurança pública que só existe no imaginário coletivo e sim em verificar se há uma diferença substancial nas saídas apresentadas para a violência por parte de quem está numa situação de marginalização social.
         Uma pesquisa de opinião conduzida pela UNIFESP em localidades da Grande São Paulo com altos índices de criminalidade, como Heliópolis, Capão Redondo, Perus, Guaianazes e Osasco, e publicada no jornal El País em 10 de novembro de 2015, ajuda a transformar impressões em números. Realizada com homens e mulheres acima dos 16 anos de idade, a enquete revela que, para 93% dos entrevistados, são necessárias ações mais duras para combater o crime nesses bairros, sendo que 90% do total são a favor de aumentar a presença da polícia nas ruas, 74% votaria num político de linha dura contra o crime e 74,7% apoia a redução da maioridade penal. E isso apesar de 66,7% acharem que a polícia é violenta, 62,6% reconhecê-la como racista e 60% ser contrário à ideia de que ela deve matar bandidos. Trocado em miúdos, a vivência diária da relação com a polícia real não questiona o imaginário semeado e adubado pela mídia, mas apenas os excessos e as distorções do policiamento em razão dos quais se afasta majoritariamente do suposto consenso pelo qual bandido bom é bandido morto.
         As saídas costumeiramente apontadas para a segurança pública têm como pressupostos não só a falta de percepção das raízes sociais da violência, mas a identificação da sua origem na índole das pessoas e nos problemas familiares pelos quais passaram, como se esses âmbitos não guardassem nenhuma relação com o ambiente externo. Por esta visão, a origem do mal estaria no DNA do indivíduo ou da educação recebida e não no funcionamento da sociedade, sempre apresentado como natural e mera somatória de obras do acaso.
         Preservado e inocentado o sistema, colocadas suas vítimas no banco dos réus, a resposta social apoiada pelo senso comum se assemelha à do cachorro que morde a pedra e não a mão que a atira. O produto da marginalização, da fome e da humilhação que apela à violência para lançar o seu pedido de socorro, canalizar sua revolta e buscar espaços de afirmação, ainda que isso o afaste da denúncia das injustiças sofridas e de possíveis aliados, é mordido com a demanda de ações duras que o façam recuar ao conformismo de quem tem como perspectiva de vida apenas o ser feliz na favela onde nasceu. Em troca, pede a um sistema marginalizador que lhe dê uma chance de sair do anonimato e revelar os próprios talentos num patamar onde indivíduos esforçados e merecedores, e não a coletividade, ocupam o centro das atenções. E, como é de se esperar, quando tudo depende fundamentalmente do indivíduo, não há como e nem porque visualizar o caminho que leva ao fim da marginalização como causa coletiva.
         Quando migramos dos programas de notícias e documentários para os seriados policiais veiculados pelas emissoras de TV a cabo, constatamos a presença de algo que vai além dos elementos apresentados.
         Apesar de serem obras de ficção, o realismo das tramas que se desenrolam na tela se preocupa em fazer com que o telespectador encontre, em cada capítulo, o retrato de uma realidade possível graças à proximidade com o ambiente em que se movimentam seus temores e expectativas. A mescla de habilidades pessoais, raciocínios lógicos, coleta criteriosa de evidências, competências diferenciadas, respostas à altura dos desafios e práticas que se descolam das prescrições legais na condução das investigações leva a um trabalho policial de excelência que, quase invariavelmente, consegue colocar os criminosos atrás das grades. Aos poucos, assistir ao seriado passa de uma diversão a uma forma de restaurar no plano simbólico um mundo no qual a ordem sempre acaba por prevalecer e onde os “maus”, por hábeis que sejam, vão encontrar alguém capaz de desmascará-los e prendê-los.
         Contudo, este alguém não é mais o ser excepcional, de qualidades extraordinárias e reputação a toda prova dos filmes e seriados de trinta anos atrás, mas um policial que alterna momentos de heroísmo e de fragilidade, que comete deslizes, fundamentalmente fiel aos valores do seu país e da corporação, mas também capaz de violar as normas para extrair uma confissão e levar a bom termo a investigação na qual está envolvido. A punição do criminoso é a peça-chave em volta da qual as falhas são justificadas e os abusos perdoados.
         Na serie televisiva NCIS, por exemplo, Gibbs, a personagem principal, tem esposa e filha assassinadas pelo integrante de um cartel de drogas que foge para o México a fim de não ser preso. Inconformado com a impunidade, Gibbs vai atrás dele, descobre onde se refugia e o mata. Nos capítulos seguintes, encontramos vários momentos que retomam a discussão sobre o ocorrido deixando o telespectador com duas pergunta para as quais a trama oferece subliminarmente uma resposta: É justo que, contrariando frontalmente a lei, Gibbs mate o assassino impune de seus familiares? Até a que ponto o encarregado pelo Estado de fazer justiça de acordo com a lei pode violá-la sem ser punido?
          A atitude complacente dos colegas de profissão que visa acobertar o crime, e não demonstra se incomodar com o desvio de conduta de seu chefe, apoia a ideia pela qual fazer justiça fora dos meios legais, enquanto resposta proporcional a um crime, pode ser aceita quando as garras da lei foram incapazes de evitar a impunidade.
         A troca da morte do traficante pelo assassinato de duas pessoas inocentes, sem que ninguém mais fosse atingido, é considerada aceitável em função da proporcionalidade que estabelece entre os acontecimentos. Aos poucos, as violações cometidas pelos policiais dos seriados colocam o telespectador na soleira da porta que dá acesso a uma “justiça” que não passa pelos tribunais, contraria a lei e depende da atuação de cada agente, mas que é aceita como forma de eliminar as ameaças ao cidadão de bem que os caminhos oficiais foram incapazes de deter.
         Além disso, os seriados costumam apresentar a imagem de um policial quase impermeável ao sofrimento psíquico. Tiroteios, perdas de colegas, ferimentos que levam o agente à beira da morte, etc, no máximo, deixam nas personagens sofrimentos passageiros, rapidamente superados em nome do dever, do treinamento recebido e das novas investigações. Enfim, uma situação em que fraquejar não passa de um momento transitório e absurdamente breve quando comparado ao desgaste sofrido. O ser humano que veste o uniforme de policial mostra capacidades incomuns em relação às de seus semelhantes que, caso fossem uma condição fundamental para ingressar na carreira, com certeza, esvaziariam as fileiras da corporação.
         Num balanço geral, podemos dizer que os seriados e as intervenções que predominam na mídia sustentam a que chamávamos de autorização social para matar, como se este ato não tivesse consequências negativas para a sociedade e para os próprios policiais.
         Por isso, a seguir, vamos resgatar os aspectos essenciais das pesquisas às quais tivemos acesso e que trazem um quadro assustador dos problemas enfrentados pelos agentes, do treinamento à atuação no âmbito da corporação, e das consequências diretas no seu equilíbrio emocional.[2]

         2. Treinamento, missão e...o impacto com a realidade

         Refletimos acima sobre os limites de uma política de combate ao crime desvinculada de respostas abrangentes aos problemas sociais. Situação igualmente complexa vem à tona sempre que protestos de rua são reprimidos, tenham ocorrido ou não provocações ou atos de vandalismo.
         Sempre que, ao apresentar suas reivindicações, os movimentos são coagidos, intimidados ou repelidos a cacetadas, gás lacrimogêneo, etc., o Estado mostra que não irá titubear no uso da força para restabelecer a ordem de marginalização em volta da qual organiza a vida em sociedade. O medo de apanhar da polícia, o questionamento da legitimidade das reivindicações e a criminalização dos movimentos podem adiar os prazos das novas manifestações, mas não impedir ao descontentamento atiçado pelas contradições sociais de se concretizar em novas formas de protesto.
         Basta isso para percebermos que a postura da policia diante dos setores da população que se mobilizam para reivindicar direitos negados aponta para uma somatória de fatores raramente visíveis ao senso comum e que, com o tempo, levam parte dos agentes a se transformarem em monstros ou a perderem o sentido do trabalho. Um exemplo vai ajudar a visualizar esta realidade.
         No domingo, dia 30 de outubro, o juiz Alex Costa de Oliveira, do Distrito Federal, autorizou a polícia militar local a lançar mão de técnicas de tortura para forçar o desalojamento dos prédios ocupados pelos estudantes que protestavam contra a Proposta de Emenda Constitucional que encolhe os gastos públicos, incluídos os que se destinam à educação, e a proposta de reforma do ensino médio enviada ao Congresso pelo governo através da medida provisória 746/2016. A intervenção do juiz faz com que a Polícia Militar do DF possa lançar mão da privação do sono (com som em alto volume nas 24 horas do dia), do corte de água, luz e gás, além de restringir o acesso de familiares e amigos, incluídos os que levam alimentos aos estudantes. E, se isso já não fosse o bastante, o senhor Alex da Costa diz que as medidas devem ser aplicadas em cada escola ocupada, “independentemente da presença de menores”.[3]
         Não sabemos se você teve acesso a esta notícia e qual é a sua reação diante desta tentativa de criminalizar um movimento social pacífico, mas pedimos que se coloque por um instante nos sapatos dos policiais encarregados dos desalojamentos. De um lado, não há como negar que se deve executar o que a justiça manda. Mas, como morador das regiões periféricas, você tem noção das precariedades e problemas das escolas do seu bairro, conhece alguém que estuda nelas, pressente que as coisas podem realmente piorar e que sua ação ajudará a realidade a caminhar nesta direção.
         Como você se sentiria ao seguir as recomendações do juiz? Seria apenas mais uma situação indesejável do trabalho policial? A ordem de desalojamento produziria um conflito entre a sua leitura da realidade e o mandato que deve realizar? Como administraria a tensão que nasce dele? Conseguiria sufocar sentimentos e percepções de que há algo errado nisso tudo? Os desdobramentos da sua ação e as respectivas consequências para alunos e comunidades não arranhariam a sua forma de ver a profissão?
         Repare que para quem senta na cadeira do juiz, a crença pela qual esta manifestação de protesto precisa ser dissolvida a fim de restabelecer a ordem, pode fazer todo sentido, ainda mais que os filhos dele não estudam em escolas públicas do ensino fundamental e médio, a família passa longe de morar onde você mora, não será o juiz a viabilizar as medidas recomendadas e nem a lidar com os sentimentos negativos pelas consequências nefastas que elas podem provocar. Mas para você, policial, que sentido faz usar práticas de torturas contra estudantes, muitos dos quais são menores de idade?
         Imagine agora que você endureça a ponto de executar a autorização judicial sem titubear, pois, afinal, você é um homem da lei, treinado para manter a ordem, o que implica em fazer cumprir os mandatos judiciais. Sentiria orgulho e satisfação ao realizar esta missão? A capacidade de silenciar qualquer questionamento que a sua consciência pode despertar abriria caminhos para a banalização de formas brutais de agressão no cotidiano do trabalho policial? Usar instrumentos de tortura contra um movimento pacífico o faria sentir previamente autorizado a adotar medidas ainda mais duras quando da abordagem ou interrogatório de suspeitos e criminosos?
         É apenas um exemplo, mas é inegável que situações parecidas se repetem com uma frequência inesperada. Quantas delas você conseguiria enfrentar sem problemas ao se colocar diante do divisor de águas que separa o caminho para a brutalidade do que leva imediatamente a um sofrimento psíquico desgastante? Ainda que conseguisse optar sempre pelo primeiro, o seu agir nunca questionaria o sentido do que faz e no qual procura reconhecimento e realização?
         São somente perguntas. E se trata apenas de um exemplo. Mas que elementos o cotidiano do policial têm em comum com a realidade que esboçamos com essas questões?
         Os textos e as reportagens consultadas são unânimes em apontar a ideologia que rege as instituições militares como uma das principais responsáveis pela brutalidade da violência policial. Ao assumir como próprios o modelo institucional e a estrutura organizacional do Exército, a polícia militar deixa de compreender o seu papel como “serviço público” para adotar uma lógica de atuação baseada na guerra, e, portanto, voltada a eliminar os inimigos num ambiente onde os suspeitos são alvos de um ataque potencialmente destruidor. Fortalecido durante a ditadura militar, que encarregava a PM de realizar um policiamento ostensivo e repressivo para aniquilar os grupos que atentavam contra ela, o confronto armado continua sendo estimulado como forma de enfrentar o crime, cuja organização e poder de fogo crescente são usados para justificar o permanecer desta perspectiva que orienta a ação policial.
         À medida que as instituições são permeadas pela percepção do criminoso como inimigo a ser destruído, contagiando seus agentes e transformando-os aos poucos em máquinas de matar ou morrer, o cenário mais provável é o de que se instaure neles um processo de desumanização cujos efeitos perversos apontam, de um lado, para a brutalidade no uso da força e, de outro, para patamares de sofrimento psíquico insuportáveis para os próprios agentes. E não é pra menos. A ideia de segurança pública como filha única de uma guerra a tudo o que pode ganhar o nome de “crime” reflete as formas de gestão que a elite brasileira reserva aos marginalizados que ela própria produziu com suas ações no campo da economia e da política. A ordem pública que o Estado convoca as polícias a fazer respeitar se baseia nos interesses de segmentos e espaços sociais determinados, de estruturas unidas por uma argamassa que mescla aspectos legais propositadamente vagos à construção de um consenso pelo qual, por exemplo, um pneu incendiado no protesto de um movimento social emerge como um ato de “vandalismo” e “violação de um direito coletivo” bem mais grave do que as atrocidades econômicas que produziram a revolta materializada no fechamento temporário de uma via de acesso por aquela ação dos moradores.
         O resultado esperado não pode ser outro: uma polícia envolvida em sucessivas e diferentes cruzadas em defesa de uma sociedade onde a importância dos seres humanos se define pelo tamanho de suas contas bancárias, realizada por agentes armados cuja origem social se situa no campo oposto ao da elite, mas que foram instruídos a suprimir o próprio pensamento e a cumprir ordens. O tipo de cruzada e o peso da mão de ferro a ser utilizada nos combates guarda uma relação direta com o momento político, com a possibilidade de lutas sociais extrapolarem os limites definidos pelas elites, com a distribuição da riqueza produzida, com o acesso a bens e serviços, além do desgaste da imagem pública dos governantes de plantão. Seja como for, o agir policial é orientado para esmagar um conjunto variado de perturbadores (pouco importa se eles são traficantes, ladrões, homicidas ou lutadores sociais) cuja ação cria obstáculos ao funcionamento da ordem e ameaça semear o caos da mesma forma em que uma nuvem carregada traz a tempestade.
         O pressuposto para esta concepção funcionar e produzir os efeitos desejados deita raízes na necessidade de o policial abrir mão de seus valores e vivências, das ideias e critérios de análise que possuía antes de ingressar na corporação como condição para se encaixar no “molde” do qual sairá pronto para ir a campo. Ou seja, para realizar suas atribuições de soldado numa guerra sem trégua e sem fim, o agente precisa aprender a olhar para a realidade através de parâmetros que não são os seus, mas sem os quais não poderá atuar num corpo policial do Estado. Ao fazer isso, o indivíduo perde a sua subjetividade, precisa suprimir suas reações diante dos aspectos cotidianos que revelam as monstruosidades da ordem que se preparou para defender e que estão sob seus próprios olhos nas casas dos vizinhos, no bairro onde mora, no seu próprio círculo familiar, nos colegas de farda tratados às vezes como peças descartáveis e diante das consequências sofridas no exercício da profissão.
         A sobreposição da “personalidade do trabalho” à identidade do sujeito provoca tensões que o policial raramente consegue equacionar a contento. A sua disposição e capacidade de suprimir as percepções, as dúvidas, as incertezas, os contrastes e as contradições que as ações policiais deixam nele têm limites. A pressão alimentada por este combustível tende a elevar a agressividade, a produzir desequilíbrios psíquicos, a impedir que o policial possa lidar bem com sentimentos e emoções e a levá-lo a um isolamento social que, em muitos casos, inclui o próprio âmbito familiar.
         Alguns exemplos ajudam a visualizar quanto acabamos de apontar. Entre os traços da personalidade do trabalho, encontramos a suspeita em relação ao outro como peça importante da ação policial. À medida que, a priori, ninguém pode ser visto como sem envolvimento com um determinado caso, a desconfiança é um aliado necessário no exercício do trabalho. O problema está, justamente, em traçar uma fronteira entre o nível de suspeita adequado às situações enfrentadas e a suspeição que é a sua deformação neurótica. De fato, não há como “desligar” este aspecto ao retornar para o ambiente familiar, sair de férias ou nas demais relações diárias. A suspeita que torna eficaz a atuação do agente molda também o óculo através do qual ele enxerga a vida fora do trabalho e, aos poucos, se constitui em mais um elemento que o isola do convívio social. Para compensar este distanciamento, o policial tende a fortalecer os laços com os membros mais próximos da corporação e a consolidar determinadas leituras dos acontecimentos para se convencer do acerto de suas posições. Mas, com o tempo, o círculo de contatos e relações assim criado se fecha a ponto de não incluir momentos de convivência com os que estão fora desse meio.
         Do mesmo modo, a busca da objetividade necessária para o desempenho da profissão leva o agente a classificar problemas e situações na base do “certo” ou “errado”, desprezando qualquer meio termo. O fato de sua reflexão e construção do conhecimento não ir além de pares opostos se acentua à medida que ele se vê como alguém que, ao agir desta forma, resolve os problemas do trabalho e exerce certo domínio sobre a realidade, mesmo em situações perigosas. Se, de um lado, a natureza da atividade exige objetividade, de outro, a vida fora do trabalho é pródiga em momentos que não podem ser enclausurados na lógica do “certo” ou “errado”, que demandam jogo de cintura, paciência para deixarem os acontecimentos amadurecerem, flexibilidade para intervir em seu desenvolvimento utilizando formas de compreensão que superam a divisão da realidade em campos opostos.
         Quando a identidade policial se impõe às de marido, pai, irmão e amigo e o agente se torna incapaz de dialogar com a leitura do cotidiano que estas exigem, ele começa a enfrentar atritos que reduzem o nível de sociabilidade no interior do círculo familiar e do ambiente em que se movimenta fora do trabalho. Ir ao clube, ao cinema, ao parque com os filhos e a esposa, fazer um churrasco com amigos que não são da corporação começa sendo difícil e pode se tornar um evento raro e inviável com o passar do tempo. Ao agravar o isolamento e os sentimentos de aflição, a realidade vivenciada começa a apresentar uma sequência de situações que o policial sente não poder dominar ou controlar. Se, diante desta percepção, ele for aplicar a leitura dos eventos que o cercam na base do “certo” ou “errado”, a hipótese mais provável é a de que venha a elevar o nível de cobrança pessoal e alimentar uma crescente sensação de fracasso.
         As dificuldades que os policiais têm de lidar com os problemas pessoais guarda relação também com o esforço de escamotear as próprias emoções, exigido dos agentes em serviço. Mas, uma coisa são as prescrições e outra, bem diferente, as situações do trabalho real. De fato, a rotina de um policial é feita de imprevistos e demanda que ele passe por momentos que vão de um extremo a outro. Por exemplo, como deixar de sentir raiva contra alguém que está sendo preso por estupro ou por matar a esposa de forma covarde? Do mesmo modo, e às vezes horas depois, será que dá para conter expressões de empatia diante da vítima de um crime, ainda mais se esta for uma criança?
         Mas isso não é tudo. Mesmo sendo hábil em desativar e dominar as próprias emoções quando está em serviço, será que o agente consegue “religá-las” ao voltar para o convívio familiar ou nos momentos de descanso e lazer? Ou será que este processo vai levá-lo a instaurar relações frias e impessoais e, ao não conseguir se despir da identidade profissional, fazer com que assuma posturas autoritárias, agressivas e silenciosas com os próprios familiares? Ver que as emoções estão fugindo do controle faz o policial entrar em conflito consigo mesmo, eleva o nível de estresse, aumenta a cobrança em relação à própria postura, gera frustrações ao perceber a dificuldade de conseguir e pode abrir as portas a situações de confusão mental.
          Por outro lado, o contato frequente com situações de miséria humana demanda que ele erga uma barreira capaz de protegê-lo do impacto dos eventos com os quais se depara. Suas defesas contra a desumanização e o embrutecimento devem ser fortalecidas sempre que a realidade impacta o equilíbrio emocional, mas, quando a solidariedade e a confiança dos colegas são a única proteção com a qual pode contar, é possível que os esforços do agente não sejam suficientes para dar conta desta tarefa.
         Numa profissão que tem o uso da força e da autoridade como meio de ação, a agressividade é um fator importante na seleção dos futuros policiais. O que se exige do candidato como pressuposto para entrar na corporação é que tenha um bom nível de agressividade, que saiba controlá-la e aprenda a canalizá-la, ou seja, que ele seja capaz de dosá-la de acordo com a situação. Sem dúvida uma tarefa difícil não só por se tratar de uma atividade onde o risco é companheiro de todas as horas, mas, sobretudo pelos efeitos da “pedagogia do sofrimento” usada no treinamento dos futuros agentes.
         De acordo com um levantamento de 2014, apresentado no Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 28% dos policiais entrevistados afirmaram terem sido vítimas de torturas em treinamentos ou fora deles e 60% narraram situações de desrespeito ou humilhação por superiores hierárquicos. Privação do sono, pancadas, tarefas em salas impregnadas de gás lacrimogêneo e pimenta, almoço misturado com água e consumido com as mãos imundas de terra e pus, humilhações e assédio moral integram um cardápio de cunho militarista ligado a costumes e hábitos de um guerreiro que tem no combate bélico a forma prioritária de proteger a sociedade. A crença que está na base desta opção de treinamento baseada na violência psicológica, moral e até física, é a de que o corpo e a mente dos futuros soldados devem ser condicionados para vencer o medo e o perigo como condição básica para a guerra contra o crime. Longe de reforçar o valor da comunicação com as pessoas, da solução de problemas e da relação com a comunidade, os rituais da pedagogia do sofrimento tendem a levar os recrutas a naturalizarem a truculência e a humilhação como marcas de seus contatos com os cidadãos.
         Último, mas não menos importante, é o abismo entre a visão heroica da missão, que faz o policial se sentir uma espécie de salvador e protetor da coletividade, e o cotidiano vivenciado no trabalho. Alguns dados ajudam a ilustrar quanto acabamos de afirmar. Em média, no Brasil, ocorrem 56.000 homicídios dolosos por ano, dos quais apenas 8% são investigados, ao mesmo tempo em que o país tem a quarta população carcerária do mundo. O aparente paradoxo entre os números da impunidade e o dos presidiários não se deve apenas às especificidades do trabalho da Polícia Militar, que está na rua 24 horas por dia e cuja efetividade se mede pelos flagrantes realizados, mas por uma situação econômica que alimenta a criminalidade. Em outras palavras, os 92% dos homicídios impunes não têm como base a incapacidade pessoal de agentes e investigadores e sim o aumento vertiginoso da criminalidade, das características do seu armamento e formas de ação que as políticas de segurança pública não vão poder derrotar na base da repressão ou melhorando efetivos e equipamentos.
         Com o passar do tempo, o acumulo de casos sem solução, as demandas que não param de crescer e as situações degradantes que adubam a proliferação do crime alimentam nos policiais a sensação de que o seu esforço não passa de uma tentativa de enxugar gelo. Sob o peso da realidade, instalam-se neles sentimentos de frustração, inutilidade e impotência que levam à visão de uma sociedade onde todos são ruins, provocam um distanciamento do trabalho policial, forçam a adotar posturas frias para reduzir o impacto de realidades dolorosas e fazem do álcool e das drogas o caminho mais utilizado para se desligarem do cotidiano.
         Os aspectos que levantamos não permitem apenas compreender o trabalho policial com maior objetividade, mas também começar a reunir os fatores que elevam a taxa de suicídios. Será sobre esse tema, sempre difícil de compreender e aceitar, que esboçaremos as próximas reflexões. 

         3. O suicídio no caldeirão do sofrimento psíquico.

         A simples tentativa de tirar a própria vida nos coloca diante do colapso das esperanças, dos planos e das expectativas que o indivíduo tinha em relação a si próprio e ao ambiente circunstante. A morte como solução para o sofrimento psíquico que se avoluma a ponto de apresentá-la como única saída indica a urgência de uma reflexão profunda. Sob a suposta “fragilidade emocional do indivíduo” ferve um caldeirão de fatores organizacionais que, ao não serem corrigidos, continuarão produzindo e ampliando as situações nas quais viver ou morrer começa a não fazer diferença.
         No Brasil, faltam estatísticas nacionais em relação aos suicídios de policiais e às tentativas frustradas de cometê-los. A percepção comum aos pesquisadores é de que muitos casos registrados como mortes de policiais em acidentes e ocorrências do trabalho não passam de suicídios disfarçados à medida que, em muitos estados, as famílias dos agentes perdem os direitos legais quando se comprova que foram eles a tirarem a própria vida. Assim, não se defender ou não tomar as devidas precauções num conflito armado com os criminosos, se deixar alvejar ao participar voluntariamente de uma operação, ou expor-se desnecessariamente ao perigo são exemplos de situações que podem indicar uma intenção suicida.
         Afinal, o que torna os policiais de todas as corporações mais vulneráveis ao suicídio do que a média da população? Que elementos do cotidiano contribuem para desestruturar psiquicamente pessoas que foram preparadas para as tarefas da profissão? Em que medida o treinamento recebido leva o agente a implodir diante da realidade? Se conviver constantemente com o risco aumenta a vulnerabilidade do policial, que suporte é oferecido aos agentes que passam por situações traumáticas? Por si só, estas questões indicam que as respostas não são simples e exigem visualizar como a organização do trabalho cria situações que fragilizam a estrutura psíquica dos membros da corporação. Vejamos.
         Como em qualquer profissão, o trabalho policial mescla momentos de reconhecimento, satisfação, realização pessoal a situações de angústia, incerteza, frustrações, atritos com colegas e superiores, ocasiões em que respeitar as regras pode colocar em cheque o andamento de uma investigação, mas violá-las para levá-la a bom termo significa enfrentar a possibilidade de ser repreendido e punido. Este vórtice diário mescla situações opostas que forçam os agentes a acertarem contas com a sua forma de pensar o trabalho, com as normas que regem sua atuação e com uma realidade cujo grau de imprevisibilidade é capaz de surpreender até profissionais experientes e gabaritados.
         Um exemplo vai ilustrar quanto acabamos de afirmar.
         O intenso processo que leva os recrutas a passarem da condição de civil à de policial federal incute uma sensação de força emocional sobre-humana, seja pelo treinamento das técnicas de defesa pessoal e uso de armamentos, seja pelos momentos que levam a ver o trabalho como excitante e sempre aberto ao novo. As práticas desenvolvidas viciam muitos novatos em adrenalina ao mesmo tempo em que permitem que eles se apropriem das regras que orientarão o trabalho na corporação e servirão de parâmetro para julgar a sua atuação.
         Este período marca também o início do isolamento do futuro policial federal, à medida que o candidato provém de várias regiões do país e a Academia Nacional de Polícia é em Brasília. O regime de semi-internato dura, no mínimo, três meses ao longo dos quais os alunos devem pernoitar nos alojamentos da Academia, podendo sair dela apenas nos finais de semana. Mas, devido à distância dos locais de origem, a maioria dos alunos acaba permanecendo na capital durante o período da sua formação, o que fragiliza as relações e a integração que o indivíduo tinha antes de ingressar na corporação. O isolamento se aprofunda quando os recém-formados são lotados nas regiões norte e centro-oeste, de fronteira ou nas localidades para as quais é sempre difícil encontrar gente disposta a ficar e aí permanecerão anos à espera da remoção. Destinado a uma comunidade que não é a sua, distante dos amigos e da família, o policial vivencia uma progressiva destruição de suas raízes identitárias e passa a poder contar apenas com o apoio e a solidariedade que encontra no restrito grupo junto ao qual irá atuar.
         Por sua vez, o impacto com o trabalho real produz as primeiras frustrações em quem acaba de sair da Academia. De um lado, o cotidiano da corporação não é sempre tão excitante e desafiador. Os viciados em adrenalina tendem a ficarem deprimidos nos momentos em que predominam a calmaria, as tarefas burocráticas ou rotineiras a ponto de se sentirem desinteressados com tudo o que não guarda uma relação direta com os desafios do trabalho policial propriamente dito. A missão assumida deixa de ser divertida e desafiadora enquanto jogo de sabedoria e habilidades para se tornar um trabalho vazio, irritante, incapaz de gerar satisfação.
         Por outro lado, a participação em ações que apresentam diferentes graus de risco nem sempre é coroada pelo reconhecimento esperado. De acordo com os depoimentos reunidos pelas pesquisas, o clima interno mudou muito ao migrar de uma situação de confraternização aberta após cada operação bem-sucedida às disputas entre castas que pressionam os níveis inferiores da pirâmide hierárquica e produzem situações de rivalidade, conflitos internos, perseguição e assédio moral. Assim, o cotidiano mescla cada vez mais ações contrastantes que abrem caminhos para a elevação do sofrimento psíquico.
         Mesmo não sendo um corpo militarizado, a Polícia Federal segue um regime bem próximo ao das forças armadas e cuja lógica funcional tem a preocupação básica de proteger a instituição. O zelo pela imagem pública decorre da visibilidade e da vulnerabilidade da polícia que é vigiada e influenciada pela Justiça, o Ministério Público, as organizações civis e a mídia. Sob o olhar de atores sociais que podem desqualificar ou enaltecer o seu desempenho, a organização formal da corporação procura controlar o comportamento dos agentes por meio da hierarquia e da disciplina mostrando-se como uma instituição que age de forma legal, ordenada e racional.
         Apesar de atuar em ambientes marcados por constantes mudanças, situações heterogêneas e graus diferenciados de risco e imprevisibilidade, o trabalho policial visto pelo topo da hierarquia revela a crença na capacidade de fazer a corporação funcionar como um homem só graças às regras que definem a forma de agir dos agentes. Por outro lado, é fato que algumas normas podem dar origem a abusos quando de processos administrativos contra um de seus membros. Por exemplo, o regulamento prevê uma punição para quem “trabalha mal”. O problema está justamente em definir o que é trabalhar mal, ainda mais quando o risco e a imprevisibilidade são parte constitutiva do cotidiano dos policiais e podem gerar situações de dúvida, incerteza e ambiguidade frente às quais será o próprio agente a fazer a mediação entre o trabalho prescrito e a realidade. À medida que a resposta depende de quem analisa cada situação, cria-se um clima no qual a disciplina extrema leva os subordinados a adotarem posturas defensivas, um padrão rígido de comportamento e a alimentar uma cultura informal que, na ausência de canais para um diálogo efetivo, pode se contrapor à formalidade do regulamento.
         Assim como ocorre em todas as profissões, a identidade coletiva produzida por esta cultura informal é própria de quem lida com o trabalho real e se expressa em ideias, práticas, vivências, critérios para interpretar e reagir diante da realidade que traduzem a forma pela qual o trabalho é visto e produzido pelos seus executores. O patamar de solidariedade e relação que se estabelece no interior do grupo é fundamental para compensar o isolamento, estimular a confiança recíproca, proteger de situações desgastantes e faz da confiança nos colegas a base a partir da qual pensar o trabalho e, sobretudo, os momentos em que o estrito cumprimento dos regulamentos atrasa, prejudica ou inviabiliza a sua execução. Longe de constituir um patamar de entendimentos livre de contradições, infrações e atritos, a organização informal do trabalho privilegia a iniciativa, a negociação, a adoção de certa margem de liberdade na gestão de situações conflitantes e a solução de dilemas que demandam respostas imediatas. Mas, ser parte do grupo implica também em alimentar a sua identidade com a própria experiência e em agir com lealdade em relação aos demais sob pena de ser excluído do mesmo, de não contar com a cooperação dos colegas e de experimentar um isolamento que eleva a sensação de insegurança.
         Seja qual for a opção do agente enquanto indivíduo, há sempre um preço a ser pago em termos de sofrimento, pois os contrastes, ou a oposição, entre as práticas originadas pela identidade coletiva e as normas da corporação o colocam entre o prego e o martelo. Como “homem da lei” ele se sente incomodado ao transgredir a norma para elevar a eficácia do trabalho. Porém, não transgredir implica na possibilidade de se sentir excluído por seus pares e correr o risco de não produzir os resultados esperados. Desrespeitar o regulamento pode levar a sanções disciplinares. Mas respeitá-lo e reduzir a eficácia da investigação implica na possibilidade de sofrer pressões hierárquicas em função da falta de resultados. O conflito entre as normas oficiais, a organização informal e o estar a serviço da lei alimenta sentimentos ambivalentes em relação à instituição, à sociedade, aos colegas de profissão e ao próprio trabalho de policiamento, frente ao qual o agente passa a alternar sentimentos de amor e ódio.
         Ao focar a polícia civil e militar as pesquisas apresentam vários fatores que elevam o sofrimento psíquico e marcam a distância entre o que é feito e o que é percebido como necessário. Ser policial significa caminhar lado a lado com o risco 24 horas por dia, o que implica em viver uma situação de constante insegurança no exercício da profissão, no trajeto para casa, nas folgas e momentos de lazer. A vivência concreta de situações de risco e de perda de colegas em enfrentamentos armados fortalece a presença constante da sensação de provisoriedade da vida e proximidade da morte.
         Ao renovar-se e atualizar-se diariamente em novas situações, a percepção de viver à beira do abismo alimenta o estresse e amplifica o medo a ponto de levar os policiais a vivenciarem um conflito entre a postura que ressalta os atributos da virilidade, desejada pelas instituições, e o sentimento de medo da morte que os acompanha. Este enfrentamento no interior de cada agente se amplifica na medida em que ele se vê numa guerra onde a precariedade dos equipamentos e das estratégias de ação se depara com a sofisticação dos armamentos e da organização da criminalidade a ponto de fazer com que a presença de policias em alguns setores passe a ser vista como uma sentença de morte antecipada. Ainda que esta situação seja mitigada pela união das equipes nas atividades cotidianas alguns fatores atuam como elemento de desgaste. Entre eles, sublinhamos:
1.    O uso abusivo de serviços extras. Pelos dados publicados, três situações caracterizam o prolongamento da jornada de trabalho. A primeira guarda relação com a distância entre o batalhão e o local onde o agente irá cumprir o seu plantão. A segunda é vinculada à ocorrência de eventos que demandam o corte das folgas e o aumento das horas trabalhadas. A terceira diz respeito ao “bico”, ou seja, à dupla jornada que o agente assume fora do trabalho como forma de aumentar a renda familiar. Estima-se que mais da metade dos policiais tenha um segundo emprego que, como nos casos anteriores, transforma o tempo que deveria ser destinado ao descanso e à recuperação psíquica, em períodos onde a exposição ao risco mantém elevados os níveis de estresse.
2.    Treinamento e tempo de serviço. Não são poucos os casos em que os agentes vão exercer um trabalho para o qual não foram treinados ou não têm conhecimento prático. Os eventos que requerem condições extraordinárias de policiamento são um exemplo desta realidade. É nestes casos que costumam ser escalados para o policiamento de rua também aqueles agentes que prestam serviços internos. O fato de serem designados a executarem atividades para as quais não estão habituados e sem ter familiaridade com o ambiente e a equipe na qual irão atuar faz com que a falta de entrosamento e o desconhecimento dos lugares onde é possível se proteger em caso de enfrentamento armado elevem a exposição ao risco. Sem experiência acumulada, a possibilidade de algo dar errado no manejo de vivências próprias do cotidiano da profissão cresce sempre que a realidade coloca problemas cujas respostas não estão nos manuais e sim na capacidade do agente de construir saídas a partir da prática desenvolvida ao longo dos anos.
3.    A ausência de espaços para o diálogo. A estrutura hierárquica da corporação é um dos traços marcantes de sua organização interna e da forma como é pensada a realização do plano de segurança pública. Abusos por parte dos superiores, como situações de assédio, perseguição ou transferências de policiais que não guardam relação com motivos administrativos ou disciplinares costumam gerar um forte desgaste emocional entre os agentes, ainda mais quando afetam a vida familiar. Por outro lado, a ausência de diálogo se manifesta na falta de instâncias coletivas de reflexão e avaliação do trabalho. Falhas ou problemas que ocorrem no desempenho das ações são tratados apenas nos escalões hierárquicos superiores sem contar com a contribuição de quem se depara diariamente com eles e, por isso mesmo, tem plena condição de ajudar a pensar soluções que superem o caráter reativo, imediatista e focado nos aspectos operacionais do policiamento.
Do mesmo modo, não há uma política de atenção ao policial que acaba de vivenciar situações de estresse agudo como um conflito armado ou a perda de um colega em serviço. Hoje, o normal é o agente voltar ao trabalho na mesma hora como um super-herói impermeável aos traumas sofridos e sempre pronto para a próxima missão. Sem contar com o suporte e a compreensão apropriados, a perda da sensibilidade e a elevação do medo sobem a patamares nos quais tanto os medicamentos receitados como o refugiar-se no álcool e nas drogas pouco podem fazer para ajudar a relaxar e conter o desgaste psíquico. A situação se agrava quando, ao procurar os serviços disponíveis, o agente se depara com um profissional que é de patente superior. Nele, o policial não vê um médico, um psiquiatra ou psicólogo, mas um oficial que, ao ouvir seus relatos, pode puni-lo ou prejudicá-lo. Por outro lado, o acesso à ajuda especializada fora da corporação costuma esbarrar nos custos elevados das consultas e dos tratamentos, inacessíveis para os níveis salariais mais baixos. E, aqui, não precisamos ser especialistas para entender que um policial emocionalmente desestruturado pode elevar não só a sua exposição ao risco, como a da equipe e das pessoas presentes no ambiente onde atua.
         É importante sublinhar que os elementos apresentados desde o início foram separados para facilitar a análise e a compreensão, mas agem simultaneamente no cotidiano de um agente, com diferentes graus de importância a depender da frequência e da gravidade das situações vivenciadas, de sua capacidade de resiliência e do apoio com o qual pode contar. Porém, o simples fato de os policiais terem uma taxa de suicídio bem superior à média da população indica que as chances reais de compensar o desgaste psíquico sofrido são inferiores às que apontam em sentido inverso.
         As pesquisas consultadas sobre tentativas de suicídio por parte de policiais revelam outros aspectos preocupantes.
         A demora em procurar ajuda especializada, por exemplo, ocorre também em função do mito do policial herói e guerreiro, construído durante a sua formação. Treinado para cumprir sua missão sem direito de errar ou titubear, o agente não aceita se ver, e ser visto, como fraco, fracassado ou como alguém cujo sofrimento rompe com os valores primordiais da corporação. Esta postura que dificulta o reconhecimento do próprio processo de adoecimento é fortalecida pelos tabus que ainda cercam os distúrbios psíquicos e a forma como seus portadores são tratados por colegas e superiores. Rotulados de “malucos”, mantidos à distância e tratados com estranhamento após uma tentativa de suicídio, os policiais com forte desequilíbrio emocional veem sua condição de adoecimento sendo ignorada ora como forma de defesa de quem sente começar a enfrentar problemas semelhantes, ora para manter intacta a imagem de guerreiro intrépido veiculada pela corporação.
         Não bastassem os estereótipos e as dificuldades próprias do tratamento psiquiátrico, há casos em que a situação do agente que tentou se suicidar é agravada pela ocorrência de punições arbitrárias. A experiência do Cabo Silva, da Polícia Militar do Rio de Janeiro, ilustra bem este processo ao contar o que aconteceu com ele no dia em que voltou ao Batalhão: Fiquei quinze dias em casa; quando voltei pra trabalhar eu estava trabalhando já com arma de fogo, normalmente. Não entrei nem em SINA[4]. Quando eu voltei, fiquei seis dias detido no Batalhão, preso. É. Meu tratamento foi esse. Eu fiquei dois dias hospitalizado e quinze em casa. No 16º dia, eu voltei à companhia. Me entregaram à tropa e fui punido. Por disparo de arma de fogo em via pública. Entendeu? Só que tem um erro aí; eu li “Disparo de arma de fogo em via pública”, quando não há um fixo; o fixo era eu; eu não dei disparo a esmo; eu era o alvo. Então não foi disparo a esmo, foi um tiro consciente, em mim mesmo, não foi inconsciente. E fiquei seis dias no Batalhão. Agravou? Muito. Ao invés da polícia me dar apoio psicológico, me tratar, não; primeiro, ela me puniu. Por isso que eu não procurei...todos foram...todas as minhas perguntas que foram feitas, por intermédio da polícia, eu falo que não, e não vou procurar; o motivo é que eu estava realmente doente; agora vou caminhar com as minhas próprias pernas, e vou ter que me cuidar, porque? Está me entendendo? Não tive apoio nenhum, nenhum, nenhum.[5]
         Além dos preconceitos e tabus institucionais, os policiais em situação de vulnerabilidade psíquica temem perder o acesso à própria arma de fogo e, sem ela, ver comprometida a própria segurança e a renda mensal. Parte da sua identidade enquanto policial, a arma é bem mais do que um instrumento de trabalho, é algo que o faz integrante de uma corporação, de um grupo de pessoas que combatem a criminalidade. Não menos importante, a liberação para o uso da arma de fogo enquanto profissional de segurança proporciona o acesso às bonificações financeiras recebidas pelos agentes que não têm restrições médicas para o seu manuseio e o trabalho de policiamento ostensivo. Por outro lado, o acesso à arma 24 horas por dia aumenta o risco de suicídio de quem está emocionalmente abalado. À medida que o ato de tirar a própria vida tem um forte componente de impulsividade, o revólver na cintura facilita o acesso ao meio que permite praticá-lo e, ao que tudo indica, o simbolismo que a arma tem para o policial faz dela o meio preferido para o gesto suicida.
         Em nossos dias, o suicídio de policiais constitui um fenômeno preocupante. Mergulhar no cotidiano da profissão para buscar as causas dessas mortes é, ao mesmo tempo, essencial e profundamente incômodo à medida que traz à luz aspectos da organização do policiamento que as estruturas do Estado precisam preservar para garantir a manutenção da ordem de marginalização. O sistema não se importa que as coisas comecem a não fazer sentido para o agente, mas, à medida que este mesmo agente se depara com contradições e conflitos pessoais que o levam a perder o sentido do trabalho, pode enveredar pelo perigoso caminho da desestruturação psíquica no qual o suicídio é o passo extremo. O atentar contra a própria vida coloca o dedo em feridas que extrapolam o âmbito pessoal e se transforma em pedido de socorro que assinala a urgência de mudanças profundas. Por isso, além de doloroso e inquietante, o suicídio é sempre cercado de fortes resistências à busca da verdade e dos nexos que permitem romper a barreira das aparências.

         Nossas reflexões chegaram ao fim. Nelas traçamos linhas que permitem entender vários aspectos do trabalho policial e trazer à luz o que se esconde nas dobras do cotidiano. O silêncio que mergulha no esquecimento a razão de ser da violência que nos assusta é o mesmo que prepara cenários futuros mais tenebrosos, mantém intactos os interesses em jogo na forma atual de pensar e conduzir a segurança pública e inviabiliza qualquer possibilidade de discutir abertamente a atuação das forças policiais num pais onde a democracia é sinônimo de eleição, mas não de compromisso para extirpar os mecanismos que geram desigualdades e injustiças gritantes.
        
 Brasil, 14 de Novembro de 2016


[1] Dados publicados na matéria de Fernanda da Escóssia, Pesquisas mostram avanço de suicídio entre policiais brasileiros, divulgada através da página eletrônica da BBC em português: www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/07/150730_suicidio_policiais_fe_ab
[2] Fundamentalmente, estamos nos referindo aos trabalhos de: Dayse Miranda (Org.) Por que os policiais se matam – diagnóstico e prevenção do comportamento suicida na polícia militar do estado do Rio de Janeiro. Ed. Mórula, Rio de Janeiro, 2016; Tatiane da Costa Almeida, “Quero morrer do meu próprio veneno” – representações sociais da polícia e do suicídio entre os alunos dos cursos de formação profissional da Academia Nacional de Polícia. Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto Universitário de Lisboa em 2013; Maria Cecília de Souza Minayo, Edinilsa Ramos de Sousa e Patrícia Constantino, Riscos percebidos e vitimização de policiais civis e militares na (in)segurança pública. Em: Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, Novembro de 2007, pg. 2767 a 2779.
[3] O acontecimento provocou indignação mundo afora e encontrou um bom espaço no cotidiano mexicano La Jornada do dia 02 de novembro de 2016. Você pode conferir a íntegra da matéria em: http://www.jornada.unam.mx/2016/11/02/mundo/020n2mun
[4] SINA: Serviço Interno Não Armado.
[5] A entrevista está na página 79 do livro de Dayse Miranda (Org.) Por que os policiais se matam – diagnóstico e prevenção do comportamento suicida na polícia militar do estado do Rio de Janeiro.